“A lei da equivalência das janelas”: circulação participativa do filme found footage de horror na era da mídia digital

July 6, 2017 | Autor: Klaus Braganca | Categoria: Digital Media, Participatory Culture, Horror Cinema, Amateur Film, Found-Footage Horror
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“A lei da equivalência das janelas”: circulação participativa do filme found footage de horror na era da mídia digital   Klaus’Berg Nippes Bragança Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Universidade Federal Fluminense, Brasil Abstract Digital technology has impacted the amateur production mode and allowed home video to come out of its house permanently. With the resulting power dispute between participatory culture and mass media, both struggling for the hegemony of audience and the copyright property of popular culture products, horror genre finds other strategies to support the narratives, technically and thematically. The found footage horror subgenre aesthetically alludes or obeys an amateur mode and a low budget quality of production, thus also employs circulation and distribution patterns borrowed from the digital culture. Films like “The Last Broadcast” (USA, 1998), “[REC]” (Spain, 2007, 2009) and “Grave Encounters” (Canada, 2011, 2012), present the mass media in its last breath: punished and weakened the mass media is left aside to bestow for amateurs the horrors of video technology. Even independent productions distributed through collaborative Web 2.0 platforms, as the webseries “Marble Hornets” (USA, 2009-2014) and the homemade trilogy “Matadouro” (“Slaughterhouse”, Brazil, 2012, 2013, 2015), show that the digital culture has become an affront to the industrial values and a propellant of horror and fear. Thus this paper investigates the relationship between the mass media and a “working class” that challenges its values; besides the ways in which these films reflect and materialize anxieties about the digital technology empowerment, as well as the torments, hauntings and curses that this power brings to the individuals, the society and contemporary culture.

Keywords: Horror cinema, Found footage, Participatory culture, Amateur distribution, Digital media.

Introdução: a moral das janelas “Descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”. Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881. Em 1998, exatamente um ano antes da estreia 1 de The Blair Witch Project no festival de Sundance,

um filme que adotava uma rubrica similar – e que alguns anos depois viria a ser categorizada como uma codificação do subgênero “Found Footage de horror” – era recusado de participar do mesmo festival que aclamou e rendeu um contrato de distribuição milionário para o filme de Myrick e Sanchéz. The Last 2 Broadcast não pôde participar do festival e ainda permanece como um exemplar do subgênero menos conhecido pelo grande público, mesmo após o lançamento em circuito comercial de The Blair Witch Project ter estimulado o filme da dupla Stefan Avalos e Lance Weiler a ser relançado e aproveitar-se do sucesso de bilheteria que seu concorrente arrecadava na janela cinematográfica. De fato os dois filmes comungam certas características que poderiam ter angariado uma boa repercussão na circulação comercial de The Last Broadcast. Por exemplo, ambos apresentam uma equipe audiovisual adentrando uma floresta para documentar mistérios locais, além de ambos usarem supostas gravações descobertas ao acaso como matéria-prima para compor suas tramas. Ainda assim, The Last Broadcast não obteve a notoriedade que seu congênere alcançou nos cinemas e também no circuito de vídeo doméstico. O filme de Avalos e Weiler parece obedecer critérios de circulação limitados pelo orçamento restrito de sua produção independente, recorrendo assim a janelas alternativas para sua promoção e disseminação, como comenta Linda 3 Badley : Inteiramente gravado em digital, este pseudodocumentário inteligente, em camadas e autorreflexivo sobre dois apresentadores de um programa de TV de acesso público assassinados no bosque foi editado e produzido com o software de um desktop pessoal, e distribuído pela internet, tudo em 4 torno de US$900 .

É comum na história do gênero que o horror recorra a janelas alternativas de distribuição. Estas janelas estão fora das salas de cinema e mais próximas do quotidiano do sujeito, muitas vezes são telas que estão dentro de seu próprio lar, de forma que “a observação doméstica está mudando o modo como os filmes são experimentados, distribuídos e feitos. Cada vez mais, um ‘filme’ é visto como um nó 5 intermediário desse universo” . Neste cenário o vídeo

tornou-se um formato recorrente ainda antes do advento da mídia digital. Diversas misturas foram instauradas a partir da entrada do vídeo em circuito doméstico, isto é, “as esferas do público e do privado, de exibição cinematográfica e doméstica não são mais separadas do que os termos apagadores-de-limites 6 ‘home-theatre’ e ‘home office’” . Com o advento da tecnologia de VHS na década de 1970, permitiu-se pela primeira vez uma verdadeira popularização do consumo caseiro de filmes que antes seriam vistos apenas em salas de cinema. Nesse cenário de democratização de consumo caseiro de vídeos um novo player entra no mercado para concorrer com as salas de cinema, sejam elas comerciais ou não: as vídeo-locadoras. Já na década seguinte alguns produtores motivados pelo mercado crescente do home video, passariam a produzir filmes exclusivamente para estes ambientes privados – o DTV, ou direct to video, é um padrão que funciona até hoje principalmente para produções mais baratas e marginais. Linda Badley destaca uma intensificação permitida após a consolidação da tecnologia de vídeo na vida doméstica, fato que perpetuou o horror em outras janelas: “o horror tinha invadido locadoras e mentes infantis com slashers, splatters e horrores adolescentes, e tornou obsoletas as comunidades de filme que tinham apoiado seus repertórios, drive-ins e arthouses. Uma vez fora dos 7 cinemas, o horror era virulento e incontrolável” . Mesmo com a proliferação das salas multiplex e seu incremento multissensorial em 3D, e com o aumento vertiginoso de telas e janelas de mídias móveis ou locativas, há ainda uma predominância do ambiente doméstico entre a audiência de consumo de entretenimento audiovisual, algo percebido pelo horror. Com o avanço das tecnologias de vídeo para dentro das residências os hábitos, artefactos e aparelhos empregados no ambiente doméstico foram codificados na linguagem do horror: do telefilme ao padrão DTV em VHS, do DVD com “cenas-extras-cortadas” à transmissão simultânea do DTN (direct to net) e “ainda mais recentemente, lojas virtuais de aluguel na Web como Netflix, GreenCine e DVDs on Tap agora estão disponibilizando DVDs internacionais cult, de horror e 8 exploitation sob demanda como nunca antes” . A trajetória dos hábitos de consumo audiovisual das famílias atraiu a atenção do horror e mais recentemente do found footage. Desde pelo menos os lançamentos de The Blair Witch Project e de The Last Broadcast que o filme found footage de horror vem incorporando em seus códigos tanto as práticas de produção quanto os hábitos de consumo mediático, especialmente aqueles correlacionados a janelas de exibição domésticas. Esta circulação dos produtos culturais na era digital é sensível ao subgênero e já floresce como uma questão em algumas narrativas.

