A Máquina da Cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

A MÁQUINA DA CIDADANIA: Uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais

Lucas de Magalhães Freire

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

A Máquina da Cidadania: Uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais

Lucas de Magalhães Freire

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

CIP - Catalogação na Publicação

F862m

Freire, Lucas A Máquina da Cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais / Lucas Freire. -- Rio de Janeiro, 2015. 192 f. Orientadora: Adriana Vianna. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2015. 1. Transexualidade. 2. Requalificação Civil. 3. Defensoria Pública. 4. Cidadania. 5. Direitos. I. Vianna, Adriana, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

A Máquina da Cidadania: Uma etnografia sobre a requalificação civil de pessoas transexuais

Lucas de Magalhães Freire Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada em 06 de fevereiro de 2015 Banca Examinadora:

________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Presidente) PPGAS/MN/UFRJ ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Elvira Díaz-Benítez PPGAS/MN/UFRJ ________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara IMS/UERJ ________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Silva de Almeida FSS/UERJ ________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (Suplente) PPGAS/MN/UFRJ ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Paula Mendes Lacerda (Suplente) DPCIS/UERJ

A Raissa (in memoriam)

Agradecimentos Antes de mais nada, agradeço à minha mãe por ser uma das pessoas mais incríveis e admiráveis que eu conheço, e ao meu pai por nunca ter questionado minha decisão, mesmo sem saber que raios é a tal da antropologia. Agradeço também aos meus irmãos mais velhos, especialmente minha irmã, que nunca mediu esforços para me apoiar. Agradeço ainda aos meus pequenos sobrinhos por, às vezes das formas mais controversas possíveis, me impedirem de viver apenas na frente do computador. Seria injusto não lembrar aqui da instituição onde tudo isso começou: um grande bloco de concreto chamado UERJ que, apesar de cinzento, está repleto de cores e afeto. Agradeço aos meus amigos e amores da turma de 2009.1 de ciências sociais: Aline Lopes, Conrado Pimentel, Jenifer Bard, Josué de Souza, Karina Rodrigues, Marina Garcia, Pamella Liz, Paula Carvalho, Paula Prado, Paulo Joaquim, Rafael Barreto, Tathiane Vitorino e Thayaná Gonçalves. Vocês são muito mais que especiais para mim. Nós somos sim uma geração incrível. Agradeço também ao corpo docente da universidade pela minha formação e um agradecimento especial às professoras Claudia Rezende, por ter despertado em mim o interesse pela antropologia no primeiro semestre da graduação, e Maria Claudia Coelho, não só pela orientação da monografia, mas por todo o aprendizado. Uma das coisas que mais me agradam na UERJ é a diversidade de pessoas que por lá circulam. Gostaria então de agradecer aos amigos que fiz pelos incontáveis e confusos corredores da universidade: Daniel Cardinali, Margareth Gomes, Marília Loschi, Anastácia Cristina, Marcus Cardinelli, Bruno Zilli, Raphael Werneck, Vanini Lima, Talita Leixas, Ana Carolina Soares, Wallace Corbo, Dennys Chaves, Núbia Campos, dentre muitos outros. Ainda entre as rampas, escadas e elevadores da UERJ, agradeço a todos que compunham a equipe do CLAM, local onde tive meu primeiro contato com o mundo acadêmico e onde eu aprendi o que é ser um pesquisador, principalmente à professora Maria Luiza Heilborn e os muito queridos Cristiane Cabral, Fabíola Cordeiro, Josué de Souza e Tathiane Vitorino. Vocês foram e ainda são mais que fundamentais na minha vida. Agradeço também aos companheiros de pesquisa do LIDIS: Sérgio Carrara, Vanessa Leite, Guilherme Almeida, Margareth Gomes, Silvia Aguião, Martinho Tota, Paulo Victor Leite Lopes, Diógenes Parzianello, Daniele Andrade, Aureliano Lopes e Isabella Pereira. Subindo a Quinta da Boa Vista, gostaria de registrar meu agradecimento ao pessoal da secretaria do PPGAS por tornar a vida burocrática acadêmica muito mais fácil, principalmente à Adriana Valcarce, Anderson Simões e Carla Cristina. Agradeço aos funcionários da biblioteca

por serem sempre pacientes diante da minha incapacidade de encontrar qualquer livro nas prateleiras. Agradeço também aos professores do Programa pela formação oferecida e pelos cursos ministrados, em especial os professores Adriana Vianna, Giralda Seyferth, Luiz Fernando Dias Duarte, Maria Elvira Díaz-Benítez e Renata Menezes. Gostaria de registrar minha gratidão à professora Maria Elvira por coordenar o importante espaço de diálogo propiciado pelo NUSEX, assim como todos aqueles que compõem o núcleo. Ainda ao redor da fonte no pátio do Museu, agradeço às lindas Camila Fernandes e Carolina de Oliveira pelas cervejas, abraços e momentos inesquecíveis. Agradeço também aos meus amigos da turma de mestrado de 2013, especialmente aos muito queridos Aline Rabelo, por todos os abraços afetuosos e por ser um exemplo de coragem; Barbara Pires, por manter meus pés no chão e por encarar várias ciladas comigo ao longo desses dois anos; Everton Rangel, por mostrar que meus dramas são quase sempre facilmente solucionáveis e por me ensinar o que é “vento encanado”; Morena Freitas, por me mostrar leveza onde só havia pesar; e Vlad Schüler, por fazer a melhor comida japonesa caseira e por comprar minhas ideias mais insanas. Não tenho palavras para agradecer a Adriana pela paciente, atenciosa e carinhosa orientação desta pesquisa. Só ela compreende o mimimi que cerca os que possuem Sol e Lua em Câncer. Gostaria, então, de deixar registrado que “eu se esforcei muito” e “dei tudo de si” para fazer o melhor possível. Agradeço também aos professores Maria Elvira Díaz-Benítez, Sérgio Carrara e Guilherme Almeida por aceitarem o convite de ser parte da banca examinadora de minha dissertação, bem como os professores Luiz Fernando Dias Duarte e Paula Lacerda por aceitarem serem suplentes. Agradeço ao Daniel Cardinali por nada menos que tudo, por descobrir comigo uma das lições mais valiosas que aprendi até hoje: amar é muito mais que querer ter o outro pra si. Agradeço ainda a sua mãe, Márcia Cardinali, por sempre me incentivar e acreditar no meu potencial. Agradeço à Claudia Dantas, Raiza Venceslau, Diego Venceslau e Diego de Souza pelos anos de carinho, amizade e aprendizado mútuo. À Margareth Gomes por estar sempre ao meu lado, ainda que a quilômetros de distância. À Marília Loschi, pelo carinho e por me fazer pensar e repensar minhas ideias com suas inúmeras perguntas. À Anastácia Cristina, pelas palavras reconfortantes e pelas aventuras nos transportes coletivos desta cidade. Ao Francisco Vieira, pela paciência, incentivo e por me mostrar as virtudes e fragilidades do meu texto. Ao Michel Carvalho, por trazer poesia à minha vida. Ao Victor Hugo Barreto, por me impedir de viver

apenas no “meu feudo”, por trazer alegria aos meus momentos de tédio e por me obrigar a assistir aos piores filmes já produzidos pela indústria cinematográfica. Ao Raphael Werneck por ser sempre tão doce e sensível. Ao Gustavo Saggese, pelas leituras e indicações preciosas e por ser uma das alegrias de 2014. Ao Amurabi Oliveira, por me querer sempre bem. Agradeço às pessoas que compõem tanto o NUDIVERSIS quanto o NUDEDH, as quais, infelizmente, não podem ser nomeadas. Obrigado pela recepção e pela oportunidade de crescer e aprender com vocês, o trabalho feito na Defensoria Pública é realmente admirável. Espero um dia poder retribuir tudo que vocês me ofereceram. Agradeço também às pessoas transexuais que me deram acesso às suas vidas. Obrigado por compartilharem comigo suas histórias e por me fazerem refletir sobre os privilégios de ser um homem cisgênero. Por fim, agradeço ao CNPq pela concessão da bolsa de mestrado que permitiu que eu me dedicasse integralmente à realização desta pesquisa.

