A \"linha da frente\"? Do sudoeste dos Balcãs à Ásia Central

July 21, 2017 | Autor: A. Marques-Guedes | Categoria: History, European History, Military History, Cultural History, Economic History, Sociology, Political Sociology, Social Movements, Political Geography and Geopolitics, Eastern European Studies, European Studies, Russian Studies, Economics, International Relations, Philosophy, Political Philosophy, International Relations Theory, Peace and Conflict Studies, European integration, Social Sciences, Political Theory, International Studies, Middle East & North Africa, International Law, Geopolitics, Geopolitical Economy, Balkan Studies, International Security, War Studies, Security, Political Science, European Security and Defence Policy, Central Asian Studies, International Political Economy, Mediterranean Studies, Central Asia (History), European Foreign Policy, International Politics, European Union, Social History, Oil and gas, Central Asia, European Union Politics, Ethnic Conflict and Civil War, War on Terror, Central and Eastern Europe, Historia, Sociologia, Georgian foreign policy, History of European Expansion, Borders and Frontiers, Geopolitcs and Geostrategy, EU institutions, EU foreign policy, Russia, Ukraine, Belarus and Moldova, securitization, Sociología, Egypt, Arab Spring, middle east, Arab studies, Arab Spring (Arab Revolts), Geopolítica, Atlantic Alliance, Peace and Conflicts Studies, Sociology, Political Sociology, Social Movements, Political Geography and Geopolitics, Eastern European Studies, European Studies, Russian Studies, Economics, International Relations, Philosophy, Political Philosophy, International Relations Theory, Peace and Conflict Studies, European integration, Social Sciences, Political Theory, International Studies, Middle East & North Africa, International Law, Geopolitics, Geopolitical Economy, Balkan Studies, International Security, War Studies, Security, Political Science, European Security and Defence Policy, Central Asian Studies, International Political Economy, Mediterranean Studies, Central Asia (History), European Foreign Policy, International Politics, European Union, Social History, Oil and gas, Central Asia, European Union Politics, Ethnic Conflict and Civil War, War on Terror, Central and Eastern Europe, Historia, Sociologia, Georgian foreign policy, History of European Expansion, Borders and Frontiers, Geopolitcs and Geostrategy, EU institutions, EU foreign policy, Russia, Ukraine, Belarus and Moldova, securitization, Sociología, Egypt, Arab Spring, middle east, Arab studies, Arab Spring (Arab Revolts), Geopolítica, Atlantic Alliance, Peace and Conflicts Studies
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A “LINHA DA FRENTE”? DO SUDOESTE DOS BALCÃS À ÁSIA CENTRAL

A “LINHA DA FRENTE”? DO SUDOESTE DOS BALCÃS À ÁSIA CENTRAL ARMANDO MARQUES GUEDES Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros

Num curto artigo de um par de páginas, relativamente recente, que se tornou justamente famoso, sob o título The Day After, o neorealista norte-americano Stephen Krasner especulou sobre quais seriam as consequências políticas estruturais se várias cidades importantes fossem atacadas com armas nucleares manuseadas por agrupamentos terroristas: “imagine if terrorists set off, say, three nuclear explosions – one in Washington, D.C., one in New Delhi, and one in Berlin – over a period of six months, followed by another blast in Los Angeles nine months later”1. O cenário delineado era apocalíptico. As consequências que dele derivou seriam, porventura, piores ainda. Ao ponderar o que aconteceria ao sistema internacional no dia seguinte aos dos ataques, o retrato que Krasner traçou em 2005 foi demolidor. Segundo comentava, “conventional rules of sovereignty would be abandoned overnight”; ataques preventivos, sem quaisquer amparos multilaterais formais, tornar-se-iam comuns: mais ainda, “many of the activities in which the United Nations now plays a major role – such as authorizing the use of force or judging governments’ human rights record – will be displaced by new international organizations with more robust conditions for membership”; “ultimately, the major powers would explicitly revive the concept of a trusteeship or protectorate”; e, por fim, “a state’s right to control the exploitation of its natural resources (most notably oil) within its territory will be an added casualty”. Numa visão de conjunto do que iria acontecer caso (ou quando) um ataque terrorista com armas de destruição em massa tivesse lugar, previu que “(t)he lethality and scope of future terrorist attacks 1

Stephen Krasner (2005), “The Day After”, Foreign Policy, n.o 146, 68-70. 115

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will determine whether or not we are at a fulcrum of history, a turning point analogous to the transition from the medieval to the modern world”. Um autêntico apelo à sobriedade e um forte aviso à navegação, num Mundo tornado cada vez mais inseguro e, sobretudo, menos previsível. Importa no entanto não esquecer que, para além das novas Guerras de Terceira Geração, como têm sido apelidadas – confrontações assimétricas potencialmente brutais que nos ameaçam life and limb – continuamos a defrontar ameaças mais clássicas, muitas elas de matriz “geopolítica”. Com um mínimo de recuo analítico, é compreensível que tal possa parecer surpreendente. O fim do mundo bipolar, um mundo que, no fundo, se ordenava em termos político-ideológicos, mas cuja expressão era no essencial geográfica, significou durante alguns anos o declínio tanto da Geopolítica quanto da sua aplicação normativa, a Geoestratégia. Ambas eram (e são) modelizações teórico-metodológicas que tinham emergido em quadros imperiais macro, em que visões de conjunto pareciam imprescindíveis: talvez por isso a divisão em dois grandes blocos do pós-Segunda Guerra Mundial lhes tenha assentado que nem uma luva. Com o final da bipolarização tornaram-se porém irrelevantes: pelo menos foi o que pareceu à nova sabedoria convencional que se instalou durante os anos 90. A globalização, com as suas “deslocalizações” e “contracções do espaço e do tempo”, pareceu a muitos confirmar tacitamente essa irrelevância crescente. Num ápice, análises geopolíticas, num mundo que parecia já não dividido mas cada vez mais interligado, ficaram demodées. O refluxo foi porém sol de pouca dura: as modelizações deste tipo iriam voltar em força, à medida que um novo rearranjo da ordem internacional foi cristalizando a partir da desordem inicial que acompanhou o desmoronamento da ordenação em dois grandes pólos: com a emergência rápida de novas criaturas “regionais”, muitas delas centradas nos famigerados hinterlands – enquanto, outras, não – e com recuperações francas de largas fatias adormecidas de um Mundo novo, solto e disponível para ir sendo redistribuído. A geografia voltara, ainda que sob novas vestes, às unidades menos amplas e mais variadas2. Acordámos: afinal, configurações do tipo das antigas perduram ainda. 2 Um muito rápido enquadramento académico-metodológico. Enquanto em França a geopolítica permaneceu central, no pensamento anglo-saxónico o renascimento da geopolítica ganhou expressão em teses como a de Colin Gray (1988), The Geopolitics of Superpower, Lexington, KY: University of Kentucky Press, e a de Zbigniew Brzezinski (1997), The Grand Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperatives, New York, Basic Books. No mainstream (norte-americano) da teoria das Relações Internacionais, são facilmente discerníveis fundações geopolíticas, e.g. no debate acerca da “estabilidade unipolar”, entre por um lado o neo-realismo de Kenneth Waltz (2000), “Structural Realism after the Cold War”, International Security, vol. 25, n.o 1 e, por outro, o realismo neo-clássico de William Wohlforth (1999), “Stability of a unipolar world”, International Security, vol. 24, n.o 1. Também o neo-realismo ‘defensivo’ de Stephen Walt e o realismo ‘ofensivo’ de John Mearsheimer traduzem preocupações geopolíticas, de novo e.g.: nos seus tratamentos das noções de “proximidade” e “distância”. Estas aproximações teóricas positivistas atribuem ao conceito de “poder” (e ao de “segurança”) uma ontologia exclusivamente materialista (salvo no caso mais nuancé de S. Walt, que parece querer incluir a “ideologia” como forma de ameaça, portanto associável à noção de poder), pelo que a avaliação de factores geográficos físicos passa a ter implicações determinantes para as conclusões holísticas que formulam acerca do funcionamento da política internacional. Uma posição reducionista.

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Não será grande a novidade na asserção de que temos de conviver com ameaças convencionais e não-convencionais nos palcos internacionais contemporâneos. Nesse sentido, o Mundo em que com dificuldade crescente contracenamos uns com os outros é híbrido. Nem suscitará surpresa a convicção de que o bloco transatlântico (o “Ocidente”) constitui o fulcro em cujo redor se concentram ameaças e tensões, dada a centralidade que tem e os desafios que isso coloca às comunidades políticas que, à sua volta, insistem em manter acesos os seus próprios projectos hegemónicos. Simplificando: por um lado, o terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa; e, por outro, desafios mais “clássicos” ligados ao security dilema em que vivemos de maneira explícita desde a Paz de Westphalia e de que temos porventura consciência desde a Guerra do Peloponeso. Aquilo que há de novo é que as novas e velhas ameaças parecem hoje em dia convergir mais do que alguma vez o fizeram, juntando, num mélange novo, complexidade orquestral e profundidade harmónica. Quero argumentar que (de um ponto de vista geopolítico pelo menos) tal convergência existe e pode vir a ter implicações sérias. Na minha apresentação3, tentarei delinear, explicitando-a, aquela o que considero ser a principal linha da frente dessa nova confluência. O que me proponho fazer é escrutinar as tensões e a dinâmica conflitual do segmento mais problemático dessa “linha”4: a clivagem que vai do Kossovo, nos Balcãs sul-ocidentais, à Ásia Central, passando pelo Mar Negro e pelo “Grande Médio Oriente”, este último um conceito relativamente recente de interdependência regional que tentarei a par e passo, naquilo que se segue, esmiuçar nalgum pormenor. A minha finalidade é a de mostrar a utilidade de uma perspectivação geopolítica para uma melhor arrumação – e, por conseguinte, para uma melhor compreensão – do que de outra maneira seríamos levados a considerar como factos e acontecimentos avulsos e desligados uns dos outros. É difícil fazer o balanço de uma situação tão dinâmica, e ainda em curso, como é a existente na região sobre a qual me vou debruçar. O que parece certo é que a mecânica conflitual em causa constitui uma questão central no que diz respeito aos balanços gerais que têm vindo a ser equacionados. Numerosos trabalhos lhe têm sido dedicados. O exemplo mais influente é decerto o do estudo de Ronald D. Asmus, F. O texto que redigi foi lido e comentado por Armando M. Marques Guedes, Aslak Orre, Catarina Mendes Leal, Duarte Pinto da Rocha, Francisco Corboz, João Pedro Pimenta, João Ribeiro de Almeida, Jorge Azevedo Correia, José Félix Ribeiro, José Manuel Freire Nogueira, Nuno Cabral, Nuno Canas Mendes, Pedro Velez e Sofia Moreira de Sousa. Agradeço as numerosas achegas que recebi, muitas delas de grande utilidade. A responsabilidade pelo texto final permanece, todavia, apenas minha. 4 De um ponto de vista substantivo, talvez fosse mais adequado falar de uma “zona da frente” do que propriamente de uma “linha” já que, como irei procurar mostrar, trata-se mais de uma “faixa” de geometria variável do que de uma divisão “fronteiriça”. Preferi, no entanto, utilizar a expressão “linha da frente”, ou frontline, por razões formais que se prendem com o potencial de conflitualidade ao longo de frentes – sinuosas, é certo, e muitas vezes “em banda larga” – que, momento a momento, são nítidas: aquelas em que há o risco de eclosão das neo-proxy wars, cirúrgicas ou prostéticas, que prevejo como formato para os conflitos nessas “frentes”. Por cautela, ponho sempre esta expressão entre aspas. 3

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Stephen Larrabee e Ian O. Lesser que, em meados dos anos 90, viram esta região como o segundo “arco de crise”, horizontal – um “eixo” que incluiria “o Médio Oriente, os Balcãs, a região do Transcáucaso” e que intersectaria um “primeiro arco”, esse vertical, que dividiria a Alemanha da Rússia, começando nos Estados Bálticos e descendo até aos mesmos Balcãs. Segundo este trio de analistas norte-americanos, os riscos de um conflito seriam particularmente agudos no lugar de intersecção destes dois arcos: o dos Balcãs e o da bacia do Mar Negro5. É, de algum modo, precisamente sobre este modelo que pretendo elaborar a minha comunicação. Como espero vir a tornar claro, concordo no essencial com a leitura equacionada em 1996, e parece-me que o muito que entretanto ocorreu nestes dois “arcos de crise” a corrobora. Parece-me também, no entanto, que podemos e devemos pormenorizar mais e melhor a modelização delineada há uma década: é o que tento aqui fazer. Presto especial atenção ao “arco sul de crise”, o horizontal. Faço-o de um “modo geopolítico”, por assim dizer. Aproveito a oportunidade para formular algumas considerações, que apesar de pouco ambiciosas me parecem úteis – sobretudo tendo em vista o contexto desta minha comunicação – sobre a natureza das explicações “geopolíticas”, com vista a ultrapassar os limites deterministas a que o materialismo positivista de inspiração geográfica oitocentista as tem vindo a condenar. A modelização que esboço, em consonância com isso, é aberta e multicausal. 5 Ronald D. Asmus, F. Stephen Larrabee e Ian O. Lesser (1996), “Mediterranean Security: new challenges, new tasks”, NATO Review, vol. 44, n.o 3: 25-31. Importa sublinhar que esta interpretação de três especialistas da RAND Corporation não encontrou consenso integral, embora tenha sido, e seja ainda, assaz influente. Num exemplo que valerá por todos, um grupo de analistas ligados ao Institute for Security and International Studies sedeado em Sófia, na Bulgária, publicou em 1999 um estudo intitulado Black Basin Regional Profile: The security situation and the region-building opportunities, no qual se afirmava uma distinção tida como fundamental: “[u]nlike the RAND experts this ‘Profile’ does not equate the strategic meaning and contents of the two arcs of tensions and crises. The situation in Europe, in the Euroatlantic space and the OSCE zone is incomparable to the conflict potential of the “Southern” crisis arc. The persistent and purposeful policy of NATO, EU/WEU to build together with Russia and the OSCE a new and more effective interlocking institutional security system has dramatically diminished the conflict potential of the first crisis arc. The formula for that is a difficult compromise of the enlarging NATO and EU interests, of the Russian security interests and the definite unwillingness of the Central/Eastern European countries to serve as a “strategic buffer” between the West and the East and a clear will to participate actively in the eastward expansion of the civil space and the zone of stability and security in the Euro-Atlantic-Asiatic components of the OSCE area. A historical responsibility of the Central/Eastern European countries is to support the complex process of reaching strategic compromises of the security interests of their own countries, of the EU/WEU, NATO and Russia. This fundamental difference between the two arcs of crises is a prerequisite the evolving and inherited from the Cold War Northern arc to dilute and neutralise the harmful effects of the Southern one”. Sem me querer pronunciar sobre a dimensão normativa deste texto, não me parece abusivo concordar que há, de facto, uma diferença ao nível dos riscos para a segurança e estabilidade entre os dois eixos propostos, o vertical e o horizontal. Mas, com os benefícios da retrospecção, não creio que esta distinção afecte a conclusão mais importante do estudo da RAND, segundo o qual o lugar de intersecção dos dois “arcos de conflito” formaria um nexo nevrálgico em que os riscos se acentuam drasticamente. Na quarta e última parte da minha comunicação regressarei a este ponto, no quadro do que considero constituir uma modelização mais pormenorizada e menos “mecanicista”.