No caso de The Last Broadcast, afora a estratégia de distribuição digital aplicada pelos produtores, há em sua narrativa um problema que envolve literalmente as mesmas preocupações e alternativas de circulação audiovisual usadas pelo filme para aumentar sua visibilidade e audiência. Na trama o documentarista David decide investigar o caso do assassinato da equipe do programa de TV à cabo “Fact or Fiction”, ocorrido durante a apresentação de um episódio especial sobre o “demônio de Jersey” – uma sugestão enviada aos produtores por um telespectador através de mensagem por IRC (Internet Relay Chat). Para aumentar a audiência do programa especial os apresentadores fazem uma transmissão ao vivo e simultânea por cabo, rádio e Web – uma apresentação em “simulcast”. Além de se tratar de uma estratégia tecnológica de ampliação de audiência, o programa especial também emprega uma estratégia sensacionalista ao levar a equipe para gravações na floresta, um tipo de investigação sobrenatural sobre uma criatura mitológica que habita a região de Pine Barrens. Para tanto os produtores contratam mais dois profissionais para ajuda-los no episódio, um técnico de som especializado em gravações de ruídos sobrenaturais, e um médium – e este é o verdadeiro “motivo” do documentário. David é motivado pelas acusações que levaram o médium a ser condenado pelo assassinato da equipe de “Fact or Fiction”. Esta é uma motivação pessoal do documentarista e de acordo com Alexandra Heller-Nicholas “The Last Broadcast é a própria história de David. Ele faz cada vez mais explícito ao longo do filme que seu ‘documentário’ está preocupado com a sua experiência de investigação; que visa responder às 9 perguntas que ele quer resolver” . David considera que o médium foi atraído para o programa, ao contrário do que a acusação alegava. Em seu julgamento o médium foi apresentado como um assassino de sangue frio que premeditou os homicídios, mas o documentarista posiciona o personagem como uma vítima de seus próprios interesses: internet e sobrenatural. O personagem é atraído a participar de um programa que compactua com estes interesses, sendo que para David a internet ainda foi usada como suporte para culpar o médium pelas mortes, pois fomenta especulações sobre os assassinatos, e para o documentarista isto mostra que assim como o “demônio de Jersey”, o médium é um monstro criado digitalmente através de chats e sites na Web. Desde o início David trata o caso como um problema mediático. Os homicídios atingiram diretamente a mídia, já que os personagens eram apresentadores de um programa de TV, por isso foram altamente celebrados através dela. A mídia interfere

na investigação e toma participação no julgamento do suspeito. A mídia se torna a história, isto é, como os assassinatos são vistos através das lentes da mídia, como diz o documentarista “o ‘demônio de Jersey’ é a imagem eletrônica, o som, a comunicação de massa, misturados de alguma forma com um mundo eletrônico surreal”. Em seu documentário David avalia o papel desempenhado pela mídia nas consequências do caso, e nesse sentido “como sua descrição anterior do crime como ‘assassinatos de uma era Hi-Tech’, cujas vítimas eram ‘filhos da era digital’, a análise de David sobre o caso é entendida através do papel e função da 10 tecnologia de mídia em si” . Esta avaliação mediática também permite resgatar partes negligenciadas pela investigação da polícia. Ao descobrir uma fita de VHS semidestruída o documentarista recorre ao trabalho de uma profissional de restauração de arquivos audiovisuais para recuperar as partes perdidas da narrativa. Entre a deterioração eletrônica e os defeitos da imagem vemos os relacionamentos fragilizados da equipe do programa, as relações interpessoais hierarquizadas que colocaram o médium em uma condição alienada durante toda a situação. A fita de VHS esconde entre sua ruína um único fotograma que resume a verdade por trás da história: um fotograma já é o bastante para evidenciar o verdadeiro monstro do filme, que, como tal, é antes de mais nada um combatente mediático, um monstro moral que regula e pune as condutas indevidas da mídia: o próprio documentarista – um papel concretizado ao matar também a profissional que restaurou a imagem que o inseriu definitivamente no problema mediático deflagrado.

Figura 1 – o fotograma do monstro mediático de The Last Broadcast.

The Last Broadcast coloca a tecnologia de mídia em um campo de batalha, desde a transmissão de conteúdo através de janelas simultâneas, até a disputa de poderes pelo controle narrativo dos fatos entre um documentarista munido com recursos digitais

e a mídia. A narrativa questiona uma fronteira que vem sendo cada vez mais borrada nos últimos anos, ultrapassada pela equipe de “Fact or Fiction”. A primeira transmissão simultânea para a internet coincide com a última transmissão do programa, o que mostra uma punição para a atuação tecnológica da mídia. Destaca uma ruptura tecnológica entre os valores tradicionais de transmissão e circulação da mídia audiovisual. Segundo o estudo sobre a ficção de horror televisiva de Lorna Jowett e Stacey Abbott estas cisões incorporadas filmicamente tendem a denunciar que “novas tecnologias são inerentemente estranhas porque elas desafiam nossa compreensão 11 estabelecida do mundo natural” . No filme temos acesso a vários níveis de mediatização que se intercedem e se chocam, trata-se de “um documentário” que combate as mensagens da mídia de massa por meio das gravações perdidas de um programa de TV que seria transmitido em “simulcast”. Mais do que cobrir ou representar, o filme é composto por espólios obtidos dos conflitos contemporâneos em que a mídia se envolve. No filme ao aceitarem a sugestão da audiência através da mensagem do IRC, os apresentadores foram levados às circunstâncias destrutivas que os abateram, e isto “é um excelente exemplo da arena expandida para o fandom desde o surgimento da internet e da relação mais ‘interativa’ entre produtores e consumidores 12 esperada dos programas de TV contemporâneos” .