RESUMO

Esta é uma dissertação sobre a gestão judicial da demanda por requalificação civil de pessoas transexuais. Os dados aqui analisados são oriundos de um trabalho de campo empreendido entre os meses de fevereiro e julho de 2014 no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ). A alteração do nome e/ou sexo no registro civil e, consequentemente, nos documentos de identificação, é compreendida como a ação através da qual as pessoas transexuais conseguem exercer determinados direitos fundamentais, alcançando, assim, o status de cidadãs. Tenho como objetivo discutir como estes indivíduos se constituem enquanto “sujeitos de direitos”. Deste modo, exploro quatro pontos principais deste processo de constituição: 1) a criação de uma instituição responsável por oferecer assistência judicial a uma determinada “população”; 2) a avaliação e fabricação de sujeitos que têm “direitos a pleitear direitos”; 3) a produção e apresentação de documentos que comprovam a versão construída do sujeito pleiteante; 4) os modos do fazer político que buscam legitimar a demanda por requalificação civil.

Palavras-chave: Transexualidade; Requalificação Civil; Defensoria Pública; Cidadania; Direitos

ABSTRACT

The Machine of Citizenship: an ethnography on the civil requalification of transsexual people This is a dissertation on the judicial management of transsexual people’s demand for civil requalification. The data analyzed here derives from a fieldwork carried out between February and July 2014 in the Defense Center of Sexual Diversity and “Homoaffective Rights” (NUDIVERSIS) of the State Public Defender of Rio de Janeiro (DPGE-RJ). The change of name and/or sex in the civil registry and consequently in identification documents is understood as the action through which transsexual people can exercise certain fundamental rights, reaching thus the status of citizens. I aim to discuss how these individuals become “right holders”. Thus, I explore four main points of this constitution process: 1) the creation of an institution responsible for providing legal assistance to a certain “population”; 2) the evaluation and construction of subjects who have “right to claim rights”; 3) the production and presentation of documents that prove the built version of the claimant subject; 4) the ways of doing politics that seek to legitimize the demand for civil requalification.

Key words: Transsexuality; Civil Requalification; Public Defender; Citizenship; Rights

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANS – Agência Nacional de Saúde APA – American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria) CEDS – Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual CFM – Conselho Federal de Medicina CID – Classificação Internacional de Doenças DPGE-RJ – Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) HUPE – Hospital Universitário Pedro Ernesto IEDE – Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia IML – Instituto Médico Legal LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais MP – Ministério Público NUDEDH – Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos NUDIVERSIS – Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos ONG – Organização Não Governamental ORD – Ofício de Registro de Distribuição RSH – Rio Sem Homofobia SEASDH-RJ – Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro SuperDir – Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos SUS – Sistema Único de Saúde TJ – Tribunal de Justiça

SUMÁRIO

Prólogo – O [d]efeito do nome

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Introdução – Sobre as fronteiras do humano, o exercício da cidadania e a necessidade de uma vida digna: a transexualidade na esfera jurídica brasileira

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1. O Lugar da Diversidade: apresentando o NUDIVERSIS e a pesquisa empreendida

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1.1 Descrevendo o NUDIVERSIS: rotinas de trabalho, atribuições institucionais e estrutura profissional

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1.2 A política dos sujeitos e os sujeitos da política: o papel do NUDIVERSIS na constituição da “população LGBT” e do Estado

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1.3 Uma etnografia estagiária

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2. Quem tem Direito a Pleitear Direitos? sobre tornar-se uma/um assistida/o da Defensoria Pública

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2.1 “Primeiro atendimento”: enquadrando sujeitos

48

2.2 Peregrinações burocráticas: em busca dos atestados da “verdade”

61

2.3 Produzindo uma/um assistida/o: a definição de quem tem direitos a pedir direitos

66

3. Corpos de Papel, Sujeitos Impressos: sobre documentos e a construção de sujeitos e realidades

83

3.1 Dos documentos que fazem sujeitos: as múltiplas formas de materialização dos sujeitos e da realidade

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3.2 Certificações do sexo e gênero: a produção de identificações a partir dos documentos

103

3.3 Papéis mágicos: sobre documentos e atos de magia

115

3.4 Para além do papel: inteligibilidade de experiências e construção de subjetividades

119

4. Em Defesa da “Dignidade da Pessoa Humana”: política, emoções e moralidades nas petições iniciais de requalificação civil

125

4.1 Vítimas da natureza, vítimas da sociedade: a produção da vulnerabilidade das pessoas transexuais

128

4.2 Em defesa da “dignidade da pessoa humana”: os argumentos que legitimam a demanda por requalificação civil

133

4.3 “Sofro, logo tenho direitos”: a vitimização e o “acesso aos direitos”

149

4.4 “Todos são iguais perante a lei”: sobre modelos, apagamentos e homogeneizações

151

Considerações Finais – Sobre os limites de uma promessa

154

Referências Bibliográficas

167

Anexo I – Quadro de Funcionárias do NUDIVERSIS durante a pesquisa

174

Anexo II – Núcleos Regionais da DPGE-RJ na cidade do Rio de Janeiro

175

Anexo III – Núcleos Especializados da DPGE-RJ

176

Anexo IV – Assuntos verificados nas Certidões dos ORD

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O [d]efeito do nome

R é uma mulher de meia idade, dona de casa, moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, casada há pouco mais de 20 anos com um funcionário público de baixo escalão. Ela tem três filhos adultos, dois de um primeiro casamento e um terceiro com o atual marido. R não é só R, é também B. Acontece que R era o nome que sua mãe gostaria que fosse registrado, mas seu pai, contrariado, chegou ao local onde nascem os cidadãos e disse que aquela bebê se chamaria B. A mãe não admitiu e bradou para o mundo que sua filha não era outra senão R. R cresceu sendo R. Quando chegou no lugar onde os cidadãos são formados, ouviu chamarem-na de B. R não entendeu, ela tinha apenas sete anos de idade. Depois de visitar algumas vezes as pessoas que faziam muitas perguntas, R foi informada que este nunca foi o seu nome, que ela era, na verdade B. R não conseguia compreender aquilo tudo, ela era R. “Qual o problema em ser R?”, ela pensava. R nunca foi B. Tal qual sua mãe, ela também não aceitou ser outra pessoa que não ela mesma. Ela era R e ponto final, por mais que todas aquelas pessoas e papéis dissessem que ela era B. Ela era R. R nunca foi R. Ao menos, plenamente. R se fechou em seu mundo. Escondeu tudo aquilo que era de B. R não viveu tudo aquilo que B poderia viver. B nunca saiu das pastas nas quais as pessoas carregam a si mesmas quando precisam resolver suas vidas. Ela nunca foi nem R nem B. Apesar de muito inteligente, R não prosseguiu os estudos. Nunca teve conta em banco. Nunca assinou um recibo de entrega de uma encomenda. Nunca concordou com ter que apresentar sua carteira de trabalho ou usar um crachá. Nunca aceitou que a chamassem por outro nome. Nunca se identificou como B. Nunca deixou que B existisse, assim como B nunca permitiu que R fosse tudo que ela poderia ser. Nunca falou abertamente para ninguém sobre seu outro eu, aquele guardado na caixa que fica no fundo do armário. Até mesmo seus filhos só descobriram a existência de B quando já adolescentes. B nunca habitou o mundo das pessoas, R nunca habitou o mundo dos cidadãos.

