A mão que afaga: estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico sul

July 22, 2017 | Autor: Kleber Clementino | Categoria: History of Historiography, Political Discourse, Dutch Brazil
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A MÃO QUE AFAGA

ESTRATÉGIAS

RETÓRICAS NAS CRÔNICAS

PORTUGUESAS DA PRESENÇA NEERLANDESA NO

ATLÂNTICO SUL1 Kleber Clementino2

Resumo: O presente artigo tem o propósito de examinar de que maneira as crônicas portuguesas seiscentistas do “Brasil holandês” abordaram algumas das tensões surgidas entre as lideranças do movimento restaurador (1645-1654). A perspectiva adotada é a de que tais obras não se propuseram apenas a registrar a memória daquelas lutas para a posteridade, antes perseguiram objetivos políticos imediatos a cada contexto histórico em que foram produzidas, enaltecendo determinados personagens e eventos, atenuando passagens delicadas, retratando adversários como anti-heróis sem dignidade. A análise se debruça sobre as obras O Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado do Salvador, e História da Guerra de Pernambuco, atribuída a Diogo Lopes Santiago, extraindo delas os elementos que permitem construir a argumentação e apresentar as conclusões. Palavras-chave: Crônicas, Brasil holandês, Pernambuco. The hand that caresses: rhetorical strategies in Portuguese chronicles on Dutch presence in the South Atlantic Abstract: The present paper aims to examine in which way the seventeenth century Portuguese chronicles of the “Dutch Brazil” approached some of the tensions between the leaders of the movement to restore Pernambuco to the Portuguese domain (1645-1654). One has adopted the perspective that such books did not intend only to record the memory of such battles to posterity,

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Artigo recebido em março de 2014 e aprovado para publicação em abril de 2014.

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Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da UFPE, linha Norte-Nordeste no Mundo Atlântico. Bolsista CAPES. Orientadora: Dra. Marília de Azambuja Ribeiro. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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but rather seek immediate political goals regarding each historical context, praising some characters and events, attenuating delicate passages, portraying adversaries as anti-heroes with no dignity. The analysis scrutinizes the works  O valeroso Lucideno, written by friar Manuel Calado do Salvador, and História da Guerra de Pernambuco, attributed to Diogo Lopes Santiago, extracting from them the elements which allow to build up the argumentation and so to present the conclusions. Keywords: Chronicles, Dutch Brazil, Pernambuco.

“Toma um fósforo, acende teu cigarro. O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja”. Augusto dos Anjos, “Versos íntimos”.

Intitulei este escrito “a mão que afaga”, por um lado, para prestar uma singela homenagem ao grande poeta paraibano Augusto dos Anjos, que tanto admiro, e, por outro, porque a frase parece encapsular com exatidão o raciocínio que almejo desenvolver ao longo do texto: que as crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul seiscentista, longe de equivalerem a páginas memorialísticas a erigir uma narrativa imparcial, foram antes compostas e divulgadas como armas políticas, disparadas em meio aos conflitos em que se embrenhavam as elites portuguesas do Atlântico Sul. Não se pretendia, por meio delas, meramente registrar a memória daqueles feitos para a posteridade, mas sobretudo erigir e decalcar determinada memória, expressão de segmentos de uma elite que estava longe de ser coesa. Sendo armas, a depender dos desenvolvimentos da batalha, às vezes convinha sacá-las e dispará-las contra um inimigo ou muitos, às vezes convinha metê-las na bainha, estender a mão e sacudir a bandeira da trégua.

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CRÔNICAS OLHADAS DIFERENTEMENTE