Conflitos mediáticos Com a virada do milênio a mídia de massa passa a receber as “interferências eletrônicas” advindas com a tecnologia digital e a consequente participação mais exigente e ativa de sua audiência. Enquanto uma entidade onipresente no avanço da modernidade a mídia tanto quanto transmitir passa também a pautar e participar das ansiedades arraigadas socioculturalmente. Para o cinema de horror este reflexo com as perturbações surgidas na sociedade permitiu seu desenvolvimento, codificação e inserção em um cenário cultural fortuito para inspirar a atmosfera de crise que emoldura seus enredos. Comparações entre as questões sociais originadas durante o contexto de produção ou lançamento de filmes e os temas correlatos que suas narrativas podem derivar são maneiras do público interagir e se relacionar com a obra, e não apenas tarefa da crítica ou da academia. Não raro um filme, um ciclo de filmes ou um gênero, e não apenas o horror, consegue sentir os traumas e as perturbações de um momento cultural. Ao longo do século XX o cinema tentou retratar a atmosfera social e às ansiedades originadas com a modernidade urbana,

uma tendência mantida durante este começo de século XXI. O regime de representação do monstruoso cambia e se renova com as demandas do tempo. Reconhecer as marcas deixadas é também uma maneira de entrar em contato com os significados impregnados na materialidade fílmica, pois como afirma Brigid Cherry “muitas vezes é o imperativo ideológico da narrativa de um filme que lhe dá significado em um contexto histórico ou cultural: o ponto de análise aqui é perguntar o que o filme tem a 13 dizer sobre o mundo que reflete” . Um reflexo persistente na mídia, na cultura popular contemporânea, e no filme de horror em especial, é o da guerra moderna. O cinema de horror foi atingido por “fogo-amigo” em inúmeras guerras ao longo de sua história, embora isso não invalide as influências de outras preocupações despertadas com a modernidade. Porém as repetidas guerras do mundo ocidental subsidiaram um repertório prolongado para o gênero de horror, e para o historiador do cinema David J. Skal “guerras não costumam resolver-se, culturalmente, até anos depois do fim dos combates reais. O mesmo vale para depressões econômicas, epidemias fatais, caça às bruxas políticos – os 14 traumas podem durar décadas” . A partir do enfraquecimento da polaridade administrável da Guerra Fria o cinema de horror acompanhou um novo conflito com o avanço da Guerra ao Terror. Desde o 11 de setembro diversas comparações entre os atentados terroristas e os espetáculos fílmicos foram feitas por jornalistas e acadêmicos. Por exemplo na matéria publicada no site do jornal The Nation em 10 de setembro de 2006, “9/11 in a movie-made world”, Tom Engelhardt reflete sobre as similaridades que a catástrofe tinha com os produtos ofertados pela mídia: “não admira que os eventos parecessem tão estranhamente familiares. Convivíamos com o possível retorno do nosso armamento mais poderoso via TV e cinema, em romances e em nossa própria vida onírica, no passado, no futuro e até mesmo em algo [...] como o 15 quase-presente” . O 11 de setembro foi sentido como um fenômeno mediático, e para Kevin Wetmore “o cinema nos ensinou a perceber, receber e entender os eventos que se desenrolaram nesse dia (em uma tela, 16 para a maioria dos observadores)” . O found footage recebeu novo tratamento e popularidade após o 11 de setembro e o início da Guerra ao Terror. O subgênero estaria assim relacionado com uma questão mediática, alimentado tanto pelos registros amadores feitos durante os atentados e usados pela imprensa na cobertura da catástrofe, quanto pelos vídeos de fabricação própria de grupos terroristas como a AlQaeda, o Estado Islâmico e o Boko Haram. Para

Wetmore “estas duas correntes, a documentação em vídeo amador do 11/09 e o vídeo feito por terroristas, que dispersa pela internet a verdadeira tortura e morte, combinam-se em um tropo principal do horror pós11/09: o pseudodocumentário / filme ‘found footage’ de 17 horror” . O filme found footage de horror incorpora as ansiedades pós-11/09 enquadradas também através do modo como estas ansiedades são experimentadas pela maior parte do mundo ocidental: pelas telas da mídia. Filtrado mediaticamente pela cobertura da imprensa, pelo testemunho do vídeo amador, pela vigilância do CCTV, ou pela postura punitiva do vídeo feito por terroristas, o 11/09 e a subsequente Guerra ao Terror são refletidos pelo found footage como uma manifestação da influência que as tecnologias de mídia assumiram no quotidiano sociocultural. Não é surpreendente, então, que na década de 1990 e 2000, o cinema de horror tenha refletido sobre a forma como a tecnologia e a mídia tornaram-se cada vez mais dominantes na vida das pessoas. Também não é de surpreender que alguns destes filmes abordem narrativas fílmicas e estéticas de novas maneiras que são bem diferentes das 18 formas narrativas clássicas .

O terrorismo é um problema mediático, e não apenas por ser retratado pela cultura popular contemporânea. Durante e após o 11 de setembro o efeito maior para as causas extremistas sempre foi a repercussão mediática de seus ataques. Os ataques terroristas parecem servir de advertência para o mundo ocidental e portanto precisam receber a atenção massiva da mídia. Quanto maior o ataque, no sentido de sua grandeza simbólica, maior será sua relevância para receber a atenção da mídia, e é nesse sentido que o ataque empreende um caráter espetacular. O objetivo de um atentado, em última análise, é obter circulação e audiência mediática através de sua espetacularização, como sustenta Kevin Wetmore: O terrorismo é uma “atividade para-teatral” destinada a um público que não são suas vítimas diretas. O objetivo dos terroristas é gerar terror através do espetáculo. Se alguém responde com uma notícia, se ocorre uma grande quantidade de cobertura da mídia, então, o terrorista é recompensado com a 19 atenção desejada .