1

Introdução Sobre as fronteiras do humano, o exercício da cidadania e a necessidade de uma vida digna: a transexualidade na esfera jurídica brasileira

No prefácio de uma das mais recentes pesquisas sobre a temática da transexualidade na área das ciências sociais, Berenice Bento (2013) estabelece uma importante distinção entre os termos humanidade e cidadania, de modo que o primeiro representa um “corpo perambulante”, sem vínculo com as instituições sociais e, portanto, privado do reconhecimento dentro de um sistema jurídico que possibilita o exercício de direitos; enquanto o segundo está amarrado à ideia do Estado-nação e indica o pertencimento a uma determinada comunidade política. Ainda de acordo com a autora, “ao confundirmos cidadania e humanidade estamos atribuindo um valor englobante de produção de significado para o Estado, materializando, assim, o maior desejo do Estado: ser um ente total” (Bento, 2013, p. 14). Ponderação semelhante já havia sido anunciada por Hannah Arendt no final do século passado. Ao analisar a situação dos apátridas, Arendt (1989) conclui que este personagem se caracteriza pela total ausência de vinculação a um sistema jurídico, que, em último caso, está ligado ao pertencimento a um Estado-nação. Dito de outro modo, para a autora, a inexistência de uma filiação nacional implica privação completa de qualquer tipo de “direitos”, situação que corresponde a uma “abstrata nudez de ser unicamente humano” (p. 333)1. Neste sentido, a garantia de direitos é inseparável do enquadramento dentro de uma determinada forma de organização política. De modo sintético, a pergunta a qual as duas autoras buscam responder diz respeito ao aparato político que transforma “seres humanos” em “cidadãos”, isto é, pessoas detentoras de direitos e deveres em relação a uma coletividade compreendida como “nacional”. Ambas respondem que a cidadania é adquirida a partir da inserção e integração em uma dada forma de organização política. É a partir deste ponto que os documentos de identificação adquirem centralidade, pois estes são tecnologias do controle burocrático exercido pelo Estado. Como destaca Peirano (2006), é o documento que qualifica um sujeito como um cidadão de um determinado Estado nacional. Nas palavras da autora, o documento “legaliza e oficializa o

1

Outros autores que elaboraram importantes reflexões sobre o não reconhecimento do valor da vida e a consequente impossibilidade do exercício de direitos foram Butler (2004b) e Agamben (2010).

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cidadão e o torna visível, passível de controle e legítimo para o Estado; o documento faz o cidadão em termos performativos e obrigatórios” (p. 26-7, grifos no original). A passagem do “ser humano” para o “cidadão” é central para a construção das reflexões que serão apresentadas nesta dissertação. Entretanto, não me preocupo apenas com o que faz dos seres humanos cidadãos, mas também questiono sobre como esta conversão é possível. É para responder sobre este “como” que adiciono um terceiro elemento à problemática: o dever constitucional do Estado de proporcionar aos seus “cidadãos” uma “vida digna”, largamente utilizado como argumento para afirmar a legitimidade da requalificação civil de pessoas transexuais. Em linhas gerais, busco demonstrar ao longo dos capítulos como as pessoas transexuais se tornam tanto humanas quanto cidadãs através de uma espécie de denúncia sobre as violações de certos “direitos fundamentais”. Denúncia esta que, nos marcos contemporâneos da política humanitária (Fassin, 2012), se transfigura em uma obrigação moral de promoção da “dignidade da pessoa humana”. Como o subtítulo da dissertação sugere, este trabalho tem como foco a análise da gestão judicial da demanda por requalificação civil de pessoas transexuais, entendendo tal gestão como parte dos mecanismos de controle de determinadas “populações” que é exercido pelo Estado. Compreendo esta demanda como parte da busca das pessoas transexuais pelo pertencimento à humanidade e pela obtenção da cidadania através da luta por condições dignas de se viver. Em outras palavras, este texto trata das batalhas destes sujeitos pelo reconhecimento de suas existências e experiências através da aquisição de documentos de identificação que sejam representativos de suas “verdadeiras identidades”. Os dados aqui discutidos são oriundos de uma pesquisa etnográfica realizada no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), entre os meses de fevereiro e julho de 2014. Este núcleo, criado em 2011, é tido como responsável por “acolher” as demandas da chamada “população LGBT”. Assim, é atribuição de suas funcionárias atuarem em casos de processos por danos morais provocados por discriminação em relação à orientação sexual e/ou identidade de gênero, pedidos de adoção por parte de pessoas LGBT, dissolução de uniões estáveis ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo, violação de direitos sucessórios, processos de requalificação civil de pessoas transexuais, entre outros tipos de contendas judiciais. Dentre as atividades realizadas durante a pesquisa, destaco o acompanhamento das rotinas de trabalho das profissionais atuantes no NUDIVERSIS (principalmente das

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estagiárias), tanto nos atendimentos as/aos assistidas/os2 quanto nos expedientes internos, bem como as leituras dos documentos, declarações, laudos, certidões, etc. que compõem as “pastas das/os assistidas/os”. Conforme será abordado mais profundamente no primeiro capítulo, minha entrada em campo se dá através do posicionamento como um tipo de “estagiário” do núcleo, o que foi crucial para o acesso a alguns dados, mas também implicou certa limitação na minha circulação pelos corredores da Defensoria Pública. O levantamento bibliográfico sobre a temática da requalificação civil de pessoas transexuais revela que as pesquisas empreendidas, ao menos nos campos disciplinares tanto do Direito quanto das Ciências Sociais, tomam como objeto de análise as normativas e/ou as decisões judiciais acerca da alteração do registro civil, como por exemplo, as realizadas por Zambrano (2003), Ventura (2010) e Teixeira (2013). Deste modo, a pesquisa ora apresentada se diferencia de outras investigações que abordam o tema ao priorizar uma das “portas de entrada” desta demanda, tendo como foco de análise uma etapa anterior aos processos judiciais, na qual se avaliam e se constituem aquelas/es que terão “direito a pleitear direitos”.

*** Aquilo que contemporaneamente se entende por transexualidade3 possui uma genealogia que pode ser rastreada a partir do desenvolvimento dos saberes-poderes da psiquiatria, endocrinologia, psicologia e psicanálise. Tal genealogia já foi amplamente exposta por pesquisadores como Leite Jr. (2010) e Bento (2006). Deste modo, me limito a reproduzir aqui alguns dos levantamentos feitos pelos autores com o intuito de fazer um breve panorama histórico que auxilie na compreensão da forma pela qual as múltiplas experiências de transexualidade são contemporaneamente apreendidas e apropriadas por atores ligados ao poder

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“Assistida/o” é a categoria nativa que designa as/os usuárias/os do serviço da Defensoria Pública.

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Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que não desconheço as críticas que movimentos sociais fazem quanto ao uso do termo “transexualidade”. Uma vertente da militância argumenta que ao falar sobre “transexualidade”, remete-se ao exercício da sexualidade ou da orientação sexual; ao passo que o termo “transgeneridade” seria então o mais adequado, por dizer respeito à identidade de gênero. A transgeneridade abarca uma série de posições identitárias que expressam as variadas formas de vivenciar o gênero, como crossdressers, travestis, pessoas nãobinárias e os sujeitos que são clinicamente classificados como “transexuais”. Este trabalho aborda especificamente as trajetórias dos indivíduos que buscam a alteração do registro civil, que é concedida apenas àqueles que possuem laudos do “transexualismo” ou da “disforia de gênero”. É por esta razão que opto por utilizar a categoria nativa de “transexualidade” encontrada durante o trabalho de campo. Contudo, ressalto que, do mesmo modo que Teixeira (2013), tomo o cuidado de utilizar a palavra “transexual” não como uma identidade ou substantivo, mas sim como um adjetivo, aparecendo quase sempre a expressão “pessoas transexuais”. Por fim, saliento que este cuidado em apresentar a transexualidade como mais uma das inúmeras características que compõem a vida dos indivíduos reflete uma preocupação com a tentativa de não englobar estas pessoas como sujeitos apenas do sexo-gênero.