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Divido a minha exposição em três partes. Num primeiro passo, mostro como as grandes potências têm vindo a centrar cada vez mais a sua atenção na “linha da frente” a que aludo, e como têm vindo a fazê-lo de um modo “institucional”. Ou seja, preocupar-me-ei, de início, com uma breve demonstração da importância crescente de uma linha divisória emergente. Num segundo passo, ensaio uma primeira abordagem, ou melhor, tento dar uma primeira demão quanto às coordenadas da divisão geopolítica maior que vejo surgir. Faço-o numa referência ao que considero serem com toda a probablidade os quatro grandes âmbitos em que essa clivagem se expressa. Sou, aí, deliberadamente especulativo. As previsões que formulo são, no entanto, controladas: não faço mais do que tentar uma leitura sensata, sem me aventurar muito longe em especulações futurológicas. Num terceiro passo, resolvo imagens dessas clivagens em maior pormenor, sem nunca, no entanto, abandonar a minha perspectivação geopolítica. Limito-me a focar a atenção na progressão dos relacionamentos sincrónicos e diacrónicos que me parecem mais importantes na cristalização da linha de clivagem que identifico – ou seja: sem verdadeiramente baixar aos factos e acontecimentos, que tomo como simples expressões, variáveis, das divisões sistémicas que nas duas primeiras partes da minha exposição tento desenhar. Concluo com algumas considerações gerais.

1. Num primeiro segmento, e recapitulando o que escrevi já noutro lugar6, cabeme então, no âmbito do que me propus levar a cabo, mostrar a emergência progressiva, de uma longa e complexa “linha da frente” no Mundo pós-bipolar, uma linha que dá corpo a uma clivagem de fundo no sistema internacional contemporâneo. Por outras palavras, gostaria de perder uns momentos na construção-abertura de uma linha de separação que ainda está a ser erigida. Visto já o ter feito noutros sítios, e tal não constituir senão um pressuposto do que na presente comunicação forma o tema central, não irei perder muito tempo com o processo de construção que resumo. Evito, em consequência, pormenores que relevam mais de minudências do que questões geopolíticas estruturais. Serei, por conseguinte, pouco mais do que indicativo no que redunda numa delineação simples e a traço carregado. Começo por notar que tanto a NATO quanto a União Europeia têm tido nos últimos anos os maiores alargamentos da sua história. Anoto, de seguida, que tais alargamentos têm sido como que coordenados uns com os outros. Um rápido tour d’horizon mostra-nos algumas das regularidades que exibem. Como argumentei 6 Fi-lo, designadamente, no artigo que publiquei primeiro na revista Nação e Defesa e tornei depois a editar, numa colectânea de estudos que coligi como segundo volume da Série B da Biblioteca Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

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noutro lugar7, estes dois processos de expansão estão também umbilicalmente interligados; trata-se, argumentei, de duas faces de uma mesma moeda: o processo de “constitucionalização” do “Ocidente”. Em minha opinião, a UE e a NATO são uma espécie de “irmãs gémeas”; como escrevi em 2003, “não é, por isso, surpreendente que existam algumas ressonâncias e paralelismos múltiplos nas várias fases da progressão histórica e geográfica da NATO e nas da União Europeia: já que esta última não seria em boa verdade, num sentido estrutural e material, inteiramente viável sem a primeira”8. Em terceiro lugar, quero dar realce ao facto de os alargamentos da NATO e da União Europeia não terem tido lugar de uma forma desordenada e desligados uns dos outros; bem pelo contrário: de um ponto de vista geopolítico, os alargamentos têm vindo a ganhar uma coerência indubitável. Não me parece necessário insistir muito neste ponto, de tal modo é evidente; e, em qualquer caso, fi-lo já noutro lugar. Com o intuito de pôr em relevo as implicações geopolíticas da evolução conjunta NATO-UE, é possível, no entanto, dar o devido realce à evidência que os alargamentos sucessivos e coordenados que têm vindo a ter lugar, ainda que se possa não ver neles um planeamento estratégico conduzido com deliberação, dão corpo a consequências geopolíticas evidentes. Para o tornar nítido, basta encarar num quadro geopolítico alargado a expansão de uma e outra destas duas entidades nos últimos anos. Comecemos, para tanto, no extremo norte da Europa, onde a Noruega (membro ab initio da NATO embora tenha recusado pertencer à UE) envolve a Suécia e a Finlândia a sul do Mar de Barents (ambas Estados-membros da União Europeia de cepa recente). Descendo – movendo-nos para sul – verificamos que este bloco escandinavo confina com as três Repúblicas Bálticas, a Estónia, a Lituânia, e a Letónia, todas elas recentemente entradas tanto na NATO como na UE. Logo abaixo está Polónia, também ela recém-chegada a ambas as organizações. A sul, a República Checa e a Eslováquia, com o mesmo duplo estatuto recente, seguidas pela Áustria, a Eslovénia, a Roménia e a Bulgária, todas elas também membros tanto da União como da Aliança. Seguem-se-lhes a Grécia, Malta, e Chipre, de igual modo Estados-membros das duas organizações. Por último a Turquia, que tal como a Noruega faz parte da NATO e não (ou, pelo menos ainda não) membro da UE. Para além destes, cabe ainda nomear a Croácia, já em fase avançada de adesão – ao contrário de diversos outros Estados do sudoeste da península balcânica – e vários Estados em negociação com vista a uma eventual adesão: designadamente a Ucrânia e a Geórgia, ambas localizadas em territórios adjacentes aos dos outros Estados-membros das nossas duas organizações internacionais.

7 Armando Marques Guedes (2005, original de 2001), “Sobre a NATO e a União Europeia”, em Estudos sobre Relações Internacionais, Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa: op. cit.. 8 Op. cit.: p. 233.

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Figura 1. Os alargamentos progressivos da NATO

Figura 1A. A União Europeia depois dos últimos alargamentos de 2007 121

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Se se adicionarem a este duplo processo de adesão-inclusão as intervenções políticas e militares das duas organizações em áreas limítrofes, dos Balcãs ao Afeganistão, passando pela zona do Cáucaso, é difícil não entrever uma ratio estratégica9. Aquilo que vemos emergir – pelo menos na fronteira leste da Europa e, mais ao sul, na região caucasiana que ladeia a Turquia e ao longo das zonas de influência túrquica que se seguem para Oriente – sensivelmente ao longo da antiga Rota da Seda e ao redor da soft belly da ex-URSS – é um esforço obstinado de construir uma espécie de “muro” defensivo, uma buffer zone, ou em todo o caso uma linha avançada, face a arcos de risco e uma tomada geopolítica de medidas preventivas de contenção face a tensões conflituais esperadas. É irrelevante para o meu argumento se se trata de uma construção deliberada se de um mero somatório de decisões avulsas e independentes umas das outras: o facto é que o processo de edificação está em curso, tendo implicações materiais incontornáveis e prestando-se a leituras muito concretas. Irei defender que há diferenças de monta entre o “eixo” vertical que vai do Mar de Barents, a norte da Escandinávia, aos Balcãs, e o “eixo” horizontal que parte dos mesmos Balcãs e corre até à fronteira chinesa. A geopolítica do “arco de tensão” Este-Oeste é, por isso, diversa da do “arco” Norte-Sul. Mas, de um ponto de vista da segurança e da defesa, é minha tese que formam um complexo dificilmente dissociável de riscos e tensões.

2. Quero, num primeiro passo suplementar, resolver melhor imagens no que toca ao outro lado da “linha da frente” a que aludi. Tendo em mente que a clivagem emergente é menos puramente geográfica e estática e mais dinâmica e multidimensionada, parece-me útil enformar a sua circunscrição precisamente nesses termos. Em guisa de enquadramento geral, gostaria de começar por alguns dados quantitativos, e outros de natureza mais qualitativa, sobre o que poderá vir a ser a evolução do Leste islâmico do Mediterrâneo e do que nos habituámos a chamar o Grande Médio Oriente: a região que escolhi para tema desta comunicação. Não pretendo ser exaustivo, nem temática nem geograficamente. Restrinjo os meus comentários a 9 O que os russos não deixaram já de compreender sem quaisquer ambiguidades, o que é compreensível dada a sua doutrina estratégica tradicional – que insiste na manutenção ciosa de um perímetro defensivo ao redor do território nacional – e, para além disso, descontentes e preocupados com a perda de influência em zonas durante muitos anos sob seu controlo. Sem surpresas, noto que é a inclusão de Estados vizinhos na NATO, e não na EU, o que mais inquieta Moscovo. Do lado ocidental, a tendência estratégica para conter um adversário rodeando-o de alianças militares é também antiga: nos anos do pós-guerra, numa zona parcialmente “equivalente” à frontline, os EUA criaram, por exemplo, diversas coligações – a CENTO e a SEATO, respectivamente na Ásia Central (a que, e.g., o Paquistão aderiu em 1954, o que levou J. Nehru a declarar a Índia “não-alinhada”) e na Ásia do Sudeste – com a finalidade de cercar a URSS.

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quatro grandes âmbitos: a progressão demográfica plausível, a subida do nível de consciência política na “região” (incluindo as mudanças geracionais que se avizinham nas lideranças políticas e a penetração do integrismo islamista na zona), a evolução na centralidade dos recursos lá existentes, e os avanços tecnológicos previsíveis; abordá-los-ei rapidamente na ordem por que acabei de os enumerar. Toco apenas alguns dos pontos da região que escolhi focar. A finalidade é a de fornecer alguns dados empíricos ponderados, ao mesmo tempo que tento delimitar e esboçar uma primeira caracterização das dinâmicas políticas regionais que depois irei escrutinar em mais detalhe. Perspectivas e prospectiva Começo pela demografia, domínio que por si só tem pouco significado mas no qual são de esperar as transformações “materiais” mais explosivas10. Em 1980, os Muçulmanos constituíam cerca de 18% da população mundial; no primeiro quartel do século XXI ultrapassarão os 30% e espera-se que o crescimento continue. Uma parte desse crescimento demográfico irá seguramente ter lugar na diáspora islâmica europeia e norte-americana. E na minha “zona”, ou “linha da frente”? Deixem-me dar alguns exemplos indicativos da escala do que é de prever. De cerca de 75 milhões de pessoas hoje, o Egipto, por exemplo, passará a 120 milhões em meados do século. A Arábia Saudita, praticamente triplicará, no mesmo período, de 22 para 61 milhões de habitantes. Tanto a Síria como o Iraque saltarão para quase 50 milhões de pessoas cada, tornando-se em verdadeiras potências demográficas. Ao lado, o Irão crescerá para mais de 150 milhões de pessoas – ou seja, terá mais gente do que a Rússia contemporânea – e do Afeganistão caberá uma escala demográfica semelhante à do Egipto de 2007: quer dizer, 75 milhões de habitantes. Um último exemplo. Com 26 milhões de habitantes, o Uzbequistão é, neste momento, o Estado mais populoso da Ásia Central; a sua taxa de crescimento, apesar das terríveis mais de 70 mortes por cada mil nascimentos, é sensivelmente igual à do Egipto: em meados do século XXI haverá cerca de 50 milhões de Uzbeques. A própria história da região pode vir a mudar com esta autêntica explosão populacional. No mesmo intervalo de tempo, ao que tudo indica, a Europa que confina com esta “linha da frente” verá a sua população estabilizada, ou verificar-se-á nela uma retracção demográfica. Por muito interessante que tudo isto possa ser, o retrato que forneci está, como é óbvio, seriamente incompleto. Acrescem mudanças político-económicas de monta com que, com toda a probabilidade, há que contar. Estas mudanças são essenciais, quanto mais não seja pela situação dramática vivida a este nível: quando, em 2002, 10 Obtive os dados que utilizo nos vários Country Reports da CIA, facilmente disponíveis na Internet, bem como em publicações mais especializadas de natureza académica.

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o PNUD publicou a primeiro Arab Development Report, ficámos cientes de que na população global dos 22 países árabes existentes (no ano 2000, 280 milhões de pessoas) tinham um Produto Interno Bruto equivalente ao de Espanha11. Muitos dos Estados do chamado Sul vão tornar-se mais ricos no século XXI; mas parece improvável que o gap tecnológico com o Norte se feche. De acordo com o Report do PNUD, em 2020 os 22 Estados árabes terão uma população conjunta de 450 milhões de pessoas e o seu nível de vida será mais baixo do que é hoje... Tomados em conjunto, estes vários indicadores sugerem hipóteses que importa saber arrumar em termos das suas implicações ao nível da segurança e defesa. Tomarei como exemplo único o exercício futuro do poder relativo ou, como lhe chamou Susan Stange, “relacional”. No que toca ao Leste islâmico do Mediterrâneo Sul e ao Médio Oriente – os analistas são virtualmente unânimes – tudo indica que a diferença tecnológico-económica vis à vis da Europa e da Rússia com que confinam vá aumentar12. Quer isto significar que a relação de poder entre o Norte, por um lado, e o sul do Mediterrâneo muçulmano e o Médio Oriente, pelo outro, vai favorecer ainda mais o Norte do que aquilo que é hoje o caso? Provavelmente não. De facto, a capacidade do Norte em controlar hegemonicamente o Sul está a diminuir a olhos vistos. No futuro previsível, o poder europeu e até norte-americano para causar estragos onde queira aumentará; mas a possibilidade de realmente dominar, essa já há alguns decénios está a decair. Sem querer tergiversar, entrando em pormenores laterais, ajuda dar uma maior resolução político-analítica a este ponto. Existem múltiplas razões complementares: a eficácia crescente de reacções político-militares assimétricas13 cada vez mais audazes e teimosas, e uma disponibilidade cada vez maior do Sul em aceitar baixas substanciais, associada a uma cada vez mais explícita renitência do Norte em as admitir, mesmo se moderadas. Numa frase, a competência técnica e a consciência política estão a dissociar-se uma da outra, divergindo ao progredirem em direcções opostas. Escuso-me de dar realce às implicações securitárias desta infeliz dissonância. Mas faço questão de oferecer mais uma vez uma baliza que apesar de obviamente

11 UNDP (2002), Arab Human Development Report. É muito útil a leitura deste Report, pelo retrato que disponibiliza do núcleo árabe do mundo islâmico contemporâneo, tão importante na região sobre que aqui me debruço, e que tão diferente parece ser do que é a auto-representação que a “rua árabe” e os líderes políticos destes 22 Estados fazem de si próprios. 12 Com alguma amargura, Mark Leonard (2006: 25) foi mais longe, ao afirmar que “the most likely scenario is that the Middle East in 2020 will be a region defined neither by democracy nor by the rule of law. It will not be a cohesive force on the world stage, but a battle ground for different ideologies”. Um pouco depois (ibid, p. 30), justificou a asserção, explicando que, na sua opinião, “if the internal politics of the Middle East are pulling the region apart, so too are external forces”. 13 Para uma tentativa de análise dos motivos estruturais para essa incapacidade de fazer frente a guerras assimétricas de “terceira geração”, ver, por exemplo, Armando Marques Guedes (2006), “O Pensamento Estratégico Nacional. Que futuro?”, em José Manuel Freire Nogueira e João Vieira Borges, O Pensamento Estratégico Nacional: 143-199, Cosmos e Instituto da Defesa Nacional, Lisboa.