A passagem neerlandesa pelo Atlântico Sul de colonização ibérica é tema historiográfico de extensa revisitação. Embora haja ainda polêmicas sobre os episódios que a antecedem e envolvem, a união das coroas ibéricas sob o monarca espanhol, a luta pela emancipação política das Províncias Unidas e sua expansão colonial a leste e a oeste do planeta foram examinadas com atenção pela historiografia. Mais especificamente, a ocupação holandesa do Norte Açucareiro e as lutas que os expulsaram têm sido estudadas com base em diversas fontes, de caráter oficial e privado, pelo menos desde meados do século XIX. Contamos, hoje em dia, com uma representação relativamente estável do que foi aquela passagem, conhecemos seus próceres, compartilhamos uma periodização verossímil... O “Brasil holandês” exibe, por assim dizer, uma historiografia consolidada. Há um elemento desse período, de indiscutível importância, o qual, contudo, parece ter merecido menor apreciação dos estudiosos. Este elemento é a literatura portuguesa composta na esteira dessa experiência colonial neerlandesa no Atlântico Sul. Ela é abundante, pulsante, controversa e está a reclamar adequada problematização historiográfica. E é exatamente isto a que se propõe a pesquisa de doutorado que embasa este artigo: abordar essas crônicas em sua pluralidade, no diálogo que estabelecem entre si e, ao longo do tempo, com os diferentes contextos políticos em que foram escritas, num intervalo de 50 anos (16301679); abordá-las não como documentos que retratam objetivamente um evento histórico e nos permitem assim recontá-lo, mas atribuir a elas próprias a condição de evento histórico. Reconhecê-las em sua subjetividade, nos possíveis compromissos que demarcaram as linhas de sua composição e a versão que pretender difundir, enxergando a dinâmica das perspectivas em que foram escritas, no interior de uma tradição interpretativa que remonta ao filólogo alemão Chladenius (KOSELLECK, 2006)3. 3

Koselleck aponta em Chladenius um pioneiro no reconhecimento não apenas da subjetividade do historiador, mas na proposição de que também as fontes Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Olhá-las consoante esta concepção conduz a revelações interessantes, permite uma imersão em águas pouco navegadas. A primeira onda que nos atinge é a da diversidade desses escritos: e são diversos não exatamente na temática, mas nos compromissos assumidos por seus autores e no diálogo que estabelecem com os diferentes contextos políticos do recorte temporal aqui proposto. Não é possível, senão com muitas ressalvas, reunir a todas elas e lhes dar uma classificação comum, falar de uma “voz portuguesa”, porque são escritos em grande medida facciosos, isto é, são manifestos, não do povo português, nem mesmo da elite portuguesa na península ou no ultramar, mas de um “partido”, de um grupo de interesses a que se filiava o autor. Por exemplo, diversos indícios apontam que frei Manuel Calado do Salvador redigiu O Valeroso Lucideno ou a mando ou em homenagem a João Fernandes Vieira – ninguém menos que o “Lucideno” do título – como panfleto político de seu partido, no contexto da década de 1640, em vista das vacilações que a causa da Restauração Pernambucana encontrava na corte e nas negociações com os neerlandeses em Haia, quando a entrega do Nordeste era vista como o mais seguro caminho diplomático (MELLO, 1998), e, sobretudo, diante dos muitos adversários que protestavam contra a liderança de Fernandes Vieira, acusando-o de tirania. A narrativa de Calado é uma interminável reiteração desta filiação àquele partido, atacando e ridicularizando adversários, – como o mestre de campo Conde de Bagnuolo, o bispo D. Pedro da Silva e o comerciante Gaspar Dias Ferreira, entre tantos outros, – retratando-os com ruins tintas e funestos pincéis, negando-se a inscrever quaisquer passagens que lhes saíssem meritórias. Se, no entanto, passamos à análise da História da Guerra de Pernambuco, do mestre de gramática Diogo Lopes Santiago, supostamente composta cerca de 20 anos depois4, verificamos semelhante facciosismo, porém expressam “pontos de vista” sobre os eventos, sendo esta a única forma possível de apreendê-los. 4

A datação da História da Guerra de Pernambuco, que teria sido escrito em algum momento do intervalo 1661-1675, foi realizada pelo professor José Antônio Gonsalves de Mello, a partir de elementos intratextuais.

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atendendo a um contexto político diferente – o que implica, por exemplo, atenuar ou mesmo expurgar trechos de crítica a certos personagens, numa evidente operação de reconfiguração da memória (MELLO, 1986; CLEMENTINO, 2013). Compreendê-las assim, portanto, esclarece muito sobre o tipo de história que registram, os episódios que narram e que ocultam, os personagens que enaltecem e que denigrem – e como esta representação, consolidando-se, passou a compor o quadro do “Brasil Holandês” cristalizado na posteridade. Abre-se-nos, mais ainda, a possibilidade de vislumbrarmos as estratégias retóricas5 empregadas por aqueles escritores, visando a moldar a narrativa que lhes interessava a eles e a seus patronos. Transformando arengas em fraternidades, convertendo crimes em gentilezas, fabricando e imortalizando heróis.

