A Inventividade da Rede (Rastros)

July 26, 2017 | Autor: Jean Segata | Categoria: Actor Network Theory, Cybercultures, Cibercultura, Ciberespaço
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A inventividade da rede Jean Segata1

Resumo A ideia geral desse ensaio está centrada no entendimento das redes como um modo de criar realidades. Isso implica na equivalência de modalidades discursivas que organizam a explicação do mundo e das coisas. Mais que isso, implica mesmo no entendimento de que elas permitem que se faça o mundo, não por seus conteúdos, mais pelos seus potenciais de diferenciação e multiplicação, no que estabelecem elos não-previstos e a tradução de elementos associados. Contudo, no que tange especificamente à Cibercultura, sobretudo são necessários dois deslocamentos em relação aos modos como tradicionalmente são delineados esses estudos: o primeiro se refere ao lugar dos humanos e dos não-humanos naquilo que se chama de redes sociais ou redes sociotécnicas, e o segundo, que diz respeito à própria noção de rede, que sai da entidade ou objeto estudado para a ficção útil ou método de estudo. Palavras-Chave: Ficções Úteis; Teoria Ator-Rede; Construtivismo.

Abstract To understand the networks as a way to create realities it is the focus of this paper. The argument implies the equivalence of discursive modalities that organize the explanation of the world and things. More than that, it implies the understanding that the networks allow you to make the world not for their content, more by their potential for differentiation and proliferation in establishing links unforeseen and translation associated elements. However, with respect specifically to Cyberculture mainly need two shifts in relation to the ways traditionally these studies are outlined: the first refers to the place of humans and non-humans in what is called social networks or socio-technical networks, and second, with regard to the notion of network, which leaves the body or subject studied for the useful fiction or method of study. Keywords: Useful Fictions; Actor-Network Theory, Constructivism.

1. Jean Segata é bacharel em Psicologia (UNIDAVI), mestre e doutor em Antropologia Social (UFSC) e bolsista de pós-doutorado do CNPq no PPGAS-UFSC.

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Introdução Faz alguns anos que a Cibercultura tem reunido pesquisadores de várias disciplinas, em especial a comunicação, a filosofia, a sociologia e a antropologia. De modo amplo, suas discussões tomam como eixo a ideia de rede sociotécnica para falar do ciberespaço. Isso se traduziria, grosseiramente, por fazer pensar em um tipo de espaço não-espaço constituído por pessoas e técnicas. Contudo, basta uma revisão ainda que superficial de alguns desses trabalhos, para se notar que ora a ênfase está no sócio (entendido como o humano) onde são enfatizadas as formas de ajuntamento de pessoas, cuja maior parte das vezes deixa subentendido que aquilo que chamamos de relações sociais é algo que se estabelece exclusivamente entre humanos/pesssoas. Assim, a rede sociotécnica assumiria a forma de um lugar técnico preenchido ou sustentador de relações sociais. Ora também está no técnico (entendido como o não humano) a ênfase encontrada nesses trabalhos. Então é possível encontrar neles discussões que tratam da inovação tecnológica, enfatizando as potencialidades das máquinas e dos softwares, cuja maior parte das vezes deixa subentendido que o humano está para essas técnicas, como se elas exclusivamente determinassem novas modalidades de relação e constituição entre os humanos. Enfim, tanto de uma forma como de outra, sócio e técnico aparecem como fenômenos distintos, mesmo que corriqueiramente tratados sob a égide de um único termo – o sociotécnico. E foi a partir dessa constatação que se começou a buscar na Actor-Network Theory (ANT) os subsídios para se dar um tratamento diferenciado à Cibercultura, pensando o sócio e técnico constituídos simetricamente como uma rede que descentra agências na sua capacidade de tradução (constituição de híbridos). De modo amplo, meu objetivo nesse ensaio será modesto e se limita a fazer pensar nas possibilidades de aproximação entre a Actor-Network Theory e a Cibercultura no que diz respeito ao uso da noção de rede sociotécnica em seus trabalhos2. Rede sociotécnica é um termo muito comumente empregado nos estudos em Cibercultura. Contudo, e notadamente em um diálogo entre a comunicação e a antropologia, nota-se que ele não é evocado com as mesmas qualidades. De modo resumido, esse termo pode tomar aspectos de objeto a ser descrito como maneira de descrever um objeto. Sobre esse segundo aspecto, em especial, a Actor-Network Theory (ANT) tem trazido nos últimos anos contribuições significativas para um debate que reformula muitas das proposições gerais das Ciências Sociais, e por conseguinte, nos seus campos específicos de pesquisa, como é o caso da Cibercultura. Outrossim, ao final, procurarei traçar qualquer paralelo com o construtivismo nominalista de Nelson Goodman, um filósofo estadunidense de orien-

