A maldição do poeta

May 30, 2017 | Autor: Danillo Macedo | Categoria: Literature, Poetry, Poems
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A maldição do poeta

Dizem que os melhores remédios são os mais amaros
Que cada badalada que fere fortalece
E se fortalece irrompendo-se com mais força
Até que o último golpe abrigue o peito com o cobertor lascivo da morte

Dizem que Satã vive em nossa sombra
Como aquela que se veste de policial e persegue a consciência do bandido
Ou aquela que envolve o suicida no alvéolo da culpa
Embora ainda não foi desvendado como seria possível ao suicida manifestar
seu provável arrependimento

Não sei descrever a dinâmica de cada um dos meus erros
Se sou tão constante em não acertar o alvo é porque nasci com as mãos
tortas
Ou porque vejo o ponto central dos alvos em outros lugares
Talvez eu devesse curar os olhos ao invés de tentar desentortar minhas
aparentes mãos ressequidas

Se não escrevi nada direito é porque não aprendi mais que 26 letras do
alfabeto
Vai ver tem mais uma centena de letras secretas por ai
E é por não sabê-las que somos burros, aprendendo tudo ao contrário
E fazendo tudo ao contrário
Já que tudo tem de ser mediado pelas palavras
E as coisas só existem porque somos capazes de dizê-las
Ou melhor, elas só aparecem quando somos capazes de vesti-las com trajes
feitos de termos quaisquer
Mas elas estão sempre ali, tímidas
Logo, tudo existe num sem tempo ou num tempo que não passa
Estanque
Latente
Mesmo quando não somos capazes de metamorfosear algo nalguma partícula
incompleta de discurso
Porque para isso existe o silêncio, que não é ausência de termos
Senão todas as expressões, ao mesmo tempo, adormecidas
Esperando alguém colher uma ou algumas delas e transformá-las em qualquer
coisa da qual se pode dizer que "existe"
Sendo isto a existência de qualquer coisa: silêncio violado

Se não digo, pois, apenas adormece
Assim para o que não vejo
Apenas adormece

E o que vejo quando vejo é apenas isto: escuridão violada

E o mesmo para o que sei: a ignorância infinita, violada, e dela trazida
qualquer coisa deste infinito de possibilidades

Logo, tudo existe latente e adormecido

E do adormecido as coisas vão despertando-se, uma a uma, patentes e
assustadas

E disso mais uma trivialidade tautológica: a soma de tudo o que existe dá
um valor finito
Embora o absoluto adormecido seja, incomensuravelmente, infinito

Estou fadado às mesmas ferramentas
Mas, não ao mesmo produto que posso gerar com elas...

Sei que o desfecho da minha história já foi traçado
E que serei um eco trafegando no vento da eternidade...

A tinta que alimenta esta pena vai se acabando junto à verve do poeta
Cuja mente é visitada por errantes ilusões
O executor desta mesquinharia mundana
Até mesmo esta de se auto depreciar para causar compaixão alheia
Espécie de caminho curto para se inflar de gabos
E isso de dizer isso é de uma falsa honestidade de causar pena de si mesmo
E pior que isso é saber que não adianta fazer nada, pois quanto mais se
admite a própria pequenez mais parece uma tentativa irreconciliável de
engrandecer a si mesmo

O poeta é um condenado a dizer, querendo, contudo, reduzir tudo ao silêncio
oceânico das palavras

Letras amaldiçoadas
Que odeiam o Mal e a maldade corruptora em si mesmas

O poeta não dorme com o Diabo
O Diabo é que invade seu sono
Em sonhos proibidos

Mas, isso de proibir não é coisa só divina
O Diabo também dá prerrogativas a muitos dos seus e cobra cada pedaço do
seu lacaio
Homens que se acham grandes porque embora houvessem nascido pequenos
engrandeceram a si mesmos vendendo suas almas ao Mal
Que exigiu deles o cetro opressor
E o braço que aniquila sonhos e ceifa futuros

Isso de diabo tenta limitar o poeta que é um transgressor sem precisar de
tentações
Porque o poeta transgride as leis dos homens
Que seguem ao Diabo ou algo parecido com ele
No sórdido de que é feito, dos homens, seu corpo

O Belo, em contraste, não é feito do novo e nem de perfeitos contornos
O Belo é tudo o que dura
Que perdura nas impressões e se repete nas lembranças mais desatentas
Mas, não é qualquer perdurar
É um perdurar que enleva...

Deixa meu corpo afundar nesta lama
Deixa meu corpo banhar na celeuma
Deixa minh'alma beber desta infâmia
Deixa-me assistir ao espetáculo macabro
Ver os helmintos me devorarem famintos
Deixa-me acordar e dizer que estou salvo
Deixa Satã rondar pela sala
Só não deixo que invada o quarto que está dentro do peito
Deixa-o estremecer o fogo pálido do meu candelabro
São dele os grunhidos que ressoam lá fora
Esperando o óleo que alimenta esta chama se acabar
Quando ele se acabar, minha alma se tornará silêncio
E o Mal continuará a provocar tropeços pelas palavras
Mas, nas palavras também há o antídoto
Contra o próprio veneno delas...

O candelabro se apaga
As cortinas se fecham
Mas, o poeta é este que te visita à noite
E te vigia, eternamente, por entre as frestas do seu mundo patético e
módico...


- Danillo Macedo -
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