COM

ALGEMAS DE AMOR

A insurreição de parte da elite pernambucana, sob o comando de Fernandes Vieira, a quem todos elegeram “governador da empresa”, iniciou-se em 13 de junho de 1645. Nem se pode dizer que tenha sido dos inícios mais honrosos, pois começou pela fuga e esconderijo dos cabeças do movimento,

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A tradição da narrativa pensada como exercício retórico remonta à Antiguidade, encontrando sua mais consistente formulação no tratado De oratore, de Cícero. Nele, o célebre romano pretendia que, em lugar de aplicar-se a uma narrativa exaustiva, minuciosa, comprometida com a apresentação de episódios cotidianos e de “pouca importância”, caberia ao historiador selecionar para sua narrativa apenas eventos e personagens que, por sua grandeza, merecessem ecoar pela posteridade. Em alguns casos, gestos de “vileza” poderiam também ser contados, para ensinar o que não imitar. Respeita-se o princípio pedagógico dos exempla, e os historiadores agora deveriam valer-se de topoi discursivos, formas de dizer ou estratégias retóricas capazes de emocionar e engajar o público e, emocionando-o, educá-lo. Ainda na Antiguidade, autores como Salústio, Tito Lívio e Tácito seguiriam a trilha aberta por Cícero, sendo a concepção da escrita histórica como um exercício retórico continuada no Medievo por um autor como Froissart e, no Renascimento, por diversos autores, entre os quais um historiador tão importante para Portugal quanto João de Barros (DOSSE, 2012; LOPES, SARAIVA, s/d; BOURDÉ, MARTIN, s/d) Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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descobertos pela espionagem neerlandesa. Pelos próximos 50 dias, esses insurgentes se embrenhariam pelas matas Várzea adentro, ziguezagueando de engenho em engenho, angariando (ou coagindo) apoios, recolhendo mantimentos e armas, caçados pelas tropas neerlandesas, até a primeira batalha entre as duas forças, no Monte das Tabocas, atual município de Vitória de Santo Antão, em 3 de agosto. Os insurgentes venceram-na, segundo as crônicas, com intervenção divina direta, pois a Virgem Maria e Santo Antão, caminhando entre as fileiras, distribuíram pólvora, protegeram os portugueses e ofuscaram com seu brilho a visão dos artilheiros neerlandeses. Dali se iniciou uma contramarcha em direção ao Cabo de Santo Agostinho e depois aos Apipucos, quando, a 17 de agosto, surpreenderam-se os batavos no engenho de Ana Pais, atual bairro de Casa Forte, os quais, depois de renhida peleja, foram derrotados e rendidos (SALVADOR, 1648:179 e ss). Paremos um momento. Esta sucessão triunfante de acontecimentos atropela episódios que, se não tão heróicos e românticos, guardam também sua importância. Analisemo-los. Em 1645, Portugal estava em trégua com as Províncias Unidas, resultado do arranjo diplomático alcançado depois da Restauração Portuguesa de 1640. O status quo no Nordeste Açucareiro, na África e no Oriente deveriam permanecer inalterado até a resolução do imbróglio diplomático ou o reinício do conflito. Qualquer ação em contrário seria aleivosa, ato de corso, indignidade e baixeza incompatíveis com a dinastia reinante em Portugal. Assim, formalmente, João Fernandes Vieira e seus aliados não eram insurretos apenas perante os governadores neerlandeses, mas também perante o reino português, já que violavam compromissos internacionalmente firmados pelo rei. Não lhe cabia esperar apoio régio a sua empreitada, e sim castigo. Em vista disso, as autoridades holandesas no Recife mandaram emissários ao governador geral na Bahia, Antônio Teles da Silva e, protestando consoante os termos da trégua, exigiram que prendesse Fernandes Vieira e “aquietasse” Pernambuco. Oficialmente, é com esse propósito, segundo a crônica, que Teles da Silva envia André Vidal de Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Negreiros e Martim Soares Moreno à frente de tropas e com a anuência do governo holandês no Recife. Os dois mestres de campo, Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros, se encontram em 16 de agosto de 1645, no Cabo de Santo Agostinho, e o diálogo que travam é, no mínimo, inusitado: Disse então o mestre de campo André Vidal de Negreiros: eu venho aqui por mandado do senhor Antônio Teles da Silva, governador e capitão general deste Estado, para prender a vossa mercê e a todos os que foram cabeças deste motim e alevantamento, e levá-los presos para a Bahia (...). Ao que João Fernandes Vieira respondeu dizendo: pois também vossa mercê há de saber que eu e esta multidão de gente que trago comigo, todos vimos a prender a vossa mercê e ao senhor mestre de campo Martim Soares Moreno (...) e a todos os soldados que consigo trazem, e amarrá-los com algemas de amor e com grilhões de obrigação, para que nos ajudem a vingar os agravos, crueldades, traições e aleivosias (...) com que os pérfidos holandeses nos têm tratado (...) (SALVADOR, 1648:217).

