a literatura como auxiliar na compreensão das questões de gênero

May 25, 2017 | Autor: Lara Matos | Categoria: Direito, Literatura Comparada, Violencia De Genero
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1. INTRODUÇÃO

1.1.Justificativa A literatura é uma forma de expressão plurissignificativa. Por esta razão, trafega entre conotações e interpretações que muito variam entre contextos. O que faz da literatura arte é ser, em sua esfera particular, uma universalidade, além de trazer a identificação esperada pelo leitor, por mais afastado que este esteja da realidade do escritor. Por sua natureza artística, a literatura muitas vezes é vista ou de maneira demasiado excelsa em suas posições ou, ainda, como atividade meramente lúdica, a despeito de seu importante papel de documentar a sociedade e seus anseios. Dominique Maingueneau (2001, p. 19) relaciona literatura e o contexto em que a mesma é produzida, incluída aí a realidade jurídica e afirma a existência de atitude de suspeição por parte do leitor: “mesmo que o escritor atribua à sua obra uma finalidade social ou política, o que fundamenta sua tribo sempre está além dessas tarefas. Daí uma suspeita permanente das pessoas bem situadas em relação a ele.”. O escritor visto como peça reclusa e integrante de uma tribo excêntrica e improdutiva têm-se tornado um mito, posto que todas as grandes obras literárias obras aqui com o sentido artístico da palavra, pois além de retratar fatos como pano de fundo, a escrita volta-se para um objetivo maior, talvez até etéreo, de se eternizar nos limites da humanidade. Desta forma, a interseção de direito e literatura para melhor compreensão das questões de gênero: Promete o resgate dos fatores subjetivos que compõem o direito para viabilizar um entendimento mais complexo de sua dinâmica de funcionamento, a partir do fato de que, ao contrário do que se ensina, a origem do direito encontra-se na descrição das relações humanas por um objeto específico - a linguagem. (OLIVO; SIQUEIRA, 2012, p. 284)

Os diplomas normativos também passam por processo interpretativo e de apreensão de significados análogo ao literário, visto que a realidade em que se produzem é a mesma em que a literatura se cria e é aprimorada. Os tipos dispostos na lei, caracterização genérica aos quais as situações fáticas se adéquam, guardam em si muita semelhança com a subjetividade apresentada na literatura: o texto existe, mas cabe ao leitor, num esforço interpretativo, retirar dele um significado que possa contribuir com suas intenções, seja de divertir-se ou de encontrar respostas para questões mais profundas. Ao buscar o provimento legal, a parte

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integrante da lide também age incisivamente em busca de algo na lei que lhe ofereça possibilidades de satisfazer sua pretensão. Em tempos de conquistas de novos direitos, o que muitas vezes ocorre, porém, é um amplo dissenso entre o provimento esperado diante da realidade fática em que se insere a parte e a decisão realmente obtida. A lei raramente caminha emparelhada com as transformações sociais, principalmente, quanto à concessão de direitos às categorias antes marginalizadas, como mulheres, deficientes, homoafetivos. Esta tendência, motivada por uma prudência muito cara aos legisladores, também significa um grande apego à exegese e ao positivismo jurídico que marcaram a interpretação legal do sistema jurídico brasileiro durante o século XX, conforme restará demonstrado no curso deste trabalho e que advertiam que o significado da lei atinha-se à sintaxe e às literalidades, limitando muito as interpretações integrativas com expansão benéfica de seus significados. Todavia, este rumo da visão da maioria dos juristas brasileiros justifica-se, dentre outros motivos, pela instabilidade política e consequentemente legal que permeou o país ao longo do século passado. A condição da mulher na sociedade atual será analisada sob a luz de toda a ambiguidade do século XXI: do discurso de que todos os direitos já foram conquistados, o que faria das leis específicas para mulheres desnecessárias até a ideia de que mulher trabalhadora, mãe e esposa, sobrecarregada por tantos afazeres, corresponde ao “modelo” que o feminismo forjou com seus clamores. O Brasil foi foco de preocupações internacionais em razão do desrespeito aos Direitos Humanos femininos. No tratamento dado ao emblemático caso que nomeou a Lei Maria da Penha, biofarmacêutica agredida durante anos pelo marido, que resistiu a duas tentativas de homicídio cometidas por este, não sem ter a integridade física comprometida após o primeiro atentado, com uso de arma de fogo, que a deixou paraplégica. Após a denúncia, entretanto, teve que enfrentar a decepção de ver seu algoz solto após apenas dois anos em regime fechado. Tendo visto o exemplo citado, a preocupação exposta por Renata Raupp Gomes é válida nos dias atuais e auxilia a esclarecer a razão de o objeto do presente trabalho ser tão importante, demonstrando caminhos interpretativos que evitem um retrocesso com prejuízo à noção de dignidade tão arduamente batalhada pela mulher: Embora em grande parte não recepcionada pela Constituição, a legislação infraconstitucional da época, como o anacrônico Código Civil de 1916, no que se refere à condição jurídica da mulher, acabava muitas vezes por criar entraves à emancipação feminina, tendo em vista o conservadorismo de

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alguns juristas e tribunais do País, que na ausência de leis ordinárias condizentes com a Lei Maior, acabavam por desvirtuar o texto constitucional para adaptá-lo às leis preexistentes. Como se percebe, o perigo que ameaçava e ainda hoje ameaça as conquistas já constitucionalizadas traduzse no tipo de interpretação que tais normas venham a inspirar. (Renata R. Gomes, 2012, p. 71)

O presente trabalho tematiza a relação direito e literatura para apresentar a questão de gênero materializada como inferiorização da mulher, bem como discorrerá sobre legislações penais pretéritas e atuais que tutelam a violência contra o gênero feminino. 1.2. Objetivos O objetivo geral do trabalho é analisar a questão de gênero a partir de textos literários e legais. E como objetivos específicos: analisar o diálogo entre as fontes do direito e a produção literária de perspectiva geral, de modo a demonstrar a questão de gênero como tema precípuo e urgente para o direito através da análise do papel feminino na literatura; expor de que modo a misoginia e o machismo característicos da sociedade brasileira no século XX refletiram na legislação da época, fazendo um paralelo de como as correntes da criminologia influíram para a concepção e interpretação do direito existente em relação à mulher da segunda metade do século XX, especialmente no âmbito penal, contextualizando as informações obtidas com o conto I Love My Husband, de Nélida Piñon e discutir de que forma a emancipação feminina ainda no século XX repercutiu na tutela jurídica à mulher vítima de violência na Lei 11.340/2006, tendo como base três de Angélica Freitas. 1.3. Metodologia O trabalho foi realizado com levantamento de textos literários e legais relacionados com a questão de gênero, identificação de aspectos que atestam a inferiorização da mulher nas relações de gênero e a discussão destes aspectos a partir da produção de mapas analíticos, com base em Spink (2000) que orientaram a produção do presente texto. O estudo, portanto é de natureza qualitativa, descritiva e analítica com revisão de literatura, em especial obras que tratam a respeito da evolução da criminologia, das novas abordagens de direito, literatura escrita por mulheres e sobre as modalidades de violência de gênero, com análise acessória de jurisprudências.

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A coleta de informações para o presente estudo durou cerca de 06 (seis) meses, concentrando a revisão de textos nos três primeiros meses deste período. Os dados analisados demonstraram caracteres da cultura da população brasileira em relação à questão de gênero. Para isto, também foram usadas estatísticas como o Mapa da Violência, publicado pelo IBGE em 2013. Textos legais embasaram a pesquisa, em apanhado de legislações que vão desde 1916 (Código Civil de 1916) até a Lei 11.340/2006. Como fontes complementares, foram reunidos textos de diversas autoras, preferindo o sexo feminino em razão do escopo deste trabalho de especificar a subjetividade feminina e como esta é ultrajada quando das tentativas de diminuição do indivíduo em razão do gênero.

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A LITERATURA E A QUESTÃO DE GÊNERO

1. A relação gênero e literatura

A formulação de Bourdieu (1998) sobre campo jurídico, como espaço em que se dá a interpretação e aplicação da lei, não como ato solitário do magistrado, mas como resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competência técnica e social desigual, capazes de mobilizar de modo desigual os meios e recursos disponíveis pela exploração das regras possíveis e de utilizá-los eficazmente, denota que a prática jurídica constitui um campo simbólico que estrutura o direito. O referido campo simbólico singularizado pelas práticas vai se desenhando conforme os sentidos produzidos pelas relações sociais. E, em sendo estas marcadas por hierarquias, estas estruturam o mencionado campo simbólico. As hierarquias das relações sociais são produzidas e produzem a cultura, por isso é possível percebê-las nas diversas expressões culturais, como na literatura. A respeito da relação entre direito e literatura, Luís Carlos Cancellier de Olivo e Ada Bogliolo Piaucastelli de Siqueira orientam que:

[Ao estudioso do direito] ...é requisitado o abandono temporário de sua formação positivista e analítica do direito para permitir-se compreendê-lo sob um enfoque linguístico e cultural.[...] Assim, a aproximação do direito à literatura sugere uma nova teoria do direito fundamentada no desenvolvimento de sua linguagem e nas relações comunicativas travadas no âmbito do direito. (2012, página 283)

Por outro lado, a arte também reflete, principalmente, no que se chama de “literatura marginal” e “de vanguarda”, o descontentamento com o status quo vigente e ajuda a compreender o processo de transformações sociais que, de outro modo, seriam entendidas como abruptas e revolucionárias, mas que tem semeadura em sinais históricos um tanto distantes do momento presente e por isso mesmo, não mais perceptíveis. A arte, em especial a poesia, manifestação da individualidade e do intimismo por excelência, dá voz ao

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descontentamento que é geral, mas que também pode ser de cada mulher em si, amealhando um grupo homogêneo em anseios e sentimentos. A interpretação dada à arte possui importância crucial para a construção das bases de um discurso dominante, recorrendo apenas a uma varredura do significado, sem ampliar contextos e atrelando-se ao senso comum vigente, algo, que por suposto, não beneficia a integração da lei com a realidade, já que não busca integrar as particularidades de ambos os planos, muitas vezes focando-se nas palavras de abstração. A respeito das técnicas de interpretação que beneficiam a ordem dominante, Bourdieu (2004) afirma que:

O intérprete que impõe sua interpretação não é apenas alguém que dá a última palavra numa querela filológica (objetivo que equivale a um outro), mas também, com muita freqüência, é alguém que dá a última palavra numa luta política, alguém que, apropriando-se da palavra, coloca o senso comum do seu lado. (Basta pensar nas palavras de ordem - democracia, liberdade, liberalismo hoje em dia e na energia que os políticos despendem com vistas a se apropriar desses categoremas que, enquanto princípios de estruturação, constituem o sentido do mundo, e em particular do mundo social, e o consenso sobre o sentido desse mundo). (Bourdieu, 2004, págs 136/137)

A literatura, então, adentra o espaço jurídico como auxiliar da compreensão das transformações da sociedade, em especial as mutações da condição feminina: da mulher dantes encarada como mera extensão da propriedade do homem, e hoje sujeito de direitos e obrigações como qualquer outro cidadão, mas ainda estigmatizada pela violência familiar e de gênero. Acresce-se ainda a ressalva de que a menção, no presente estudo, à violência familiar e de gênero referem-se ao contexto limitado de violência doméstica (ocorrida no recinto do lar) e familiar contra a mulher, visto que as acepções da violência de gênero são muito mais amplas do que o tutelado por este diploma legal. Para Saffioti:

Não há maiores dificuldades em se compreender a violência familiar, ou seja, a que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consanguinidade e a afinidade. Compreendida na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso. A violência intrafamiliar extrapola os limites do domicílio. (SAFFIOTI, 2004, p. 71)

Ocorre que todo discurso literário recepciona em si vozes dissonantes da ordem dominante, manifesta, no campo da literatura, através do que se denomina “romance