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Judiciário. A transexualidade figura nos discursos jurídicos a partir das produções médica e psicológica, as quais classificam o “transexualismo” – ou “disforia de gênero”4 – como um tipo de distúrbio psiquiátrico que necessita de um tratamento específico. Jorge Leite Jr. (2010) discute em sua obra de que modo a noção de “humanidade” que regula e dá inteligibilidade aos corpos é fruto da produção discursiva da biopolítica. São nos debates e disputas de poder pelo estabelecimento do “humano” que se fabricam ficções de normalidade e categorias classificatórias nas quais sujeitos são enquadrados. De acordo com o autor, a contemporânea figura da “pessoa transexual” tem suas origens na ideia de “hermafroditismo psíquico” – ou seja, uma espécie de “inversão sexual” a nível mental – desenvolvida por uma “ciência sexual” que se apoia em e articula estudos de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas a partir de meados do século XX. Bento (2006) e Leite Jr. (2010) identificam que três foram os principais teóricos que contribuíram para a formulação do que hoje é nomeado como a/o “verdadeira/o transexual” 5: Harry Benjamin, John Money e Robert Stoller. Estes três sujeitos são formados em campos distintos do conhecimento e enunciam diferentes teorias sobre o que seria o fenômeno, ou, mais especificamente no caso dos três, a patologia do “transexualismo”. Harry Benjamin foi um endocrinologista alemão radicado nos Estados Unidos, figurachave da Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA)6 e autor do pioneiro livro The Transsexual Phenomenon, publicado em 1966 como fruto de pesquisas realizadas nas décadas de 1950 e 1960. Benjamin aponta para o caráter biológico da transexualidade; para ele, o aspecto psicológico é menos preponderante do que a distribuição hormonal dos indivíduos no processo de identificação sexual. Uma das mudanças promovidas por Benjamin foi o reconhecimento do sexo como algo pluridimensional: existe o sexo genético (XX para mulheres e XY para homens); o gonádico (presença de testículos nos homens e ovários nas mulheres); o fenotípico (ligado à aparência externa dos genitais: pênis ou vagina); o psicológico (ligado a uma dimensão subjetiva); e o jurídico (inscrito nos documentos).

Utilizo aqui os termos “transexualismo” e “disforia de gênero” para me referir à inteligibilidade da experiência transexual ditada pelo poder-saber médico, o qual compõe o dispositivo da transexualidade (Bento, 2006). Em contrapartida, o termo “transexualidade” abarca um conjunto mais amplo de vivências de experimentações do gênero. 4

De acordo com Bento (2004 e 2006), o “verdadeiro transexual” é um ser ficcional descrito nos documentos oficiais e nos protocolos de atendimento médico. Faço aqui uma apropriação mais ou menos livre da ideia da autora e utilizo o termo para fazer referência às/aos assistidas/os do NUDIVERSIS que obtêm sucesso nas “peregrinações burocráticas” e conseguem reunir todos os laudos necessários para que sejam juridicamente consideradas/os como transexuais, como será discutido ao longo desta dissertação. 5

6

Atualmente nomeada como World Professional Association for Transgender Health (WPATH).

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Entretanto, enquanto endocrinologista, Benjamin localiza o “verdadeiro sexo” a partir da distribuição hormonal nos corpos e também a partir das definições genéticas. Para o autor, a transexualidade se manifesta quando estes vários “sexos” estão em desacordo. Além de propor um nexo lógico entre o sexo e gênero, a concepção de “transexualidade verdadeira” benjaminiana articula também a esfera da sexualidade, tendo em vista que transexual é aquele sujeito que tem horror ao próprio órgão genital e deseja incontestavelmente uma série de modificações corporais para que possa exercer sua sexualidade de forma “apropriada”. A “mudança de sexo” aparece então como a única forma possível de tratamento para as pessoas “verdadeiramente transexuais” (Bento, 2004). Contemporâneo de Benjamin, o psicólogo e pediatra John Money foi um dos primeiros a utilizar, em 1955, o conceito de “gênero” para falar das diferenças sexuais na Medicina. Money destacava a importância do “sexo de criação” na produção da identificação com o sexo de crianças. Em outras palavras, de acordo com o autor, a identidade sexual é gradualmente moldada até os 18 meses de vida. Apesar de colocar em questão a dimensão social da constituição da identidade sexual ao enfatizar a distinção entre “sexo” e “gênero”, diferentemente de Benjamin, Money compreende o último como uma continuação “natural” do primeiro, contribuindo assim para a manutenção de uma ordem heteronormativa (Butler, 2003) que organiza corpos e desejos, na qual somente as equações homem-pênis-masculino e mulhervagina-feminino produzem seres humanos inteligíveis. Dez anos após o início das atividades de Money, em 1965, foi realizada, no John Hopkins Hospital, a primeira cirurgia de transgenitalização dos Estados Unidos que se tem notícia. Em 1966, John Money fundou a Clínica de Identidade de Gênero junto a este hospital, uma instituição que tinha como objetivo tratar de “problemas” decorrentes da não associação entre os órgãos genitais, o reconhecimento de si como “homem” ou “mulher” e das expressões de “masculinidade” e “feminilidade” (Leite Jr., 2010). A partir de perspectivas distintas dos dois primeiros, o psiquiatra e psicanalista Robert Stoller foi um dos primeiros a sistematizar reflexões sobre a transexualidade nestes campos do conhecimento, apoiando-se em teorias freudianas. Para ele, a gênese da transexualidade se encontra na relação da pessoa transexual com a mãe e se desenvolve na infância. Fica claro que Stoller pensa o fenômeno da transexualidade como uma “enfermidade” que atinge somente “homens biológicos que se pensam como mulheres”, ao descrever como comportamentos típicos da criança que está “desenvolvendo o transexualismo” o desejo de usar roupas do sexo feminino e brincar com bonecas. Como “tratamento”, o autor propõe o desenvolvimento de um “Complexo de Édipo terapeuticamente induzido” ainda na infância. O sucesso do tratamento 6

seria indicado pelo aparecimento de comportamentos agressivos em relação às roupas e brinquedos “de menina” e também para com a mãe. De acordo com Stoller, caso não fosse tratado quando jovem, o indivíduo viria a ser transexual e a única forma de “curar” tal transtorno seria realizar a cirurgia de “mudança de sexo”. Com o passar dos anos, as teorias destes autores foram criticadas e revisadas por outros, como por exemplo, a denúncia do jornalista John Colapinto, que em 2001 expôs outra versão da história de um famoso caso de irmãos gêmeos, o qual foi reiteradamente apresentado por John Money como prova de suas ideias e hipóteses. Entretanto, estas teorias ainda circulam e estão presentes na atual concepção da transexualidade. Até meados de 2013, o “transexualismo” era considerado uma patologia pela quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) – ou, como é conhecido no Brasil, DSM-4. Sua classificação na linguagem médica era, até então, uma espécie de “Transtorno da Identidade de Gênero”. Com a publicação do DSM-V em maio de 2013, a expressão foi substituída por “Disforia de Gênero”, em uma tentativa de retirar das pessoas transexuais o estigma de portadores de um transtorno mental. No entanto, o fato da transexualidade estar descrita em um “Manual de Desordens Mentais” representa um dos obstáculos para a despatologização das experiências de transexualidade e é o suficiente para que a visão destas pessoas como sujeitos acometidos por uma determinada patologia permaneça não só entre médicos e juristas, como também no senso comum.