2. Esse ensaio foi apresentado na Mesa Temática Cibercultura e Redes Sóciotécnicas: questões teórico-metodológicas e experiências de pesquisa, do IV Simpósio Nacional da ABCiber (Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura), realizado entre os dias 01 e 03 de novembro de 2010 na ECO-UFRJ. Agradeço aos demais membros dela, Theophilos Rifiotis (UFSC), André Lemos (UFBA), Erick Felinto (UERJ) e Massimo di Felice (USP) pelas contribuições que se incorporam a essa versão.

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tação do Círculo de Viena, para quem descrever o mundo é criar uma versão de mundo. Nesse caso, ao final das contas, eu quererei sustentar que se a rede pode ser pensada como um método para organizar uma descrição de mundo enquanto ficção útil, ela é, na sua potencialidade inventiva, uma maneira de construir versões de mundo. E uma versão de mundo, para Nelson Goodman(1991), é o modo como o mundo é.

Rede como Método Para a ideia de rede como método escolhi pensar a minha trajetória de pesquisas em cibercultura, em especial do modo que a constitui a partir de algumas de nossas discussões clássicas até chegar em Bruno Latour. Talvez soe prosaico demais, mas isso poderia ser chamado “as coisas que Latour tirou de mim”. Fazia alguns anos que eu respondia que o que eu vinha pesquisando era a vida social das pessoas nas tecnologias e as tecnologias na vida das pessoas - enfim, redes sociotécnicas. E aqui começam meus problemas. O primeiro deles é o do lugar do técnico da rede sociotécnica em Cibercultura. O técnico sempre teve um valor de destaque nos trabalhos em Cibercultura, e sem muitos detalhes, eu me inspirava em um dos nossos clássicos, Pierre Lévy, quando em seu Cibercultura (2003, p. 41), ele define que o ciberespaço não compreende apenas materiais, informações e seres humanos, é também constituído e povoado por seres estranhos, meio textos, meio máquinas, meio atores, meio cenários: os programas. Um programa, ou software, é uma lista bastante organizada de instruções codificadas, destinadas a fazer com que um ou mais processadores executem a tarefa. Através dos circuitos que comandam, os programas interpretam dados, agem sobre informações, transformam outros programas, fazem funcionar computadores e redes, acionam máquinas físicas, viajam, reproduzem-se, etc. (LÉVY, 2003, p. 41).

Assim como nessa definição de Pierre Lévy do que seria o ciberespaço, outras tantas definições de outros objetos da Cibercultura reservam um lugar de destaque ao técnico, contudo esse destaque é sempre polarizado - ou é coadjuvante ou é protagonista. Como coadjuvante, o técnico é aquilo que permite inovações humanas - novas formas de se comunicar ou de se relacionar de um modo amplo. Ele engrandece a possibilidade do humano, desafia os seus limites, e se mistura mesmo ao humano como no caso dos ciborgues mas no fim, aparece sempre o humano como o agente, como aquele que faz, possibilitado pelo seu coadjuvante, o técnico. E foi nesse caminho que conduzi minha etnografia no orkut entre 2005 e 2006, onde eu entendia, por exemplo, que o “programa orkut”, com os seus bits, bytes ou pixels, formavam um lugar especial onde humanos poderiam se associar - uma espécie de