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burguês”, a epopeia da burguesia moderna, de acordo com o conhecido aforismo de Hegel. Merecem atenção especial os chamados romances de casamento, escritos em sua maioria como entretenimento para mulheres, cujo expoente mais brilhante é a figura de Jane Austen 1. A importância deste gênero de literatura é a de que “todas as contradições específicas desta sociedade, bem como os aspectos específicos da arte burguesa, encontram sua expressão mais plena justamente no romance (LUKÁCS, 2000, p.87)”, eis que através deste, centrado na figura do indivíduo em relação ao mundo, permite a análise de caracteres históricos, sociológicos, psicológicos e econômicos da época em que foi redigido. É importante lembrar que o romance burguês muitas vezes representa uma contraposição aos épicos de heroísmo da literatura clássica, com o indivíduo derrotado pelos seus demônios. Neste prisma, o conto de Nélida Piñon, I Love my Husband, a ser detalhado no segundo capítulo deste trabalho, trata do “demônio” moderno da emancipação feminina em contraposição à hegemonia do masculino em sociedade e, em especial, no casamento. Dworkin (2007) trata de uma Teoria Estética da Literatura, discorrendo os modos de interpretação úteis à esfera legal usados na produção literária. E o faz ressaltando ser o pensamento aplicável mesmo aos citados sistemas de Common Law, como é o norteamericano, em que pode parecer de início mais dificultoso adotar esta corrente hermenêutica, enquadrando a Literatura como instrumento hermenêutico. Desta forma, em suas palavras, as proposições jurídicas são:

As proposições de direito não são meras descrições da história jurídica, de maneira inequívoca, nem são simplesmente valorativas, em algum sentido dissociado da história jurídica. São interpretativas da história jurídica, que combina elementos tanto da descrição quanto da valoração, sendo, porém, diferente de ambas. (DWORKIN, 2007, p. 220)

1 Aqui, é importante acrescer a opinião do escritor estadunidense Mark Twain em relação à autora, partilhada, dentre outros autores, pelo argentino Jorge Luis Borges: ”Jane Austen? Porque, vou ainda mais longe ao dizer que qualquer biblioteca é boa sempre que não contenha algum volume de Jane Austen. Inclusive se não tem outro livro”. Observa-se nestes dois escritores a repulsa pelo discurso centrado em ironizar a ascensão social em razão do casamento, figura exaustivamente repisada por meio em romances como Emma e Orgulho e Preconceito, bem como ao apego à moral e aos nascentes costumes burgueses representados pela obra da autora. Não se pode deixar de reconhecer que, apesar das limitações discursivas, Jane Austen significa um importante degrau na consolidação do romance feminino, além de dar voz legítima a uma parcela de mulheres da época, representando bem os costumes e pensamentos da gentry inglesa do início do século XIX.

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Consoante o disposto, tem-se que mais uma vez ocorre o retorno à história dos sistemas legais, de modo a promover uma interpretação que integre também a carga do passado da legislação interpretada, facilitando, inclusive, a compreensão do operador do direito acerca da conjuntura social em que a norma se insere, entendimento que poderia ser obstado por uma lei à qual fosse aplicada a orientação positivista interpretativa clássica. Adotado esse ponto de partida, considero que a literatura agrega importância aos aspectos individuais da história, fazendo com que, de um único indivíduo possa se extrair a síntese do pensamento de uma época, mesmo que o personagem ou eu-lírico aja em contraposição aos valores vigentes. É possível considerar que “o contato com a obra literária permite a percepção do direito vivido, bem como a compreensão da ordem jurídica a partir de seus efeitos e de seus reflexos concretos na sociedade (OLIVO e SIQUEIRA, 2012, pág. 284)”.

2. A literatura brasileira produzida por mulheres como documento da condição feminina no século XX

Como já explicitado, o discurso literário dominante também se compõe das vozes hegemônicas em sociedade, porém o enfoque aqui é do lugar de subalternidade, portanto não seria oportuno trazer vozes masculinas para tratar de questões inerentes à condição feminina em sociedade, optando-se, assim, por escritos produzidos por escritoras e poetisas e que tenham relação com a violência diária vivenciada pelas mulheres. Desta forma, Renata R. Gomes esclarece: De nada adiantam todos os avanços legislativos, tampouco as conquistas políticas ou de mercado femininas, se essa mesma mulher que se impôs socialmente, “da porta para dentro” for vitimada pelo desrespeito e ameaçada pela violência de seu parceiro. A violência doméstica é um fenômeno não apenas brasileiro, mas mundial, cujas estatísticas não são parâmetros confiáveis, eis que frequentemente encontra-se “mascarada” pela vergonha que a própria vítima sente em expor sua situação familiar ou ainda pela dificuldade que muitas sentem em admitir o flagelo familiar ou seu calvário privado. Como se trata de agressor membro da mesma família, não raro ele seja cônjuge ou companheiro, e, ainda menos raro, na hipótese de haver certa dependência econômica ou afetiva da vítima em relação a seu agressor, a violência permanece ocultada ou até mesmo minimizada

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socialmente por se tratar de problemas da esfera do lar. (Renata, R. Gomes, 2012, p. 91)

Para compreender a importância em analisar um discurso literário feminino para enfocar a questão da inferiorização da mulher e de como o gênero feminino é tratado pelo ordenamento jurídico, é preciso fazer digressões acerca da história da mulher escritora no Brasil. No início do século XIX, período em que modestamente se iniciava a escolarização feminina, uma obra de cunho feminista, Uma Defesa dos Direitos da Mulher, de autoria de Mary Wollstonecraft (mãe da também escritora Mary Shelley, autora do clássico Frankstein), começava a circular no país, traduzida pela escritora Nísia Floresta 2. As mulheres escritoras do século XIX e início do século XX não galgaram visibilidade, preteridas em favor de poetas do sexo masculino. Constância Lima Duarte questiona a legitimidade dos critérios adotados pelos normalizadores da arte literária em nosso país:

A grande pergunta que se coloca é por que algumas escritoras, como Narcisa Amália, Nísia Floresta, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Presciliana Duarte de Almeida, Ana Aurora Lisboa, Maria Amélia de Queiroz, Úrsula Garcia, Carmen Freire, Mariana Luz, Francisca Júlia, Júlia da Costa, Auta de Souza, Francisca Clotilde, para citar só algumas, já que a lista é enorme, não estão hoje em nossas histórias literárias, nem sua obra compilada nas antologias e manuais de literatura. Quem as conhece sabe que a poesia que realizaram em nada fica a dever aos nossos poetas árcades e românticos, tais como Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e, até ouso acrescentar, Gonçalves de Magalhães. (...) A mediocridade da maior parte da nossa poesia romântica desmonta de pronto o argumento de que teria sido o apuro formal ou estético os determinantes da escolha daqueles autores. (DUARTE, 1995, P. 26)

As mulheres escritoras dos idos do século XIX não eram bem vistas em sociedade. Se já com muitas reservas se permitia a educação para mulheres, era com muito desconforto que a atuação das mesmas na política e na literatura não folhetinesca era vislumbrada pela sociedade. Joaquim Manoel de Macêdo, autor do romance “A Moreninha”, ironiza a obra de Wollstonecraft, ao descrever Carolina: “a bela senhora é filósofa!...faze ideia! Já leu Mary de Wollstonecfraft e como esta defende o direito das mulheres” (pág. 76), corporificando o pensamento vigente na época, de que a mulher não teria faculdades bastantes para racionalizar as questões de sua vida, sendo uma criatura gentil e guiada por emoções, sempre polidas e dóceis. Norma Telles conceitua: 2 Pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, escritora, pioneira do feminismo no país.

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O “sexo gentil”, dotado de natural despotismo, não era talhado para embates da política ou das letras. Podia-se, magnanimamente, incrementar um pouco sua educação para se tornar mais atraente na sociedade, mas isso bastava, de resto seria melhor ficar com o bastidor. (TELLES org. PINSKY; PRIORE, 2010, p. 434)

As

transformações

no

contexto

sociocultural

brasileiro

foram

ocorrendo

paulatinamente. As influências externas do pós-guerra contribuíram para que a mulher ampliasse sua escolaridade, embora o principal destino das moças fosse ainda o casamento. Em meio a estas transformações e aos preconceitos e limitações recrudescentes, floresce a intelectualidade feminina. Neste panorama de país urbanizado e enriquecido influências culturais estrangeiras se erguem os principais nomes femininos na literatura do século XX, como Rachel de Queiroz, que já em seu romance de estreia, O Quinze, nos presenteia com Conceição, personagem que, ao contrário da “ordem” dos romances da época, opta por não casar-se, eis que julga irreconciliáveis as diferenças que tem com seu pretendente e, demonstra interesse e intelectualidade aguçada, dedicando-se com afinco a variadas leituras. Em relação à poesia escrita por mulheres no início do século XX, havia ainda muita relutância dos círculos literários em aceitar mulheres como criadoras do gênero. A palavra poetisa, nos primeiros anos do século passado, carregou em si alto teor de pejoratividade, pois procurava por as escritoras em uma categoria “diferenciada” e abaixo da produção masculina. O poema “Motivo3” de Cecília Meireles, muitas vezes foi interpretado sob a recusa da carioca em ser chamada poetisa. Otto Maria Carpeaux corrobora com a posição de Cecília em artigo de 1964, em que denominou de “burrice” o uso do feminino da palavra poeta, afirmando que os poetas não têm diferença de sexo, pois a diferença existe apenas entre os que sabem ou não sabem fazer versos. “Cecília Meireles”, observou Carpeaux, “não é poetisa. É poeta.”. Tendo em vista sediar as pesquisas na contemporaneidade jurídica e literária, o objeto de estudo centrou-se na literatura produzida por mulheres na segunda metade do século XX e século XXI, em especial ao conto I Love My Husband, de Nélida Piñon, e o livro de poemas “Um Útero É Do Tamanho de um Punho”, de Angélica Freitas. Estas obras serão utilizadas de modo a facilitar o entendimento da condição feminina e os avanços conquistados pelas 3 “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.”

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mulheres no ínterim entre as obras (mais de 30 anos), e ainda, relatar os principais entraves da mulher em relação à prestação jurisdicional ocasionadas pela interpretação deficitária da lei.

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I LOVE MY HUSBAND: UM RETRATO PARCIAL DA REALIDADE FEMININA NO SÉCULO XX

1. Da Criminologia: breve histórico de correntes de pensamento

A ciência criminologia (junção do latim “crimino”=crime + “logos”, do grego, significando estudo) ocupa-se em estudar as particularidades do crimes, no tocante a seus elementos, sujeitos e circunstâncias e se divide, tradicionalmente, em 03 períodos: clássico, positivista e sociológico. Inicialmente, houve a concepção contratualista ou clássica do conceito de crime, cujo expoente mais destacado foi Cesare Beccaria, com sua obra “Dos Delitos e Das Penas”. Em associação pejorativa, os positivistas denominaram este período da criminologia de “Escola Clássica”. De acordo com a linha de pensamento clássico, o delito era concebido como uma ruptura do contrato social, sendo, assim, passível de ser cometido por qualquer pessoa. Não havia a atribuição de um determinismo biológico, social ou psicológico ao cometimento de crimes. Assim, “resumidamente, o positivismo criminológico verificava um homem-delinqüente com uma patologia: o crime” (FERNANDES, 2002, pág. 91). O direito penal, então, migrou da abstração das teorias contratualistas básicas para o concretismo positivista, que agora baseava as atitudes do criminoso em estudos científicos, determinando caracteres físicos, biológicos e sociais para a formação de um criminoso. Os expoentes mais ilustres desta escola são Cesare Lombroso, com suas teorias de Antropologia Criminal e Enrico Ferri, que converteu a sociologia em instrumento para a identificação de criminosos. No Brasil, aos fins do século XIX, as teorias de Lombroso e Ferri eram amplamente aplicadas para explicar a criminalidade, com o adendo de que a miscigenação do país provocaria a “degradação moral do ser humano”. Quanto à mulher, Rachel Soihet narra a posição do psiquiatra italiano a respeito do caráter feminino:

Lombroso, cujas ideias estavam revestidas de forte teor evolucionista, apontava na mulher inúmeras deficiências, além de atribuir-lhe fortes traços de perfídia e dissimulação. Ele afirmava que a mulher era menos inteligente que o homem, explicando que a presença na genialidade nesse sexo, por uma confusão de caracteres sexuais secundários, faria a mulher parecer um homem disfarçado. Era a mulher dotada de menor sensibilidade nos mais diversos âmbitos, especialmente na sexualidade. Dentre as razões que

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apresentava para comprovar tal afirmação, enumerava a raridade das psicopatias sexuais nesse sexo e a sua capacidade de manter a castidade, por longo tempo; atitude impossível de exigir-se dos homens. Assim, justificava que as leis contra o adultério só atingissem a mulher, cuja natureza não a predispunha a este tipo de transgressão. (SOIHET org: PINSKY; PIORE, 2010, pgs, 363/364)

Lombroso, psiquiatra por formação, formulou suas teorias com base em observações feitas nos presídios da época, buscando padrões físicos, psíquicos e biológicos nos detentos. Desta época advém o estudo dos fenótipos, as “feições” de um criminoso de modo literal, visto que em manuais da época figuravam retratos de homens com rostos “inclinados à criminalidade”. O criminoso era um mal social, de acordo com teorias baseadas nas características biológicas e psicológicas destas pessoas, diferenciando os sujeitos autores de crimes daquelas pessoas com condutas que atendiam ao padrão de normalidade disposto nos diplomas penais. A escola positivista lançou pensamentos ainda hoje comuns em sociedade, sobre o crime como fenômeno natural e anormal, praticado por indivíduos com características patológicas, destoantes da moral da sociedade, que, na concepção desta corrente de pensamento, seria universal. O criminoso, do ponto de vista destes estudiosos, seria um “doente” a ser recuperado. Na década de 60 do século XX, como resposta ao determinismo das teorias positivistas, propõe-se a teoria do etiquetamento social, que recepciona a atividade criminosa como uma convenção social do ser e não ser delito, e não como um mal em si. Apesar de suas falhas teóricas, esta corrente de pensamento ajudou a construir a Criminologia Crítica, escola de viés marxista que vê no delito uma superestrutura da marginalização das camadas mais pobres; pela prática, um espelho da realidade social: a classe trabalhadora é a que mais figura em processos penais, já que há uma maior vigilância sob seu comportamento, dados os objetivos de controle da ordem social pela classe dominante. No interior da Criminologia Crítica surgiu a criminologia crítica feminista, viés de pensamento não completamente homogêneo que busca basear a condição feminina como autora e como vítima de crimes. Marcela Rodríguez sintetiza as três principais linhas deste pensamento:

Algumas feministas têm se posicionado claramente a favor do uso do sistema penal, considerando que, pelo fato de ser o direito penal uma das principais esferas de organização do poder, as feministas não devem afastálo sem lutar por um novo espaço de exercício do poder neste âmbito. Sem

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desconhecer os problemas que o direito penal apresenta, defendem a sua utilização tanto tem forma real como simbólica. (ROGRÍGUEZ, 2000, p. 143)

Outro dos grupos tenta encontrar critérios que permitam uma utilização do sistema penal de modo mínimo, a partir da perspectiva de gênero. Mais radical, a última das linhas de pensamento considera que “o feminismo deve buscar a descriminalização (promovendo a minimização do direito penal até sua abolição) a fim de não legitimar o sistema penal seletivo e perverso” (RODRÍGUEZ: 2000, p. 145).

2. A Literatura como espelho da condição feminina no século XX

2.1. I Love my Husband: a violência doméstica como parte do casamento

“I Love my Husband” é um conto de Nélida Piñon que integra seu livro “O Calor das Coisas”, publicado originalmente no final dos anos 70 (portanto, quando ainda eram muito incipientes as discussões acerca da Violência Doméstica e Familiar no Brasil), com a temática de um casamento tomado pelo desgaste emocional, que passa a gerar situações de tensão e violência entre o casal-mote. Em determinado momento do enredo, a personagem principal ingressa em uma análise de seu relacionamento, questionando as bases da união e resolvendo, ao menos temporariamente, buscar alguma independência para quem sabe, no futuro, deixar o marido. A codependência do relacionamento amoroso evidencia-se, então, no momento em que, ao ouvir estas palavras, o marido cai em lágrimas e ocorre a tentativa de reconciliação por parte da mulher, reconsiderando todos os pontos que levaram a sua insurreição: “o marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? (PIÑON, 2001, págs. 149-150)” O conto de Piñon (2001) representa uma mulher de classe abastada, intencionalmente inominada, que fala de si e de sua situação doméstica sempre em primeira pessoa, como se não desejasse que o atual momento angustiante de sua vida dedicada ao casamento e cuidados com o marido se estendesse para outras mulheres. O peso da rotina, da opressão e o desgaste emocional anunciam-se logo no começo do conto, com os dizeres:

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[...] Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.[...] (PIÑON, 2001, p. 145)

Apesar de descrever uma cena cotidiana, o modo pelo qual a protagonista refere ser tragada pelo marido “duas vezes por semana, especialmente no sábado”, demonstra um total alheamento da mulher de sua sexualidade, algo muito comum até na atualidade, e mesmo uma auto-objetificação. No momento da publicação do conto, não havia legislação que oferecesse amparo à mulher, exceto o Estatuto da Mulher Casada, da década anterior, de caráter estritamente cível. O trecho supracitado dá azo, também, a um importante aspecto da lei penal, o estupro conjugal, só recentemente admitido no ordenamento brasileiro com a exclusão da expressão “débito conjugal” dos textos legais. Esta passagem, desta forma, pode conduzir, dada a menção ao ato sexual sem o menor interesse, apenas como mais um fator inócuo da rotina, a personagem a engrossar as estatísticas de mulheres vítimas de violência sexual dentro do casamento. A legislação da época do escrito, em vigor até recentemente, havia a concepção do “débito conjugal”, com a natureza jurídica de direito-dever de cada um dos cônjuges, a legitimar violências perpetradas contra muitas gerações de esposas e vítimas, que podia, inclusive, ocasionar o fim do casamento. Desta forma, o conto nos conduz ao íntimo dos relacionamentos entre classes mais abastadas afastando a ideia de que a violência é inversamente proporcional à escolaridade das partes envolvidas: como fenômeno cultural e baseada em costumes arraigados no seio da sociedade, extrai-se o conteúdo falso deste raciocínio em relação aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. O Mapa da Violência, estudo publicado em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), concluiu que 68, 8% (sessenta e oito vírgula oito por cento) dos crimes de violência contra a mulher ocorrem na esfera doméstica e/ou familiar.

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2.2. “I Love my Husband” como instrumento hermenêutico das legislações pretéritas acerca da condição feminina

Logo nas primeiras páginas do conto I Love My Husband, a protagonista afirma, com aflição, não querer ver seu “esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado (PIÑON, 2001)”, fazendo alusão ao ato sexual praticado por esta sem qualquer vontade, como um dever. A mulher do conto, dependente do marido, vê a sua dignidade sexual sob o jugo do parceiro, o que conduz ao contexto de abusos sexuais (e não só, eis que a personagem afirma ficar aflita com os grunhidos de raiva do esposo quando esta lhe oferece café pela manhã) dentro do casamento. A definição do delito de estupro no âmbito conjugal, antes do advento da Lei 11.340/06, dada por Leila Adesse e Cecília de Mello e Souza (2005), era de que:

Estupro conjugal é todo aquele que ocorre nas circunstâncias do casamento e união estável, quando o marido/companheiro é o sujeito ativo do crime. A doutrina jurídica majoritariamente ainda não reconhece o estupro conjugal como crime. Nos tribunais superiores encontramos decisões com o entendimento que a relação sexual voluntária é lícita ao cônjuge, mas, o constrangimento ilegal empregado para realizar conjunção carnal à força não autoriza o uso de violência física ou moral nas relações sexuais entre os cônjuges – exercício e abuso de direito de crime de estupro (RT 536/257). Ademais, a Constituição Federal reconhece a igualdade de direitos entre homens e mulheres, inclusive no âmbito da sociedade conjugal. (ADESSE; SOUZA, 2005, p. 46)

Na época da publicação do conto era muito difícil, ainda mais do que é hoje, uma mulher estuprada dentro do matrimônio chegar a comunicar o fato a alguma autoridade, posto que se somam ao débito conjugal e aos desvios de conduta da vítima, a permanência no imaginário popular “vítima de estupro perfeita”: a mulher frágil, indefesa, de conduta sexual irrepreensível, parada por um desconhecido e violentada, que no entanto, grita e debate-se para proteger o que tem de mais valioso, sua honra; esta situação, contudo, corresponde à menor parcela deste tipo de crime no país. Conceitos arcaicos permanecem arraigados à realidade nacional, como a “pureza” e a noção não completamente dissolvida de que exista um “débito” entre casais.

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A permanência, mesmo que implícita, da acepção do “débito conjugal” quando da entrada em vigor o Código Civil de 2002, diploma que excluiu este termo de sua redação, foi querida por alguns intérpretes do direito. Mesmo após a inserção de uma nova ordem civil através do Código de 2002, esta corrente de juristas intentou inserir ao sentido do texto que haveria, incluso ao “dever de coabitação dos cônjuges”, o cabimento do “débito conjugal”, numa interpretação equivocada da lei, que jamais intentaria, no século XXI, dar instruções de como deva ser a vida sexual de um casal, ainda mais em uma ordem Constitucional pós-1988. Na esfera penal, atente-se também para a excessivamente comentada passagem bíblica da Mulher de Potifar, que tentara seduzir José do Egito, e não obtendo êxito, mentiu que fora estuprada por este, muito repisada inclusive nas escolas de direito para alertar sobre falsas acusações de violência sexual. Ora, esta passagem do Antigo Testamento advém de livro de aproximadamente quatro mil anos. Naquele tempo, realmente era muito difícil averiguar a veracidade de uma acusação como esta. Mas ao que parece os que ainda usam este infeliz exemplo anacrônico e preconceituoso esquecem que os séculos XX e XXI detêm tecnologia suficiente para apurar a veracidade das acusações de estupro, mesmo no seio matrimonial. Em verdade, atualmente, é bem mais constrangedor para a mulher passar pela rotina de delegacias, exames invasivos e inquirições tendenciosas do que um homem ser acusado de estuprar alguém, e ainda mais sua esposa, ato a que a lei, ainda a pouco, conferia total legitimidade. A questão é preocupante inclusive na atualidade, já que em estudo sobre a vida privada das mulheres realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2004, na pesquisa: “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, revela que 13% das mulheres são vítimas de estupro/abuso sexual por parte de seus maridos. À época de I Love my Husband, conto de Nélida Piñon que baseia esta análise temporal de legislação, no final dos anos 70, era o Código Penal que encerrava as tipificações de violência. A violência doméstica só foi incluída como agravante do artigo 129 deste Código em lei datada de 2004. Por óbvio, considerando todos os preconceitos da época, que incluíam a denominação “mulher honesta”, também só retirada da legislação pátria no ano de 2005, as eventuais provocações que a esposa pudesse ter feito e questionamentos de toda sorte a respeito da vida marital da mulher agredida, muito poucas eram as acusações que chegavam à tutela do Judiciário, e uma vez proposta a demanda, os desafios eram ainda maiores para assegurar o deferimento efetivo de medidas coercitivas.