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No âmbito jurídico brasileiro, a transexualidade possui uma longa e complexa trajetória marcada por diferentes posicionamentos políticos em relação ao tema. Desde o surgimento da atual concepção de transexualidade, em meados da década de 1950, a cirurgia de transgenitalização é apontada como “terapia para adequação genital ao sexo psíquico do indivíduo”. Contudo, tal intervenção corporal era considerada no Brasil crime de lesão corporal por supostamente representar a amputação de um membro saudável do corpo dos indivíduos. Um relevante caso deste período foi o do cirurgião Roberto Farina, pois foi a partir deste que se iniciaram os debates públicos sobre a “descriminalização” da cirurgia de transgenitalização. Em 1971, Farina realizou a cirurgia em uma pessoa cujo nome de registro era Waldir Nogueira. O pedido de requalificação civil de Waldir não foi somente negado, mas também resultou em um inquérito policial instaurado contra Farina por conta do crime de “lesão corporal grave”. Em um processo movido pelo Conselho Federal de Medicina, o cirurgião 7

acabou condenado a dois anos de reclusão e teve seu registro profissional cassado. Farina foi absolvido posteriormente devido à intervenção de diversos profissionais ligados tanto à Medicina quanto ao Direito. A junta médica do Hospital das Clínicas de São Paulo emitiu um parecer favorável à realização da cirurgia como solução terapêutica e o criminalista Heleno Fragoso avaliou como improcedente a acusação de lesão corporal. Em seu parecer, considerado histórico, Heleno Fragoso (1979) destaca a “novidade” da questão transexual. O jurista cita as teses de Harry Benjamin e John Money para diferenciar homossexuais, travestis e transexuais, destacando a condenação moral que recai sobre os dois primeiros e o caráter de enfermos dos últimos. Em suas palavras, “entende-se por transexualismo uma inversão da identidade psico-social, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-compulsiva, que se manifesta pelo desejo de reversão sexual integral”. Por fim, Fragoso ressalta que não há dúvida de que o “transexualismo” constitui uma patologia cuja intervenção cirúrgica é a terapêutica mais adequada. A “descriminalização” da cirurgia de transgenitalização ocorreu em 1997 com a publicação da Resolução nº 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Tal resolução autorizou, em caráter experimental, as cirurgias do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia7 e outros procedimentos de intervenção nas gônadas e caracteres sexuais secundários para o tratamento do “transexualismo” (Teixeira, 2013). Conforme apontado por Zambrano (2003 e 2005), é somente a partir da possibilidade de realização da cirurgia e da autorização propiciada pela resolução do CFM que se constitui a pauta pelo “direito de mudança de nome e sexo”, ou requalificação civil, redesignação de nome e sexo, entre outros termos. Em 2002, o CFM lançou a Resolução nº 1652/2002 que substituiu a resolução anterior. A novidade desta resolução foi a retirada do caráter experimental da cirurgia de neocolpovulvoplastia, ou seja, tal cirurgia foi liberada para ser realizada por médicos de hospitais de todo o Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto a cirurgia de neofaloplastia permaneceu restrita aos hospitais universitários que realizam pesquisas sobre esta temática. Almeida e Murta (2013) salientam que apesar de não ser mais considerada “experimental” e figurar associada a um determinado número na Classificação Internacional de Doenças (CID), a cirurgia de neocolpovulvoplastia não consta na tabela de procedimentos cobertos pelos planos de saúde e não parece haver nenhum movimento da Agência Nacional de Saúde (ANS) no sentido de reverter tal situação. Segundo os autores, este quadro influencia para que a realidade

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A neocolpovulvoplastia e a neofaloplastia são cirurgias plásticas que visam à construção de uma vagina e de um pênis, respectivamente.

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dos programas transexualizadores seja marcada por filas que não possuem previsão de andamento. Com isso, a efetivação de todas as mudanças corporais desejadas pelas pessoas transexuais pode levar muito mais que os dois anos mínimos previstos pela regulamentação do CFM e, assim, “prolonga-se desnecessariamente um estado de insatisfação e, em muitos casos, de ausência de cidadania em seus termos mais elementares (direitos civis, direito de propriedade, direito ao trabalho)” (p. 395). De acordo com Teixeira (2013), a retirada do caráter experimental da cirurgia de neocolpovulvoplastia se deu por conta de uma exigência burocrática do Ministério da Saúde para que esta fosse incluída na tabela de procedimentos cobertos pelo SUS. Atualmente, a Resolução vigente é a nº 1955/2010, que revogou a de 2002. Apesar de manter o caráter experimental da cirurgia de neofaloplastia, tal resolução autoriza os profissionais da rede privada de saúde a realizar de procedimentos complementares sobre as gônadas e caracteres sexuais secundários como parte do tratamento da transexualidade, como por exemplo, a retirada de útero, ovários e mamas. As colocações de Fragoso (1979) ecoam até hoje nos discursos produzidos pelos operadores do Direito. A professora e advogada Tereza Vieira (2011), referência comum em artigos, peças processuais e decisões judiciais acerca da requalificação civil de pessoas transexuais, destaca que a transexualidade é compreendida a partir das produções médicas e psicológicas sobre o tema, sendo representada então como um conflito entre o corpo e a identidade de gênero do sujeito. A inexistência de uma lei explícita sobre o direito à identidade sexual e o não enquadramento da pessoa transexual nas previsões jurídicas são apontadas por Schramm, Barboza e Guimarães (2011) como uma das principais causas da negação dos direitos destes indivíduos. O PLC 5002/2013, também conhecido como Lei João Nery8, proposto pelo deputado federal Jean Wyllys e pela deputada federal Érica Kokay, visa estabelecer uma “lei de identidade de gênero”. O projeto tem por intenção regulamentar não só o processo de alteração do registro civil de travestis, pessoas transexuais e intersexuais, como também modificar as condições de acesso à serviços de saúde, tais como a hormonização e a cirurgia de transgenitalização, as quais não seriam mais encaradas como parte de um “tratamento” para uma patologia e, portanto, não dependeriam mais de um diagnóstico e/ou autorização judicial.

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João W. Nery é um famoso e importante militante do movimento transexual. Em seu livro autobiográfico, Viagem Solitária, João narra como a impossibilidade de alterar legalmente seu registro civil o levou a renunciar sua carreira como professor universitário para que pudesse apresentar documentos de identificação masculinos em sua vida cotidiana, uma vez que todos os diplomas e certificados estavam em seu nome de registro.

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Entretanto, o projeto parece caminhar a passos lentos. Após ter sido desarquivado no início de 2015, o PLC ainda aguarda designação de relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. É neste cenário de incerteza e dificuldades de “acesso aos direitos” – por conta da não existência de normativa legal9 que rege a requalificação civil de pessoas transexuais – que se desenvolvem as atuações das profissionais da Defensoria Pública. Em outras palavras, é a ausência de um amparo legal que faz com que o processo de alteração do registro civil apele para uma série de argumentações e estratégias de apresentação de diversos tipos de “provas” e justificativas, como será demonstrado aos longos dos capítulos deste trabalho. Assim, ressalto que minha intenção não é “criticar” o trabalho feito pelas funcionárias do núcleo, mas sim contextualizar como a administração e gestão da demanda por requalificação civil de pessoas transexuais se dá em meio a um conjunto de obstáculos que precisam ser enfrentados tanto pelas/os pleiteantes, quanto pelas operadoras/es do Direito.

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A mudança de estatuto da cirurgia de transgenitalização, que deixa de ser uma mutilação e passa a ser considerada como terapêutica, é acompanhado pela modificação da moralidade que cerca a transexualidade, que não é mais vista como um “desvio moral”, mas sim como uma patologia que acomete alguns sujeitos. É a partir desta mudança no plano moral que a transexualidade se transforma em um objeto amplamente investigado por pesquisadores da bioética (Schramm, Barboza e Guimarães, 2011). É também esta visão patológica que faz com que a argumentação em favor do direito à requalificação civil passe a ter como pedra angular a luta pelo “direito à saúde” e a defesa do “Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”, apelando sempre para a obrigação dos operadores do direito de amenizar o sofrimento de “indivíduos doentes” e oferecer a estas pessoas condições para uma “vida digna”. Sobre este ponto é preciso destacar as relações entre moralidade e patologia: a transexualidade deixa de ser um tipo de falha moral da pessoa transexual através da sua conversão em uma questão de saúde ao mesmo

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Apesar da lei de identidade de gênero ainda não existir, a utilização do nome social por instituições públicas e privadas tem se constituído enquanto um mecanismo que tenta minimizar os constrangimentos enfrentados por pessoas transexuais em situações em que os documentos de identificação são solicitados. Neste sentido, uma série de manobras políticas foram acionadas por instâncias como, por exemplo, o Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Saúde (MS), para que suas/eus usuárias/os do Sistema Único de Saúde) e de instituições públicas de ensino possam ser identificados pelo nome utilizado publicamente.