Calado, em algumas passagens, indica que Antônio Teles da Silva apoiava a insurreição em Pernambuco e a fomentava, supostamente em desobediência às ordens do monarca, embora não afirme textualmente que a expedição de Negreiros era uma farsa – coisa que a historiografia tem como ponto pacífico6. Há um quê de deboche em toda passagem, a teatralização um tanto burlesca de uma conciliação; imaginando a cena, é como se todos assistissem a ela com mal contidos sorrisos. Apesar de ser o propósito expresso de Negreiros trazer Vieira preso à Bahia, o “canto da sereia” do madeirense e suas “algemas de amor” teriam cativado o paraibano, desanuviando seus olhos para as 6

Sobre isso convém consultar MELLO (2000) e também MELLO (1998:39 e ss.). Em ambas, argumenta-se que não só o projeto era apoiado por Antônio Teles da Silva, mas ainda que tanto ele quanto André Vidal de Negreiros receberam ordens de Lisboa para fomentar a insurreição desde 1642. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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atrocidades perpetradas pelos neerlandeses, de vez que ele termina o diálogo prometendo examinar as denúncias de Vieira e, ipso facto, aliando-se aos insurretos. Ficavam, assim, ao mesmo tempo salvas as aparências (pois Negreiros, a rigor, desobedecia às ordens de Teles da Silva) e ridicularizados os inimigos. Exemplo do tipo de retórica mobilizada por Calado em sua crônica, em que recursos estilísticos e a própria fórmula tradicional do diálogo – recorrentes na historiografia antiga e na Península Ibérica (DOSSE, 2012; LÍVIO, 2010; LOPES, SARAIVA: s/d) – colaboram para a edificação de um discurso de intrigante polifonia, amainando conflitos subterrâneos, oferecendo uma descrição simultaneamente idealizada e farsesca do episódio, pela qual, na superfície, emerge apenas o amor por Portugal e a harmonia entre os chefes da insurreição em Pernambuco, na Bahia e, embora não dito, em Lisboa – e, abaixo da linha d’água, espreita-se a estratégia do comando luso a ludibriar e minar seus inimigos.

UM

MOMENTO DELICADO

Calado não está sozinho neste esforço de representação das relações luso-neerlandesas. Aqueles que financiavam e animavam a composição destas obras perseguiam propósitos políticos muito concretos, tais como a legitimação, o reconhecimento, a lembrança, a mercê, a regalia7. Pretendiam construir, perante o conjunto do império português, a imagem de conquistadores, de generosos restauradores do domínio luso, justos, fiéis, portadores, enfim, de todos os distintivos próprios da nobreza. Controvérsias e desinteligências entre suas fileiras serviriam apenas para manchar este retrato, expondo facetas pouco admiráveis daqueles próceres; daí sua atenuação, daí seu apagamento, daí esta romantização do relato, este aparamento de arestas que vimos, conteúdo de uma retórica política em ação. 7

Aludo ao conjunto de conceitos em torno da noção de economia das mercês, tão explorado pela historiografia recente, tal como em HESPANHA (1998).