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baseada em critérios sempre discutíveis exibe, decerto, alguma utilidade comparativa residual: segundo a Freedom House, que ordena Estados num gradiente que vai do “most free” (a que atribui o grau 1) ao “least free” (estes de grau 7), a média árabe seria, em 2004, de 6,7. Uma noção mais clara do que isto significa é apurável por comparações simples: segundo a mesma Freedom House, a média em África e na Ásia é de 4,9, na América Latina de 3,0 e na Europa (como um todo) de 2,6. Se esmiuçarmos um pouco o que acabei de dizer, o retrato de uma clivagem, neste plano sociológico do poder relacional, torna-se de imediato mais nítido. Atenhamo-nos ao Norte de África. Entidades como a al-Qaeda e a Irmandade Muçulmana estão a crescer vertiginosamente em Marrocos, na Argélia, na Tunísia ou – sobretudo a última destas entidades – no Egipto, como têm vindo a mostrar acontecimentos cíclicos recentemente reactivados, designadamente os ataques do passado mês de Março de 2007 que, depois de um longo hiato, se seguiram às ligações à al-Qaeda reputadamente firmadas por agrupamentos locais14. Há muito que vem sendo assim, mas agora é-o com uma agravante: à excepção de Marrocos e da Tunísia, ambas com lideranças jovens e recentes, os outros quatro grandes países do Magrebe têm líderes políticos fortes e carismáticos a chegar ao termo da sua vida, por idade, doença, ou uma mistura de ambas as coisas: tal é o caso, no Egipto, de Hosni Mubarak; na Argélia de Abdelaziz Bouteflika; e, na Líbia, de Muammar Kadafi - todos eles em fim de carreira. Apesar de mais bem firmados deste ponto de vista, nem a Tunísia nem Marrocos são modelos de estabilidade15. A janela de oportunidade não deixará decerto de continuar a ser explorada por agrupamentos islamistas radicais, que tenderão a ver nela um trampolim para acções no Norte do Mediterrâneo, ou seja, na Europa – uma Europa que, como sabemos, usam há já alguns anos como base logística e de recrutamento. O que me traz ao meu terceiro âmbito de mudanças previsíveis, a evolução tecnológica que certamente irá ter lugar nas próximas dezenas de anos. O ponderação de mais estes ingredientes permite-nos uma mudança de patamar da nossa análise, redimensionando-a. Por muito laicas e “ocidentalizadas” que as elites que os controlam com mão firme possam querer ser, os Estados desta “região” de maioria muçulmana, estabelecida para lá da “linha da frente” que delineei, confrontam-se com cada vez mais problemas no controlo efectivo das suas populações à medida que mudanças tecnológicas vão transformando o relacionamento “tradicional” entre governantes e governados. O passado – como tantas vezes acontece – é aqui um mau guia. Se se olhar para aquilo que ocorreu, a este nível, entre meados do século XIX e finais do XX, a pro14 Um ponto que os líderes marroquinos e tunisinos têm vindo a negar, quanto mais não seja por razões políticas internas e para evitar ferir a sua credibilidade externa. 15 Tanto num como noutro destes países, aliás, há instalados agrupamentos clandestinos afectos de um ou de outro modo à al-Qaeda. Como indiquei, no início do presente ano de 2007, em Março, assaltos e tentativas goradas de ataques terroristas assolaram os dois países, causando algumas vítimas. Marrocos, que logo em Janeiro de 2007, tinha sido alvo de tentativas goradas de actuação de agrupamentos radicais fundamentalistas de filiação político-ideológica ainda mal determinada.

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gressão tecnológica fulgurante que teve lugar tendeu por norma a favorecer a centralização e, mais do que isso, foi dela um instrumento. Máquinas a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafo (primeiro com e depois sem fios), telefone, rádio e televisão foram instrumentos por via de regra muitíssimo eficazes ao ajudar os agrupamentos do centro a penetrar e controlar as periferias. Hoje em dia, com as tecnologias de informação, as coisas estão a mudar e as inovações tecnológicas que acompanham a revolução digital tendem a favorecer cada vez mais os descentralizadores. Com telemóveis, a Internet, as televisões, a subida vertiginosa dos níveis de literacia e um módico de bem-estar económico ligado ao crescimento de uma economia de serviços cada vez mais eficiente, tem vindo a fazer subir o empowerment dos níveis locais relativamente aos centros16. Em muitas regiões da nossa “linha da frente” o populismo puro e duro tenderá porventura, em resultado de tudo isto, a substituir a instrumentalização e o realismo hoje prevalecentes. Nos próximos anos veremos aumentar, previsivelmente, a pressão das populações (irão estar, como consequência, cada vez mais “cidadanizadas”) quanto à distribuição de recursos pelos Estados e quanto ao acesso a eles. Mais: o mesmo se irá decerto verificar no que diz respeito à execução de direitos e garantias económico-sociais, o que seguramente não irá deixar de ser exigido com veemência crescente – ou seja, é de prever uma maior prise genérica de princípios básicos de “deliberação democrática”, ainda que apenas de acordo com formatos limitados e sui generis. Todavia, seguindo uma tendência que já se vê esboçar na região, os media serão, quiçá, instrumentos importantes nessa afirmação local de “sociedades civis” mais pró-activas. Finalmente os recursos, tal como avisei sem grandes pormenores. De acordo com cálculos do Department of Energy norte-americano, o consumo global de petróleo deverá aumentar dos 77,8 millhões de barris por dia de 1995 para 104,6 milhões em 2015: mudanças tecnológicas, sempre possíveis, depressa tornam disparatadas as previsões a mais longo prazo. Nesse intervalo – e estamos a pouco mais do que a meio dele – os Estados do Golfo Pérsico e da Ásia Central têm de practicamente duplicar a sua produção para ir ao encontro da nova procura. A parte de leão caberá à Ásia do Sul e Oriental, e por conseguinte estas regiões decerto irão interessar-se muitíssimo mais pelas questões centro-asiáticas e do Golfo, que não deixarão de subir à cena. As exigências crescentes da China em petróleo, com toda a probabilidade, continuarão por muitos e bons anos a fazer-se sentir com agudeza: sendo de prever que mais do que duplicarão entre hoje e 2025. É sem dúvida por isso que o Império do Meio tem vindo a avançar para África (sobretudo para países ricos em recursos, para diminuir riscos diversificando fontes), e a tentar desenvolver uma 16 Para uma discussão detalhada deste e de outros pontos conexos ver, por exemplo, o meu Ligações Perigosas (no prelo), um estudo de algum fôlego relativo à progressão rápida da estrutura organizacional da al-Qaeda, às razões de ser para tanto, e às forças e vulnerabilidades que tal soletra. Vale a pena sublinhar, em todo o caso, que as novas tecnologias simultaneamente permitem uma maior descentralização dos centros em relação às periferias e dificultam (tornando-o desnecessário e encombrant) um comando e controlo centrais.

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“blue water navy”17. Os próximos anos assistirão seguramente a um aumento em flecha das tensões entre os EUA e a China no que toca à mancha petrolífera GolfoÁsia Central18. Não parece provável, ao invés, que a Europa, fora do quadro transatlântico, logre mais impacto na zona do que aquele que tem tido desde a crise do Suez em 1956: um impacto irrisório. O mesmo pode ser previsto no que respeita a um agravamento de tensões quanto a esta região, desta feita envolvendo a Rússia. Atendo-me, de novo, ao Médio Oriente entendido lato sensu, ao broader Middle East alargado, faço referência apenas (e de novo, só, muito superficial e indicativamente) ao gás natural. Ignoro assim, para já, o petróleo, por este ser o mais óbvio e mais bem conhecido dos recursos em disputa. A Sul e Oeste, a Rússia é atravessada por pipelines, os mais famosos e diacríticos dos quais são decerto o Blue Stream, que liga a Turquia à Rússia e vai desembocar, perto da Finlândia, no polémico Nord Stream que irá ligar directamente a Rússia à Alemanha, evitando a Polónia ao ser colocado nos fundos do Mar Báltico e ligando-se, também, aos longos tubos dos seus émulos centrais: o Brotherhood e o Yamal que entram na Europa da União cruzando a Ucrânia e a Bielorússia. À sua volta há polémica, visto a maioria dos Estados europeus sentir ameaçada uma segurança energética cada vez mais agudamente crucial, tendo em vista a atitude dos países produtores de petróleo e gás natural e a dos Russos. A crueza das medidas é reveladora da importância que as partes atribuem ao jogo em curso. O Presidente Vladimir Putin, em nome da Gazprom, convidou o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder para Presidente do Nord Stream – com o que os polacos e os ucranianos ficaram enfurecidos por seguramente encararem o assim sucedâneo como uma espécie de Pacto Ribbentrop-Molotov II19. Ver Christos Iacovou (2007), “The Transformation of Southern Mediterranean in the 21st Century”, não publicado apresentado em Nicosia, (Chipre) em Março de 2007, no primeiro encontro formal do Euro-Arab Forum. A explicação de Iacovou é monocausal. Apesar do que não perde totalmente a sua plausibilidade, sobretudo se se tiver em conta a natureza e composição da nova Marinha de Guerra chinesa: com efeito, esta não inclui nenhum porta-aviões, e quase só tem submarinos low-tech de escolta. Os únicos conflitos que está preparada para confrontar são os regionais e, mesmo quanto a esses, somente aqueles que possam vir a ocorrer com Estados comparativamente pequenos e fracos como o Vietname, a Malásia, a Indonésia, ou as Filipinas. 18 Por certo, em parte, uma vez que, ao contrário do Japão e da Coreia do Sul, não se sente segura ao depender dos Estados Unidos para uma protecção eficaz das rotas marítimas de distribuição de petróleo e de outros recursos que precisa de ir buscar a outras regiões do Mundo. Para uma ponderação-avaliação do risco, ver, por exemplo, John Keefer Douglas, Matthew B. Nelson, e Kevin Schwartz (2006), “Fueling the Dragon’s Flame. How China’s Energy Demands Affect its Relationships in the Middle East”, U.S.-China Economic and Security Review Commission, em www.uscc.gov/ researchpapers/2006/China_ME_FINAL.pdf. 19 Um ponto histórico não-despiciendo, embora a não ser naturalmente tomado em sentido literal, mas antes em termos alusivo-analógicos. Muito há que distingue ambos acontecimentos mas muito há também que põe em paralelo um e outro destes dois momentos de aproximação. No processo de assinatura do Pacto soviético-alemão Molotov-Ribbentrop, em 1939, aquilo que estava em causa era sobretudo ganhar tempo, fazendo-o a pretexto de equacionar novas coordenadas geo-estratégicas no 17

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A sul, uma “extensão” europeia possível do Blue Stream, que ligará, caso vá avante, a Turquia à Europa Comunitária (atravessando a Bulgária, a Roménia, e a Hungria), é o chamado Projecto Nabuco. Os russos, com o apoio da Hungria a quem para o efeito prometeram tornar o país numa “placa giratória” para distribuição de gás natural por toda a Europa Comunitária, responderam com um plano estratégico alternativo de extensão pura e simples do seu próprio Blue Stream originário. Mais a sul ainda, os Estados Unidos fizeram recentemente renascer um velho projecto: o de um pipeline Trans-Cáspio que atravessará os “estões” da Ásia Central, desembocando no Turquemenistão para depois se estender ao longo do leito disputado do Mar Cáspio: o que nem o Irão, nem o Cazaquistão, nem o Azerbeijão, nem a Rússia (Estados que disputam entre si estes fundos marinhos) querem aceitar. Escusado será dizer que todos estes pipelines são objecto de intensas negociações políticas, e as decisões finais refletem muitas vezes preocupações de segurança ou asserções de controlo, e não razões económicas lineares. Uma situação, também, de tensão com a Rússia e a Turquia e geradora de uma divisão intra-europeia que parece ter vindo para ficar. O balanço genérico a fazer de tudo o que acabei de alinhavar salta à vista: à partida, pelo menos, a combinação de todos estes factores parece augurar um futuro tenso na parte oriental da “linha da frente” que desenhei. O petróleo e o gás natural (os chamados recursos energéticos) estão aí lado a lado, e são dos únicos bens de consumo pelo qual os Estados carentes quererão pugnar. Em contraste, a água é talvez o único recurso pelo qual seja quem for que dele precise lutará certamente. A explosão demográfica de populações cada vez mais empowered e difíceis de controlar, aliada a climas tão áridos quão ricos em recursos energéticos escassos no resto do Mundo, não podem senão sugerir turbulência nos anos vindouros, nessa já hoje muito tensa frontline oriental.

quadro de uma análise geopolítica clássica. A confirmação alemã, aos soviéticos, da sua acessão ao Eixo, visava garantir a estes últimos o controlo e a ocupação da parte centro-asiática do planeta (a tão importante heartland), ao mesmo tempo que lhes assegurava um acesso sem impedimentos aos famigerados mares quentes do sul (em especial o Oceano Índico) o que tornava a URSS estrategicamente independente dos mares gelados do norte. Como bom hausoferiano, Ribbentrop tendeu a enfatizar a Molotov os benefícios em que a URSS incorria ao ter “acesso natural aos mares abertos, que tão importantes são para a Rússia”. Adolf Hitler sublinhou esta mesma tónica nas suas conversas com Estaline. Estaline, no entanto, mais inclinado para os modelos geopolíticos anglo-saxónicos, designadamente o de Mackkinder, exigiu também, para além do controlo do Golfo Pérsico, o controlo da Finlândia e dos estreitos que ligam o Mar Negro ao Mediterrâneo, pontos estratégicos que a Alemanha não estava disposta a ter de partilhar (para uma discussão mais pormenorizada deste ponto, ver a primeira parte do magnífico artigo de Olga Koulieri (2000), uma conselheira do Ministro britânco da Defesa, a que tornarei a fazer referência mais à frente). Com algum esforço de imaginação é defensável a ideia de que o acordo quanto ao novo pipeline retoma uma aliança pseudo-pacificadora do mesmo tipo em contextos novos. 128