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O estilo da narrativa do conto se faz pelos fluxos de consciência da narradora que, inominada, poderia ser qualquer mulher, pela própria finalidade do escrito, em que o “grau de consciência em face de seu próprio destino, da capacidade de elevar – inclusive no plano da consciência – os elementos pessoais e acidentais do próprio destino a um certo nível de universalidade (LUKÁCS, 1968, p.173)”. Pelas passagens percebe-se que a protagonista tenta tornar-se distante de si mesma, e ao final, inevitável a situação de conflito em que se está inserida, acaba por ceder ao habitual ciclo de “agressão-flores-nova agressão”, em que esta pondera, inclusive, que se seu marido fosse assim uma pessoa tão má, não reagiria com clemência e paciência nas reuniões de condomínio 4, ignorando esta que a violência doméstica é fenômeno inerente à mulher na esfera privada de sua vida. Maria Berenice Dias explana o que ocorre nestas circunstâncias: facilmente a vítima encontra explicações, justificativas para o comportamento do parceiro. Acredita que é uma fase, que vai passar, que ele anda estressado, trabalhando muito, com pouco dinheiro. Procura agradá-lo, ser mais compreensiva, boa parceira (DIAS: 2007, p. 19)”. Ao receber respostas e atitudes cada vez mais ríspidas do marido, esta se rebela contra a violência sofrida, sempre internamente indagando se seria a hora de arrumar um emprego, sair de casa, ela, uma mulher sempre dedicada a casa e aos filhos, momento em que ocorre a quebra de expectativa do conto: não há uma heroína determinada a cumprir seus propósitos de emancipação, e sim uma mulher dócil que transige ante as lágrimas do esposo:

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? (PIÑON, 2001. ps. 149-150)

No entanto, o momento de reflexão da personagem acerca de seu futuro, representa a aspiração de mais da metade das mulheres brasileiras, também segundo a pesquisa da 4 “Dificilmente eu encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar os que o haviam magoado.”

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Fundação Perseu Abramo. Deste modo, a literatura reflete o desejo feminino crescente por emancipação no final do século XX, mesmo que a personagem abandone seus planos após a reconciliação com o marido, além de facilitar a compreensão de como os conflitos que ensejam a violência doméstica são geridos no interior do lar. Maria Berenice Dias esclarece:

A evolução da Medicina, com a descoberta de métodos contraceptivos, bem como as lutas emancipatórias promovidas pelo movimento feminista levaram à redefinição do modelo ideal de família. A mulher, ao se integrar no mercado de trabalho, saiu do lar, impondo ao homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa. Essa mudança acabou provocando o afastamento do parâmetro preestabelecido, terreno fértil para conflitos. Nesse contexto é que surge a violência, justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. (DIAS, 2007, p. 14)

2.3. Os Crimes Passionais e a Legítima Defesa da Honra

Os crimes cometidos no seio de um relacionamento amoroso por ciúmes ou temor do abandono, denominados pela mídia ávida por espetáculos sensacionalistas de “passionais” e praticados, geralmente, “em legítima defesa da honra” por um parceiro “privado de sentidos” após a rejeição ou suposta traição, foi um conceito recepcionado pelo ordenamento jurídico até recentemente em desfavor das mulheres, como pode ser vislumbrado na jurisprudência abaixo colacionada, do ano de 2001:

APELAÇÃO CRIMINAL - JÚRI - ABSOLVIÇÃO - LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA- IRRESIGNAÇÃO DO MP E ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO-IMPROCEDÊNCIA -VERSÃO DO RÉU RAZOAVELMENTE SUSTENTADA PELAS PROVAS - DECISÃO AMNTIDA - IMPROVIMENTO. Se a versão do réu encontra-se amparada, mesmo que razoavelmente, nas provas, onde testemunhas afirmam que a vítima tinha comportamento desregrado e em desacordo com a vida de casada, há que se dar crédito à motivação da prática do delito aludida pelo agente, mantendo-se a absolvição. (REsp n.º 203632, Relator (a): Min. FONTES DE ALENCAR, Sexta Turma, jullgado em 19/04/2001, DJ 19-12-2002) (BRASIL, 2001, GRIFO NOSSO)

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Dessa forma, vê-se que os tribunais pátrios acolheram as teses da Escola Positivista Italiana, que defendia ser o criminoso passional privado de seus sentidos por “certas paixões intensas que se assemelhavam ao estado de loucura, inibindo a imputabilidade penal” adotando modelos de comportamento típicos para os sexos. Rachel Soihet (in PRIORE: 2010, p. 382) expõe que:

[...]Os elementos envolvidos eram julgados muito mais pela adequação de seu comportamento às regras de conduta moral, consideradas legítimas, do que propriamente pelo ato criminoso em si igualmente, o modelo ideal de mulher que se distinguia nos autos era o de mãe, ser dócil e submisso cujo principal índice de moralidade era sua fidelidade e dedicação ao marido. (SOIHET, org. PINSKY; PRIORE, 2010, p. 382)

Apenas recentemente este pensamento foi abandonado pela doutrina, eis que a “violenta emoção” consta como circunstância meramente atenuante no artigo 65 do Código Penal, alínea “c” e que a defesa da honra não é mais considerada como elevado valor moral5; algumas cortes, inclusive, já tendo considerado o crime por ciúmes como portador da qualificadora de motivo torpe6, é apenas um não mais se justifica perante a existência de uma Lei que repele a misoginia e a violência contra a mulher.

3. A situação da mulher pobre no século XX no contexto da violência doméstica e familiar

5 Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...]III - ter o agente: [...] a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; [...] c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima;

6 Jurisprudência nos anexos deste trabalho

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Ainda na primeira metade do século XX, a situação das mulheres era ainda mais difícil. Na primeira metade deste século, especialmente, nos primeiros anos, a mulher era compreendida como uma extensão do direito de propriedade e poder masculinos, principalmente, para a burguesia em ascensão. Observando as poucas mudanças pelas quais passaram as mulheres das classes mais altas na sociedade burguesa, o testemunho da evolução da vida das mulheres é dado pelas classes mais pobres no meio urbano, em sua maioria por arquivos policiais e processos judiciários, que demonstram uma dinâmica diferente entre as classes sociais, principalmente, na primeira metade do século XX. Desta forma, Rachel Soihet narra que:

O Código Penal, o complexo judiciário e a ação policial eram os recursos utilizados pelo sistema vigente a fim de disciplinar, controlar e estabelecer normas para as mulheres dos segmentos populares. Nesse sentido, tal ação procurava se fazer sentir na moderação da linguagem dessas mulheres, estimulando seis “hábitos sadios e boas maneiras”, reprimindo seus excessos verbais. (SOIHET, org. PINSKY; PRIORE, 363)

Como prova de que a criminologia de viés positivista projetava-se com maior intensidade sobre as camadas mais pobres da população, consta, como principal fonte sobre a situação da mulher pobre de fins do século XIX e início do XX, processos em que estas mulheres figuravam como vítimas e rés, não ficando, em muitos deles, realmente clara sua posição. Desta forma:

Porém, a dificuldade em se obter fontes para buscar reconstruir a atuação das mulheres é desalentadora. Não existem registros organizados. No tocante ás mulheres pobres, analfabetas em sua maioria, a situação se agrava. Entretanto, no meio dessa aridez, a documentação policial e judiciária revela-se material privilegiado na tarefa de fazer vir à tona a contribuição feminina no processo histórico. (SOIHET org. PRIORE; PINSKY, 2010. P. 363-364)

Adquire importância esta ressalva acerca da condição da mulher pobre quanto à violência doméstica e familiar porque a formação das famílias mais humildes, em que muitas vezes a mulher era a única responsável pela renda doméstica, conferia mais empoderamento e poder de barganha no relacionamento. Também segundo Rachel Soihet: O estereótipo do marido dominador e da mulher submissa, próprio da família da classe dominante, não parece se aplicar in totum nas camadas subalternas.

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Muitas mulheres assumiam um comportamento negador de tal pressuposto. Algumas reagiam à violência, outras recusavam-se a suportar situações humilhantes chegando mesmo a abrir mão do matrimônio – instituição altamente valorizada para a mulher, na época. As condições concretas de existência dessas mulheres, cm base no exercício do trabalho e partilhando com seus companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíram para um forte sentimento de autorrespeito. Isso lhes possibilitou reivindicar uma relação mais simétrica, ao contrário os estereótipos vigentes acerca da relação homem/mulher que previam a subordinação feminina e aceitação passiva dos percalços provenientes da vida em comum. (SOIHET org. PINSKY; PRIORE; 2010, págs. 376/377)

Importaram-se, sem maiores reflexões acerca de seu conteúdo e efeitos, muitos do pensamento positivistas, herdando os preconceitos europeus da doutrina, o que, em um país como o Brasil, se converteu em uma verdadeira “cruzada penal” não só contra os mais pobres, mas também contra todos os que, de alguma forma, estavam excluídos da ordem burguesa hegemônica: mulheres, mestiços, negros, deficiente físicos e mentais, dentre outros. Os efeitos sentem-se hoje: a exclusão, realizada também através do direito, expressa-se pelas estatísticas de criminalidade entre as camadas sociais mais pobres, um resquício do positivismo que tende a voltar a fiscalização penal para os indivíduos com maiores chances de desvios. Luciano Santos Lopes sintetiza as ideias de Alessando Baratta a respeito:

Para o autor italiano (BARATTA, 1999, p. 175), a Justiça Penal somente administra a criminalidade, não dispondo de meios de combatê-la. Funciona apenas como selecionadora de sua clientela habitual nas classes trabalhadoras. O crime é um subproduto final do processo de criação e aplicação das leis, orientadas ideologicamente às classes dominantes. Percebe-se a negação total do mito do Direito Penal como igual, em que a lei protege todos. (LOPES, 2002, 74)

4. A Lei 9.099/1995 e a violência doméstica e familiar contra a mulher

A Lei 9.099, de 1995, estabeleceu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que julgariam os chamados Crimes de Menor Potencial Ofensivo e as Contravenções. A hermenêutica desta lei consolidou a classificação dos delitos de violência doméstica como de menor potencial ofensivo, expondo o machismo arraigado em sociedade, olvidando o fato de a violência doméstica ser afronta aos direitos humanos básicos e grande questão jurídica mundial. Desta forma, a questão da violência doméstica, quando foi recepcionada pela lei, era

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abordada de modo insuficiente, conforme descrevem Leila Adesse e Cecília de Mello e Souza: Os crimes relacionados à violência doméstica são (eram) analisados pelo Poder Judiciário com base nesta Lei, sendo considerados como de menor potencial ofensivo. Esta é uma das críticas que entidades que realizam atendimento de mulheres em situação de violência, grupos de feministas, organizações não governamentais e especialistas do tema fazem à aplicação da lei para casos de violência doméstica. A histórica reivindicação dos movimentos de mulheres em criminalizar a sempre banalizada violência contra a mulher caminha em sentido contrário ao da atribuição de menor potencialidade ofensiva. (ADESSE; SOUZA, 2005, p. 61).