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tempo em que se configura como um problema moral para os operadores do Direito, invertendo assim a equação que regulava estas relações. Sanches (2011) argumenta que o nome e o sexo são elementos da representação social do indivíduo e que os documentos que não expressam a realidade dos sujeitos são fontes da infelicidade da pessoa transexual, que busca contornar tal situação através da requalificação civil. Ainda segundo a autora, nome e sexo se confundem como elementos identificadores a partir do momento em que existem “nomes masculinos” e “nomes femininos”, sendo esta uma das principais causas dos constrangimentos que as pessoas transexuais estão expostas. Neste sentido, “a busca da felicidade no perfeito ajuste da personalidade do indivíduo com sua representação social é a tônica social moderna” (p. 425). Em outras palavras, as formulações das demandas por direitos das pessoas transexuais é orientada por uma tripla busca: 1) pelo pertencimento ao humano, compreendido aqui como o reconhecimento da experiência transexual no interior da matriz heterossexual que dá inteligibilidade aos corpos, o qual, em última instância, está condicionado à aquisição de um laudo médico; 2) pela cidadania, entendida aqui como o pleno exercício de direitos; e 3) pela vida digna, representada pela ausência de discriminação. O tratamento indicado para a “cura” do transexualismo – a chamada “terapia de mudança de sexo” – inclui uma série de procedimentos como a utilização de hormônios, o acompanhamento psicoterápico, as intervenções corporais sobre as gônadas e os caracteres sexuais secundários (retirada de mamas, ovários e útero) e aquilo que é tido como seu ápice: a cirurgia de transgenitalização ou “redesignação sexual”. Para além dos consultórios médicos e psicológicos, esta “terapia” estende-se para o âmbito judiciário ao incluir como parte do tratamento a aquisição de um dado bem social: as alterações de nome e sexo no Registro Civil, ou, a requalificação civil. Grosso modo, o propósito deste tratamento é solucionar os “conflitos inerentes à transexualidade” e oferecer aos portadores da disforia de gênero a oportunidade de “viver dignamente”. É possível notar como a criação de uma categoria para explicar e classificar um determinado conjunto de experiências produz não só uma determinada patologia – o “transexualismo” ou “disforia de gênero” –, como também modifica radicalmente as formas de subjetivação dos indivíduos que são colocados sob esta denominação. É neste processo que se cria a pessoa “transexual”, uma figura investida de uma série de discursos reguladores e posicionada no centro de uma disputa de poder pela definição da verdade entre diferentes esferas do saber. Visto por outro ângulo, pode-se compreender a criação do “transexualismo”, das “pessoas transexuais” e da “terapia de mudança de sexo” como formas de dar sentido à 11

múltiplas formas de vivenciar a transexualidade e tentar colocar tais indivíduos dentro dos limites do humano. Como discutido acima, ao definir a transexualidade como uma patologia e, consequentemente, transformá-la em uma questão de saúde pública, os médicos retiraram das mãos do poder Legislativo a competência para regular o acesso aos direitos de pessoas transexuais. Os conflitos entre Medicina e Direito sobre a autoridade para determinar o que é feito com determinados sujeitos não é recente e pode ser percebido em diversas searas e na construção de distintos “problemas” que necessitam ser “resolvidos”. Um dos exemplos deste embate foi estudado anos atrás por Carrara (1998) em sua pesquisa sobre o manicômio judiciário. Como assinala o autor, a figura do “louco criminoso” localiza-se no centro das disputas de poder travadas por médicos e juristas pela designação da “instituição responsável” por lidar com estas pessoas. O reposicionamento da transexualidade no plano político pela via da Medicina constitui, antes de tudo, uma atualização dos mecanismos de poder que conformam e estabelecem protocolos de atendimento em hospitais e normativas para alteração de nome e sexo no âmbito judiciário. Nas palavras de Bento (2006), são estes saberes que conformam o dispositivo da transexualidade, ou seja, um conjunto de práticas discursivas e não discursivas as quais têm por finalidade estabelecer uma dominação (Foucault, 1988); ou ainda, segundo Márcia Arán, equivale à “gestão biomédica das subjetividades no contexto atual da sociedade de controle” (2012, p. 140). As teorias dos autores mencionados na segunda parte desta introdução podem ser lidas na chave do que Butler (2003) chama de “matriz heterossexual”. Tal matriz opera uma vinculação entre as dimensões do sexo, gênero e sexualidade na produção discursiva que dá inteligibilidade aos corpos e apresenta como natural tanto aquilo que é compreendido como “características típicas de homens e mulheres”, quanto a heterossexualidade, apoiada em enunciados sobre a reprodução humana. Ainda de acordo com Butler, a existência do ser social depende da experiência do reconhecimento do pertencimento à humanidade e as fronteiras do humano são determinadas pelas normais sociais (2004b). A patologização da transexualidade produz a inteligibilidade das experiências de pessoas transexuais e, por conseguinte, transforma tais sujeitos em “humanos”. Entretanto, esta forma de compreensão traz como um efeito possível a “vitimização” dos sujeitos, os quais passam a ser encarados como portadores de um “transtorno da identidade de gênero”. Deste modo, ao mesmo tempo em que a linguagem do sofrimento legitima uma série de direitos pleiteados pelas pessoas transexuais, revelando neste processo a dimensão moral presente no 12

campo do Direito e dando forma a uma espécie de “política de gestão das vítimas” (Fassin, 2012 e Sarti, 2011), ela impõe aos sujeitos outra gramática normativa – que definirá quem é “verdadeiramente transexual” – e excluirão aqueles que não se encaixarem neste modelo, ou seja, as/os “outras/os transexuais”. Aqueles que não têm suas experiências reconhecidas – ou seja, não adquirem as “provas da transexualidade”, materializadas nos laudos psiquiátricos, psicólogos e endocrinológicos – são postos à margem da humanidade. Ou seja, são corpos ininteligíveis que, por não serem reconhecidos no interior do dispositivo da transexualidade, encontram-se excluídos da economia jurídico-moral que regula o “acesso aos direitos”. Produzem-se assim novas desigualdades ao hierarquizar os diferentes modos de viver a experiência da transexualidade, ou, como aponta Claudia Fonseca e Andrea Cardarello (1999), a disputa de poder para determinar quem tem a autoridade para designar quem são os detentores de direitos implica uma definição de quem são os “mais e menos humanos”.

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A organização dos capítulos desta dissertação reproduz, de certa forma, as trajetórias das pessoas transexuais que buscam a requalificação civil através da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Em outras palavras, a estrutura do trabalho está baseada no trâmite de parte da peregrinação burocrática necessária para a construção das ações de requalificação civil: primeiro atendimento e encaminhamentos para busca de declarações e certidões em outras instituições; reunião de todos os documentos necessários para o ajuizamento da ação; e, por último, a produção da petição inicial de requalificação civil. O capítulo que abre este trabalho traz uma apresentação da instituição onde foi realizado o trabalho de campo: estrutura, horário de funcionamento, formas de atendimento, atribuições da instituição, demandas recepcionadas e outros fatores importantes para a caracterização do núcleo. A partir da descrição do NUDIVERSIS, localizo-o no interior de uma malha de outras instituições que compõem o “Estado” e também dentro de um conjunto de políticas públicas que visam gerir as demandas da “população LGBT”. Nesta esteira, abordo também como isto implica em um processo de dupla constituição que forma não só os sujeitos das políticas, mas também cria a necessidade das mesmas. Por fim, explicito as condições nas quais esta pesquisa foi realizada, demonstrando como foi minha entrada em campo e as negociações para o acesso aos dados. O segundo capítulo aborda como se define quem terá “direito a pleitear direitos”. Na primeira parte do capítulo, concentro-me na descrição e análise do primeiro contato das/os 13