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3. Para num momento analítico posterior melhor avaliar, prospectivamente, em que escala se pode esperar turbulência nos tempos que estão para vir, vale a pena que nos debrucemos com mais pormenor sobre alguns pontos nevrálgicos da “linha avançada”. Como referi já, a minha finalidade central, no passo que se segue, é tão-só a de mostrar constantes, linhas de força e variações sincrónicas e diacrónicas no relacionamento entre o lado de lá e o lado de cá da linha de clivagem ou (para usar uma terminologia tectónica mais atreita a Samuel Huntington ou a Michael Klare) da fault line que esboço20. Ou seja, preocupo-me, no essencial, com a topografia das diferenças mais incendiárias que vislumbro. Antes de concluir com algumas especulações mais teóricas, permito-me assim equacionar o que serão decerto análises geopolíticas “clássicas” quanto a alguns pontos paradigmáticos do segmento da “linha da frente” sobre que me tenho vindo a debruçar. À guisa de ilustração, limito-me a três muito breves exemplos, que trato de maneira muitíssimo superficial e de modo apenas sugestivo. Ficam para outras núpcias eventuais desenvolvimentos. O que quero ensaiar é uma modelização geopolítica genérica. Visitarei brevemente, em primeiro lugar, e como enquadramento maior, a bacia Leste do Mediterrâneo e os seus arredores continentais; em segundo, a região geral do Mar Negro; e, por último, na Ásia Central, o chamado soft belly da antiga União Soviética. Uma região que, como iremos ver, se tem vindo a afirmar como um novo espaço de interdependências, a qual, por isso, os anglo-saxónicos começaram há já alguns anos a chamar o broader Middle East. Repito: limito-me naquilo que se segue a generalidades. A minha finalidade é apenas a de esquissar hipotéticas mecânicas locais e materiais (no sentido em que habitualmente falamos de geopolíticas) de deflagração de conflitos, todas elas perfeitamente evitáveis. Não posso, a este respeito, deixar de formular um rápido comentário prévio. Comentário que se impõe, a propósito do enorme grau de interdependência que os processos a que vou aludir têm uns em relação aos outros; a divisão que opero, entre três cenários, resulta de mera conveniência expositiva. As questões a que irei aludir estão todas, embora em grau variável, interligadas. Tal é particularmente verdade no que toca às regiões do Médio Oriente e à Ásia Central que com ele confina em termos geográficos, culturais, políticos, e também relativamente a recursos.

20 Refiro-me, naturalmente, aos estudos sobejamente conhecidos de Samuel Huntington (1993) e de Michael Klare (2001). Apesar de muito diferentes um do outro, estes dois trabalhos de modelização de conflitos e da sua eclosão delineiam “blocos” – no primeiro caso “civilizacionais”, no segundo “de distribuição de recursos” – semelhantes às placas tectónicas dos geólogos estruturais; as lógicas explanatórias utilizadas num e noutro caso, aliás (designadamente na teorização implícita de causalidade a que recorrem) não se afastam muito das dos geólogos que ganharam hegemonia a partir da segunda metade do século XX.

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Uma primeira visão de conjunto Quero então a minha atenção no Leste do Mediterrâneo, alargando q.b. – em círculos cada vez mais amplos – o meu ângulo de visão. Tudo se passa como se o que Clausewitz chamaria decerto o “centro de gravidade” tivesse, de facto, migrado para leste21. Em consequência, o Leste do Mediterrâneo e os hinterlands próximos (a minha frontline) passaram de uma preocupação periférica a uma questão central do debate estratégico contemporâneo, tanto do ponto de vista da Europa, como de Washington. É importante ter em mente a dimensão prática e muito concreta desta nova e crescente centralidade: na última década têm tido lugar, em ritmo acelerado, intervenções militares na Bósnia-Herzegovina, no Kossovo, no Afeganistão, no Iraque, e no Líbano; e uma tensão política hard tem vindo a crescer relativamente à Síria e ao Irão. Em toda esta região, aliás, tem vindo a fazer-se sentir a ausência de uma boa arquitectura de segurança e defesa. A ausência que, naturalmente, resulta da intratabilidade de uma situação complexa e altamente dinâmica, como tentei mostrar. No que toca à União Europeia, o famigerado Processo de Barcelona e a vertente sul da mais recente Política de Vizinhança têm sabido a pouco; tal como, aliás, é o caso com o chamado Diálogo Mediterrânico desencadeado no quadro da NATO. Também a Broader Middle East Initiative norte-americana está ainda para dar os seus frutos. O que não é bom, se considerarmos o potencial de spillover gerado pela interdependência a que aludi. Começo por notar que toda esta “região”, todo o arco assim definido, entrou no que talvez possamos apelidar de um terceiro momento geopolítico. Vale a pena enunciá-los. O primeiro foi o da Guerra-Fria, um período em que a zona disponibilizou um autêntico campo de confrontação – em formato de proxy wars – para as duas grandes superpotências. Sem quaisquer reduções simplistas, obviamente, a Crise do Suez de meados dos anos 50 e as intermináveis e cíclicas guerras israelo-árabes são disso exemplos paradigmáticos. Um segundo tempo viu-se marcado pela intervenção – ainda antes do fim do Mundo bipolar – de actores externos, designadamente os Estados Unidos e (em muito menor escala) a União Europeia, que laboriosamente se esforçara por tentar garantir o que no fundo redundava numa compartimentalização tão enxuta quanto possível das várias crises político-militares que se sucediam em catadupa no Médio Oriente da época. Os Acordos de Oslo – sobretudo estes últimos, apesar de ter havido outras movimentações – deram início a uma sequência mais ou menos bem encadeada de circunscrições do conflito israelo-palestiniano, com o intuito de evitar “contaminações”. Não posso deixar de agradecer aos Embaixadores Alexandre Vassalo, Carlos Neves Ferreira e António Jorge Jacob de Carvalho, colocados, respectivamente, em Bucareste, Atenas e Nicósia, as numerosas conversas que tivemos sobre este e outros temas afins. Como é evidente, apenas eu próprio acarreto com a responsabilidade do que aqui afirmo e avento. 21

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A ideia-guia, neste segundo momento, foi a de criar uma dinâmica que levasse a outros acordos e, eventualmente, a uma pacificação da situação regional. Apesar dos avanços e recuos havidos, em particular com raptos periódicos e com duas Intifadas, este segundo tempo não foi inteiramente falhado, como o mostraram as cimeiras (tentativas, é certo, mas inovadoras) de Charm el Sheik e de Camp David. Foi conseguido, designadamente, manter intramuros as crises paralelas que estavam a ter lugar na Síria e no Líbano e, bem assim, isolar, contendo-as, as pretensões de hegemonia regional então agitadas pelo Iraque e pelo Irão. O terceiro tempo22, aquele em que ainda hoje nos vemos, é mais difícil de delinear. Aquilo que, como traço distintivo, caracteriza a nova configuração geopolítica existente é uma extensão (tanto geográfica com política) enorme do que talvez convenha chamar o arco da crise. Novas entidades apareceram no nexo, como por exemplo, o Afeganistão, o Paquistão, o Iraque, o Irão, a Síria, e vários dos muitos novos Estados “túrquicos” da região centro-asiática incluída na antiga URSS até princípios dos anos 90. Esta nova marca distintiva tem uma natureza sobretudo sistémica – no sentido de que nela actuam, com a nitidez possível nestas coisas, o que Pierre Renouvin apelidou de forces profondes. Em que sentido? Até esta terceira fase, estavam presentes regularidades de funcionamento que redundavam noutras tantas regras de um jogo em que um conjunto restrito de actores locais, regionais, e globais, agia em enquadramentos comparativamente bem definidos, enquanto, naturalmente, lhe tentavam alterar os limites. Hoje em dia, toda essa matriz foi ultrapassada e, basicamente, desapareceu, explodindo. O que não augura nada de bom. Aumentando e arrumando: quatro grandes eixos de tensão de radicalização parecem-me ter emergido em lugar dela, num esboço do que talvez se venha a tornar nas novas coordenadas matriciais do alargamento-rearrumação em curso. Por mera conveniência analítica, equaciono-as em separado, com a salvaguarda de que se trata, em boa verdade, de quatro eixos profundamente interligados uns aos outros. Quero enumerá-los. Por um lado, o Islão político, corporizado por uma ascensão violenta dos xiitas, a actuar sob a égide do Irão em zonas tão díspares como o Líbano, a Síria, e o Iraque, e que tanta apreensão está a causar nas monarquias do Golfo e nos sectores ocidentais mais atentos. Por outro lado, assiste-se à implantação, numa área muito mais extensa, de um radicalismo sunita integrista, uma outra versão do Islão político – neste caso menos apoiado em quaisquer entidades estaduais – de que a al-Qaeda de Osama bin Laden e os seus apaniguados constituem o símbolo central. Um terceiro 22 Utilizo, aqui, uma periodização não muito diferente, pelo menos no plano macro, da usada por Pierre Levy (2006), Le Moyen Orient, Les Carnets du CAP (Centre d’Analyse et Prévision du Ministére des Affaires Étrangéres), Paris. A um nível mais micro, discordo porém de algum do reducionismo “político-pragmático” de P. Levy e dos seus colaboradores do Quai d’Orsay e incluo, por exemplo, uma dimensão económica e outra militar na equação que alinho.

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eixo de tensão de radicalização é o que se agrega ao redor do nacionalismo “tradicional” que encontrou na causa comum palestiniana e anti-israelita (quando não assumidamente anti-semítica) um ponto focal de convergência. Em quarto e último lugar, uma dupla reacção soberanista, a qual, por toda a nova faixa que vai do Magreb Central ao lado de lá do Mar Cáspio, está ciosa de manter um controlo tão estreito quanto possível sobre recursos (sobretudo petróleo e gás natural) que os países industrializados, ou em vias de tal se tornarem, cobiçam. Em Outubro de 1999, o Department of Defense norte-americano reafectou ao Central Command as forças militares prontas a intervir em áreas centro-asiáticas, com responsabilidades na faixa que vai dos Montes Urais à fronteira ocidental da China23; em 2001, os EUA intervieram no Afeganistão dos taliban que davam guarida à al-Qaeda, e em 2003 uma coligação político-militar liderada pela Administração de Washington invadiu o Iraque. Antes de passar à minha próxima demão, uma espécie de ampliações “sub-regionais” que visam melhor pormenorizar aquilo que podemos esperar venha a ser a progressão futura das coisas, gostaria de tornar a sublinhar a interdependência destes eixos de radicalização e dos conflitos que constantemente aqui e ali eclodem ao longo de todo este arco, em resultado da profunda interacção que estes quatro eixos exibem. Mas, mais do que isso, não gostaria de deixar em branco uma preocupação de fundo, que mais à frente haverei de retomar. Uma preocupação prospectiva – haverá outras? – de natureza sistémica. Disse atrás que o verdadeiro deslassamento – chame-se-lhe isto – da “linha da frente” definida por este arco não augura nada de tranquilizante. A minha preocupação é a seguinte: o desaparecimento – ou a explosão – das regras do jogo em que um conjunto limitado de actores locais, regionais, e globais, agiam tant bien que mal em enquadramentos comparativamente bem definidos, criou uma nova situação estrutural em que as dinâmicas dos acontecimentos parecem escapar tanto às potências e entidades externas à “região”, quanto aos actores locais, estaduais ou outros. O caos no Iraque e no Afeganistão, o impasse quanto ao Irão, a ingovernabilidade do Hezbollah, e os conflitos intra-Palestinianos que opõem a Fatah ao Hamas, são outros tantos sintomas dessa perda de controlo e de governabilidade. Sem querer ser catastrofista, a impressão que tenho é a de que na primeira década e meia do século XX, a chamada Belle Époque, e nas Années Folles dos anos 20 e 30 que se seguiram as dinâmicas internacionais, não terão sido muito diferentes. E que seria irresponsável, por conseguinte, não atender aos sinais que se perfilam num horizonte cada vez mais carregado. Michael Klare (2001), op. cit.: 49. Nas páginas que se seguem (sobretudo na parte 3. da minha comunicação) fornece algum contexto que, em minha opinião, torna esta aposta norte-americana mais inteligível. Para uma visão geral, focada na economia, ver o muito complete Sergej Mahnovski, Kamiljon T. Akramov e Theodore W. Karasik (2006), “Economic Dimensions of Security in Central Asia”, RAND Corporation. 23

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A bacia do Mar Negro A “região” em redor do Mar Negro, para fazer um rápido zoom sub-regional, como lhe chamei, constitui aquilo que os anglo-saxónicos apelidam de a good case in point destes sinais de alarme. No período bipolar a região do Mar Negro foi objecto de uma espécie difícil de partição entre a NATO e o Pacto de Varsóvia. By and large, o Mar Negro estava como que embutido na esfera soviética; a excepção era a sul, já que o Mar Negro faz fronteira com a Turquia e, na região de Istambul está o Bósforo, um canal natural estreito e muitíssimo profundo que cria um sistema de vasos comunicantes com o Leste do Mediterrâneo. A pertença da Turquia à NATO, bem como grande parte da sua utilidade geopolítica no interregno bipolar provinha daí – e do facto, suplementar, de na época o extenso e poderoso rectângulo turco ajudar a proteger o flanco oriental da Europa Ocidental dos “estões” então integrados na URSS. Tudo isso se alterou, naturalmente, com a atomização do flanco sul e leste da ex-URSS, e a emergência de Estados independentes nesses dois “rebordos”. Num plano geopolítico, as reconfigurações de fronteiras foram significativas. Ao invés daquilo que durante quase oitenta anos tinha sido o caso, o Mar Negro passou a confinar com numerosas entidades políticas diferentes: a Rússia, a Turquia, a Ucrânia, a Roménia, a Bulgária, e a Geórgia; a Moldávia, a Grécia e a Arménia, embora não façam fronteira exactamente no litoral do Mar Negro, estão dele próximas e essa proximidade tem importância central para qualquer deles. A eclosão de conflitos localizados na bacia tem sido uma constante; para o entrever bastará referir exemplos como o da Chechénia, da Ossétia (norte e sul), da Abcásia, do Nagorno-Karabakh, da Transdniéstria moldava, da Ucrânia, da Geórgia, ou dos Curdos na Turquia24. Uma nova geometria de distribuição sub-regional do poder emergiu. A centralidade geopolítica nova de um Mar até aí largamente particionável em duas metades assimétricas (a da NATO e a do Pacto de Varsóvia) aumentou ainda mais à medida que muitos destes Estados começaram a proceder a realinhamentos e reorientações desfavoráveis aos interesses que até aí a Rússia tinha em mão. Como é bem sabido, a Rússia tem vindo a reagir, com um misto de pressões político-militares sobre a região, contra esses realinhamentos, e usando armas económico-energéticas – porque as tinha disponíveis e porque a sub-região do Mar Negro é diacrítica no que toca tanto a rotas de distribuição de petróleo como de gás natural. Não pretendo, com isto, uma qualquer explicação simplista, embora interpretações deste tipo sejam infelizmente comuns. No estudo do Institute for Security and International Studies (ISIS) que citei, publicado em Sófia em 1999, para só dar um exemplo, é asseverado, com algum reducionismo, que “Chechnya is a vivid example of utilising religious differences for achieving geopolitical and economic objectives. The war in Chechnya is part of the competition over the route of the Caspian oil to Western Europe”. Nestas leituras, as perspectivações étnicas, religiosas, ou politico-ideológicas são como que subsumidas em quadros geopolíticos maiores, cujo potencial explanatório funciona como uma espécie de Deus ex machina que lineariza aquilo que no fundo são certamente processos muito mais complexos e multifacetados. 24

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS: ACTORES, DINÂMICAS E DESAFIOS

Figura 2. A rede regional de gasodutos em finais de 2003. Atente-se na posição nodal da bacia do Mar Negro.