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cenário tecnológico. E novas associações se faziam conforme novas possibilidades técnicas iam aparecendo naquele programa. E antes do orkut, outros programas faziam isso, como o e-mail, as listas de discussão, as salas de bate-papo ou os blogs; e outras viriam depois, como o twitter, por exemplo, com seus 140 caracteres. Enfim, eu pensava em um humano protagonista que cria novas técnicas e que permitia se recriar nelas num jogo assimétrico de regras “humano-agente e técnico-agido”. O sociotécnico seria então um rótulo dessa síntese que entendia o sócio como conjunto humano e o técnico como o conjunto das demais coisas, não humanas. E mesmo que eu quisesse inverter os papéis, pensando o técnico como agente e o humano como agido, eu volta às discussões já presentes em parte da filosofia da tecnologia dos meados do século XX que via nas novas criações humanas uma forma de dominação da máquina sobre o homem - o que cabe no rótulo do determinismo tecnológico. Vou ser bem mais econômico: eu olhava para essas conexões que eu chamava de redes sociotécnicas e via de um lado pessoas e de outro técnicas. Ou melhor, eu via pessoas se relacionando no interior de técnicas, ou de redes - as redes eram as coisas formadas por essas técnicas/ tecnologias, e no interior dessas redes técnicas, outras redes se formavam, as de pessoas. Cada nova rede técnica, possibilitava novas redes de humanos. E eu me contentava até mesmo com a ideia de rede social. Por que? Porque eu não via apenas dados passando naquelas redes técnicas - eu via pessoas circulando também e formando redes. E por supor que o social era uma espécie de entidade formada por humanos, aquelas eram então redes sociais. E isso tudo era muito confortável, pois o técnico sempre poderia ser ativado para explicar o social e mais confortável ainda era o fato de que o social (o sócio) era sempre bom para explicar o técnico. Mas Bruno Latour tirou-me isso com a Teoria Ator-Rede. Na Teoria Ator-Rede, tudo é associação. Não existe algo que seja por si só social. Social é interação não uma coisa. Humanos e não-humanos se associam e essas associações geram efeitos, e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem posições e sentidos. Não importa as entidades, seja lá qual forem as suas naturezas, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem fazer. Mas é preciso lembrar que aqui a noção de ator não pode ser confundido com o sentido tradicional de “ator social”, uma vez que para Latour (1999) um ator é tudo aquilo o que age, deixa traço, produz efeito no mundo, podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas ou tudo isso simultaneamente: “usar la palabra ‘actor’ significa que nunca está claro quién y qué está actuando cuando actuamos, dado que um actor en el escenario nunca está solo en su actuación” (LATOUR, 2008, p. 73). E lá se foi o conforto de explicar um elemento por outro - dizer que o humano é assim porque o técnico é assaz ou vice-versa. Sublinhe-se ainda que a ação não é o que o ator faz - ela é distribuída, não é univocal, não cabe na identificação do ator-em-si: “por definición, la acción es dislocada. La acción es tomada distribuida, sugerida, influida, dominada, traicionada, traducida (Id., 74). Daí de se assinalar que se está tratando aqui de um ator-rede, e não simplesmente de “um ator” e de “uma rede”, em separados. Há agências, as mais diversas, atuando simultaneamente no mundo, e assim, com o intuito de se evitar o equívoco de atribuir exclusivamente ao humano a agência ou ao