Atualmente a guerra travada contra o terrorismo ocorre no espaço da mídia digital e nesse quesito a tecnologia oferece uma qualidade ambivalente: através dela o cidadão consegue registrar e obter informação sobre ameaças terroristas, mas é por ela

também que os extremistas divulgam seus ideais e espalham seus terrores. As novas tecnologias de comunicação que permeiam a vida quotidiana nutrem o desejo de romper o isolamento social através das plataformas de relacionamento social da cultura participativa, as mesmas ferramentas usadas, por exemplo, pelo grupo armado Estado Islâmico para promover seus ideais radicais e recrutar adeptos para suas causas – uma preocupação agravada sobretudo em relação aos jovens. Kevin Wetmore reconhece uma influência do comportamento da sociedade na mediatização do terrorismo: Este tropo [...] é um sinal de uma sociedade altamente mediada em que quase todo mundo tem acesso a câmaras e dispositivos de gravação, muitas vezes combinados com telefones pessoais que permitem enviar dados imediatos para a internet. Entre Twitter, Facebook, YouTube e e-mail nossos pensamentos, cada impulso nosso, cada imagem que capturamos podem ser e muitas vezes são colocadas na internet para todos verem. O exato fator que permitiu o 11/09 ser um evento tão fortemente documentado e fortemente mediado também infunde em cada 20 evento e cada aspecto da nossa sociedade .

Neste cenário de instabilidade cultural altamente mediado, as ameaças terroristas são dirigidas por e para a mídia. Cada vez mais parecem surgir exemplos que relacionam a mídia ao terror, chega-se ao ponto dos ataques terroristas pretenderem não somente se dirigir, mas também atingir a mídia – como se fosse um espetáculo que vitima a mídia para repercutir em sua audiência. O episódio recente do “massacre do Charlie Hebdo” reproduz bem essa mentalidade. A motivação do crime seria uma vingança contra os desenhistas que satirizaram a figura do profeta Maomé em charges publicadas no jornal, mas nas entrelinhas é possível perceber o benefício mediático de um ataque como este. Nesse sentido, atacar a mídia é talvez a melhor estratégia para atrair a atenção da própria mídia e de sua audiência. Mais do que vingar-se dos desenhistas mortos, os terroristas usaram a transmissão mediática do ataque para angariar audiência. A Guerra ao Terror é travada em diversas frentes, dentre as quais na imprensa e no cinema de horror. Apesar da autoridade e hierarquia que detém na cultura popular a imprensa é frequentemente enquadrada pelo cinema de horror, e pelo found footage em particular, em uma posição de vulnerabilidade, abatimento e esgotamento. Quase como uma punição para as condutas sensacionalistas que empregam na cobertura de tragédias e catástrofes que acometem a vida quotidiana.

Podemos perceber essa peculiaridade na 21 franquia espanhola [REC] de Jaume Balagueró e Paco Plaza. A narrativa começa com a repórter Angela Vidal gravando uma matéria com o cameraman 22 Pablo sobre a rotina de um quartel do corpo de bombeiros para o programa “Mientras usted duerme”. Ao acompanhar os bombeiros Alex e Manu em um resgate, a equipe de TV se vê aprisionada no prédio pelas autoridades de vigilância sanitária, uma quarentena para conter a infecção misteriosa surgida em um dos apartamentos. À medida em que os moradores e os profissionais que atenderam o chamado de emergência se relacionam e avançam pela edificação, a infecção os contagia e os transforma em zumbis agressivos. O contato corporal mistura as naturezas das personagens, faz uma troca somática de atributos que confunde as funções dos personagens envolvidos no conflito. Mais do que uma aversão à alteridade, tratase de um medo de ser convertido no outro. A ameaça vem do fato de que qualquer um pode potencialmente se transformar no monstro. Em certo grau a atmosfera de paranoia e desconfiança não é gerada apenas pelo zumbi, a figura do monstro está à disposição de uma intensificação de sentimentos já configurados na mentalidade moderna da sociedade ocidental. [REC] reage e intercede como um sintoma do espírito pós-11/09. O horror enclausurado dentro de um edifício em deterioração, a falta de informações oficiais sobre uma ameaça doméstica, o frenesi sensacionalista da mídia para cobrir o fenômeno, a impotência das autoridades e sua própria vitimização durante a emergência – são marcas deixadas na mentalidade e no estilo de vida ocidental pelos ataques e pelas consequentes reformas feitas através da guerra contra o terrorismo. Para Wetmore há um fator nítido na forma como muitos found footage são feitos: a cobertura mediática realizada durante os atentados. Profissionais e amadores com interesses diversos pegos de surpresa e sem aviso por uma catástrofe doméstica. Essa é uma semelhança com o enredo que trata de “cineastas que partiram para filmar outra coisa inadvertidamente começam a documentar o desenrolar dos acontecimentos terríveis de um 23 fenômeno incomum” . Em [REC] este fator é bem expressivo, pois o interesse imediato da equipe televisiva, a rotina ordinária dos bombeiros, é substituído por um fenômeno não esperado, tanto por eles quanto pelos demais personagens, e que acaba inserindo-os nos acontecimentos e na gravação. Trocar o motivo da gravação é um imprevisto que a repórter procura adequar seguindo uma postura profissional; mesmo não sabendo nada sobre os fatos, ou durante os momentos mais caóticos, Angela persiste em sua

atividade, tenta apurar as evidências e descobrir mais sobre o problema e os envolvidos; ela mantem uma performance de apresentadora de espetáculos mediáticos. A personagem sofre de uma ansiedade com o registro dos fatos, insiste para que o cameraman grave tudo o que puder levar à lente do aparato, o mais próximo possível e ininterruptamente – seja como for, a gravação não pode parar. A obsessão com o registro atinge o ponto de perturbar outros personagens, constrangidos, intimidados e nervosos por serem gravados em situações às vezes violentas, vergonhosas ou moralmente incriminadoras, até mesmo para a situação extraordinária apresentada – como matar uma idosa ou uma criança, por exemplo. No filme a câmara serve como um instrumento de revelação do imprevisível, atuando em tempo real e com elipses curtas para não perder os acontecimentos imediatos e desconhecidos que se sucedem cronologicamente. Velocidade, instabilidade, intensidade, todas são qualidades do que no jargão recorrente do found footage é conhecido como shaky cam: um modo de direcionar e deslocar o aparato para reproduzir a trepidação e o ritmo dos movimentos de um corpo. Este movimento tende a ser abrupto e desequilibrado, o que compele maior atenção do espectador e simultaneamente um pouco de dispersão. A visualidade é instantânea demais para ser preestabelecida. O filme edifica um caos corporal, os corpos com os quais a câmara se depara enquanto vasculha as habitações estão imbricados ao espaço, surgem em meio a escuridão, saltam dos corredores, despencam das escadarias. A câmara que desde o início procurava ir ao encontro dos corpos, agora sofre com sua proximidade, os horrores dispersos saltam para a lente do aparato. A visualidade dinâmica de [REC] desprende o olhar e o ouvido de um centro de atenção; o que está fora de campo constantemente invade o plano, colide-se, choca-se contra a tela. Quando a ameaça não obedece o distanciamento mediado entre sujeito, câmara e objeto, ela põe o produtor do registro na qualidade de vítima, desapropria-lhe de sua observação distanciada e passiva. Parece afrontar o interesse indiferenciado dos profissionais da mídia, isto é, “cidadãos jornalistas também são cidadãos observadores passivos. Eles não fazem nada para mudar ou aliviar a situação; eles estão desanexados e desconectados dos eventos 24 exceto para documenta-los” . Angela e Pablo, os últimos não-infectados, refugiam-se no apartamento do terraço. O foco da luz direcional da câmara destaca rapidamente notícias e recortes de jornais que aludem ao caso da “menina Medeiros”. Isso mostra um vínculo entre a infecção espalhada no prédio e um exorcismo mal sucedido.