Figura 2A. A rede regional dos prinicipais gasodutos em 2007 134

A “LINHA DA FRENTE”? DO SUDOESTE DOS BALCÃS À ÁSIA CENTRAL

Figura 3. A rede regional de pipelines petrolíferos, em finais de 2003. Atente-se, mais uma vez, na posição nodal da bacia do Mar Negro.

Podemos demarcar duas grandes fases na progressão geopolítica da sub-região do Mar Negro nos últimos anos25, sendo que a segunda e última inclui dois períodos distintos. Uma primeira, a que já aludi quanto basta para efeitos desta curta comunicação, diz respeito ao intervalo que vai de 1917-1918 à época bipolar. Trata-se de um período marcado por uma paz tensa, apenas interrompida durante a Segunda Guerra Mundial; foi, aliás, numa das costas do Mar Negro, em Yalta, na Crimeia, que se viu acertado, entre Winston Churchill, Franklin Delano Roosevelt, e Josef Estaline, uma grande parte do que viria a ser o desfecho dessa terrível contenda de alcance global. A segunda fase vem de 1991 até ao presente e tem-se revelado muitíssimo mais tensa e menos estável. Num primeiro momento, talvez não seja abusivo ver o aumento de instabilidade e tensão como resultado do simples facto de, de um ponto Deixo de lado todo o longo período anterior, sem no entanto o subestimar. Tanto no quadro do relacionamento entre os Otomanos e os Austro-Húngaros, como no das aventuras Napoleónicas, no dos relacionamentos entre sucessivos Czares russos e Kaiser alemães, Imperadores austríacos, e sultões da Grande Porta Turca, o Mar Negro constituiu uma região-chave. Talvez, no entanto, as afinidades maiores com a situação actual sejam, do ponto de vista geopolítico, as resultantes da posição charneira que o Mar Negro assumiu nas muitas guerras que o ensombraram a partir de meados do século XIX e até à (e durante a) Primeira Guerra Mundial. 25

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de vista geopolítico, a região do Mar Negro se encontrar na encruzilhada, ou (talvez melhor) na área de intersecção, de três espaços maiores de segurança: o Europeu (entendido num quadro transatlântico), o Euro-Asiático, e o Islâmico26. A nova configuração estratégica tornou-se evidente logo no início dos anos 90 do século XX quando foram cartografados os primeiros projectos de pipelines de petróleo e gás a correr do Leste para o Oeste através da zona, com a dura situação que emergiu relativamente ao controlo da antiga frota soviética estacionada na Crimeia, e com todas as explosões “étnicas” na bacia, com toda a chamada identity and recognition politics que a assolaram e que desde então, tem vindo a agravar-se. Definitivamente, saíra-se do equilíbrio estático que caracterizava a fase bipolar. É difícil datar com precisão a transição para um segundo período desta segunda fase da geopolítica da bacia do Mar Negro27. Os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001 empurraram os norte-americanos e europeus para uma reconceptualização da perspectiva mantida quanto à região em que essa região está integrada e em concreto o tem sentido. Não é difícil arrolar motivos para a mudança de atitude: a war on terror global; a intervenção da Aliança Atlântica, em 1999, no Kossovo; a passagem de testemunho e de responsabilidades – para a mesma NATO – no Afeganistão pós-taliban; os acontecimentos no Iraque; e a reacção de uma Rússia cada vez mais rica com a subida dos preços do petróleo e mais apostada numa afirmação que tem passado por uma política cada vez mais musculada em relação a uma Ucrânia e uma Geórgia que querem aderir tanto à NATO como à União Europeia28. Acrescem dois factos de peso. Um primeiro diz respeito à entrada da Roménia e da Bulgária para a NATO em 2004 e para a União Europeia a 1 de Janeiro de Escuso-me de justificar uma divisão terminológica que é hoje em dia de utilização comum. Note-se, no entanto, que esta terminologia implica ela própria, desde logo, a existência prévia de mudanças de fundo na distribuição do poder relativamente a esta região: só depois do fim do Mundo bipolar, por exemplo, se pode verdadeiramente falar de um espaço islâmico de segurança; e, por razões óbvias, nesta tripartição brilha pela sua ausência qualquer alusão a um espaço “soviético”. 27 Parece-me, porém, indiscutível operar aqui uma distinção em períodos (que talvez venha a revelar-se ser mais do que isso) face às mudanças que se têm vindo a verificar, designadamente no que releva da natureza das ameaças reconhecidas pelos actores envolvidos e das suas consequentes respostas. Para uma posição de alerta relativamente à importância de mobilizar o apoio dos Estados litorais do Mar Negro, ao mesmo tempo que advoga a crucialidade de bem ponderar as alternativas dos pipelines de gás e petróleo ao redor da bacia, ver o artigo de John Roberts (2006), “The Black Sea and European energy security”, Southeast European and Black Sea Studies, volume 6, número 2, pp. 207-223. O que mostra bem o evoluir da situação intergovernamental. Em 2003, num longo artigo sobre um tema afim, I. Stribis defendera que a cooperação económica entre os Estados litorais do Mar Negro se tinha visto afectada com os acontecimentos do 11 de Setembro, deslocando parte da sua atenção para a urgência de conter “ameaças assimétricas” na região da bacia (ver Ioannis Stribis (2003), “The evolving security concern in the Black Sea economic cooperation”, Southeast European and Black Sea Studies, volume 3, número 3, September 2003, pp. 130-162). Três anos depois o foco regressara a questões inter-estaduais. 28 É também tentador tratar como significativa a actuação unilateral da Turquia quando, em meados dos anos 90 decidiu não cumprir a Convenção de Montreux de 1936, que garante a livre passagem russa pelo Estreito do Bósforo: a partir de 1994, a Turquia decidiu unilateralmente impedir o russos 26

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200729. Um segundo prende-se com a importância crescente – associada a uma dificuldade cada vez maior em fazer frente aos adversários que a ameaçam – em garantir segurança energética na faixa essencial que corre dos Balcãs ao Mar Negro, e daí ao Cáspio através do Cáucaso. Para manter um mesmo quadro de análise, parecem-me ser estes os principais eixos de tensão de radicalização no caso do Mar Negro e da sua bacia. Nada disto passa despercebido aos actores regionais, por menos importantes que eles possam parecer. Numa apresentação da posição do seu país quanto à nova geopolítica do Mar Negro, o Presidente Traian Basescu, da Roménia, sublinhou que “the enlargement of NATO and EU has brought the Euro-Atlantic community to the Western coast of the Black Sea. From our perspective, a new conceptual framework is now needed for changing the perception that the Black Sea region is the periphery of Europe and acknowledging its new geopolitical feature as an interface towards Central Asia and the Middle East”. No mesmo discurso, o Presidente romeno asseverou, com precisão que “in the new geo-strategic landscape of the Black Sea, there is a clear link among the transatlantic community, represented by the NATO countries, the former Soviet countries, and the Middle East region. It is an area whose political, economic, and military relevance has been tested during the war against terrorism, when several countries, like Romania, Bulgaria, or Ukraine offered a valuable and concrete contribution. [For example], Romania offered its air

de o fazer. Em 2001, a mesma Turquia decidiu criar a Black Sea Naval Co-operation Task Group (BLACKSEAFOR), com o intuito de tentar assegurar estabilidade e segurança no Mar Negro. Assinaram os seis Estados litorais: a Turquia, a Rússia, a Bulgária, a Roménia, a Ucrânia e a Geórgia. O esforço é o de promover, em paralelo, soft security e colaboração militar. A liderança da “estrutura de comando” é rotativa; todas as decisões são, na Blackseafor, tomadas por consenso. O processo de securitarização multilateral continuou: em Março de 2004 a Turquia desencadeou a operação naval Black Sea Harmony, em muito semelhante à Operation Active Endeavour da NATO no Mediterrâneo, cuja finalidade geral é a de conter e desmantelar “as ameaças terroristas” e “assimétricas” no Mundo, ao abrigo das resoluções 1373, 1540 e 1566 do Conselho de Segurança das Nações Unidas; a operação visa, em termos mais concretos e específicos, garantir a segurança dos estreitos turcos de Istambul e de Çannakale. A Black Sea Harmony começou com um cariz nacional, mas tem a pretensão de se multilateralizar, incluíndo os outros Estados do litoral do Mar Negro. A operação tem tido nisso algum sucesso: em Dezembro de 2006, a Rússia aderiu ao esforço e, em Janeiro de 2007 a Ucrânia anuiu a um estatuto de “observador” da iniciativa. Numa direcção semelhante às de outras operações estão, há já vários anos em curso no Mar Vermelho e no Mediterrâneo as missões prosseguidas são, no essencial, de patrulhamento e reconhecimento das movimentações marítimas na sua área de jurisdição. Mas são-no num formato ainda incipiente: ao contrário do que se passa no Mar Vermelho, por exemplo, a inspecção de navios suspeitos só pode ser levada a cabo com o acordo do respectivo comandante. 29 Num enquadramento geopolítico marcadamente neo-realista, muitos analistas têm interpretado essa pretensão romena e búlgara, (como, aliás, a ucraniana e georgiana), como dando corpo a uma preocupação compreensível em aliar-se a uma grande potência distante de modo a evitar cair presa de hegemonias mais próximos, sejam elas de russos, turcos, ou alemães. 137

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space and access to military facilities, in addition to providing troops on the ground - over 2,000 military – in Afghanistan, Iraq, and in peacekeeping missions in the Western Balkans”30. Seria difícil ser-se mais claro quanto à interdependência crescente, tanto no plano regional quanto no continental, quanto num mais global; e, face a declarações deste tipo, torna-se árduo evitar a impressão de que estará em curso um jogo novo, sem regras nem actores definidos. Podemos, agora, recorrer a um enquadramento analítico mais amplo, o que, aliás, me parece imprescindível. A preocupação a que quero dar voz é de novo aquela que antes enunciei em relação a todo este arco sul de risco, tensão, e clivagem: com efeito, o desaparecimento – a explosão – das regras de um jogo em que um grupo limitado de actores, primeiro apenas globais, e depois também locais e regionais, que agiam em enquadramentos bem definidos, criou uma situação estrutural nova em que as dinâmicas dos acontecimentos parecem escapar tanto às potências e entidades externas à “região”, quanto aos actores locais. O que não deixa de ter implicações fortes. Habituámo-nos a encarar a bacia do Mar Negro como uma região relativamente periférica à Europa e ao Ocidente. Já não é esse o caso. O Mar Negro transformou-se num espaço intrincado de intersecção de fronteiras e limites geopolíticos e geo-económicos cruciais. Tornou-se, também, num lugar central para a afirmação, presente e futura, da Aliança Atlântica e da Rússia de Vladimir Putin31. É um espaço frágil e vivo, como bem o mostram as recentes crises russo-norte-americanas relativas ao reforço do sistema de defesas anti-mísseis balísticos na Polónia e na República Checa, e o recrudescimento das tensões na Ucrânia e na Geórgia. Não será porventura exagerado enfatizar que em nenhuma outra zona de fronteira da NATO está tão alta a parada de segurança e defesa. É também um espaço marcado por uma grande imprevisibilidade, e por isso o grosso dos esforços aí empreendidos vai no sentido de tentar aumentá-la. A conclusão apresentada ao Council on Foreign Relations por Basescu foi iniludível: “[t]he next challenge is the formulation of a common Euro-Atlantic strategy for the Black Sea region. Geographically and historically, the region between the Baltic Sea and the Black Sea, including the South Caucasus, is inseparable from Europe. A cradle and crossroads of civilizations, as well as an object of conflicts throughout history, the Black Sea-Caucasus region has now entered a new historical phase. Its geo-strategic location makes the Black Sea an indispensable part of Euro-Atlantic security and prosperity”. Ver Traian Basescu (2005), “The Black Sea Area: Advancing Freedom, Democracy, and Regional Stability”, comunicação ao Council on Foreign Relations, Washington DC, no dia 10 de Março desse ano. Dois anos volvidos, a situação é idêntica e (se alguma coisa mais) séria, com cada vez mais questões por resolver, uma maior interdependência entre elas, e uma menor capacidades dos actores de tornear as pressões sistémicas que se fazem sentir ao seu redor. 31 Escusado será dar aqui exemplos deste ponto, já que a enorme maioria das declarações de um de outro lado têm, desde há alguns anos a esta parte, repetidamente e ad nauseum regressado a esta sub-região da minha frontline. Nos termos do meu quadro analítico tal resulta mais da incontrolabilidade sistémica reconhecida como característica estrutural da sub-região do que propriamente pela intratabilidade que as questões aí emergentes teriam se fossem avulsas ou simples amálgama local ou regional. 30

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A sub-região da Ásia Central Um outro – o meu derradeiro – zoom sub-regional, como os apelidei, constitui mais uma vez a good case in point dos sinais de alarme geopolítico que faço questão de suscitar. Refiro-me ao extremo leste da minha “linha da frente”, a faixa ampla e desigual que vai do Cáucaso à fronteira chinesa e inclui os “estões”, bem como a região geral do centro e norte do Golfo Pérsico e das suas hinterlands, do Iraque à Síria e ao Irão e Afeganistão, sem esquecer o Paquistão e a própria Arábia Saudita (ver figura 4.). Quanto a este último exemplo serei muito mais sucinto. E a razão disto parece-me intrinsecamente importante e esclarecedora: não se pode senão ser breve no esmiuçar de linhas estruturais de força quando há pouco de previsível numa dada dinâmica política.