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não-humano, é comum encontrar a utilização do termo semiótico actante, ou seja, qualquer coisa que atue, ou que mova alguma ação (Akrich & Latour, 1992). Nesse mesmo sentido, há ainda a utilização de uma voz verbal presente entre os gregos, a “middle voice”, que não seria nem passiva, nem ativa, e que à falta em outras línguas, poderia ser traduzida como o que “faz fazer” (“faire faire” no francês, ou “to make one do”, no inglês) - ela permite distribuir as certezas do que, ou de quem está agindo (Latour, 1999), sem a possibilidade de indicar com certezas o possível sujeito da ação. Mas nunca é demais lembrar que é muito fácil cair na armadilha da simples colagem de “humano/sócio” e não-humano/técnico” quando se fala em rede ou rede sociotécnica. E assim, a rede na Teoria Ator-Rede começou a se tornar um problema para mim em Cibercultura, justamente pelo fato de que ela exigia que eu desloque a ideia de rede como WWW, como tradicionalmente trabalhado a partir da cibernética. Essas redes da cibernética se referem àquilo que transporta informações de conexão em conexão, por longas distâncias, em especial, mantendo essas informações intactas. Latour está justamente interessado nos efeitos, nas traduções, nos desvios, nos “chiados” dos atores-rede - e não no intacto. Enfim, o que está em proeminência são as associações entre o humano e o não-humano de modo a não conseguir distinguir agente e agido, mas somente perceber os efeitos - as traduções. Latour está preocupado em dissolver as entidades - o social, o natural, técnico ou quaisquer coisas assim autoexplicativas. Bem, eu confesso, não é tão fácil, uma vez garantida a ideia de que a rede era qualquer coisa formada por humanos e não-humanos, eu continuei enxergando ainda por algum tempo os humanos do lado do sócio e os não-humanos do lado do técnico. Mas o problema ainda seria maior. Bem, aparentemente conseguimos identificar redes no ciberespaço. Sim, porque não? Veja as chamadas redes sociais, com seus programas e gentes e interações de múltiplas formas. Contudo, na perspectiva de Bruno Latour elas são redes apenas se supostamente elas tenham possibilidades de actância, ou seja, se elas fazem fazer - se elas geral efeito. Nesse caso, mesmo que existam redes, o que importa é que, pelo menos a partir da Teoria Ator-Rede, elas não são o objeto de análise. A análise deve recair nos efeitos ou transformações entre elementos associados nisso que chamamos de redes. E é aí que a rede de Bruno Latour se torna um modo de ver essa produção de efeitos na possibilidade que ela dá de rastrear e descrever associações entre humanos e não humanos. Então Latour tirou de mim as próprias redes, como coisas identificáveis. E me deu um método. Aqui, quem mais me ajudou a perceber o que sobrou depois de Bruno Latour foram dois antropólogos que dialogam direta e inderetamente com ele ou que o fazem na prática. A britânica Marilyn Strathern e o estadunidense Roy Wagner. Posso adiantar que eles também me tiraram coisas importantes: a sociedade e a cultura, dois bons e seguros conceitos autoexplicativos onde os antropólogos nos apoiamos por décadas. Segundo Strathern (2006, p. 37), “a ideia de sociedade parece um bom ponto de partida, simplesmente porque ela própria, como uma metáfora para organização, organiza muita da maneira pela qual os antropólogos pensam”. Não há a entidade sociedade - há elementos que eu

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reuno em minha descrição sob um rótulo que me estabelece critérios para a organização dessa descrição - e esse rótulo é a sociedade. No mesmo sentido, Roy Wagner (2010, p. 14), ao tratar da cultura, sugere que ela é “apresentada como uma espécie de ilusão, um contrapeso (e uma espécie de falso objetivo) para ajudar o antropólogo a ordenar as experiências”. Cultura não explica, cultura não é uma coisa, cultura como sociedade é um modo de organizar uma descrição de coisas. Aonde quero chegar? Assim é que eu compreendo rede em Bruno Latour: como um modo de organizar as nossas descrições. A ideia de rede permite nos auxiliar a ver o modo como determinados elementos se associam e fazem fazer efeitos. Mas ela, a rede, não é a coisa a ser descrita, tampouco nos garante sabermos a origem das agências ou dos seus componentes. E aqui começa a inventividade dela. Não quero que isso soe negativo, mas vou dizer que do ponto de vista da Teoria Ator-Rede, eu fui ingênuo na Cibercultura - e a minha ingenuidade estava justamente em pressupor a existência de redes. As redes não existem por si só - elas são inventadas e são inventivas. Inventadas, porque as criamos. Olhamos, por exemplo, para trilhos de trem, linhas telefônicas e vemos redes. Olhamos para perfis de orkut “lincados” e vemos redes, seguimos pessoas no twitter e vemos redes. E são inventivas ao mesmo tempo que inventadas, pelo fato de que, ao me utilizar delas para descrever um mundo o que resulta é um mundo por elas inventado ou criado. Mas as redes não estão lá, nos trilhos do trem ou no twitter. Nós olhamos para essas coisas e vemos redes e quando vemos redes nisso essas redes nos permitem organizar um mundo com essas coisas. Perceba-se o seguinte: ao partir de um ponto qualquer, eu sigo até outro ponto qualquer formando uma conexão entre eles, e de conexão em conexão que eu formo unindo pontos, eu construo uma rede. E nesse sentido, elas são como rastros - eu olho para trás e vejo os rastros - e digo que é uma rede, mas esqueço que são meus rastros formando conexões a partir de pontos que decidi seguir, como gosta Latour, “no fluxo das ações”. Assim, a rede não estava lá, eu a fiz – a rede não é um dado, é um resultado.