assistidas/os com as profissionais do núcleo: o chamado “primeiro atendimento”. Este episódio se materializa posteriormente em um documento chamado de Relatório de Primeiro Atendimento, o qual contém as informações básicas de identificação tanto das/os assistidas/os quanto de suas demandas. É na situação do primeiro atendimento que histórias, demandas e pessoas são avaliadas, podendo ou não gerar a “abertura de procedimento”, movimento que significa a oficialização da recepção do pedido de requalificação civil dos sujeitos pelas funcionárias do NUDIVERSIS. Na segunda parte do capítulo são exploradas as “peregrinações burocráticas” que as pessoas transexuais precisam realizar durante o período em que são assistidas pela Defensoria Pública. A ideia principal desta parte é pensar o trânsito destes sujeitos por outros espaços e instituições na busca pelos documentos necessários para instaurar a “ação de requalificação civil” como parte das estratégias e mecanismos de gestão e controle do acesso ao direito de alteração do registro civil. Na terceira seção, preocupo-me em evidenciar como as/os assistidas/os são produzidos e geridos ao longo do tempo de assistência. Deste modo, exploro quais são os critérios utilizados para avaliar pessoas que pretendem realizar a alteração de nome e sexo no registro civil. O terceiro capítulo, intitulado “corpos de papel, sujeitos impressos”, pode ser compreendido como uma continuação do anterior. A principal questão deste capítulo é problematizar a concepção que orienta parte da argumentação elencada em favor da alteração do nome e sexo no registro civil: a de que os documentos devem refletir a realidade. A primeira parte do capítulo aborda a organização e composição das pastas das/os assistidas/os através dos documentos obtidos após a peregrinação burocrática e a forma pela qual os sujeitos se materializam através de documentos como declarações, atestados, relatórios e fotos. Além da materialização de pessoas, discuto também o estatuto de prova que estes vários documentos adquirem no processo de requalificação civil. A segunda parte articula a questão principal do capítulo e as concepções sobre sexo/gênero que orientam as normativas e decisões judiciais. Na terceira seção, busco aproximar as ações de produção de documentos e os atos mágicos descritos por Mauss (2003). Por último, discuto de que modo os discursos vão para além do papel e constroem, também, a subjetividade das pessoas transexuais. O quarto e último capítulo apresenta uma análise do “produto final” que é função do NUDIVERSIS elaborar: as petições iniciais de requalificação civil. Neste capítulo é abordado o modo pelo qual política, emoções e moralidades se conjugam na busca por direitos de pessoas transexuais ao demonstrar como o “Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” funciona como fio condutor da argumentação desenvolvida pelos operadores do Direito que atuam nestas causas. Ademais, este princípio se desdobra em uma série de considerações de cunho moral e 14

apelos emocionais que vão além das justificativas baseadas nas normas positivas do Direito. Por um lado, parte da retórica utilizada nestes documentos tenta produzir no indivíduo responsável pelo julgamento uma empatia pelo autor da ação. Por outro, há, ao longo do texto, denúncias de “contaminação moral” por parte dos juízes que já negaram os pedidos de alteração do registro civil. Este capítulo encontra-se dividido em quatro seções. Na primeira, abordo o modo pelo qual os operadores do Direito incorporam o fenômeno da transexualidade em sua linguagem, descrevendo, assim, sujeitos vulneráveis porque vítimas. A segunda seção traz os argumentos desenvolvidos ao longo dos textos das petições para defender a legitimidade da demanda por requalificação civil de transexuais, implicando assim uma espécie de política da compaixão. A terceira seção amarra as duas anteriores através da reflexão sobre os “direitos das vítimas” que se constitui a partir das atuações das profissionais do núcleo e das ações judiciais protocoladas. A última apresenta alguns desdobramentos deste modo fazer política: o apagamento dos sujeitos e a homogeneização das experiências de sofrimento.

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Capítulo 1 O Lugar da Diversidade: apresentando o NUDIVERSIS e a pesquisa empreendida

O capítulo que abre este trabalho tem por objetivo abordar o primeiro passo para a construção das pessoas transexuais enquanto “sujeitos de direitos” e, assim, oferecer as bases para a compreensão e contextualização das questões que serão discutidas ao longo do texto. Entendo como este “primeiro passo” a criação do NUDIVERSIS enquanto uma instituição que é responsável por “acolher” todas as demandas da “população LGBT” e prestar a assistência jurídica necessária para que tais demandas sejam atendidas. Deste modo, dedico-me aqui à apresentação tanto da instituição na qual se deu o trabalho de campo, quanto das condições de execução da pesquisa. Tomo como ponto de partida a descrição tanto dos aspectos mais objetivos do NUDIVERSIS, como o espaço de trabalho, as rotinas, as atribuições institucionais e a estrutura profissional; quanto do processo de criação do núcleo. A partir deste panorama, busco refletir sobre os efeitos políticos da concepção de um núcleo deste tipo, localizando-o no interior de uma malha de instituições que compõem aquilo que é compreendido como “o Estado”. Assim, abordo também a forma como a construção de uma política de governança produz a “população LGBT” enquanto sujeitos de direitos específicos, ao mesmo tempo em que produz o Estado.

1.1 Descrevendo o NUDIVERSIS: rotinas de trabalho, atribuições institucionais e estrutura profissional

O espaço e a rotina de trabalho no núcleo

O Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS), criado em maio de 2011, é um órgão de atuação da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ). Grosso modo, a Defensoria Pública pode ser definida como uma instituição estatal que tem por objetivo cumprir o dever constitucional do Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita às pessoas que, comprovadamente, não possuem condições financeiras para arcar com as despesas dos serviços judiciais sem prejudicar seu 16

sustento ou o de sua família; também chamadas nativamente de sujeitos hipossuficientes. As disposições constitucionais sobre o assunto são as seguintes: artigo 5º, inciso LXXIV, o qual diz “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”; e artigo 134, o qual expõe: “a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”. O NUDIVERSIS está localizado em um prédio comercial na região central da cidade do Rio de Janeiro. O núcleo divide um andar deste prédio com o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH), o qual era responsável pelo acolhimento das demandas das pessoas LGBT antes da criação do núcleo especializado. Não existe nenhum tipo de sinalização que indique o espaço delimitado de cada um dos núcleos10. Pelo contrário, as/os assistidas/os tanto do NUDIVERSIS quanto do NUDEDH dividem as duas salas de espera existentes: uma localizada imediatamente após a saída dos elevadores e antes da mesa da recepção, na qual fica um segurança; e outra que fica após a recepção, diante da porta que dá acesso à sala dos estagiários. As/os estagiárias/os de ambos os núcleos compartilham uma mesma sala de trabalho; o mesmo acontece na sala das/os assessoras/es e funcionárias/os técnicas/os administrativas/os. O único espaço que pode ser considerado como exclusivo do NUDIVERSIS é a sala da Defensora Pública que coordena o núcleo, a qual conta com, além da mesa de trabalho da Defensora, uma mesa vazia, que por vezes é utilizada nos atendimentos aos assistidos e assistidas. É preciso ressaltar que no âmbito dos dois núcleos, ela é a única Defensora que possui uma sala própria. As/os Defensoras/es do NUDEDH se dividem entre outras duas salas maiores. O horário de funcionamento do núcleo é das 11 às 17 horas, de segunda à sexta-feira, período que compreende a jornada de trabalho da assessora e da funcionária técnica administrativa. Entretanto, o atendimento ao público é realizado somente na parte da tarde, entre às 13 e 17 horas, horário equivalente à jornada das estagiárias. O horário de atendimento é restrito ao horário das estagiárias porque são estas que realizam a grande maioria destes, como será discutido mais adiante. O método de controle do fluxo de atendimento é o mesmo para

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Por este motivo, é praticamente impossível descrever as rotinas do NUDIVERSIS sem atentar para os procedimentos realizados pelo outro núcleo (NUDEDH).