Figura 4. A grande Eurásia, num mapa disposto ao redor da sub-região centro-asiática

O que me parece manifestamente ser aqui o caso. É, com efeito, difícil nesta grande área ver um qualquer grande sistema que consista em mais do que um mero agregado de Estados envolvidos num complexo e altamente cambiante balance of power regional, com ramificações amplas em várias direcções. Trata-se, com toda a evidência, de uma vizinhança e relacionamentos internos e externos muitíssimo tensos, limites fluidos, uma enorme vulnerabilidade face a exteriores mais distantes, e na qual se misturam factores “étnicos”, religiosos, políticos e económicos indissociáveis uns dos outros – mas também não miscíveis entre si. Com tais eixos de tensão de radicalização 139

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e tal interdependência, é virtualmente impossível formular quaisquer previsões minimamente credíveis. Tudo se passa como se a conjuntura fosse líquida neste canto da frontline que desenhei no início da minha comunicação. Monitorizar e preparar-se para o inesperado são, por norma as melhores soluções para situações conjunturais deste tipo32. Sem surpresas, constate-se que tem sido precisamente isso o que tem vindo a acontecer33. Sem querer entrar em discussões tão localizadas quão perecíveis e espúrias, um só exemplo, a que já fiz antes alusão: o exemplo da reacção político-militar norte-americana aos riscos pressentidos nesta extensa segunda sub-região. A reacção tem sido significativa. Comecemos por notar que, em 1983, a Administração norte-americana, preocupada com a invasão soviética do Afeganistão um ano antes, estabeleceu o chamado United States Central Command (o acrónimo escolhido foi CENTCOM). À época, o Central Command – um de apenas cinco Unified Combatant Commands globais, dedicado a um “teatro de operações” e originalmente concebido como constituído por rapid deployment forces, e logo colocado sob a dependência directa do Secretary of Defense – tinha como área de jurisdição o Médio Oriente stricto sensu, a África Oriental, e a Ásia Central. A este CENTCOM se deve a participação norte-americana em numerosas operações militares, da Primeira Guerra do Golfo em 1990 ao 32 Enquanto teorização geopolítica, a perspectiva russa é mais clássica e inclui esta nova área num cenário maior, nos termos de teorizações geopolíticas com mais pergaminhos. A este respeito, é útil a leitura do notável artigo, a que atrás fiz já alusão, de Olga Koulieri (2000), “Russian ‘Eurasianism’ & the Geopolitics of The Black Sea”, incluido no magnífico (ed.) M. Sheehan (2000), Security Dynamics of the Black Sea Region: Greek Geopolitical Perspectives, publicado pelo The Conflict Studies Research Centre da Royal Military Academy, em Sandhurst. O. Koulieri é uma colaboradora do gabinete do Ministro britânico da Defesa, especialista em questões russas. O artigo visa elucidar a postura russa relativamente ao Mar Negro em termos das interpretações geopolíticas ‘Euro-asiáticas” que fazem doutrina em Moscovo, e que retomam, numa versão local, que começou com teóricos soviéticos como Peter Savistky, as grandes teorizações de um heartland, um rim e uma world island tão caras ao britânico H. Mackinder, ao alemão K. Haushofer, e ao estratega geopolítico norte-americano N. Spykman que tão importante foi para a delineação dos quadros de análise da NATO. Segundo O. Koulieri, V. Putin estará apostado numa retoma contemporânea da velha Eastern Question, vendo na constituição de um “subsistema” regional que inclua os Mares Negro e Cáspio, em articulação com os Balcãs e o Irão (um subsistema separado do “teatro europeu”) a “porta de entrada” russa para uma “world domination (hegemony)“(op. cit.: p. 30 e ss.). Nisso Putin não faz mais, segundo esta Autora, do que seguir as modelizações ‘Euro-asianistas” de Yevgeniy Primakov, o famoso exPrimeiro Ministro russo, a partir de 1983, e de Gennadiy Zyuganov, líder do Partido Comunista, em 1995. 33 Também a al-Qaeda atribui enorme importância e esta região mais centro-asiática, como o demonstra a densidade de actuações que aí tem vindo a empreender. Parece plausível supor que a organização de bin Laden o não faz por doutrina geopolítica, mas apenas por “colagem negativa” às doutrinas russa e norte-americana que está apostada em contrariar. Com efeito, embora importante, o controlo da Ásia Central não será provavelmente imprescindível para uma eventual reconstituição do Califado. Mas os timings e os motivos aduzidos para as actuações da al-Qaeda na região articulam-se com facilidade e nitidez como contra-ponto às movimentações estratégicas norte-americanas ou russas (e antes soviéticas) nesses cenários geopolíticos.

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ataque ao Afeganistão em 2001-2002, à invasão do Iraque em 2003. Forças militares afectas ao Central Command estão estacionadas em variadíssimos Estados da região. Ao contrário da maioria dos outros “comandos regionais unificados” norteamericanos, o centro de comando do CENTCOM não está localizado na região sobre a qual tem competências jurisdicionais, mas sim na Base MacDill da Força Áerea, instalada com segurança em Tampa, na Flórida34. As particularidades distintivas da reacção norte-americana na Ásia Central nesta segunda fase pós-ataque ao Afeganistão dos taliban relevam, seguramente, das especificidades próprias dos riscos soletrados por esta longa faixa oriental da frontline. Um mínimo de atenção mostra-nos as enormes diferenças estruturais existentes entre este arco de crise e o do Norte-Sul, aquele que vai do Mar de Barents aos Balcãs: enquanto aí se trata de uma linha divisória relativamente enxuta, entre a Rússia e a Europa (a da UE e a da NATO, duas entidades cujas fronteiras, nessa região, tendem – como vimos – a confundir-se), neste segundo caso (o do “arco de crise” horizontal), a caracterização tem de ser muito mais complexa. Trata-se, desta feita, de uma faixa ampla, só por analogia comparável a uma verdadeira fronteira – embora para alguns efeitos o seja de facto – e em muitos sentidos mais facilmente inteligível como uma série de bolsas que albergam entidades, quantas vezes difusas, relacionadas umas com as outras segundo princípios tensos de um balance of power instável, num patamar mais alto interligadas por um outro regime, também esse tenso e multipolar, de um balance of terror mais inclusivo. Mais ainda, em termos comparativos, trata-se de uma “linha da frente” de geometria altamente variável35. É fácil confirmá-lo, mesmo que nos mantenhamos no plano estrito e estreito da percepção de risco que dela têm os norte-americanos36. Mantendo a atenção apenas 34 O único outro dos cinco que também não está in loco suo, por assim dizer, é o Southern Command, cujos general headquarters estão sedeados também na Flórida, mas desta feita em Miami. 35 Tanto esta multiplicidade quanto a enorme interdependência regional a que fiz alusão se tornam manifestas na própria variedade de circunscrições a que a sub-região se tem visto sujeita. O conceito de “Ásia Central” foi introduzido em 1843 por Alexander von Humboldt; a referência era apenas genérica. Durante os cerca de oitenta anos de existência da URSS a região era referida por um de dois termos: o de Srednyaya Azia ou “Ásia do Meio”, uma delimitação estreita que incluía apenas os terrritórios centro-asiáticos tradicionalmente não-eslavos; e o de Tsentral’naya Azia ou “Ásia Central”, que abarcava, para além desses, territórios que nunca fizeram parte do Império Russo. Em meados dos anos 90, o Cazaquistão passou a ser incluído na nova definição russa de “Ásia Central”. A UNESCO, numa história da região produzida em finais dos anos 80, redefiniu a região de maneira muito mais ampla (incluindo partes da China e da Mongólia, por exemplo), visto por a basear em critérios climáticos. 36 Não seria árduo fazê-lo a respeito dos interesses estratégicos crescentes que a China e a Rússia têm na sub-região. Para duas discussões sobre estes temas, ver Matthew Oresman (2004), “Beyond the Battle of Talas. China’s re-emergence in Central Asia”, In the Tracks of Tamerlane: 401-424, National Defense University Press, e Ariel Cohen (2005), “Competition over Eurasia. Are the U.S. and Russia on a Collision Course?”, Heritage Lecture 901, The Heritage Foundation, em www.heritage.org/ Research/RussiaandEurasia/upload/84321_1.pdf. Apesar do seu foco económico porventura excessivo, vale a pena tornar a referir, para uma visão de conjunto, o trabalho de Sergej Mahnovski, Kamiljon T. Akramov e Theodore W. Karasik (2006), op. cit..

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no plano do dispositivo militar considerado imprescindível por uma Administração de Washington preocupada com a segurança da sub-região, e sem entrar em quaisquer pormenores relativos, por exemplo, aos riscos inerentes a uma nuclearização do Irão, à “perda” do Afeganistão ou do Iraque, ou a uma intervenção militar robusta de Israel nesta imensa região tão volátil e interdependente, gostaria de dar realce ao facto – de alcance mais directamente sistémico – de que uma mais clara circunscrição geopolítica da minha frontline oriental está prestes a ocorrer. Com efeito, em Fevereiro de 2007 foram tornados públicos os planos da Administração Bush paara a criação de um novo United States Africa Command (o USAFRICOM), para o qual serão em breve transferidas as responsabilidades no CENTCOM em toda a África, com a curiosa, mas significativa, excepção do Egipto. Segundo as próprias Forças Armadas norte-americanas, as preocupações estratégicas dos EUA relativamente a África prendem-se, no curto-médio prazo, com o terrorismo internacional, com a diversificação em curso das fontes de petróleo, e com os cuidados a ter face à penetração crescente, no continente, de uma China em expansão e emergência global37. Mais interessante para aquilo sobre que aqui tenho como tema é o que essa transferência de responsabilidades significa para o CENTCOM: e soletra – é o termo – uma definição geopolítica cada vez mais enxuta de teatros operacionais dispostos ao longo de uma frontline cada vez mais nítida. Seria absurdo presumir que tal não tenha um significado geopolítico importante, ou não ligar o facto aos novos acordos relativos à transferência de tecnologias nucleares que George W. Bush acordou em Dezembro de 2005 com a Índia, num périplo que o levou também à Mongólia para estabelecer com essa República da Ásia Oriental um novo pacto político-militar, e à região do Pacífico norte que confina com o Japão e as Coreias, onde negociou um reforço considerável de meios navais. Já em 2001, na antecipação do ataque ao Afeganistão, os Estados Unidos tinham bilateralmente acordado estabelecer duas bases militares na Ásia Central, uma na Quirguízia, outra no Uzbequistão. Ambas lá continuam, apesar da oposição veemente da chamada Shanghai Cooperation Organization, um corpo de segurança regional que inclui a China, a Rússia, o Cazaquistão, a Kirguízia, o Tajiquistão e o Uzbequistão; Washington recusou38. Não se trata de bases pequenas: cada uma delas tem mais de mil 37 Foi em meados de 2006 que Donald Rumsfeld formou uma equipa com a missão de planear a criação de um Comando Militar Central em África e de lhe definir uma mission statement. Bush autorizou a criação do USAFRICOM no dia em que Rumsfeld foi forçado a abandonar o seu lugar na Administração. Uma equipa de transição, liderada por um Almirante co-adjuvado (significativamente no que diz respeito ao papel parcialmente “diplomático” do Comando África) por um funcionário civil do State Department. Após o relativamente longo período de transição já iniciado, o novo Comando deverá ser formalmente estabelecido a 30 de Setembro de 2008. De início, os seus general headquarters estarão instalados em Stuttgart, na Alemanha, mas prevê-se a sua transferência rápida para o continente africano. 38 Ainda a 5 de Julho de 2006, foi produzida uma declaração conjunta pedindo uma timetable para uma retirada faseada dos norte-americanos, que Washington se recusou liminarmente a cumprir. Com estes e outros indícios, é de prever um agravamento das tensões na zona; vários Estados acederam já ao estatuto de observadores Shanghai Cooperation Organization, entre os quais a Índia, o Paquistão, a Mongólia

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efectivos militares permanentes. As posições estratégicas que ocupam tornam-nas ora alternativas ora complementos a Incirlik na Turquia (distantes e cuja utilização nem sempre é autorizada pela Turquia, como se viu em 2003) e à Diego Garcia britânica, muito a sul, no Índico, sem esquecer as numerosas bases dispostos ao redor da subregião, em vários pontos do Golfo Pérsico (do Qatar ao Kuwait, passando pelo Iraque, pelos Emiratos e pela Arábia Saudita)39. A geografia – não a geografia pura e dura do mundo bipolar, mas antes uma nova conceptualização, muitíssimo mais sociológica e multifacetada, do posicionamento, das relações locais de força, do coagular de alinhamentos regionais e de linhas divisórias que os agregam em blocos maiores – voltou à ribalta: ao que tudo indica, a geopolítica está de volta with a vengeance. Não posso deixar de sublinhar que tal tende a acontecer quando, no limiar de tensões sitémicas de difícil resolução e ambições concorrentes, as grandes potências se posicionam e tentam encontrar, em simultâneo, um enquadramento e uma racionalização com o fim de minimizar perdas e maximizar ganhos perante conjunturas de risco e tensão.

4. No seguimento desta minha última expressão de ansiedade, não quereria terminar sem algumas considerações, por muito curtas que elas possam ser, de natureza mais teórica e metodológica. Mais do que um resumo daquilo que disse, proponho-me em duas ou três passadas extrair linhas de força tendenciais que me parece essencial ter em mente e ponderar. Para isso, começo por uma retoma das análises geopolíticas macro de meados dos anos 90 do passado século XX. Numa tradição intelectual que começara em finais do século XIX, com efeito, a Geopolítica teve o seu período dourado de ascensão-auge, ligada como estava aos desenvolvimentos ocorridos nas ciências geográficas em desenvolvimento e amparada nas explosões coloniais que, pela primeira vez à escala global, se seguiram à Conferência de Berlim de 1884-1885. Se a Grande Guerra de 1914-1918 significou, de algum modo, a sua institucionalização no mainstream (embora numa posição de relativa subalternidade), com a Guerra Fria, pouca mais de meio século mais tarde, a Geopolítica voltou, reencontrando um papel preponderante nos enquadramentos geográficos globais maiores disponibilizados pela divisão bipolar do Mundo. e o Irão. Embora insista nas suas características não-militares, a Organização inter-governamental é amplamente encarada como um esboço de criação de um contrapeso regional à eventual hegemonia da NATO e dos EUA na sub-região. Para uma discussão já com meia dúzia de anos sobre temas que têm afinidades com estes, é útil a leitura do curto artigo Sean L. Yom (2002). “Power Politics in Central Asia. The Future of the Shanghai Cooperation Organization”, Harvard Asia Quarterly 6 (4): 48-54. 39 Para além, naturalmente, das numerosas bases americanas e britânicas dispostas num segundo círculo, mais distante e amplo, de Chipre à Alemanha e aos Balcãs, para só nomear umas poucas. A frontline, deste ponto de vista, está cada vez mais bem coberta. 143