Há uma relação com a atmosfera cultural da guerra ao terror, pois tanto as notícias coladas nas paredes quanto o áudio do gravador encontrado conferem motivos religiosos para a problemática, e ao mesmo tempo repercutem os traumas dos ataques feitos com armas químicas e biológicas – por exemplo o episódio dos envelopes contaminados com Antraz enviados a editoriais e tabloides norte-americanos na semana seguinte aos atentados de 11/09. A repórter queria que tudo fosse registrado, e nesse sentido até sua própria destruição participa desta dinâmica – a memória imersa nos sensores da câmara materializa no escuro o som de seu testamento: “Pablo, grave tudo”. Uma visualidade obscura porém perenizada pela memória da câmara. Esta memória preserva assim a ruína da mídia profissional. 2 25 A continuação [REC] , lançada após o sucesso comercial do primeiro filme e seu 26 subsequente remake norte-americano (Quarantine ), tira o ponto de vista da imprensa, já arruinada, para dotar a força policial com microcâmaras. O que experimentamos nesse câmbio de visibilidade é uma aproximação a outro regime de mediação tecnológica, mais próxima ao subgênero de vídeo-games “survival horror”. Neste estilo de game jogamos através de uma interface em primeira pessoa que media o ponto de vista do personagem que assumimos – uma experiência mediática muito comum entre a audiência jovem da geração digital e que constitui um repertório marcante para a recente cinematografia do horror. Barry Keith Grant percebe este artifício já no primeiro filme, onde algumas características com a vertente de games se destacam nas ações dos personagens que percorrem escadarias e cômodos do edifício para se refugiarem dos monstros. Na continuação esta marca mediática fica ainda mais nítida, principalmente porque está ligada ao ponto de vista dos personagens que combatem os monstros. A configuração da tela obedece o padrão da interface do survival horror: exibe o nome do personagem no topo da tela com um pequeno indicador de sua vitalidade na parte de baixo (estas são formas recorrentes de apresentar a identidade de um personagem de games, e não só no survival horror); sempre orientando a direção dos movimentos está o cano da arma dos soldados, um ponto de vista típico de jogos em primeira pessoa; além disso ouvimos no primeiro plano os sons de uma respiração pesada e tensa contornando a movimentação abrupta da câmara. Identificamos as funções dos personagens através destas marcações, pois em geral a câmara em primeira pessoa nos impede de reconhecer estes soldados pela face. Segundo Grant a tecnologia digital e o cinema convergiram dramaticamente para os games, que por sua vez impactaram profundamente a aparência do

found footage de horror. Associando o found footage de horror ao estilo documental e ao modo de produção do cinema verité, Grant ainda destaca que “enquanto espectadores de verité horror, como o jogador de um jogo de survival horror, somos ‘menos poderosos’ porque a nossa perspectiva está mais alinhada a uma máquina impassível do que a um personagem ativo, 27 capazes apenas de observar, não agir” . Esta premissa é realçada especialmente em uma cena em que o soldado Larra, acuado pelos zumbis em um pequeno banheiro, comete suicídio de frente a um espelho. Incapazes de controlar as ações do personagem testemunhamos sua morte em primeira pessoa – literalmente um tipo de “suicídio assistido”. Se até então o personagem era pouco conhecido pelo público, esta cena exibe explicitamente o rosto do suicida, um sensacionalismo do desespero que acomete as pessoas imersas nessa situação e que invariavelmente chamam a atenção de uma câmara – e neste caso a câmara está “presa” ao olhar do personagem. Ao mesmo tempo a cena chama a atenção por ser em primeira pessoa, um artifício em que o ponto de vista ao qual estamos alinhados é morto e, portanto, trata-se também da morte de nosso próprio ponto de vista – uma sensação traduzida pela escuridão que impregna o plano após o sangue do soldado borrar a tela.

Os personagens reivindicam o controle da narrativa com o poder concedido pela câmara, mas este poder mostra-se frágil ou mesmo inconsequente, já que os leva a destinos fatalistas. A autoridade dos jovens amadores é contestada e impedida de exercer o controle narrativo segundo seus crivos. Neste embate mediático apenas autoridades oficiais podem controlar os desdobramentos e definir os critérios narrativos. Não só a autoridade policial detém poder, pois como se trata de um conflito entre agentes que disputam o controle narrativo através das tecnologias de comunicação, a repórter Angela ressurge exatamente quando a maior parte dos soldados foi destituída de seu poder narrativo e a energia da câmara amadora se esgota – como um memento mori materializado no esgotamento da bateria do dispositivo digital amador. A repórter é a autoridade mediática e não quer somente participar, mas também influenciar e exigir controle sobre a narrativa. Além disso, junto à força policial outra autoridade adentra o edifício para combater a ameaça e, como visto ao final do primeiro filme, trata-se de um problema motivado pela religião. O padre disfarçado de autoridade sanitária é o personagem capaz de deter a contaminação e evitar que o mal saia do edifício para se espalhar pela sociedade – e por isso somente ele pode autorizar os personagens a sair do prédio. Nesse sentido a disputa de poderes se polariza entre a repórter e o padre, uma relação consolidada ao percebermos que a repórter incorporou o mal erradicado no prédio – Angela foi possuída pela força demoníaca que contaminou o edifício e isso mostra que a mídia profissional foi corrompida e controlada, e agora pode difundir para a sociedade este mal.