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Outro episódio ilustrativo em que se flagra, talvez com ainda mais nítida evidência, tal operação discursiva seja o da troca do comando militar da insurreição, ocorrido no primeiro semestre de 1648. Desde o início do movimento até ali, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros eram os mestres de campo generais ad hoc, governando, afirmam Calado e Santiago, por espontânea aclamação da elite local (SALVADOR, 1648; SANTIAGO, 2004), – e todos os homens de bem, insistem os cronistas, aplaudiam sua liderança, disputando-as apenas os covardes e os traidores amigos de Holanda. Não obstante, em 1647, El-Rei despachou Francisco Barreto de Menezes mais 300 homens para substituir a liderança e reforçar as tropas. Barreto, na travessia do Atlântico, teve sua nave interceptada pelos batavos, permanecendo algumas semanas preso em Recife. Escapou em janeiro de 1648 e, segundo Diogo Lopes Santiago, foi, juntamente com seu tenente Felipe Bandeira de Melo, bem recebido e alojado pelos mestres de campo, tornando-se os três “camaradas de casa e mesa” (SANTIAGO, 2004:459). Em abril, às vésperas da primeira Batalha dos Guararapes, chegaria da Bahia a ordem do governador-geral, já então o conde de Aguiar, para que se entregasse a governança da guerra a Menezes. Somente esta breve apresentação do episódio basta a transmitir a delicadeza da situação. Por que, convém desde logo perguntar, El-Rei ordenaria substituir o comando? Gonsalves de Mello dá-nos muitas indicações de quão numerosa era a lista dos desafetos de Fernandes Vieira, os quais maquinavam, reclamava ele, para “desluzir minhas ações” e mesmo para assassiná-lo8; tantas acusações, que expressam queixas certamente anteriores a 1647, alcançando as régias orelhas, ajudam-nos a compreender melhor tanto a nomeação de Barreto de Menezes quanto o empenho de Vieira em desmentir as denúncias e dar mais lustre ao seu nome, trazendo para seu círculo frei Manuel Calado e encampando o projeto do 8

MELLO (2000, pp. 243 e ss). Também convém consultar a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) (1913), edição na qual são transcritos os manuscritos compilados por Alberto Lamego, contendo cartas anônimas que denunciam Fernandes Vieira, acusando-o de abuso de poder e outros crimes. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Lucideno, bem como, mais tarde, o da História da Guerra de Pernambuco e do Castrioto Lusitano. Convinha, é óbvio, lidar com esta transferência de comando com discrição e habilidade, de modo a representá-la com o mínimo de dano à imagem dos mestres de campo. Encontramos, no texto de Santiago, precisamente esta precaução, ao lado de discernível esforço para reverter o episódio em benefício dos descomissionados. Primeiramente, descreve a entrega do governo nos termos de um erro suportado com mansuetude: Os mestres de campo governadores, em consideração d’alguns respeitos, e por não entender o conde (de Vila Pouca) que lhe não obedeciam às suas ordens, entregaram o governo a Francisco Barreto de Meneses, averiguando entre si primeiro, por serviço de sua majestade, [se] deviam ficar eles na mesma guerra, pelo conhecimento que dela tinham, e por serem experimentados, e que assim convinha, posto que Pernambuco não tomou isto a bem porque requeria a terra pessoa mais experimentada nela e prática no estilo da guerra daquela campanha, e de anos bastantes, para suportar vontades tão diversas de tantas castas de gente que há naquelas capitanias, e de gente tão belicosa.

É pacífica, obediente, como cabe a um soldado – embora, insinua-se, houvesse todos os motivos para desobedecer. Ele personifica até mesmo uma “voz pernambucana”, cujo timbre, com unanimidade, se teria zangado face à demissão de seus comandantes eleitos. Em lugar de chefes impopulares, substituídos, ao menos em parte, em decorrência dos muitos incômodos que provocavam, o cronista retrata uma injustiça cometida contra dignos oficiais e reconhecida por todos os soldados e moradores, nesta intrigante proposopeia do “Pernambuco”, que “não tomou isto a bem”. Na sequência, Santiago lista as conquistas de Negreiros e Vieira enquanto mestres de campo e, desfechando sua peroração, compara-os ao “valoroso Fernão Cortés”, que, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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tendo conquistado bravamente a Nova Espanha, foi destituído do comando por um desinformado Carlos V. Cortés, comenta com fina malícia Santiago, recusou-se a render o cargo e prendeu quem o vinha prender, Pánfilo de Narváez, até que o rei recebesse mais honestos memorandos. Carlos, melhor informado, “dissimulou com a cousa e desobediência” e encarregou Narváez de conquistar a Flórida (SANTIAGO, 2004:479-481). Santiago, portanto, constrói um edifício retórico que, sem negar a tensão envolvida no episódio, manipula-a em favor de seus personagens. A tensão da substituição é canalizada na forma de um “sentimento pernambucano” favorável a Vieira e Negreiros e voltado contra seus difamadores e contra Francisco Barreto de Menezes; a própria entrega do posto, por meio da comparação com o caso espanhol, reveste-se de magnanimidade, de vez que haveria justiça na eventualidade de uma resistência. Como para confirmar o terreno arenoso em que se movia Menezes, coroando a narrativa que desenvolve, Santiago, linhas adiante, apressa-se em dizer que não só Vieira e Negreiros permaneceram na guerra, mas que o novo mestre de campo general lhes restituiria ad hoc, perante todo o oficialato, o comando das tropas na ocasião da Batalha dos Guararapes, “por não ser prático na campanha”. Devolução que só realça-lhes o prestígio, de vez que ambos aceitaram o encargo “alegremente” (SANTIAGO, 2004:485).