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O final da Guerra-Fria significou, entre outras coisas, o início de processos de reajustamento por interpenetração recíproca das zonas e regiões estratégicas tradicionalmente definidas e circunscritas, e pela criação de novas interligações entre as novas entidades emergentes. Ou seja: significou um re-arranjo de fundo, uma rearrumação maior, de palcos e cenários40. Foi assim, designadamente, no que diz respeito à antiga Europa, ao velho Médio Oriente, à Ásia Menor clássica e mesmo à Ásia Central. Se num primeiro momento a Geopolítica pareceu cair em desuso, num segundo tornou a ser encarada como imprescindível. A emergência de regularidades macro que se foram tornando patentes assim o exigiu. Para retomar o meu exemplo nesta comunicação: de uma perspectiva ligada à segurança e defesa, tal redundou, nomeadamente, na necessidade, para um Ocidente em vias de rápida “constitucionalização”, de uma perspectivação nova quanto às que podem ser contabilizadas como as interdependências estratégicas em várias zonas do Mundo; e, designadamente, em dois arcos óbvios de crise: os dispostos, respectivamente, numa linha vertical que vai do Mar de Barents aos Balcãs e ao Cáucaso, passando pelas Repúblicas Bálticas e pela bacia do Mar Negro, e numa linha horizontal que parte dos Balcãs, abrindo em largura através do Grande Médio Oriente, como que afunilando na bacia do Mar Cáspio, até chegar à China, na velha fronteira da Ásia Central tradicional. A primeira delineação desta nova Geopolítica de tensões e conflitos foi a empreendida em 1996 por Ronald D. Asmus, F. Stephen Larrabee e Ian O. Lesser, um trio de analistas da RAND Corporation norte-americana41. Para além de identificar dois “arcos de crise”, um deles norte-sul e o outro oeste-leste – dois arcos não muito diferentes daqueles que, em minha opinião, ainda são com facilidade detectáveis 40 Como escreveram Asmus, Larrabee e Lesser, “[w]hen senior US policy-makers think of the Mediterranean, they think first and foremost of the Eastern Mediterranean, above all Greece and Turkey as well as the Black Sea region. They also see the Mediterranean as the stepping stone to both the Middle East and the Persian Gulf. In contrast, European policy-makers, especially in countries like France and Spain, think first and foremost of the Western Mediterranean, especially the Maghreb. […] This bifurcated view and the division of labour that has flowed from it - no longer makes sense for either the United States or Europe. As discussed above, the European, Middle Eastern, South-West Asian and even the Central Asian strategic spaces are increasingly beginning to overlap and intersect in new ways, rendering obsolete the traditional compartmentalized view of various sub-regions of the Mediterranean as well as the explicit or implicit division of labour among key countries that had evolved regarding these regions” (1996, op. cit., logo na introdução ao seu estudo). O que apelidaram de uma “bifurcated view” ignora a muito real interdependência geopolítica que agrega toda esta região, como tenho vindo a insistir. 41 Op. cit.. Não posso deixar de aludir a dois outros estudos produzidos pela equipa da RAND de que estes Autores fazem parte, um deles anterior ao trabalho que referi, o outro posterior: O primeiro é o Ian O. Lesser, F. Stephen Larrabee, Michele Zanini e Katia Vlachos (2001), Greece’s New Geopolitics, RAND; o segundo é o Graham Fuller e Ian O. Lesser (1994), Turkey’s New Geopolitics. From the Balkans to Western China, RAND. Embora focados, muito normativamente, nos papéis a preencher pela NATO e nos interesses norte-americanos, trata-se de duas análises de referência para uma melhor compreensão da progressão da Geopolítica do Leste do Mediterrâneo e da região que vai dos Balcãs à China oriental.

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como os dois eixos essenciais no que toca ao risco de eclosão de conflitos42 – Asmus, Larrabee e Lesser sublinharam como particularmente perigosa a sub-região em que estes arcos se intersectam um ao outro: a faixa que vai do sudoeste dos Balcãs ao Grande Médio Oriente. Para essa sub-região os três Autores insistiram na urgência da delineação de uma nova arquitectura de segurança. Nos novos ambientes geopolíticos emergentes, e decerto confiantes numa separabilidade geo-estratégica de longa duração das velhas linhas de clivagem estabelecidas no Mundo bipolar, vários foram os analistas que se insurgiram quanto à aparente equivalência aparentemente postulada para os dois “arcos de crise” delineados pelos três analistas norte-americanos. Como sublinhei, fizeram-no insistindo, por exemplo, na muito maior tratabilidade, solubilidade e, por isso, gestão político-militar do “arco de crise” norte-sul – o arco no qual as tensões e conflitos contrapunham, e contrapõem, no essencial, a Rússia à Europa e à Aliança Atlântica. Até ao 11 de Setembro de 2001, pelo menos, raros foram aqueles que tiveram consciência das ligações potenciais e do grau de interpenetração recíproca a que os re-ajustamentos e as re-arrumações consequentes iriam dar lugar. Como resultado, passou largamente despercebida a maneira por que, perversamente, as novas interacções e a interpenetração crescente dos dois “arcos”, ao desenhar novos enquadramentos geopolíticos, iriam de facto agravar o nível de tensão e o potencial “sistémico” de conflito na faixa da sua intersecção: a sub-região que vai dos Balcãs ocidentais à Ásia Central e que hoje inclui o chamado broader Middle East e, pelo menos em potência, uma parte, em todo o caso, do Magrebe. Tentei, en passant, mostrar que alguma fundamentação há para o estabelecimento de distinções entre estes dois “arcos”, caracterizando-os como essencialmente diferentes um do outro. Tendo como ponto fulcral da sua análise a segurança do “bloco Ocidental” (ou o espaço Euro-Atlântico, se se preferir), Asmus, Larrabee e Lesser tiveram em todo o caso razão ao insistir na emergência de uma zona fulcral de tensão na região geral em que se intersectam os dois “arcos” que identificaram. Tal como tiveram razão ao insistir nas interdependências emergentes entre estes dois eixos. O que faltou foi uma análise mais pormenorizada da mecânica delas, que de modo nenhum confirma a hipótese de suscitarem exigências de segurança e defesa que se equivalham uma à outra. Uma década depois, quanto mais não seja um esboço dessa análise é mais fácil de levar a cabo, e não quereria perder a oportunidade de o fazer, esboçando-a. Para tanto, e tendo em mente as incertezas existentes quanto às dinâmicas causais em operação, recorro a uma série de re-enquadramentos do problema. Segundo 42 Sem menosprezar uma terceira área de rsico, localizada na linha divisória que separa o Japão da Coreia do Norte, esta parece-me circnscrever mais um ponto de conflitualidade potencial (que pode, é certo, vir a transbordar na região), do que propriamente uma linha consistente de falha. Em resultado, os dispositivos militares apontados para a sua cobertura, tendem a “triangular” a zona e a associar-se a esforços político-diplomáticos de contenção regional, e a não mais do que isso.

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as preferências teóricas que possamos nutrir, poder-se-á aventar, por exemplo, que estas interdependências resultam de novas oportunidades geo-económicas para um espectro alargado de actores estaduais e não estaduais interessados – uma colecção de entidades que inclui Estados, companhias privadas, públicas, ou mistas, de gás e petróleo, ONGs e entidades intergovernamentais ou suparanacionais, como a NATO ou a União Europeia, bem como Mafias e redes de crime organizado e terrorismo local, regional e global. Como se pode esgrimir argumentos em favor de teses que insistam, ao invés, nas ambições da Rússia nacionalista de Vladimir Putin em recuperar um protagonismo regional e global perdidos numa longa e dolorosa travessia do deserto que se seguiu à implosão da URSS, ou das “ambições imperiais descontroladas” que tantas vezes se imputam a George W. Bush. E muitas outras interpretações alternativas ou complementares haverá, desenhadas à medida das preferências dos seus defensores. Não é difícil delinear um quadro matricial mais teórico-metodologicamente neutro, de modo a fazer sobressair, de maneira mais “isenta” – e, por isso, mais amplamente convincente – o porquê do estatuto de alto risco da faixa que desenhei como indo dos Balcãs à Ásia Central. Permita-se-me que desenhe essa matriz de maneira sucinta. Sejam quais forem as nossas perspectivações e os momentos conjunturais da ordem internacional sobre os quais nos debruçamos, parece-me indiscutível que se sentem tensões entre o Norte e o Sul, entre os países ricos e os pobres, entre aqueles que são sujeitos activos dos processos de globalização e os que deles são mais objectos passivos. Quais os correlatos geopolíticos disto? Para quem defenda uma teorização potencial das dinâmicas internacionais nestes termos, a linha de separação entre o “bloco Norte” e o “bloco Sul” passa algures ao longo do Mediterrâneo central, e opõe, grosso modo, a Europa ao Norte de África. Uma extensão continental desta linha de separação evolui depois sinuosamente no que chamamos o Médio Oriente, para finalmente correr ao longo da fronteira actual da Rússia e as suas anteriores Repúblicas do sul (os “estões” a que me tenho vindo a referir). Não é porém este o único mapa que podemos esquissar. Retenhamos este “mapa”, enquanto desenhamos um outro, desta vez relativo a uma outra linha de divisão e tensão, que muitos podem preferir para efeitos da explicação que advogam para as dinâmicas internacionais contemporâneas: a clivagem, cada vez mais clara, entre a Federação Russa e a Europa. Note-se que, ao contrário da primeira linha que delineei e que corre no essencial numa horizontal que liga o Oeste ao Leste, neste segundo caso, a linha geopolítica divisória emerge numa direcção Norte-Sul, ao longo das fronteiras ocidentais russas, acabando nos Balcãs, onde intersecta a primeira das minhas linhas. Corre, depois para oriente, ao longo do rebordo fronteiriço que separa a Rússia do seu anterior soft belly, os “estões”. Mas podemos, não obstante, ir mais longe. Um terceiro “mapa” é o relativo às tensões que cada vez mais se fazem sentir entre o Mundo islâmico e o Ocidente – aquelas em que Samuel Huntington se ba146

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seou para falar nas “bloody borders of Islam” e para insistir na sua “clash of civilizations”. Muitos Autores há, nomeadamente muçulmanos, que favorecem explicações baseadas nesta clivagem. Se de novo a cartografarmos, verificamos que, no Mediterrâneo, a linha que opera esta separação é muito semelhante à primeira que desenhei, a que separa o Norte rico do Sul pobre: divide o velho Mare Nostrum sensivelmente num sector norte e noutro sul, com alguns meandros nos Balcãs do Sudoeste, onde estão a Bósnia-Herzegovina, o Kossovo, e a Albânia – todas zonas de maioria demográfica muçulmana. A sua extensão continental corresponde, largamente, às das duas outras linhas de separação a que aludi, ligando-se estreitamente à fronteira russa e desembocando às portas da China. Façamos agora um esforço simples e neutro de síntese cartográfica, por assim dizer. Uma sobreposição não-hierárquica destes três “mapas” geopolíticos, que correspondem a outras tantas explicações monistas, põe em realce a faixa que vai do Sudoeste dos Balcãs à Ásia Central: precisamente a minha frontline. Mais: demarca-lhe uma espécie de “centro nevrálgico”, a região em que se intersectam uma à outra as minhas linhas horizontais e a minha linha vertical; e, por último, posiciona este centro nevrálgico num autêntico eixo de crise que vai dos Balcãs aos Mares Negro e Cáspio. Revisitemos, agora em termos mais macro, aquilo que está para lá desta frontline que desenhei, dos Balcãs ao broader Middle East, e tentemos caracterizá-lo politicamente. Referi já que se trata mais de uma faixa do que, propriamente de uma linha de fronteira stricto sensu, insisti nas interdependências locais e regionais que se afirmam nessa faixa, e que tendem a gerar geometrias variáveis nas “sub-regiões” aí emergentes – ligando este facto, nomeadamente a conceitos geográfico-estratégicos recentes, como por exemplo o de broader Middle East – e tentei põr em evidência a multiplicidade de actores existentes nessa ampla frontline, dando, designadamente, realce ao facto se jogar, aí, um “jogo” político muito pouco institucionalizado, ou seja, dotado de muito poucas regras. Não quero repetir aquilo que antes afirmei, mas não posso deixar de reiterar que logo à partida se torna evidente que não é fácil encontrar um modelo único para a caracterizar, nem uma fórmula política monista para a desenvencilhar43. Também neste sentido, a minha faixa, ou “linha da frente”, é problemática. 43 O que não significa, naturalmente, que tal não seja tentado. Nas suas conclusões, o já citado Profile do Institute for Security and International Studies (ISIS) búlgaro, publicado em Sófia em 1999, por exemplo, equaciona as as perspectives futures quanto à segurança da faixa-”linha da frente” a que tenho vindo a aludir com precisão: “[t]he enlargement of the Union and of the Alliance will remain the most vibrant tendency in the Euroatlantic space. It can be expected that most of the nations in Southeastern Europe will join both organisations in the next 5 to 15 years. The reasons are the coincidence of political and economic interests and the interests of strengthening stability and security; the need to overcome economic retardedness of the broader region and avert social catastrophe; the prospects of constructing something more than infrastructure for energy supplies from the Caspian Sea through the Black Sea and the Balkans to Western Europe - a prospering economic area, part of which will join the EU and the rest will be a credible economic

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Não quer isto dizer, como é óbvio, que uma caracterização política da faixa que vai dos Balcãs à fronteira chinesa seja impossível. Bem pelo contrário, e sugeri já como fazê-lo. A faixa a que chamei “linha da frente” tem sido muitas vezes dada como exemplo de uma parte do Mundo sujeita a um regime “clássico” de balance of power, e isto tanto interna como externamente. Esse é, aliás, um dos traços distintivos que mais claramente a distingue da zona norte da linha vertical a que aludi, a que contrapõe a Europa à Rússia. Famosamente, e em contraste com o “paraíso kantiano” em que vivem os europeus – pelo menos os europeus comunitários ligados à NATO – a faixa a que tenho vindo a aludir tem sido caracterizada como uma “arena hobbesiana”44. Sem discordar dela, vale no entanto decerto a pena esmiuçar um pouco mais esta caracterização. Evitando entrar em grandes detalhes, gostaria de expor algumas distinções finas que me parecem indispensáveis. Em primeiro lugar, noto que uma dissociação entre o balance of power “interno” e o externo são, aqui, fundamentais. É certo que no sudoeste dos Balcãs, internamente, as carências de arranjos institucionais significam uma situação pouco contida no que respeita às correlações de força e, logo, a emergência de regimes, mais ou menos equilibrados de balance of power. No velho Médio Oriente “clássico”, isto é ainda mais nítido, tal como, aliás, também o é na região centro-asiática. O Magreb constitui outra área, porventura neste plano com mais afinidades estruturais com os Balcãs. Internamente, a faixa de risco horizontal está assim como que dividida em bolsas, bolsas essas cuja interdependência é complexa e altamente variável. Mas mais interessante é verificar que, externamente, neste mesmo plano das relações de poder e de institucionalização, a situação é muito diferente. A “linha da frente”, deste outro ponto de vista, está como que alojada no interior de um círculo – ainda que se trate de um círculo incompleto e informal – de Estados “nuclearizados”. As partner of the USA and a reliable neighbour of the EU. Logical follow-ups of these developments will be a decisive shift of NATO’s and the EU’s attention to the Southeastern region of Europe and the Black SeaMediterranean area. This will create significant prerequisites to prevent the ‘domino effect’ in security relations in a zone stretching from Kosovo through Bosnia and Herzegovina to Cyprus and further to Kurdistan, Chechnya, Karabakh and even Tadjikistan. The key to solving this issue on a stable basis is by preserving the ethnic and religious diversity and overcoming the poverty of the broader region. Bringing Russia and Ukraine ‘in’ this interplay and reversing arms race are crucial factors of success in this endeavour”. O texto búlgaro citado, recordo, é de 1999, anterior, por isso, ao rescaldo da intervenção da NATO no Kossovo, à recusa sistemática sérvia em entregar à justiça internacional os suspeitos de crimes de guerra e contra a Humanidade, e a lentidão da Macedónia e da Albânia em convergir com a UE de maneira suficiente. A espectativa temporal aventada soa hoje a excessivamente optimista e linear. 44 Robert Kagan (2002), Of Paradise and Power, foi sem dúvida o grande popularizador esta perspectivação, que antes e depois dele muitos outros autores ecoaram. As suas preocupações estavam, no entanto focadas, no futuro do relacionamento entre europeus e norte-americanos a este nível (os EUA, segundo ele, ao contrário dos europeus, teriam consciência de viver alojados em palcos hobbesianos), e em resultado Kagan pouca atenção deu a quaisquer caracterizações do “inferno hobbesiano exterior”. 148