Janelas abertas para o horror

2

Figura 2 – o “suicídio assistido” em primeira pessoa de [REC] .

Há uma distribuição dos poderes de 2 visibilidade em [REC] . Apesar do soldado Rosso ter predomínio sobre a visibilidade ao longo do filme, a montagem alterna várias câmaras entre outros personagens, mesmo que seja para destruí-los ou destituí-los do controle de visibilidade. Tal estratégia marca a participação de novos agentes no campo mediático, principalmente ao delegar o poder de visibilidade a adolescentes que adentram o prédio para gravar a situação. Tanto a situação extraordinária do edifício, quanto a câmara lhes confere um fascínio para adentrar a narrativa. Entretanto este fascínio pelo registro capacitado pela câmara traz consequências negativas.

Na franquia [REC] tanto os profissionais de mídia quanto outros personagens, que mesmo não incluídos na indústria mediática portam aparatos de registro, acabam vitimados por seu envolvimento audiovisual. Esta questão também pode ser vista na 28 franquia Grave Encounters , produção canadense dirigida pela dupla The Vicious Brothers. A narrativa apresenta a equipe do reality show televisivo adentrando um antigo manicômio assombrado para simular atividades sobrenaturais e com isso acabam inadvertidamente estimulando o surgimento do fenômeno. O primeiro filme parece conter um esforço “para representar a televisão como um portal potencialmente maléfico, apesar do fato de que ela 29 não é mais uma nova tecnologia espectral” . Como se trata de um reality show, um “espetáculo de realidade”, a equipe se porta até os últimos momentos como performers mediáticos que perderam o controle sobre a narrativa que lhes interessa captar, ainda que esta falta de controle sobre

a narrativa motive-os a continuar seu trabalho – como em uma cena em que o apresentador abatido e transtornado resolve devorar um rato frente a câmara para mostrar a situação devastadora a que fora submetido, sem esquecer o papel mediático que o levou até ali. Murray Leeder em um trabalho em que debate a influência da mídia como disseminadora do sobrenatural afirma que “a era da mídia tem ampliado as possibilidades do sobrenatural, transmitindo fantasmas para todas nossas casas e até mesmo 30 tornando-os onipresentes” . Este nível de auto-reflexibilidade traz a questão da responsabilidade do apresentador perante sua audiência: sua vitimização é dada por seu próprio trabalho, mas isso não o exime de abandonar seu papel narrativo, pelo contrário, as câmaras deflagraram sua condição e é para elas que o apresentador deve mostrar sua ruína – de performer mediático à vítima de suas próprias circunstâncias. Nesse sentido, o filme “flerta com perguntas sobre se a câmara está simplesmente documentando algo que escapa a olho nu, ou se ela está facilitando a 31 assombração através de sua presença” . 32 Na continuação, Grave Encounters 2 , a audiência é trazida para a narrativa através de sua participação na arena do fandom. A narrativa começa com vários vloggers comentando e criticando o primeiro filme, como uma manutenção de sua autoreflexibilidade. Um destes vloggers é estudante de cinema e decide abandonar o torture porn que estava produzindo como trabalho de conclusão de curso ao receber por e-mail uma “cena perdida” de Grave Encounters. Este arquivo de vídeo anônimo o motiva a documentar e investigar o primeiro filme, o que o leva para dentro do manicômio. Esta é a questão que está no cerne do filme: um “arquivo assombrado” o tira da posição de espectador e o coloca no patamar de produtor e, como tal, perpetuador do horror.

Figura 3 – o “arquivo assombrado” em Grave Encounters 2.

Se a equipe do reality show do primeiro filme estabelece a televisão como um portal de transmissão do horror, em sua continuação a narrativa assume uma “virada amadora” para destacar o poder de novos

agentes mediáticos na disseminação digital do mal. Nesse sentido o found footage de horror intercede contra o poder de visibilidade e circulação garantido aos amadores pela tecnologia digital. A mesma tecnologia que permite hoje uma democratização da produção audiovisual amadora se torna a fonte das crises e fobias nos lares. O horror se desenvolve junto ao poder de visibilidade concedido pela tecnologia digital e passa a punir o direito de expressão que o amador recebeu com a popularização desta tecnologia. É importante frisar que as duas franquias fílmicas debatidas são produtos do capital mediático e devem obedecer a “Lógica do Windowing”, isto é, uma lógica de sequenciação típica da circulação mercadológica de um produto audiovisual, em que uma obra segue um percurso entre várias janelas de exibição segundo uma ordem que mantém sua sobrevida e rentabilidade: inicial e primordialmente são filmes exibidos em circuitos comerciais de cinema que avançam para o vídeo doméstico, depois para a TV paga e os portais de vídeos sob demanda, até atingir a TV aberta. No entanto, a era digital tem oferecido alternativas para os produtos da cultura popular que não possuem o capital mediático destas franquias fílmicas. Porém, mesmo entre as frestas, a moral punitiva do poder mediático é refletida nas produções independentes que trafegam por janelas alternativas de circulação e distribuição audiovisual. Todas as tecnologias surgidas com o desenvolvimento da modernidade, sejam elas de comunicação ou não, carregam uma promessa ambivalente, entre a utopia de um futuro aperfeiçoado e a distopia de um uso criminoso ou inconsequente gerado através dela. David Skal considera este aspecto já na filmografia de horror da década de 1950, pois “como todos os deuses, a energia atômica tinha o 33 poder de agradar, bem como o de punir” . Com a mesma intensidade a tecnologia digital implica um lado positivo vislumbrado na domesticação e no acesso audiovisual, e talvez seja isso que traga seu lado negativo. O empoderamento concedido pela tecnologia reserva uma faceta destrutiva tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade, mas especialmente para a mídia de massa. Com o acesso quase irrestrito da tecnologia no quotidiano das famílias, a mídia de massa passa a ser fragilizada em sua exclusividade de produzir e disseminar conteúdo audiovisual. Além de concorrer com o trabalho informal de amadores, a mídia de massa também sofre com a cópia e a distribuição indiscriminada de seus conteúdos. Esta é uma mentalidade conservadora corroborada não apenas por alguns produtos audiovisuais, mas também, como pode ser visto em