A Inventividade da Rede e a Antropologia Para finalizar e tentar cumprir as largas promessas feitas no meu resumo vou trazer para a discussão Nelson Goodman. Ele é um nominalista construtivista, e seu antirrealismo me tirou uma coisa muito mais confortável do que aquelas que Latour já tinha me tirado: Nelson Goodman me tirou o mundo. Mas com isso eu ainda preciso me acostumar, e de momento, me resta tentar explorar a sua consideração de que não há o mundo dado, pelo menos não importa se há ou não, importa que só podemos fazer versões dele em nossas descrições. Serei muito econômico: a antropologia é um modo de fazer mundos. Essa é a tese que sustento nessa apresentação. Os cientistas, os artistas, os filósofos ou as pessoas comuns, produzem versões de mundo quando preocupadas em conhecer os modos de organização, funcionamento

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ou entendimento entre as coisas que elas entificam para a composição dos seus mundos. E entendo um ente qualquer como uma coisa ou evento que ao ser nomeado ou simbolizado ganha estatuto e passa a compor um mundo em criação. Produzir conhecimento sobre o mundo é produzir um mundo. E se cada vez mais os discursos desses cientistas, artistas, filósofos ou pessoas comuns têm sido objeto de análises antropológicas, implica em se pensar que ela cria versões de mundo que incluem outras versões - versões de versões. Contudo, uma versão de mundo é o modo como o mundo é. E cada outra descrição ou análise produz outra versão, ou seja, produz outro mundo. Como então conhecer uma versão de mundo se ao se produzir conhecimento sobre ela se produz também uma versão? Há, então, um problema de tradução, e é sobre ele que se instala a tese sustentada. Vamos jogar abertamente: não temos quaisquer garantias razoáveis que indiquem que estamos nos comunicando. Quando digo, “estamos nos comunicando”, quero dizer, “estamos nos entendendo”, “estamos em acordo”, ou mais dificilmente ainda “estamos falando da mesma coisa” ou de que “sabemos quaisquer coisas sobre o outro”. Enfim, não temos quaisquer garantias de que conhecemos “o modo como o mundo é”. Paralelo aos trabalhos de Nelson Goodman, W. Quine nos deu luzes para tratar disso, naquilo que ele chamou de “indeterminação da tradução” por conta da inescrutabilidade da referência - qualquer coisa chamada por Viveiros de Castro (2009), de “método da equivocação controlada”. Em Palavra e Objeto, Quine (2010, p. 21) já afirmou um empirismo moderado3, sugerindo que coisas físicas geralmente, quão remotas estejam, tornam-se conhecidas por nós somente por meio de efeitos que elas ajudam a induzir em nossas superfícies sensoriais. A entificação inicia à distância; os pontos de condensação no esquema conceitual primordial são coisas avistadas, não vislumbradas. [...] Cada um de nós aprende sua linguagem de outras pessoas, por meio da pronúncia observável de palavras em circunstâncias intersubjetivas conspícuas. Linguisticamente e, logo, conceitualmente, as coisas focadas com precisão são coisas que são suficientemente públicas para serem comentadas publicamente, suficientemente comuns e conspícuas para serem comentadas frequentemente, e suficientemente próximas para serem sentidas de forma a serem rapidamente identificadas e aprendidas pelo nome.