Apenas com o advento da Lei 11.340/06, a competência foi retirada dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A Lei Maria da Penha, a ser abordada pormenorizadamente no capítulo seguinte veda7, inclusive, muitos dos institutos previstos pela Lei 9.099/95, dentre os quais a possibilidade de transação penal, o pagamento de multa como pena. Maria Berenice Dias retrada as circunstâncias à época de aplicação da Lei dos Juizados Especiais:

A Lei dos Juizados Especiais esvaziou as Delegacias da Mulher, que se viram limitadas a lavrar termos circunstanciados e encaminhá-los a juízo. Na audiência preliminar, a conciliação mais do que proposta, era imposta, ensejando simples composição de danos. Não obtido o acordo, a vítima tinha o direito de representar, nas precisava se manifestar na presença do agressor. Mesmo após a representação, e sem a participação da ofendida, o Ministério Público podia transacionar a aplicação da multa ou pena restritiva de direitos. (DIAS, 2007; p. 23)

7 Lei 11.340/2006. Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

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A LITERATURA COMO EXPRESSÃO DAS QUESTÕES DE GÊNERO E A LEI 11.340/2006

1. Um útero é do tamanho de um punho: a mulher dos anos 2000

Primeiramente, em relação ao título do livro em estudo, há uma alegoria célebre, muito repisada por escritores e dramaturgos, que consiste em afirmar que “um coração parece um punho ensanguentado” e que a simbologia de associação a sentimentos faz parte do imaginário popular. Usando desse adágio, a autora segue o mesmo propósito e afirma que “um útero é do tamanho de um punho/não pode dar soco (FREITAS: 2012, p. 61)”, aludindo à passividade associada às mulheres ao longo dos séculos pela figura do útero, símbolo da maternidade, como forma de redução da mulher apenas a esta característica. Estas metáforas, no entanto, de coração como sentimento e do útero como símbolo de feminilidade e maternidade, não se apagam assim tão facilmente e encadeiam outras associações nem sempre benéficas ao contexto do feminino. Desta forma, as considerações interpretativas feitas quando à poesia de Angélica Freitas resumem-se em três verbos, tantos quantos os poemas que integram o capítulo “3 Poemas com Auxílio do Google” de seu livro Um Útero É do Tamanho de um Punho: a mulher “vai” antes de pensar e “pensa” antes de “querer”, todos, de certa forma, dotados de orientações paradoxais em relação ao feminino. A ordem dos verbos na trilogia de poemas está longe de ser uma aleatoriedade. Pontuando esta ordem, a autora procura demonstrar o que se espera ainda hoje, que a mulher faça e como se comporte. Por ser muitas vezes associada a uma intuição primitiva, a mulher, muitas vezes com capacidade de julgamento e inteligência subestimados, “a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante (FREITAS: 2012, p. 71)”, sempre “vai” antes de pensar, já que “naturalmente” não é dedicada a elucubrações profundas; no entanto, suas ações, principalmente, na esfera afetiva e sexual, fazem com que a mulher pense e pondere muito antes de querer algo, no sentido do desejo primário, que restringe as ambições femininas, seja em relação aos apetites sexuais como na ascensão no mercado de trabalho. O verbo “pensar”, no poema, adquire a conotação de uma ideia persistente de culpa, desde a infância incutido na

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maioria das mulheres8. O desejo, ou “querer” feminino, é mascarado e usurpado em fórmulas midiáticas repletas de clichês, reproduzidos de modo irônico pelo poema; “a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar [do flamengo] (FREITAS, 2012, p. 72)”. É possível relacionar Baratta no âmbito sócio-jurídico às alusões de Freitas:

Não se compreendendo esse fato, não é possível desmistificar o círculo vicioso da ciência e do poder masculino que, sinteticamente, consiste em perpetuar, a um só tempo, as condições e as consequências das desigualdades sociais dos gêneros. Com efeito, as pessoas do sexo feminino tornam-se membros de um gênero subordinado, na medida em que, em uma sociedade e cultura determinadas, a posse de certas qualidades de o acesso a certos papéis vêm percebidos como naturalmente ligados somente a um sexo biológico, e não a outro. Esta conexão ideológica e não natural (ontológica) entre os dois sexos condiciona a repartição dos recursos e a posição vantajosa de um dos dois gêneros. (BARATTA, 1999, p. 21)

É preciso entender, antes de se passar mais profundamente às considerações jurídicas, o lugar do poeta e do escritor em sociedade. Muitas vezes o discurso é submetido a artimanhas do contexto, que maculam, inclusive, a interpretação dos escritos. Um texto que use figuras de linguagem, como metáforas e ironias, não raro é mal compreendido e elevado a patamares que o autor sequer ousou explorar. Na obra de Angélica é preciso explorar o flerte da poesia com uma fleumática ironia que norteia todo o livro e assim poder vislumbrar o desafio e a discordância das conexões ideológicas às quais se refere Alessando Baratta na citação supraescrita. O artifício de transmutar “as debilidades do sexo frágil” em “qualidades” femininas outrora associadas a sua incapacidade mental e à sua obrigatória submissão ao domínio masculino, ao contrário de retirar pesos e estigmas da figura da mulher do século XXI, reforça-os e perpetua preconceitos, a exemplo da ojeriza à figura da mulher tão somente absorta na vida profissional, vista como “incompleta” em obras artísticas e pelo senso comum. O ponto-chave da relação entre os conceitos trabalhados pela poetisa e o fenômeno deste tipo de crimes é que a violência doméstica/intrafamiliar e a violência de gênero como um todo advêm exatamente destes conceitos deturpados acerca do feminino. É a partir do pensamento de que a mulher é um ser inferior, um complemento da vida do homem a viver sob o jugo deste, que surgem os conflitos envolvendo violência doméstica: “um útero é do 8 “A mulher pensa que a culpa foi dela.”; FREITAS, 2012, p. 71.

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tamanho de um punho/não pode dar soco (FREITAS: 2012, p. 61)”, diz um dos poemas do livro. Falta a compreensão primária de que a mulher é tão sujeito de direito de obrigações quanto o homem, realidade relativamente nova realmente difícil de absorver após anos de um conservadorismo que chegava a extremos de tratar a mulher após o casamento como relativamente incapaz, como narrado no capítulo segundo deste trabalho. Também há as considerações acerca da honra feminina, centrada em sua sexualidade. A autora ironiza a relação da honra das mulheres ser atrelada à sua sexualidade no poema “Porque uma mulher boa”, versando que: “porque uma mulher boa/é uma mulher limpa [...] Há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas/não ladra mais, é mansa/é mansa e boa e limpa (FREITAS, 2012, p. 11)”. Acerca da caracterização da honra para o sexo feminino, Rachel Soihet esclarece que: A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento do próprio corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. Decorre daí o fato de as mulheres manterem com seu corpo uma relação matizada por sentimentos de culpa, de impureza, de diminuição, de vergonha de não ser mais virgem, de vergonha de estar menstruada etc. (SOIHET org. PINSKY; PRIORE, 2010, p. 389/390)

Eis que o caminho a ser trilhado seja o de “humanizar” o feminino, afastando os clichês que envolvem o gênero através de uma ampliação da educação da população, ao invés de apostar cartas num punitivismo residente em um Estado com o sistema carcerário falido. Como prática e crença social amplamente difundida, não há que se focar em “bodes expiatórios” para coibir e erradicar a violência contra a mulher, posto que esta linha de ação resulta inócua, eis que não foca na etapa de assistência a vítima, e sim na função retribuitiva da pena. É o que propõe uma das correntes majoritárias da criminologia crítica feminista, descrita por Marcela Rodriguéz: “encontrar critérios que permitam uma utilização do sistema penal orientada a uma intervenção penal mínima, mas discutindo qual é este campo mínimo de intervenção a partir de uma perspectiva de gênero (RODRÍGUEZ, 2000, p. 145)”. O Judiciário brasileiro tem aderido a novas correntes do direito penal, homogeneizadas como “criminologia crítica” e expressas com maior vulto pelas vozes de Alessandro Baratta e Eugenio Raul Zaffaroni. Para os delitos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher, tem-se que este ato não parte de uma “patologia social” como nos leva a crer o

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entendimento do direito penal dominante, e sim um comportamento natural entre todos os setores da sociedade. Baratta discorre sobre este fenômeno:

O funcionamento da justiça penal é altamente seletivo, seja no que diz respeito à proteção outorgada aos bens e aos interesses, seja no que concerne ao processo de criminalização e ao recrutamento da clientela do sistema (a denominada população criminal). Todo ele está dirigido, quase que exclusivamente, contra as classes populares e, em particular, contra os grupos sociais mais débeis, como o evidencia a composição social da população carcerária, apesar de que os comportamentos socialmente negativos estão distribuídos em todos os extratos sociais e de que as violações mais graves aos direitos humanos ocorrem por obra de indivíduos pertencentes aos grupos dominantes ou que fazem parte de organismos estatais ou organizações econômicas privadas, legais ou ilegais (BARATTA, 1987, p. 04).

No dia 7 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei Federal n.º 11.340/06 (conhecida como Lei Maria da penha), que entrou em vigor 45 dias após sua publicação, advinda das pressões para maior repressão aos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher vislumbrados no esforço pessoal de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica que fez de sua história pessoal a efígie de como a questão era (é) tratada pelo Estado brasileiro: com negligência e inferiorização da figura feminina, muitas vezes projetando a culpa da violência sofrida na própria vítima. Seu marido na época da ocorrência do crime, em 1983, o professor colombiano Marco Antonio Heredia Viveros tentou por duas vezes assassiná-la: a primeira vez atirou simulando um assalto, e na segunda tentou eletrocutá-la durante o banho. Por conta das agressões sofridas, a biofarmacêutica ficou paraplégica. A repercussão do caso, devido à demora no trâmite do processo (iniciado com o oferecimento da denúncia em 1984 e só julgado em 1991) e à impunidade do agressor, foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher formalizaram denúncia frente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. A CIDH solicitou, por 04 (quatro) vezes, informações acerca do processo ao Brasil, pedido que em nenhuma das vezes foi atendido. Então, o Brasil foi condenado internacionalmente em 2001: o Relatório da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas

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“simplificar os procedimento judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”. Assim, se explica porque a exposição de motivos deste diploma legal trata também de convenções internacionais em seu texto:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006)

Preliminarmente, pode-se vislumbrar, em análise apressada, a Lei 11.340/06 na contramão das tendências da criminologia crítica, que busca uma minimização da aplicação do direito penal em sociedade. Por outro lado, no seio desta discussão, surge a necessidade real de amparo à mulher vítima de violência, que antes recebia tutela judiciária totalmente inadequada por meio da Lei 9.099/95. Houve, então, um embate inicial acerca da pertinência da lei ao sistema brasileiro, bem como da avaliação de sua constitucionalidade. Os tinham a Lei Maria da Penha como inconstitucional alegavam premissas baseadas na igualdade formal, que, por óbvio, não garante maiores conquistas no âmbito de igualdade fática às mulheres. Ora, a igualdade formal em muito difere da igualdade jurídica material: assim não fosse, não haveria também, em nosso ordenamento, os Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso, bem como o Código de Defesa do Consumidor, diplomas que especificam tutelas já expressas no texto constitucional, de modo a transmutarem a igualdade meramente formal em igualdade fática. É preciso diferenciar as dimensões do conceito de igualdade, pois são comuns as distorções acerca da tutela de interesses jurídicos de indivíduos de alguma forma hipossuficientes. Renata R. Gomes (2012) esclarece este ponto:

Poder-se-ia dizer que o legislador constitucional opta por adotar um tratamento fundado na teoria da diferença-especificidade e não da diferençamérito, que, como esclarece Letizia Gianformaggio, trata-se de dois conceitos distintos, sendo a diferença-especificidade uma preocupação com respeito aos indivíduos, com a dignidade absoluta da pessoa, enquanto a diferença-mérito parece ocupar-se de um conceito meramente prescritivo, ou seja, parte da ideia de igualdade para todos em quaisquer circunstâncias, também chamada de igualdade formal. A teoria da diferença-especificidade ou, visto de outro ângulo, a especificação dos direitos das mulheres leva em consideração a igualdade inserida em um contexto prévio de opressão e

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discriminação, de maneira que tal especificação se traduz na tentativa de uma igualdade não só formal, mas substancial. (GOMES org, LEITE; WOLKMER, p. 83)

Não se pode deixar de observar que a Lei 11.340-06 carrega em si a previsão de atuação das equipes multidisciplinares, compostas de psicólogos e assistentes sociais, para lidar com a eventual estrutura familiar abalada pelos atos de violência 9, o que reforça o caráter misto desta legislação e abre caminhos para a adoção de políticas que previnam a violência doméstica e familiar contra a mulher, como versa Luciano Santos Lopes: “para um controle penal racional, o importante é ter um controle social não punitivo anterior que seja eficiente e que intervenha nas causas do crime”. Representando a mulher contemporânea da Lei 11.340/2006, o primeiro poema da trilogia representa o que seria um ciclo de vida geralmente esperado para uma mulher, com algumas quebras de expectativa que simbolizam o ponto de vista da autora, expressando, também, muitos dos julgamentos morais feitos a uma figura feminina que não se comporta como o esperado. Mesmo em outros capítulos isolados a poetisa joga luz ao principal problema da mulher moderna: seu empoderamento econômico pouco repercutiu nas relações domésticas, passando a mulher a apenas a representar papéis acumulados e a tentar limitar-se a clichês de revista feminina, vide “a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais” presente ao final da trilogia de poemas. O verso “a mulher pensa que a culpa foi dela” encontra tradução legal no inciso II do artigo 7º da Lei 11.340/06, que orienta, em rol exemplificativo, sobre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 7º. [...] II-a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (BRASIL, Lei 11.340 de 2006)