uma publicação recente de Andrew Keen, está enraizada na ideologia cultural da mídia. Keen tem uma meta moral na defesa dos valores mediáticos e em seu livro prega uma luta contra os avanços do conteúdo auto-gerado da Web 2.0 ao afirmar que “em vez de desenvolver tecnologia, acredito que nossa responsabilidade moral real é proteger a grande mídia 34 contra o culto do amador” . Desta forma o campo do found footage retrata outro tipo de circulação na cultura contemporânea. O filme found footage de horror enquanto participa do problema, parece também evidenciar a disputa de poderes entre janelas mais tradicionais e novas janelas digitais capazes de comportar a diversidade e variedade de produções que trafegam muitas vezes livremente, outras vezes ilegalmente, através de sites, blogs, comunidades e plataformas de troca e de compartilhamento de arquivos de vídeo na internet. Dois exemplos traduzem bem as preocupações conservadoras de Keen, franquias feitas por intermédio e para a cultura digital da Web 2.0: a 35 Web-série norte-americana Marble Hornets e a 36 “trilogia caseira” produzida no Brasil Matadouro . Estas franquias digitais não foram feitas para obedecer a lógica comercial do Windowing, foram produzidas para serem escoadas diretamente pela internet através da plataforma de vídeos YouTube. Se no passado alguns produtores independentes de horror encontraram no padrão DTV uma alternativa para atingir sua audiência, podemos dizer que o padrão destas novas produções é o “DTW”, isto é, direct to Web – produções que além de serem distribuídas gratuitamente através da Web 2.0 também materializam em suas narrativas o problema da democratização das tecnologias digitais e a subsequente distribuição de arquivos digitais. Composto por 87 websódios com uma primeira entrada em 20 de junho de 2009 e sua última entrada em 20 de junho de 2014, Marble Hornets ao longo destes 5 anos conquistou uma audiência digna de qualquer produto industrial televisivo ou cinematográfico. A Web-série apresenta um jovem cineasta, Alex, que desiste das gravações de seu filme por motivos inexplicados e muda-se de cidade. Seu amigo Jay passa então a investigar as fitas gravadas e abandonadas por Alex, e percebe fenômenos estranhos nos arquivos audiovisuais. Compelido pelo mistério Jay toma para si o filme inacabado e continua as gravações para desenvolver a trama, o que o leva a se deparar com o mito preservado por comunidades na internet de fãs do Slender Man, representado pela figura mascarada do Operator. Quanto mais Jay avança em sua documentação, mais a presença obscura e indeterminada do Operator se materializa na narrativa. Desta maneira, a série parece propor que são os

arquivos de vídeo, e sua transmissão na Web 2.0, que materializam e preservam o monstro no quotidiano dos envolvidos. Segundo Alexandra Heller-Nicholas “no coração de Marble Hornets encontra-se o horror do arquivo assombrado, o desejo de conter verdades que 37 são, em última análise, incontidas” .

Figura 4 – o monstro preservado pelo arquivo em Marble Hornets.

Marble Hornets equipara seu horror a um arquivo amaldiçoado, como se a troca e a proliferação destes arquivos na cultura digital perpetuasse um monstro. De certa forma a série endossa a manutenção ideológica da mídia industrial, ainda que esteja aquém da indústria. Suas estratégias narrativas adentram uma fobia colonizada pela mídia industrial: as pessoas que estão fora da indústria mediática sofrerão consequências nefastas caso se envolvam em práticas de produção e circulação cultural que atinjam a soberania de audiência da indústria. Quem não trabalha na indústria mediática pode apenas ser consumidor dos produtos ofertados no mercado cultural. Keen defende esta premissa, acredita que o “culto do amador” tem tornado mais difícil determinar a diferença entre autores e audiência, e isto traz tanto prejuízos econômicos para a indústria, quanto 38 prejuízos culturais para os consumidores . Assim, tanto quanto uma vitimização há uma demonização do amador. Aquele indivíduo cuja participação mediática burla a fronteira entre os produtores e os consumidores estará em uma condição ambivalente. Esta questão vigora na trilogia Matadouro realizada por Carlos Júnior. O padrão DTW é atestado nesta franquia, pois tratam-se de filmes de longa-metragem distribuídos na íntegra através do YouTube. Até as restrições orçamentárias são condizentes com a estética amadora das produções, bem como com a opção de incrementar a audiência através da distribuição digital. Logo no início do primeiro filme um letreiro informa que parte das gravações e a montagem dos vídeos foram realizadas por amadores que assassinaram diversas pessoas entre 2006 e 2009. A narrativa mostra durante uma viagem pelo campo

alguns jovens munidos com câmaras digitais que passam a ser perseguidos, torturados, assassinados e, não menos importante, gravados por maníacos homicidas. Toda a trilogia (a ser finalizada agora em 2015) apresenta o poder conferido pela tecnologia digital sendo subvertido por assassinos e suas práticas de registro doméstico. O empoderamento da câmara digital é usado contra os jovens e seu direito de expressão. Os assassinos não apenas dominaram as vítimas através da violência, dominaram-nas também através da tecnologia. Suas práticas mostram que os amadores podem usar a tecnologia para o horror. Os vilões homicidas dominaram a tecnologia e a técnica audiovisual para emprega-las no controle e perpetuação da memória de seu poder e de sua violência contra o indivíduo e a sociedade.

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noticiado televisivamente pela imprensa mundial . Desde o início o vídeo mostra através de sua planificação equilibrada, dos movimentos de câmara estáveis, e dos efeitos de edição de imagem e som na montagem, que os extremistas dominaram a tecnologia e aprenderam a manipular a técnica e a linguagem audiovisual. O vídeo difere muito do padrão cru, amador e rudimentar dos vídeos terroristas do passado, possui um acabamento mais refinado e apresenta o avanço do terror no campo da mídia alcançado com a tecnologia digital. Como um novo símbolo do poder exercido pelos radicais religiosos, o “vídeo de decapitação” recebeu um tratamento mediático adequado ao momento cultural vigente. A disputa de poderes em torno da mídia é materializada no found footage de horror, e até mesmo os exemplares mais independentes ou amadores tendem a repetir a moral conservadora filtrada pela indústria mediática em suas janelas hegemônicas como um mecanismo de manutenção ideológica de seus valores capitalistas – uma moral que constrange a consciência e adverte sobre os novos horizontes vislumbrados através de outras janelas.