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consequências não são despiciendas, já que a situação estrutural se vê, por isso, enormemente complexificada. Um rápido tour demonstra-o à saciedade. A França, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, integrados na NATO, fazem fronteira com o sudoeste dos Balcãs por vários lados, tanto a Norte como a Sul (a Grécia, Chipre e Malta, todos eles da NATO), como a Oeste (a Itália) e a Este (a Turquia, a Roménia e a Bulgária). O velho Médio Oriente tem a Noroeste a Turquia, a Norte a Rússia, a Oeste Israel, a Nordeste a Índia e o Paquistão, a Leste a China. O mesmo pode ser dito da chamada Ásia Central, também como que entalada entre estas últimas várias potências nucleares45. Em resultado, a articulação externa de poder é, para os Estados da parte oriental da faixa, uma oportunidade marcada por alianças voláteis e por um mais robusto balance of terror – este último, pelo menos de momento, menos claro nos Balcãs. A presença, neste sector leste da faixa, de recursos petrolíferos e de gás natural não ajuda em nada, bem pelo contrário, no que respeita a uma estabilidade que as características distintivas da conjuntura local tornariam em todo o caso ilusória. As consequências mais previsíveis deste tipo de embutimento estrutural são fáceis de equacionar, mesmo que se cuide de evitar reducionismos causais. O carácter “hobbesiano” da faixa oriental em que se situa a frontline (a sub-região que Z. Brzezinszky famosamente apelidou de “the Balkans of Eurasia”) não pode senão verse potenciado pelas divisões étnicas e religiosas existentes, e pelo irritante maior constituído pelo facto de a região, como um todo, ser objecto do interesse geopolítico da actores globais – designadamente os EUA, a NATO, a al-Qaeda, a Rússia e a China, para não falar já de entidades como as transnacionais energéticas ocidentais e outras como a Gazprom. As tensões e os riscos multiplicam-se face à interdependência crescente resultante da transversalidade do petróleo e do gás natural, associada à emergência de novos actores e de pressões sistémicas que nenhum deles controla46. A articulação entre factores estruturais internos e factores estruturais externos, nunca fácil de esmiuçar visto tender a gerar dinâmicas marcadamente nãolineares, é neste caso particularmente consequente. Não é de admirar que, frente a uma vizinhaça mediata e imediata deste género, o Irão tenha vontade de desenvolver também armas nucleares, mudando assim o seu estatuto de objecto passivo para sujeito activo do balance of terror na região; estranho seria se, face a esta possibilidade, a não prosseguisse. 46 Houve já, aliás, momentos de esperança quanto ao futuro das tensões EUA-Rússia na Ásia Central. Em Dmitri Trenin (2003), “A farewell to the ‘Great Game’? Prospects for Russian-American security cooperation in Central Asia”, European Security, vol. 12, n.o 3-4: 21-35, por exemplo, pôde ser escrito que “[w]hile there are many potential scenarios in highly unstable Central Asia that could serve to sour relations once again, Russia and the United States have an unprecedented opportunity to build trust and cooperation through peacekeeping and problem solving in the region”. Pouco antes, com efeito, Putin anuira à criação das já referidas bases norte-americanas no Uzbequistão e na Quirgízia, Bush não objectara ao transporte, em pipelines para tal montados, de gás oriundo da bacia do Mar Cáspio por território russo, e a Administração de Washigton decidira fechar os olhos no que toca à condução por Moscovo do conflito na Chechénia. Como vimos, tratou-se de mero wishful thinking, como seria de esperar dadas as características estruturais das correlações internas e externas de poder na sub-região. 45

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De um ponto de vista prospectivo e no que toca ao risco da eclosão de conflitos, qual o significado desta mescla de relações de poder interno e externo? Não me parece difícil de equacionar. É certo que o balance of terror garante, num primeiro momento, que apenas a deflagração de curtas neo-proxy wars cirúrgicas ou prostéticas – para inventar um conceito – será de prever. “Neo” e “cirúrgicas” ou “prostéticas”, porque se tratará de conflitos que visam ora a segurança energética e das vias de acesso e distribuição de energia, ora um posicionamento localizado e preventivo – e não, como era o caso nas proxy wars bipolares, com o intutito de, por via de um dominó local e regional “conquistar território” para um dos lados à custa do outro. O que parece ser de prever são deflagrações regulares, de baixa-média intensidade, localizadas e espacialmente circunscritas, é certo, mas difíceis de conter dadas múltiplas interdependências patentes na sub-região e os vários níveis de causalidade actuante. Em todo o caso, o prognóstico face a uma situação conjuntural deste tipo não é famoso, tanto mais que o perigo aumenta caso a frontline não seja reconhecida enquanto tal. Talvez o conceito de ‘complexo regional heterogéneo de segurança’, da chamada Escola de Copenhaga47, segundo o qual vários tipos de actores se encontram em relações securitariamente interdependentes, tratando em rede diferentes sectores e objectos referentes de segurança, se afigure com alguma utilidade analítica para o meu argumento: a “linha da frente”, a faixa a que tenho vindo a aludir, atravessa, do ponto de vista geográfico, vários complexos regionais e sub-regionais de segurança, o que enriquece a trama securitária bem como o peso dos riscos. Se, porventura, os actores envolvidos ao longo dos vários complexos que identifiquei sub-regionalmente tardarem em rever-se como partes de um todo – que é a “linha da frente” – o securitizá-la e o construí-la socialmente como formando um complexo regional de segurança ‘macro’ pode levar a que os riscos incorridos eventualmente se multipliquem. Talvez não seja abusivo argumentar que é precisamente isso aquilo que está, já, a acontecer. Não quereria terminar sem algumas breves reflexões de natureza mais genérica e teórico-metodológica. À guisa de conclusão, umas rápidas e breves palavras sobre geopolítica. Com um mínimo de recuo, parece evidente que a maioria dos modelos geopolíticos clássicos pecam pelo marcado essencialismo que exibem. Ao postular uma grelha formal e imutável, o grosso das modelizações disponibilizadas presume uma invariabilidade das condicionantes geográfico-materiais difícil de defender face às mudanças a que as relações estratégicas estão obviamente sujeitas. Sem querer entrar em grandes pormenores, note-se que o essencialismo da Geopolítica “tradicional” não faz grande sentido. Um thought experiment limite põeno bem em relevo: caso, por exemplo, a evolução tecnológica venha a reduzir de maneira drástica os transportes e comunicações por via aérea, tornando-os mais

Ver, por exemplo, Barry Buzan, Ole Waever e Jaap de Wilde (1998), Security: A New Framework for Analysis, London: Lynne Rienner. 47

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fáceis e baratos do que os marítimos – o que de modo nenhum é impensável – o balanço das desvantagens e das vantagens comparativas dos heartlands em relação aos rims alterar-se-ão em consonância; e não é impossível imaginar que se venham mesmo a inverter48. Podemos refinar ainda mais a questão, notando que as dificuldades correntes ao nível dos transportes aéreos radicam, no essencial, no seu preço proibitivo (se comparado com o dos transportes marítimos) e, no que toca a esse preço, sobretudo nos custos associados ao transporte dos materiais a carregar. O que significa que, caso ocorram desenvolvimentos tecnológicos que façam cair em flecha os custos dos transportes aéreos por unidade de peso, desaparecerão as principais desvantagens comparativas das heartlands em relação aos rims. Podemos ir mais longe. Aquilo que pode ser uma geopolítica moderna fica também reconfigurado por releituras geográficas inovadoras, mesmo que se não verifiquem alterações tecnológicas significativas o que redimensiona de um outro modo o uso da “geografia”, tornando-o muito mais num enquadramento relacional do que “positivo”. Dou um rápido exemplo, no seguimento daquilo que antes afirmei quanto a África. A “linha da frente” é, como tenho vindo a insistir, uma frente de crise, e envolve perigos acrescidos de vários tipos; com a finalidade última de evitar (ou pelo menos diminuir) riscos, o Ocidente está a tentar obter energia fóssil de locais outros que não os tradicionais. Não constituiria surpresa se, nos próximos anos, se acentuasse a tendência, já sensível, para que o Golfo da Guiné se torne no novo “Golfo”. Com um output agregado de cerca de 4 milhões de barris por dia, a produção da Nigéria, do Gabão, e de Angola – todos eles com um enorme potencial de crescimento – é sensivelmente o mesmo que o crude extraído pelo Irão, a Venezuela, e o México juntos. E há mais Estados da região que são potenciais grandes produtores: designadamente São Tomé e Príncipe e a Guiné Equatorial. Até 2015, os EUA planeiam aumentar dos 16% correntes para 25% a parcela do petróleo da região que importam49. Não se trata apenas do facto de que, porventura, 8% das reservas mundiais de petróleo se encontram na região do Golfo da Guiné. De uma perspectiva de segurança, os campos petrolíferos do novo Golfo apresentam uma vantagem decisiva: estão quase todos localizados offshore, e por isso relativamente insulados da instabilidade crónica que assola uma área continental que inclui vários Estados frágeis, Noto que este tipo de comentários não é novo. No seu célebre Guerre et Paix entre les Nations, por exemplo, Raymond Aron [Raymond Aron (1962, edição de 1992), Paix et Guerre entre les Nations: pp 199200, Paris, Calmann-Levy] notou que Halford Mackinder, nos seus escritos de 1904, se mostrou fortemente impressionado com a capacidade da Rússia em travar, apenas alimentada por uma via fèrrea e com efectivos importantes, a Guerra da Manchúria, a uma distância de 10.000 km das suas bases. Aron sublinhou também, o facto de que, pouco mais tarde, O. Spengler (no célebre Declínio do Ocidente) se mostrava convencido que os “horse-power” dos novos motores viriam reabrir as rotas das grandes invasões. Tanto num como noutro caso, o ponto de R. Aron parece ser o de sublinhar a centralidade de condições e mudanças tecnológicas para as nossas modelizações geopolíticas. 49 Agradeço ao General J.M. Freire Nogueira estes dados estatísticos bem como a especulação geopolítica macro que se segue. 48

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outros claramente falhados, e uma maioria corroídos por teias de corrupção e ineficácia. Não há qualquer pessimismo na asserção segundo a qual não é previsível que tensões políticas, que irão de rivalidades religiosas e “tribais” a lutas pelo poder e ascendente local e regional, se vão manter na África sub-saariana nas próximas décadas. Sem quaisquer determinismos, parece difícil separar tudo isto do interesse cada vez maior demonstrado pelos EUA e pela China na região – para só dar os dois exemplos mais óbvios de um “acordar tardio para a África”. Vale a pena, neste quadro, voltar à USAFRICOM, o novo comando militar “planetário” norte-americano dedicado ao continente, com a possível excepção do Egipto, que como vimos se irá, ao que parece, manter no CENTCOM. Note-se, em primeiro lugar, que não é impossível que São Tomé e Príncipe venha a ser o local escolhido para substituir a Alemanha como lugar de implantação dos seus general headquarters, hoje como vimos instalados em Stuttgart. Qual o significado a atribuir a esta movimentação? Tratar-se-á de um esforço norte-americano para lograr uma proeminência estratégica em África? Ou será o intuito o de dar corpo a uma nova partilha de responsabilidades com a Europa? Os exercícios Steadfast Jaguar das NATO Rapid Reaction Forces, levados a cabo em Agosto de 2006 em Cabo Verde, na costa ocidental, frente ao novo Golfo, mostram com nitidez o empenhamento crescente dos EUA na região e parecem sugerir a segunda destas duas hipóteses. Visto que a maioria dos Estados da zona são ex-colónias europeias (a excepção é a Libéria), muitos deles com fortes ligações às ex-Metrópoles, uma nova oportunidade para uma parceria estratégica pode estar em gestação. O alcance desta janela de oportunidade torna-se patente, uma vez que tomemos em linha de conta os recursos também existentes no outro lado do Atlântico. Um recentramento geopolítico maior pode, por isso, estar em curso, pela criação de uma “Pan-Região” inesperada que combine a Europa Ocidental e a África com as duas Américas, a do Norte e a do Sul, com o Atlântico com “Oceano Central”, uma espécie de novo Mare Nostrum em larga escala. Se for esse o caso, a NATO pode vir a transformar-se numa ATO, e a “linha da frente” fica relegada a uma posição muito mais periférica do que aquela que hoje tem. A lição óbvia para as teorizações geopolíticas: a mesmíssima realidade físicogeográfica pode com facilidade ser “relida” em termos diversos dos anteriores. Bem vistas as coisas, talvez seja de advogar a utilização do termo “geopolítico” como um atributo relacional, um mero qualificativo contextual, em vez de pretender com ele denotar a utilização de uma matriz analítica pré-concebida como permanente e imutável. É certo que alguns poucos “invariantes estruturais” político-geográficas existirão; mas trata-se, decerto, de relações e não de entidades, ou essências, ontológicas fixas e absolutas. Na grande maioria dos casos, têm de ser apuradas caso a caso, conjuntura a conjuntura, porque variam nesses termos. Como atributo, no entanto, o termo “geopolítica” parece hoje de novo da maior utilidade analítica; e afigura-se terem largamente cessado muitas das resistências ao regresso de uma terminologia que é dela característica. Uma nova Geopolítica, que te152

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nha não a Geografia tout court, mas antes a geografia humana como enquadramento paradigmático – introduzindo assim, para além de uma componente meramente espacial e posicional estática, uma dimensão mais clara e explicitamente sociológica e construtivista, aquilo que é de plena evidência, ingredientes centrais – oferece-nos a vantagem de permitir decifrar com alguma facilidade, como tentei a par e passo ir demonstrando ao longo desta comunicação, processos complexíssimos e altamente dinâmicos que nos afectam a todos e dos quais nos não podemos dar ao luxo de continuar a alhear.

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS: ACTORES, DINÂMICAS E DESAFIOS

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