9 Lei 11.340/06. Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.

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2. Análise da interpretação da lei 11.340/2006 pelo Superior Tribunal de Justiça

De modo a simplificar o presente estudo, optou-se por pesquisar nas orientações jurisprudenciais do STJ as principais questões intricadas em relação à interpretação da Lei “Maria da Penha”. Como corte competente para dirimir controvérsias acerca do entendimento dado pelos tribunais pátrios para as questões legais a fim de uniformizar a jurisprudência, o STJ tem valiosas consolidações de entendimentos jurisprudenciais que demonstram uma interpretação mais benéfica às mulheres da lei 11.340/06; alguns dos quais, inclusive, dialogam com a criminologia crítica de Alessadro Baratta e Eugenio Raul Zaffaroni. Neste tópico, serão comentados os principais progressos em relação à interpretação da Lei Maria da Penha através da exposição de ementas de julgados que expressam as controvérsias e os avanços conquistados em relação a estas: 2.1. Retirada, pela Lei 11.340/2006, da competência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais para tratar dos delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONTRAVENÇÃO PENAL (VIAS DE FATO). ARTS. 33 E 41 DA LEI MARIA DA PENHA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA CRIMINAL. 1. Apesar do artigo 41 da Lei 11.340/2006 dispor que "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995", a expressão "aos crimes" deve ser interpretada de forma a não afastar a intenção do legislador de punir, de forma mais dura, a conduta de quem comete violência doméstica contra a mulher, afastando de forma expressa a aplicação da Lei dos Juizados Especiais. 2. Configurada a conduta praticada como violência doméstica contra a mulher, independentemente de sua classificação como crime ou contravenção, deve ser fixada a competência da Vara Criminal para apreciar e julgar o feito, enquanto não forem estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, consoante o disposto nos arts. 33 e 41 da Lei Maria da Penha. 3. Conflito conhecido para declarar-se competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Vespasiano, MG, o suscitado. (CC 102571, Relator(a): Min. JORGE MUSSI, Terceira seção, julgado em 13/05/2009, DJe 03-08-2009) (BRASIL, 2009c, grifo nosso)

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2.2. Vedação da suspensão condicional do processo, também se referindo ao procedimento antes aplicado pela Lei 9.099/1995:

HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. VIAS DE FATO. LEI MARIA DA PENHA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. VEDAÇÃO EXPRESSA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Esta Corte não deve continuar a admitir a impetração de habeas corpus (originário) como substitutivo de recurso, dada a clareza do texto constitucional, que prevê expressamente a via recursal própria ao enfrentamento de insurgências voltadas contra acórdãos que não atendam às pretensões veiculadas por meio do writ nas instâncias ordinárias. 2. Verificada hipótese de dedução de habeas corpus em lugar do recurso cabível, impõe-se o não conhecimento da impetração, nada impedindo, contudo, que se corrija de ofício eventual ilegalidade flagrante como forma de coarctar o constrangimento ilegal. 3. Alinhando-se à orientação jurisprudencial concebida no seio do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de serem inaplicáveis aos crimes e contravenções penais pautados pela Lei Maria da Penha, os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, dentre eles, a suspensão condicional do processo. 4. Impetração não conhecida.(STJ - HC: 196253 MS 2011/0022515-7, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 21/05/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/05/2013)

2.3. Dois pontos importantes merecem destaque na jurisprudência abaixo. Primeiro, a desnecessidade de coabitação para corporificar a intimidade, prevista no artigo 5º da Lei 11.340/06, que, mesmo presente em disposição expressa na lei, suscitou muitas controvérsias, principalmente a respeito da natureza da relação, pacificando-se o entendimento de que esta lei aplica-se também a namorados. Depois, a resposta dos tribunais às insistentes alegações de que as medidas protetivas que restringem o contato do agressor com a vítima seriam inconstitucionais por atentarem contra o direito e ir e vir e tipificarem o crime de constrangimento ilegal:

HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO ENTRE AUTORES E VÍTIMA. COABITAÇÃO. DESNECESSIDADE. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do habeas corpus, a fim de preservar a coerência do sistema recursal e a própria função constitucional do writ, de prevenir ou remediar ilegalidade ou abuso de poder contra a liberdade de

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locomoção. 2. O remédio constitucional tem suas hipóteses de cabimento restritas, não podendo ser utilizado em substituição a recursos processuais penais, a fim de discutir, na via estreita, temas afetos a apelação criminal, recurso especial, agravo em execução, tampouco em substituição a revisão criminal, de cognição mais ampla. A ilegalidade passível de justificar a impetração do habeas corpus deve ser manifesta, de constatação evidente, restringindo-se a questões de direito que não demandem incursão no acervo probatório constante de ação penal. 3. A Terceira Seção deste Superior Tribunal afirmou que o legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, teve em conta a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica em relações patriarcais. Ainda, restou consignado que o escopo da lei é a proteção da mulher em situação de fragilidade/vulnerabilidade diante do homem ou de outra mulher, desde que caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade (CC n. 88.027/MG, Ministro Og Fernandes, DJ 18/12/2008). 4. A intenção do legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, foi de dar proteção à mulher que tenha sofrido agressão decorrente de relacionamento amoroso, e não de relações transitórias, passageiras, sendo desnecessária, para a comprovação do aludido vínculo, a coabitação entre o agente e a vítima ao tempo do crime. 5. No caso dos autos, mostra-se configurada, em princípio, uma relação íntima de afeto entre autores e ofendida, pois, além de os agressores já terem convivido com a vítima, o próprio paciente (pai da vítima) declarou, perante a autoridade policial, que a ofendida morou com ele por algum tempo, tendo inclusive montado um quarto em sua residência para ela. 6. Para a incidência da Lei Maria da Penha, faz-se necessária a demonstração da convivência íntima, bem como de uma situação de vulnerabilidade da mulher, que justifique a incidência da norma de caráter protetivo, hipótese esta configurada nos autos. 7. Para efetivamente verificar se o delito supostamente praticado pelos pacientes não guarda nenhuma motivação de gênero nem tenha sido perpetrado em contexto de relação íntima de afeto, seria necessário o revolvimento de matéria fático-probatória, o que, conforme cediço, não é cabível no âmbito estrito do writ. 8. Habeas corpus não conhecido. (STJ - HC: 181246 RS 2010/0143266-0, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 20/08/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/09/2013)

2.4. Os crimes de lesão corporal de natureza leve antes careciam de representação da vítima para serem devidamente processados. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade citada na ementa abaixo, o artigo 41 da Lei 11.340/2006 foi interpretada como de acordo com a Constituição, tornando qualquer modalidade de lesão corporal (leve ou grave) de ação penal pública incondicionada nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI MARIA DA PENHA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ADI N. 4424/DF. EFEITOS EX TUNC. 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.424/DF, em 09/02/2012, conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 41 da Lei 11.340/06, para assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão

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corporal praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. Não tendo o Excelso Pretório realizado a modulação dos efeitos daquele julgamento, nos termos do art. 27 da Lei n.º 9.868/1999, aplica-se ao caso a regra segundo a qual a decisão, além de ter eficácia erga omnes, tem efeitos retroativos (ex tunc), aplicando-se aos casos ocorridos anteriormente ao à prolação do referido aresto. 3. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no REsp: 1406625 RJ 2013/0328243-9, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 10/12/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2013)

3. Criminologia crítica e Lei 11340/2006

As análises das teorias da criminologia crítica feminista não se tratam, é importante explicitar, de apostar na impunidade de agressores ou em investir em uma política penal punitivista. Os pontos-chave não são estes. A problemática central na questão da violência doméstica e familiar contra a mulher na visão positivista acerca do réu em crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher é a consideração de que o autor destes delitos (como os demais criminosos perante a sociedade) é um “monstro” alijado do restante da comunidade, desconectando seus atos do machismo e do patriarcalismo tão comuns na sociedade brasileira. Esse viés do “bode expiatório” apenas alimenta um sistema penal cada vez deficitário e incapaz de recuperar os que delinquem, já que sequer entendem o porquê da criminalização de sua conduta. Luciano Santos Lopes narra a descrição de Baratta a respeito da criminologia crítica: Para Baratta (1999, p. 215), a tarefa primeira da criminologia crítica: ‘[...] não é realizar as receitas da política criminal, mas problematizar a questão criminal, o sistema penal, mecanismos de seleção, enfim, uma análise político-econômica da situação, para avaliar as respostas possíveis à situações sociais postas, formulando uma construção alternativa dos problemas sociais ligados ao fenômeno da criminalidade’. (LOPES, 2002, p. 74)

Também não é o objetivo direcionar os ensinamentos da criminologia crítica para uma redução de medidas aptas a coibir a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Esta ciência não aposta nisso. O que está em análise é a superestrutura que gerou o clamor social pela Lei 11.340/2006. Até os anos 2000, mesmo já com a nova ordem constitucional em voga, os direitos da mulher, principalmente, na área penal, eram desprezados pelo ordenamento, visto que era

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interessante para a classe dominante ignorar este ponto tão delicado. Os direitos humanos, natureza dos direitos da mulher, são assim concebidos pela criminologia crítica de Alessandro Baratta: O conceito de direitos humanos assume, nesse caso, uma dupla função. Em primeiro lugar, uma função negativa concernente aos limites da intervenção penal. Em segundo lugar, uma função positiva a respeito da definição do objeto, possível, porém não necessário, da tutela por meio do direito penal. (BARATTA, 1987, p. 03)

Com o advento de uma nova ordem em perspectiva mundial, a posição de ignorar os direitos femininos cessou aos poucos e passou a ser estratégico, após recomendação expressa da OEA, possuir uma lei que oferecesse proteção à mulher brasileira vítima de violência. Note-se que, de 1983, ano em que ocorreram os crimes contra Maria da Penha, até a sua vigência da lei, em 2006, passaram 24 anos. E, com o advento deste diploma legal, vislumbram-se maiores registros de Boletins de Ocorrência, inquéritos policiais e processos entre nas camadas mais pobres da população, o que conduz à falsa ideia de que não existe violência doméstica entre as classes mais abastadas ou que, se há, é um fenômeno isolado em alguns lares infelizes. Maria Berenice Dias desmonta este conceito:

Nem sempre é por necessidade de sustento ou por não ter condições de prover sozinha a própria existência que ela se submete e não denuncia as agressões de que é vítima. Em seu íntimo, se acha merecedora da punição por ter desatendido as tarefas que acredita serem de sua exclusiva responsabilidade. Um profundo sentimento de culpa a impede de usar a queixa xcm forma de fazer cessar a agressão. (DIAS, 2007, p. 18)

A posição da vítima, inserida em uma relação íntima de afeto com o réu, também se vê prejudicada ao final dos processos, já que é sempre objetificada em relação ao restante da sociedade, quando não é responsabilizada também pelas agressões de que é vítima. Em casos de delitos de violência doméstica e familiar, os problemas se avolumam, pois a ofendida continuará, por certo, tendo algum convívio com o agressor com quem provavelmente formou uma família. Ao ser tratada como ser sempre passivo, a dinâmica das relações familiares é ignorada, não se percebendo, por exemplo, que a vítima possa resistir contra a violência que sofre. É o que afirma BARATTA, ao esclarecer sobre o princípio do primado da vítima:

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A posição da vítima no sistema está atualmente no centro da atenção dos estudiosos. Têm sido postas em relevo as graves distorções que o sistema penal apresenta quando é avaliado do ponto de vista dos interesses da vítima; o direito penal permite comprovar, em particular quando se reflete sobre o papel da vítima no processo, a quase total expropriação do direito de articular seus próprios interesses (D. Krauss, 1984). Em regra, resulta injustificada a pretensão do sistema penal de tutelar interesses gerais que vão além dos da vítima. Desse ponto de vista, tem sido indicado com a denominação programática de “privatização dos conflitos”, um caminho para o qual se pode orientar com êxito uma estratégia de descriminalização que abarque boa parte dos conflitos sobre os quais incide a lei penal. (L. Hulsman, 1982; N. Cristie, 1977) Substituir, em parte, o direito punitivo pelo direito restitutivo, outorgar à vítima e, mais em geral, a ambas as partes dos conflitos individuais maiores prerrogativas, de maneira que possam estar em condições de restabelecer o contato perturbado pelo delito, assegurar em maior medida os direitos de indenização das vítimas são algumas das mais importantes indicações para a realização de um direito penal da mínima intervenção e para lograr diminuir os custos sociais da pena. (BARATTA, 1987, p. 12)