Então, vivas à Hume? Não! Há um problema que se instala antes disso - o da representação: nosso problema não é a coisa, é se sabemos algo sobre a coisa. Desde Platão, nos vemos às voltas com uma proposta de que apenas é possível conhecer o mundo via representação dele - e entenda-se representação, nesse caso, como ideal (mental). Isso implica em trata-la na forma de

3. Bas Van Fraassen, 2006, em seu A Imagem Científica, nega a universalidade das teorias científicas e desloca a verdade como critério de legitimidade de um determinada teoria - para ele, nessa linha antirrealista de empirismo moderado, prepondera o que ele chama de “empiricamente adequado”.

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um subproduto do mundo - a representação é tomada por substituta do mundo dentro de nossas cabeças (como a representação jurídica, que substitui) ou ficção do mundo dentro de nossas cabeças (como a representação teatral, que “imita o real”). E continuamos sem saber do mundo, apenas da representação dele nas nossas cabeças. Adiante, Locke e Hume, para citar abertamente os emblemáticos empiristas, sugeririam que é possível conhecer as coisas (o mundo) diretamente na observação, e a linguagem (representação) se torna novamente coadjuvante - aquilo que nos liga ao mundo. As coisas detém o seu conhecimento e para que possamos conhecê-las precisamos “roubar” o conhecimento das coisas das próprias coisas, e usamos “como meio” a linguagem. Mais tarde, Wittgenstein acalora o debate com os seus “issos” e “aquilos”, mas que ainda toma a linguagem como “espelho” do mundo, como “uma analogia dele”4. E é aqui que eu situa a minha opção: pensar a descrição antropológica a partir da Filosofia da Linguagem - contudo, daquela nominalista construtivista de Nelson Goodman. Goodman me parece minimamente razoável: não sabemos nada do mundo, senão do mundo que posso construir na linguagem a partir de um quadro de referências. A sua contra-intuição é a de que não é o mundo que constrói a linguagem, mas a linguagem que constrói o mundo. Como resposta a essa “necessidade” do empírico, mesmo como coadjuvante, Goodman (1990, p. 36) provoca: “se eu pergunto acerca do mundo, você pode se oferecer a me contar como ele é, sob um ou mais quadros de referência; mas se eu insisto que você me conte como ele é fora de todos os quadros, o que você pode me dizer? Somos confinados a modos de descrição, seja o descrito o que for”. Enfim, o tamanho do mundo é do tamanho da linguagem que o descreve. Tem algo aqui que não está muito distante daquilo que Bertrand Russel chamou de “conhecimento por descrição”. Segundo ele, há o conhecimento por contato, que é o mais óbvio e flagrante justamente porque joga com a moeda do empírico. Isso o faz limitado, haja vista a impossibilidade de conhecimento do que houve no passado, ou, sequer, o próprio conhecimento dos nossos sentidos. Já o conhecimento por descrição opera por meio do conhecimento de verdades. Sigamos Russel (2008, p. 108-9): A mesa é “o objeto físico que causa tais e tais dados dos sentidos”. Isto descreve a mesa por meio dos dados dos sentidos. Para saber seja o que for da mesa, temos de conhecer verdades que a liguem a coisas com as quais temos contato: temos que saber que “tais e tais dados dos sentidos são causados por um objeto físico”. Não há qualquer estado mental no qual estejamos diretamente cientes da mesa; todo o nosso conhecimento da mesa é na realidade conhecimento de verdades e, estritamente falando, a própria coisa que a mesa é não é de modo algum conhecida por nós. Conhecemos por descrição, e sabemos que há apenas um objeto ao qual a descrição se aplica, apesar de o próprio objeto não ser diretamente conhecido por nós. Em tal caso, dizemos que o nosso conhecimento do objeto é conhecimento por descrição.

4. Refiro-me abertamente ao que se chama de primeiro Wittgenstein, aquele do Tractatus Logico-Philosophicus, e não o segundo, o das Investigações.