AMIZADES

INIMIGAS

As tropas portuguesas, no retrato de Santiago, cultivavam, pois, um ambiente de amistosidade, encabeçadas por um oficialato leal, obsequioso, coeso. As fontes que estão para além das crônicas, contudo, oferecem diferente versão no tocante aos elementos desta representação, ajudando-nos a apreciar outras facetas da estratégia retórica mobilizada por Santiago e o compromisso consoante o qual foram produzidos estes relatos, ultrapassando a possibilidade de uma leitura unidimensional deles. Problematizando-os, em suma. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Tão logo ascendeu a posições de riqueza e comando na capitania, Fernandes Vieira passou a ser alvo de denúncias por seus supostos abusos, e as queixas prolongaram-se durante a insurreição e para além de 1654. André Vidal de Negreiros e Henrique Dias – outro herói ubíquo nas crônicas de Calado e de Santiago – foram alvo de imputações análogas. Na denúncia do “capelão”, dirigido ao governador geral, Antônio Teles da Silva, bem como em outros papéis dos anos seguintes, Vieira é acusado de roubar, intimidar, chantagear e mesmo coagir os moradores de Pernambuco a redigir papéis com louvores a si, além de “acutilar a muitas pessoas”9, valendo-se de seu poderio para estar sempre impune; Henrique Dias, sob suas ordens, tomaria à força escravos pertencentes a homens que já contribuíam com o esforço de guerra, guardando parte da presa para si; de Vidal de Negreiros diz-se que prendia e torturava desafetos e acoitava parentes criminosos, como André Curado Vidal, responsabilizado por pelo menos 12 homicídios (ACIOLI: 1997, p. 42). O próprio anonimato que predomina nas denúncias revela o temor perante a facção de Vieira e Negreiros, ao mesmo tempo indicando que o partido ou os partidos adversários permaneciam aguerridos e dispunham também de certa medida de força e de voz. Pois é assim que convém ler esta “guerra de papéis”: versões que se opõem, que esgrimam, que anseiam por impor-se àquela “opinião pública” seiscentista de que fala Evaldo Cabral de Mello (MELLO, 1998:122). Repercussão não há dúvida de que tiveram. Algumas das acusações alcançaram a alta administração, sendo discutidas no Conselho Ultramarino, aliás com divergências nas conclusões dos membros, prevalecendo, na decisão régia, a recomendação do conselheiro Salvador Correia de Sá, de que havia nelas exageração, fruto da aleivosia dos adversários de Fernandes Vieira (que, cumpria recordar, governava em tempo de guerra, sendo natural que provocasse descontentamentos), ficando na alçada do mestre de campo enviado para substituí-lo a decisão de afastá-lo ou conservá-lo na guerra (MELLO, 2000:244-246). 9

ACIÓLI (1997:42). Vejam-se também, para a coletânia de alguns escritos contra Fernandes Vieira, os papéis do Dr. Alberto Lamego em RIHGB (1913:33 e ss.).