Mesmo porque, em especial em relação aos crimes de natureza sexual que costumam permear a atmosfera de violência doméstica e familiar quando o agressor é marido/companheiro/namorado da vítima, esta é quem se transfere, de fato, ao banco dos réus. Embora a expressão “mulher honesta” tenha sido retirada do ordenamento jurídico há mais de oito anos, a cultura de culpabilização da vítima pela agressão sexual sofrida persiste nos costumes da sociedade brasileira. A Lei Maria da Penha não destoa das orientações da criminologia crítica feminista e é frutífera em indicar o trabalho em várias frentes: além da assistência jurídica, a vítima deve conta com auxílio de assistentes sociais e psicólogos, de modo que a família eventualmente constituída não seja abalada pela violência doméstica, evidenciando que, mesmo representando um paradoxo à crescente acepção do direito penal mínimo, busca alternativas para coibir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. São ainda bastante modestos os investimentos em campanhas que de fato esclareçam sobre a questão da violência familiar. No entanto, não se pode apagar a importância da previsão de medidas que evitem a reiteração da conduta criminosa, dado o que já se explanou acerca da criminalização da violência doméstica, outrora aceita no país como a simples expressão dos costumes machistas e patriarcais da sociedade de herança cultural ibérica. Desta forma:

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Uma pena pode ser cominada somente se pode provar-se que não existem modos não penais de intervenção aptos para responder a situações nas quais se acham ameaçados os direitos humanos. Não basta, portanto, haver provado a idoneidade da resposta penal; requer-se, também, demonstrar que essa não é substituível por outros modos de intervenção de menor custo social. (Baratta, 1987, p. 09)

O Superior Tribunal de Justiça tem arrolado em decisões recentes orientações que coadunam com as tentativas de aumentar a eficácia da Lei 11.340/2006, seguindo preceitos baseados na criminologia crítica feminista, como o primado da vítima (primeira notícia) e a subsidiariedade de aplicação do direito penal (segunda notícia), entendendo que as Medidas Protetivas de Urgência têm caráter civil. No portal desta corte, duas notícias recentes informam que: -STJ afasta decadência e mantém representação feita mais de seis meses após conhecimento do crime10: caso de violência doméstica em que uma mulher incapaz foi estuprada pelo cunhado. Representação realizada por uma de suas irmãs, ocorrendo retratação desta logo depois. O pai da vítima, ao saber da retratação da representação, representou novamente contra o réu. Esta representação, segundo o Ministro Jorge Mussi, “afastou a decadência, que têm como uma de suas finalidades a pacificação das relações sociais em razão do decurso de determinado tempo para a apuração de fatos delituosos, desde que esse período possa ser atribuído ao desinteresse ou até mesmo à desídia do representante legal da vítima – o que, de fato, não ocorreu na hipótese em apreço”. - STJ admite aplicação preventiva da Lei Maria da Penha em ação cível11: a notícia narra a aplicação de uma Medida Protetiva de Urgência 12 em processo cível, sem a preexistência de inquérito policial. No caso, uma mãe sofria violência por parte de um dos filhos, que manifestava com agressões o descontentamento por ter sido preterido por doações em vida feitas pelos pais aos irmãos. No processo, pugnou-se por medidas protetivas, negadas em primeira instância. Contudo, o Tribunal de Justiça de Goiás reformou uma sentença de primeira instância e aplicou as Medidas Protetivas, afirmando que elas possuem caráter civil. Em relação aos crimes relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher, estes entendimentos apresentam uma inegável evolução. No primeiro caso, ao suspender e 10 Notícia nos anexos. Número não divulgado, processo tramitando em segredo de justiça. 11 IDEM 12 Artigos 18 a 24 da Lei 11.340/2006

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flexibilizar os efeitos da decadência e da prescrição nos crimes de ação pública condicionada à representação e aos crimes de ação privada, respectivamente, analisa-se, em primeiro plano, a condição da vítima, tornando maleável o prazo se os conflitos não alcançarem o apaziguamento esperado nos 06 (seis) meses de praxe concedidos pela lei penal. De Giorgi explica o motivo da necessidade constante de flexibilização do direito penal, em razão de suas próprias falhas conjunturais, forçando, aos poucos, a reformulação de conceitos e soluções:

Os programas devem ser reformulados no curso de sua realização porque o ambiente se revela muito complexo ou porque, com sua atuação, arrisca-se perder o consenso que lhes dava sustentação. Tudo isto é despejado no direito, que é sobrecarregado de tarefas que não pode efetuar, particularmente do ônus de tratar juridicamente os conflitos produzidos pelas contraditórias projeções normativas da política.(DE GIORGI, 2006, p.131)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente trabalho, foram feitas análises históricas, sociológicas, literárias e jurídicas com o fito de visualizar as questões de gênero na centralidade inferiorização da mulher. O estudo iniciou-se com a demonstração dos pontos de interseção de direito e literatura, demonstrando de que forma o ofício literário pode auxiliar no direito e mesmo a auxiliar na compreensão dos textos legais como forma literária. O segundo grande ponto da abordagem foi a situação jurídica pretérita das mulheres, relatando, através do contexto do conto “I Love my Husband”, de Nélida Piñon, as particularidades de um matrimônio anterior à Lei 11.340/2006 permeado pela violência doméstica e familiar. O segundo capítulo do presente trabalho buscou, ainda, demonstrar de que modo a criminologia positivista refletiu no direito penal brasileiro, e como os diversos setores da população, em especial a mulher vítima de violência, foram impactados por esta influência. Evidenciou-se, ao final do capítulo, que a maior fonte de informação acerca das mulheres no início do século XX, principalmente, mulheres pobres, parte da população marginalizada, era obtida por meio de inquéritos policiais e processos judiciais. A última abordagem foi o advento da lei 11.340/06, com análise jurisprudencial para demonstrar as principais mudanças trazidas pela Lei Maria da Penha e de que forma as modificações contribuíram para maior eficácia e efetividade da Lei 11.340/2006. Segue-se a abordagem acerca das reações ao positivismo e o advento da criminologia crítica como alternativa ao determinismo físico, biológico e social pregado pelos positivistas. Soma-se a estes tópicos a análise de aplicações pelo Superior Tribunal de Justiça de princípios oriundos da criminologia crítica feminista, o que, nos casos concretos analisados, mostrou-se benéfico para as vítimas de violência. O estudo demonstrou que as correntes de pensamento acerca do direito variam de acordo com as tendências sociais: quando a mulher conquistou sua emancipação no setor econômico, precípua no sistema capitalista, passou a demandar seu reconhecimento como sujeito de direito. O Brasil, pressionado pela ordem internacional, editou suas normas de modo a promover uma maior proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. No entanto, com o advento desta lei, muitos obstáculos interpretativos lançaram-se pelo caminho, o que

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exigiu da Lei e da jurisprudência interpretações que garantissem a tutela dos interesses da mulher em situação de violência, de acordo com o princípio do primado dos interesses da vítima exposto por Alessandro Baratta (Revista Doctrina Penal, De Palma, Buenos Aires, 1987). Desta forma, muitas das soluções apontadas pelo Superior Tribunal de Justiça para dirimir os conflitos jaziam nos conceitos e princípios oriundos da criminologia crítica feminista (esta, centrada em legislações em que a mulher figura, seja como autora de delitos, seja como vítima destes), como se evidenciou através da exposição de notícias recentes a respeito de processos em julgamento por esta Colenda Corte. Assim, caracterizam-se sólidas as considerações iniciais feitas a respeito da literatura como reflexo social do patriarcalismo e machismo da sociedade brasileira e sua função como documento da realidade, apontando, inclusive, aspectos da subjetividade humana que podem parecer demasiado intricados para adentrarem no âmbito do direito; porém, como este é uma ciência humana, deve pautar-se na subjetividade e na compreensão destes referidos aspectos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS ANEXO A

I love my husband Nélida Piñon Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente nosábado. Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas evisíveis. A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento. O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum. Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto.

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Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas. Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal? Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara

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as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte. Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar. Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo. Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a

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juventude. Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido como mulher. Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família. Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.

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Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peçolhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoarme à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato. Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho. E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

ANEXO B 3 POEMAS COM O AUXÍLIO DO GOOGLE Angélica Freitas a mulher vai a mulher vai ao cinema a mulher vai aprontar

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a mulher vai ovular a mulher vai sentir prazer a mulher vai implorar por mais a mulher vai ficar louca por você a mulher vai dormir a mulher vai ao médico e se queixa a mulher vai notando o crescimento do seu ventre a mulher vai passar nove meses com uma criança [na barriga a mulher vai realizar o primeiro ultrassom a mulher vai para a sala de cirurgia e recebe a [anestesia a mulher vai se casar ter filhos cuidar do marido [e das crianças a mulher vai a um curandeiro com um grave problema [de hemorroidas a mulher vai se sentindo abandonada a mulher vai gastando seus folículos primários a mulher vai se arrepender até a última lágrima a mulher vai ao canil disposta a comprar um cachorro a mulher vai para o fundo da caminhoneta e senta-se [choramingando a mulher vai colocar ordem na casa a mulher vai ao supermercado comprar o que é [necessário a mulher vai para dentro de casa para preparar a mesa a mulher vai desistir de tentar mudar um homem a mulher vai mais cedo para a agência a mulher vai pro trabalho e deixa o homem na cozinha a mulher vai embora e deixa uma penca de filhos a mulher vai sair com outro a mulher vai ganhar um lugar ao sol a mulher vai poder dirigir no afeganistão. a mulher pensa a mulher pensa com o coração a mulher pensa de outra maneira a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante a mulher pensa será em compras talvez a mulher pensa por metáforas a mulher pensa sobre sexo a mulher pensa mais em sexo a mulher pensa: se fizer isso com ele, vai achar que [faço com todos a mulher pensa muito antes de fazer besteira a mulher pensa em engravidar a mulher pensa imediatamente que pode estar

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[grávida a mulher pensa mais rápido, porém o homem [não acredita a mulher pensa que sabe sobre homens a mulher pensa que deve ser uma “supermãe” perfeita a mulher pensa primeiro nos outros a mulher pensa em roupas, crianças, viagens, [passeios a mulher pensa não só na roupa, mas no cabelo, [na maquiagem a mulher pensa no que poderia ter acontecido a mulher pensa que a culpa foi dela a mulher pensa em tudo isso a mulher pensa emocionalmente. a mulher quer a mulher quer ser amada a mulher quer um cara rico a mulher quer conquistar um homem a mulher quer um homem a mulher quer sexo a mulher quer tanto sexo quanto o homem a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça [lentamente a mulher quer ser possuída a mulher quer um macho que a lidere a mulher quer casar a mulher quer que o marido seja seu companheiro a mulher quer um cavalheiro que cuide dela a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar a mulher quer conversar para a discutir a relação a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar [do flamengo a mulher quer apenas que você escute a mulher quer algo mais que isso, quer amor, carinho a mulher quer segurança a mulher quer mexer no seu e-mail a mulher quer estabilidade a mulher quer nextel a mulher quer ter um cartão de crédito a mulher quer tudo a mulher quer ser valorizada e respeitada a mulher quer se separar a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais a mulher quer se suicidar.