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No que está afeto a Nelson Goodman, parece-me clara a ideia de que o que se pode, em termos de conhecimento, ser razoavelmente considerada, é a descrição. Das coisas, o que sabemos (e Goodman não joga com valor de verdade, mas de coerência) é o que cabe coerentemente em nossas descrições, não sabemos das coisas em si. Sabemos das descrições. O que estou chamando de descrição coerente é qualquer coisa como aquilo que é publicamente coerente dentro de um conjunto de símbolos que Goodman chama de referência. Se estou diante de um quadro cubista, certamente ele é arte por produzir um determinado conhecimento do mundo que é coerente no conjunto de símbolos que constitui a referência cubismo. Ele pode ser descrito também como um aglomerado de partículas atômicas e subatômicas que dispostas de maneira x ou y tomam determinadas formas e desviam determinadas quantidades de luz que formam determinadas ondas de tamanhos diferentes que produzem que distinguimos por aquilo que chamamos de cores. E isso tudo é coerente para químicos ou físicos, pois joga com símbolos que constituem sua referência, que é o modo como esse tipo de cientista descreve o mundo. Contudo, pode ser incoerente ou inadequado para um cubista. E, acima de tudo, o químico e o cubista estão produzindo aquela coisa que por comodidade a meu conjunto de símbolos eu optei por chamar de quadro, mas que certamente me faz acumular muitas incertezas sobre o que ele é, de fato, caso ele seja algo. Eu prefiro as versões do que ele, e prefiro as versões coerentes. Não há mundo que anteceda as versões, ao menos não um mundo que seja do nosso conhecimento - conhecemos apenas as versões e elas são o mundo que podemos conhecer. Nesse caso, seguindo Nelson Goodman (1991, p. 46), a “coerência é uma característica das descrições, não do mundo: a questão importante não é se o mundo é coerente, mas se a nossa explicação dele o é. E o que chamamos de simplicidade do mundo é apenas a simplicidade que somos capazes de alcançar ao descrevê-lo”. Enfim, a tensão posta aqui é a de que no conforto do empirismo eu tenho um mundo povoado pelas mais diversas entidades que posso apreender na minha descrição. Em suma, o mundo ou elementos dele compõem aquilo que eu descrevo. E esse é o solo mais tradicional da antropologia - no que Lévi-Strauss já resumiu como “uma ciência do empírico”. Por conseguinte esse é o solo daqueles que conseguem ver as redes, como objetos a serem descritos. Por outro lado, no caminho do nominalismo construtivista Nelson Goodman, não temos um mundo a priori. Ele é criado a partir de nomes e predicados suficientemente públicos para serem admitidos e reconhecidos de modo a garantirem a sustentação de uma versão de mundo. Esses nomes e predicados formam uma referência. A descrição no nominalismo construtivista não é composta de mundo como no empirismo, ela cria um mundo na descrição.

Finalizando O que eu resolvi provocar aqui como “A Inventividade das Redes” implica em considerar que a rede está na nossa descrição e não no mundo. Ou melhor, ela é um modo de descrição e não uma qualidade do mundo. Uma referência que podemos assumir para construir o mundo.

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Por isso a minha insistência em afirmar a rede uma espécie de método (no sentido de caminho ou modo), pois eu entendo que ela está na minha descrição como algo que me permite organização ou coerência. Por extensão ou simpatia, isso implica em provocar meus colegas antropólogos em pensar a cultura ou a sociedade como métodos que utilizamos para organizarmos as nossas descrições - ou mesmo, modos que utilizamos para criar mundos. Sociedade, cultura ou rede são ficções úteis que nos poupam discurso - elas não têm correlatos materiais que as entifiquem e que permitam que elas em si sejam objeto de descrição - eles apenas organizam a maneira de como vemos certas coisas dispostas. Enfim, o que eu chamo então de inventividade das redes, e por que não, da antropologia, diz respeito a sua capacidade de criar mundos. Redes não são feitas de certos elementos de um mundo, é com ela que se inventam mundos.

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