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O mestre de campo era justamente Francisco Barreto de Menezes. O retrato dele oferecido na História da Guerra de Pernambuco é discretamente favorável e, embora insinue pouco talento para o comando militar, enfatizando sua inexperiência para o posto, é compensado pela sensatez e visão de render a chefia à gente experimentada da terra, o que teria angariado o respeito de todos, sem com isso ofuscar sua glória. Entretanto, em documentos posteriores à Restauração, fortemente contrastantes, figura outro Barreto de Menezes. Um papel anônimo intitulado Pernambuco Afligido, estudado pela Dra. Virgínia Almoêdo de Assis, disparam-se-lhe acusações de malversação do Erário e mesmo, escandalosamente, de defloramento de moças de família (ASSIS, ALMOEDO, 2009:87 e ss.). Menezes seria vaidoso, autoritário, um notório atrabiliário, cioso ao extremo de suas prerrogativas. E suas relações com os “régulos” de Pernambuco, Vieira, Negreiros e seu partido, estariam longe dos beijos e abraços das páginas de Santiago. Fernandes Vieira queixara-se à coroa do pouco respeito que Menezes, empossado governador-geral do Brasil em 1657, lhe demonstraria; o mesmo fez Henrique Dias, magoado por ser tratado “com pouco respeito e palavras indecentes” (ACIOLI, 1997:92). Mais grave que todos, o conflito entre ele o governador de Pernambuco André Vidal de Negreiros, empossado em 1657, acerca das regalias e jurisdições de cada cargo, esteve muito próximo de fazer estourar a guerra entre Pernambuco e Bahia, de onde vieram tropas a mando do governador-geral, a fim de fazer valer sua autoridade. O azedume das relações entre Menezes e Negreiros transpira, outrossim, nas cartas do primeiro, como nesta, endereçada à regente D. Luísa de Gusmão: Os excessos com que a meu respeito está ali ofendendo os vassalos de Vossa Majestade, desprezando as ordens deste governo, me tiveram quase levado pessoalmente a Pernambuco, e se o regimento que aqui achei me não proibira sair desta praça (...) sem dúvida fora ensinar André Vidal todas as obrigações a que faltava [e] o trouxera preso (apud ACIOLI, 1997:91). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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O que, novamente, realça a estratégia retórica de Santiago, na pintura que faz da idílica amizade entre os chefes do movimento. Não é o caso de dizermos que a boa convivência retratada em suas páginas nunca existira, mas sim que a exposição daquela versão e a exclusão de outras, a escolha daquelas tintas suaves tem em vista a construção da imagem de uma cúpula coesa no serviço de El Rei, contra o invasor herege. Introduzir na narrativa eventuais dissensões entre os líderes era meter nódoa ao retrato, dar munição aos “partidos” adversários, e não convinha.

À

GUISA DE CONCLUSÃO: OS DOCUMENTOS, A FALSIDADE

As fontes não apenas falam, elas muita vez escolhem cuidadosamente o que proferem. Cuidadosamente, interessadamente, estrategicamente. A tarefa do historiador não se resume a interpretar sua fala, mas também a devassar o segredo que sussurram, as notícias que, pretendendo ocultar, revelam. A entrelinha é o habitat do historiador, o confronto de vozes é a sua música. Até certo ponto, o documento, mesmo aquele que se proclama honesto e aberto, é uma espécie de adversário que se nos escorrega, que tanto quer dizer quanto encobrir, atirando lençóis sobre as porções do passado que o constrangem. Determina-nos diligentemente a direção exata para onde olhar e não raro teme que enxerguemos a completude do quadro – temor inútil, aliás, porque isso não é possível. Mas, com sorte, às vezes, é possível desarmá-lo, o documento, em suas estratégias, em seus compromissos, em seus jogos de esconde-esconde. A história do “Brasil Holandês” tem, como disse, desde muito sido contada e recontada, com base em documentos administrativos, no epistolário, na iconografia e nas crônicas de então. O mergulho no período, contudo, revela que esta própria produção documental tem uma história, veio à luz não na tranquilidade dos gabinetes dos memorialistas, mas em meio ao fogo cerrado das arengas que fragmentavam a política do império português no Atlântico Sul. Obras como O Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

A MÃO QUE AFAGA Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul

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Valeroso Lucideno e a História da guerra de Pernambuco são discursos políticos de facções que almejavam disseminar determinada representação daqueles episódios, em vista de seus projetos também políticos de predomínio sobre as regiões em que se encastelavam. Toda a amizade a que Diogo Lopes Santiago alude entre Vieira, Negreiros e Barreto de Menezes, por exemplo, “amigos de casa e mesa”, jantando e gargalhando juntos, e que outros textos e as cartas dos próprios envolvidos contestam, não pode ser meramente proscrito ao título de “falsidade” do documento, como se dizê-lo bastasse e encerrasse o assunto. As “verdades” que constam dos documentos têm seus porquês e as “incorreções” e “falsidades” também têm. As versões que procuram disseminar se valem, ora da fidedignidade, ora da distorção, empregando-as em vista de finalidades semelhantes. Talvez, depois de tanto tempo perseguindo a verdade, examinar a mentira não nos caísse tão mal.

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