ANEXO C

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São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

Para juiz, proteção à mulher é "diabólica" Edilson Rodrigues considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha, contra violência doméstica, e afirmou que o mundo é masculino Segundo ele, homens que não quiserem ser envolvidos nas "armadilhas" dessa lei, que considera "absurda", terão de se manter "tolos" SILVANA DE

FREITAS

DA SUCURSAL DE

BRASÍLIA

Alegando ver "um conjunto de regras diabólicas" e lembrando que "a desgraça humana começou por causa da mulher", um juiz de Sete Lagoas (MG) considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha e rejeitou pedidos de medidas contra homens que agrediram e ameaçaram suas companheiras. A lei é considerada um marco na defesa da mulher contra a violência doméstica. "Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!” A Folha teve acesso a uma das sentenças do juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues que chegou ao Conselho Nacional de Justiça. Em 12 de fevereiro, sugeriu que o controle sobre a violência contra a mulher tornará o homem um tolo. "Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões." Também demonstrou receio com o futuro da família. "A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado." Ele chama a lei de "monstrengo tinhoso". Rodrigues criticou ainda a "mulher moderna, dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a não ser dos espermatozóides". Segundo a Folha apurou, o juiz usou uma sentença-padrão, repetindo praticamente os mesmos argumentos nos pedidos de autorização para adoção de medidas de proteção contra mulheres sob risco de violência por parte do marido. A Folha procurou ouvi-lo. A 1ª Vara Criminal e de Menores de Sete Lagoas informou que ele está de férias e que não havia como localizá-lo. Sancionada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) aumentou o rigor nas penas para agressões contra a mulher no lar, além de fornecer instrumentos para ajudar a coibir esse tipo de violência. Seu nome é uma homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia, agredida seguidamente pelo marido. Após duas tentativas de assassinato em 1983, ela ficou paraplégica. O marido, Marco Antonio Herredia, só foi preso após 19 anos de

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julgamento e passou apenas dois anos em regime fechado. Em todos os casos em suas mãos, Rodrigues negou a vigência da lei em sua comarca, que abrange oito municípios da região metropolitana de Belo Horizonte, com cerca de 250 mil habitantes. O Ministério Público recorreu ao TJ (Tribunal de Justiça). Conseguiu reverter em um caso e ainda aguarda que os outros sejam julgados. ANEXO D APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. RÉU CONDENADO PELA PRÁTICA DE HOMICÍDIO DOLOSO QUALIFICADO PELO MOTIVO TORPE. CRIME COMETIDO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DOMÉSTICAS. PLEITO DEFENSIVO DE ANULAÇÃO DA DECISÃO POR SER MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS NO DECORRER DO PROCEDIMENTO ESCALONADO. RÉU CONFESSO. LEGÍTIMA DEFESA PRÓPRIA E DA HONRA REJEITADAS PELOS JURADOS MEDIANTE RESPOSTA NEGATIVA AO QUESITO GENÉRICO DE ABSOLVIÇÃO. SITUAÇÃO RETRATADA NOS AUTOS QUE NÃO SE AMOLDA AOS REQUISITOS DO ART. 25 DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE QUE O DECISUM SE BASEOU EM DECLARAÇÕES PRESTADAS POR PESSOAS LIGADAS À VÍTIMA. LIVRE APRECIAÇÃO DAS PROVAS. JURADOS QUE OPTARAM POR UMA DAS VERSÕES DEDUZIDAS EM PLENÁRIO E QUE ESTÁ ESCORADA EM PROVAS SUBSTANCIOSAS. QUALIFICADORA DO MOTIVO TORPE. CIÚME QUE NÃO PODE SER DESCONSIDERADO PARA A CARACTERIZAÇÃO DA EXASPERADORA SE OS JURADOS ASSIM ENTENDERAM. CLÁUSULA DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS QUE ABARCA TAL INTERPRETAÇÃO. APELANTE QUE DEMONSTRAVA POSSESSIVIDADE EXTREMA, PLENAMENTE DEMONSTRADA NO CONTEXTO PROBATÓRIO. EXASPERADORA MANTIDA. "Definir se o ciúme constitui ou não motivo torpe não guarda nenhuma relação com a questão probatória propriamente dita. Trata-se de tema que já resvala para o juízo de valoração subjetiva dos jurados, seara interditada à revisão da instância recursal em obséquio ao princípio constitucional da soberania dos veredictos [...]" (Des. Newton Janke). DOSIMETRIA - PENA FIXADA DE ACORDO COM OS PARÂMETROS LEGAIS - QUANTUM INALTERADO. RECURSO NÃO PROVIDO. (Ap. Crim. 2009.007898-3, Rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho - j. 22.4.2009). JULGAMENTO ARBITRÁRIO NÃO CARACTERIZADO. INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 5º, INC. XXXVIII, ALÍNEAS C E D, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.(TJ-SC - APR: 20130599442 SC 2013.0599442 (Acórdão), Relator: Sérgio Rizelo, Data de Julgamento: 04/11/2013, Segunda Câmara Criminal Julgado) PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. EXCLUDENTE DE ILICITUDE INEXISTENTE. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. QUALIFICADORA DO MOTIVO TORPE E EMBOSCADA. IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO. CIRCUNSTÂNCIAS SUFICIENTES PARA CONFIGURAR AS QUALIFICADORAS. IN DÚBIO PRO SOCIETATE. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A alegada legítima defesa da honra não configura causa excludente de ilicitude, de forma que não é apta a propiciar a absolvição sumária do acusado. 2. A denúncia descreve que o réu matou a vítima porque "ela se negava a reatar o relacionamento amoroso que haviam rompido meses antes, agindo,

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portanto, por motivo torpe", ou seja, existem fortes indicativos de que essa recusa da vítima levou o acusado a cometer o delito, portanto, motivado pelo sentimento de vingança. 3. À luz do contido na prova dos autos pode-se afirmar que o acusado efetivamente esperou que a vítima passasse por ele para que pudesse colhê-la desprevenida, o que caracteriza, ao menos, indício da qualificadora de emboscada, de modo que, uma vez que existem dúvidas quanto a forma de ação do réu, e como nesta fase vigora o princípio do in dubio pro societate, as dúvidas persistentes devem ser dirimidas pelo Tribunal do Júri, órgão constitucionalmente instituído para julgar os crimes dolosos contra a vida. (TJ-PR - RECSENSES: 6490586 PR 0649058-6, Relator: Denise Hammerschmidt, Data de Julgamento: 01/07/2010, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 435) ANEXO E STJ admite aplicação preventiva da Lei Maria da Penha em ação cível 12/02/2014 - 07h11 Pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) em ação cível, sem existência de inquérito policial ou processo penal contra o suposto agressor. A decisão é da Quarta Turma. Para o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, a agregação de caráter cível às medidas protetivas à mulher previstas na Lei Maria da Penha amplia consideravelmente a proteção das vítimas de violência doméstica, uma vez que essas medidas assumem eficácia preventiva.

“Parece claro que o intento de prevenção da violência doméstica contra a mulher pode ser perseguido com medidas judiciais de natureza não criminal, mesmo porque a resposta penal estatal só é desencadeada depois que, concretamente, o ilícito penal é cometido, muitas vezes com consequências irreversíveis, como no caso de homicídio ou de lesões corporais graves ou gravíssimas”, ponderou Salomão. Ainda segundo o ministro, “franquear a via das ações de natureza cível, com aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha, pode evitar um mal maior, sem necessidade de posterior intervenção penal nas relações intrafamiliares”. O caso A ação protetiva dos direitos da mulher foi ajuizada por uma senhora contra um de seus seis filhos. Segundo o processo, após doações de bens feitas em 2008 por ela e o marido aos filhos, um deles passou a tratar os pais de forma violenta, com xingamentos, ofensas e até

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ameaças de morte. O marido faleceu. Com a ação, a mulher pediu a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Queria que o filho fosse impedido de se aproximar dela e dos irmãos no limite mínimo de cem metros de distância, e de manter contato com eles por qualquer meio de comunicação até a audiência. Queria ainda a suspensão da posse ou restrição de porte de armas. Em primeira instância, o processo foi extinto sem julgamento de mérito. O juiz considerou que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha têm natureza processual penal e são vinculadas a um processo criminal. Não há ação penal no caso. O Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) reformou a sentença e aplicou as medidas protetivas, por entender que elas têm caráter civil. O filho apontado como agressor recorreu ao STJ contra essa decisão. Natureza cível Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, a Lei Maria da Penha permite a incidência do artigo 461, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil (CPC) para concretização das medidas nela previstas. Ele entendeu que, de forma recíproca e observados os requisitos específicos, é possível a aplicação da Lei 11.340 no âmbito do processo civil. Seguindo o voto do relator, a Turma decidiu, por unanimidade de votos, que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, observados os requisitos para concessão de cada uma, podem ser pedidas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. Nessa hipótese, as medidas de urgência terão natureza de cautelar cível satisfativa. O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

DECISÃO STJ afasta decadência e mantém representação feita mais de seis meses após conhecimento do crime 07/03/2014 - 07h42 A decadência do direito de representação – para que um crime seja investigado e vire ação penal – exige que haja desinteresse e inércia de quem pode exercer esse direito. Para a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), peculiaridades de cada caso podem impedir que a decadência ocorra no prazo de seis meses a contar do conhecimento dos fatos a serem

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apurados. Essa é a situação em um habeas corpus julgado pela Turma, impetrado por um homem condenado a seis anos de reclusão por estupro de pessoa com deficiência mental. Ele é cunhado da vítima. A defesa alega que ele estaria sendo alvo de constrangimento ilegal porque a punibilidade deveria ser declarada extinta, ante a decadência do direito de representação, indispensável para a abertura de ação penal. Essa decadência teria ocorrido, segundo a defesa, porque a irmã da vítima se retratou da representação apresentada. Depois disso, o pai da vítima manifestou o interesse pela responsabilização penal do acusado, o que ocorreu mais de seis meses depois do conhecimento dos fatos. Segundo o processo, a vítima, portadora de deficiência mental, foi estuprada pelo cunhado (marido de uma irmã), em janeiro de 2007. Outra irmã da vítima foi à delegacia e representou contra o cunhado. Sete meses depois, a autora da representação se retratou. Ao saber disso, o pai da vítima, com mais de 80 anos à época, foi à delegacia e disse que não se manifestou anteriormente porque uma de suas filhas já o havia feito. Como representante legal da ofendida, ele representou pela instauração da ação penal. Extinção da punibilidade Para o relator do caso, ministro Jorge Mussi, as peculiaridades do caso afastam a extinção da punibilidade. “Conquanto a representação formulada pelo genitor da ofendida tenha sido formalizada após o prazo decadencial de seis meses previsto no artigo 38 do Código de Processo Penal, o certo é que o caso dos autos possui peculiaridades que impedem o reconhecimento da extinção da punibilidade”, afirmou. Ele levou em consideração o fato de que o pai só não compareceu à delegacia anteriormente porque outra filha já havia representado para que fosse iniciada a persecução penal. Apenas em razão da retratação desta é que o pai, em menos de uma semana, manifestou o interesse no prosseguimento das investigações e na deflagração da ação penal. Mussi destacou que a lei prevê que, quando os interesses do representante legal colidem com o do menor de 18 anos ou deficiente mental, o direito de queixa pode ser exercido por curador especial, nomeado de ofício pelo juiz ou a requerimento do Ministério Público.

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“Assim, a exemplo do que ocorre nos casos em que há nomeação de curador especial, em que o prazo decadencial para o exercício do direito de representação é contado a partir da ciência de sua nomeação, na hipótese dos autos não se pode afirmar, como pretendem os impetrantes, que o pai da vítima deveria ter formalizado sua representação desde que teve ciência dos fatos”, explicou o

relator.

Interesse Jorge Mussi ressaltou que os institutos da decadência e da prescrição têm como uma de suas finalidades a pacificação das relações sociais em razão do decurso de determinado tempo para a apuração de fatos delituosos, desde que esse período possa ser atribuído ao desinteresse ou até mesmo à desídia do representante legal da vítima – “o que, de fato, não ocorreu na hipótese em apreço”. Segundo o ministro, havendo evidências nos autos de que a família da vítima, pessoa portadora de doença mental, manifestou seu interesse na persecussão penal, não há como concluir que houve qualquer tipo de inércia capaz de lhe retirar o direito de representação.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

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