Notas finais 1

The Blair Witch Project 1999. The Last Broadcast 1998. 3 Esta e as demais citações de obras estrangeiras relacionadas na bibliografia foram traduzidas pelo autor deste trabalho. 4 Badley 2010, 51. 5 Badley 2010, 45. 6 Badley 2010, 45. 7 Badley 2010, 46. 8 Badley 2010, 47. 9 Heller-Nicholas 2014a, 107. 10 Heller-Nicholas 2014a, 107. 11 Jowett e Abbott 2013, 180. 12 Jowett e Abbott 2013, 199. 13 Cherry 2009, 210. 14 Skal 1993, 386. 15 Engelhardt 2006, 2. 16 Wetmore 2012, 23. 17 Wetmore 2012, 59. 18 Cherry 2009, 186. 19 Wetmore 2012, 74. 20 Wetmore 2012, 77-8. 21 [REC] 2007. 22 O personagem Pablo é interpretado por Pablo Rosso que é também o diretor de fotografia do filme e de sua sequência na qual encarna o policial Rosso. Essa é uma estratégia em que a equipe técnica é colocada dentro do mundo cênico para cumprir o requisito da câmara diegética com um profissional capaz de garantir o resultado da fotografia e evitar desperdício de tempo e recursos. 23 Wetmore 2012, 63. 24 Wetmore 2012, 70. 2

Figura 5 – a violência do controle narrativo em Matadouro.

Há uma inversão nos valores narrativos subsidiada pela mesma tecnologia cuja promessa era de controlar sua própria auto-narrativa. Ter acesso à tecnologia digital, neste caso, serve para subjugar a liberdade de expressão prometida pela câmara: as vítimas perdem o controle narrativo por terem acesso à tecnologia que garantia este mesmo controle. Isto significa que a tecnologia digital ostentar um poder que é simultaneamente benéfico e maléfico para o amador e a sociedade.

Conclusão: as janelas do mal Tecnologias de produção e compartilhamento de vídeos que resguardam o empoderamento amador traduzem simultaneamente as promessas de atrocidades que o indivíduo é capaz de fazer, como podemos ver na decapitação de vinte e um egípcios católicos promovida pelo grupo extremista Estado Islâmico recentemente divulgado na internet e

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2

[REC] 2009. Quarantine 2008. 27 Grant 2013, 163. 28 Grave Encounters 2011. 29 Jowett e Abbott 2013, 180. 30 Leeder 2013, 175. 31 Leeder 2013, 177. 32 Grave Encounters 2 2012. 33 Skal 1993, 248. 34 Keen 2007, 204. 35 Marble Hornets 2009-2014. 36 Matadouro 2012, 2013 e 2015. 37 Heller-Nicholas 2014b, 13. 38 Keen 2007, 27. 39 Islamic State releases video showing beheading of 21 Egyptian Christians in Libya 2015. 26

Bibliografia Badley, Linda C. 2010. “Bringing it all back home: Horror cinema and video culture”, in Horror Zone: The cultural experience of contemporary horror cinema. Edited by Ian Conrich, 45-63. London: I.B. Tauris. Cherry, Brigid. 2009. Horror. New York: Routledge. Engelhardt, Tom. 2006. “9/11 in a movie-made world”, in The Nation. http://www.thenation.com/print/article/911-movie-mad e-world. Acedido em 15 de janeiro de 2014. Grant, Barry Keith. 2013. “Digital anxiety and the new verité horror and SF film”, in Science Fiction Film and Television, 6(2): 153-75. Heller-Nicholas, Alexandra. 2014a. Found footage horror films: fear and the appearance of reality, Jefferson, North Carolina: McFarland. Heller-Nicholas, Alexandra. 2014b. “Found footage horror #2: textures of silence and decay – Marble Hornets and the hauted archive”, in Bright Lights Film Journal. http://bright lightsfilm.com/found-footage-2-textures-silence-decay-marble -hornets-haunted-archive/#.VFWQWUv-KT8. Acedido em 10 de junho de 2014. Jowett, Lorna and Abbott, Stacey. 2013. TV Horror: investigating the dark side of the small screen, London: I.B. Tauris. Keen, Andrew. 2007. The cult of the amateur: how today’s internet is killing our culture and assaulting our economy. London: NB Publishing. Leeder, Murray. 2013. “Ghostwatch and the haunting of media”, in HOST-Horror Studies, 4(2): 173-86. Skal, David J. 1993. The Monster Show: a cultural history of horror, New York: Faber & Faber. Wetmore, Kevin J. 2012. Post-9/11 horror in American cinema, New York: Continuum.

Filmografia Grave Encounters. 2011. De The Vicious Brothers. Canadá: Paris Filmes/LK Tel. DVD. Grave Encounters 2. 2012. De The Vicious Brothers. Canadá: Paris Filmes/LK Tel. DVD. Islamic State releases video showing beheading of 21 Egyptian Christians in Libya. 2015. De Islamic State. Síria: YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=V9B8pcJlFhs& bpctr=1424725226.

Marble Hornets. 2009-2014. De Troy Wagner. Estados Unidos: YouTube. https://www.youtube.com/user/MarbleHor nets. Matadouro. 2012. De Carlos Júnior. Brasil: YouTube. https:// www.youtube.com/watch?v=_I1AZ1VopPE. Matadouro parte 2: Prelúdio. 2013. De Carlos Júnior. Brasil: Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=9m_JdhXSJKA. Parte Final: Matadouro 3 Teaser. 2015. De Carlos Júnior. Brasil: YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=A45twq 1I8uE. Quarantine. 2008. De John Erick Dowdle. Estados Unidos: Sony/Videolar. DVD. [REC]. 2007. De Jaume Balagueró e Paco Plaza. Espanha: California Filmes/Sonopress Rimo. DVD. 2 [REC] . 2009. De Jaume Balagueró e Paco Plaza. Espanha: California Filmes/Sonopress Rimo. DVD. The Blair Witch Project. 1999. De Daniel Myrick e Daniel Sanchéz. Estados Unidos: Europa Filmes/Videolar. DVD. The Last Broadcast. 1998. De Stefan Avalos e Lance Weiler. Estados Unidos. Dvix.

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