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ambos os núcleos: assim que sai do elevador, a pessoa é interpelada por um segurança, que pergunta o nome da/o assistida/o, o núcleo pelo qual será ou está sendo acompanhada/o e se possui atendimento agendado. O segurança então anota o nome, o núcleo e o horário de chegada da pessoa em uma tabela impressa e pede que a pessoa aguarde nos bancos da sala de espera que fica após a recepção. Com as informações em mãos, ele se dirige à sala das/os estagiárias/os e avisa que tal pessoa está esperando para tal núcleo, geralmente dando uma breve descrição da/o assistida/o e indicando em que ponto da sala a pessoa está sentada aguardando.

Figura 1: Planta do NUDEDH/NUDIVERSIS.

Os atendimentos realizados tanto pelo NUDIVERSIS quanto pelo NUDEDH se dão, em sua maioria, nas próprias salas de espera. A única exceção acontece quando se trata de um “primeiro atendimento”11, que é realizado em outro espaço: uma mistura de sala de estudo e depósito de arquivos que é utilizada para os mais diversos fins. Esta sala não possui janelas e é relativamente pequena e apertada. Nela se encontra uma estante de livros de Direito que vão desde os de temáticas mais comuns – como por exemplo, a Constituição Federal e o Código Penal – até aqueles acerca das matérias específicas trabalhadas pelo NUDEDH. Contudo, não há nenhum livro específico sobre “direitos LGBT” disponível para consulta nesta estante. Outra estante está repleta de pastas com arquivos da Defensoria Pública. Além destas estantes, há, no O “primeiro atendimento” é uma das categorias êmicas mais importantes em uso no NUDIVERSIS. Esta será abordado mais detidamente no próximo capítulo. 11

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centro da sala, uma mesa redonda e, em um canto, uma mesa com um computador. Como dito, esta sala é utilizada das mais variadas formas. O computador é, por vezes, utilizado pela auxiliar de serviços gerais em seu horário de almoço; alguns defensores fazem reuniões na sala; e certos atendimentos do NUDIVERSIS ocorrem neste espaço. Em resumo, o espaço é usado quando se precisa alguma privacidade, a qual é garantida através de uma placa que é afixada na porta indicando que a sala está ocupada. A maioria das/os assistidas/os do núcleo é oriunda de outras instituições voltadas para o atendimento da população LGBT no Rio de Janeiro, com as quais existem “Termos de Cooperação” assinados por representantes de ambas as partes. São estas os Centros de Cidadania LGBT do programa Rio Sem Homofobia12 e Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual13. Contudo, estas não são as únicas vias pelas quais os sujeitos acessam o núcleo. Alguns deles são encaminhados por outros órgãos de atuação da própria Defensoria Pública. Outras pessoas também chegam ao núcleo sem nenhum tipo de encaminhamento formal, através da indicação de outras/os assistidas/os. Especificamente no caso das pessoas transexuais, é comum que haja um aconselhamento por parte da equipe profissional de programas transexualizadores para que elas busquem orientação jurídica no NUDIVERSIS.

As atribuições do NUDIVERSIS

Além da sede no Centro da cidade, a Defensoria Pública conta com três tipos de instituições em sua estrutura: as unidades de atuação ligadas às Varas onde os processos tramitam; os núcleos regionais, os quais são responsáveis por realizar o “primeiro atendimento” e o “aconselhamento jurídico” dos moradores de determinados bairros (como por exemplo, os núcleos de Botafogo, Santa Cruz, Vila Isabel, Madureira, Bangu, etc.); e os núcleos especializados, que lidam com matérias e/ou populações específicas, consideradas como

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O programa Rio Sem Homofobia, criado em maio de 2007, é uma iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro que tem por objetivo combater a discriminação e a violência contra a população LGBT e promover a cidadania desta população em todo o estado. O programa está vinculado à Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro (SEASDH/RJ) e é coordenado pela Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SuperDir). Para uma etnografia sobre o processo de construção e implementação do programa, consultar Aguião (2014). 13

A Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (CEDS-Rio) é uma pasta do poder público da Prefeitura do Rio de Janeiro criada em 2011. Seu objetivo é “propor políticas públicas de promoção de uma cultura de respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero, assim como resguardar direitos que favoreçam a visibilidade e o reconhecimento social do cidadão LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros no Município do Rio de Janeiro”. Disponível em: . Último acesso em agosto de 2014.

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necessitadas de algum tipo de “assistência especial” (Como por exemplo, o NUDIVERSIS, o NUDEDH, o Núcleo de Defesa do Consumidor, o Núcleo Especial de Atendimento à Pessoa Idosa, o Núcleo Especial de Direito da Mulher e de Vítimas de Violência, dentro outros)14. Em outras palavras, os núcleos especializados respondem à uma espécie de “carência” de administração singular demandada por determinados grupos e/ou assuntos. “Carência” esta que é fabricada pela própria malha administrativa do Estado, como discutirei mais adiante. O NUDIVERSIS é classificado como um núcleo especializado de primeiro atendimento. Para compreender a extensão deste tipo de categorização é preciso dividir esta frase em duas partes. Primeiramente, o termo “especializado” indica que as atividades do núcleo são direcionadas às questões e demandas de uma determinada “população” (Aguião, 2014), no caso, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Já a expressão “primeiro atendimento” aponta para o fato de que o núcleo atua, ao menos oficialmente, somente em uma etapa pré-processual. Ou seja, é função do núcleo “garantir a efetividade do acesso à justiça” das pessoas LGBT. Neste caso, a palavra “acesso” não carrega uma conotação moral característica do “fazer justiça”, mas sim possui um significado muito próximo do literal: fazer com que as demandas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais “cheguem” ao poder Judiciário, uma vez que as atividades do núcleo se concentram em produzir petições iniciais15 – e tudo aquilo implicado neste processo como, por exemplo, a produção e reunião de provas a serem anexadas – que serão posteriormente entregues aos assistidos e assistidas para serem protocoladas em órgãos competentes do Judiciário para dar início ao processo judicial propriamente dito. Neste sentido, os processos com os quais as profissionais do núcleo lidam são, basicamente, processos administrativos, também chamados de procedimento. O documento que justifica a atuação do NUDIVERSIS nos casos patrocinados é fundamental para a construção do raciocínio a ser desenvolvido ao longo deste trabalho. Patrocinar um caso, um interesse ou uma ação significa transformar a demanda de alguém em um processo judicial. No âmbito da Defensoria Pública, este é o movimento que inicia a judicialização de uma vontade. Assim, neste contexto, o verbo “patrocinar” adquire uma dupla acepção: 1) o primeiro sentido tem a ver com uma questão de representação jurídica: ao patrocinar um caso, o advogado se torna a pessoa capacitada para agir em uma causa; 2) o segundo significado remete a uma dimensão financeira: a gratuidade de justiça promovida pela 14

As listas dos Núcleos Regionais da cidade do Rio de Janeiro e dos Núcleos Especializados podem ser encontradas nos anexos deste trabalho. 15

Petição inicial é o nomes dado ao documento protocolado em Tribunais de Justiça ou Fóruns para dar início a um processo judicial.

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Defensoria Pública visa uma integralidade de abrangência dos custos processuais, uma vez que esta abarca honorários advocatícios, perícias e custas judiciais e extrajudiciais. Definida de um modo genérico, a principal atribuição dos Defensores Públicos em exercício no NUDIVERSIS é “atuar na defesa de LGBT em causas que sejam relacionadas a esta condição”. De acordo com o texto deste documento – intitulado “Justificativa para Autuação de Procedimento” –, a construção de um sujeito de direitos que necessita de um serviço especializado está ancorada na precariedade de direitos, na condição de vulnerabilidade e no modo de funcionamento dos órgãos do Judiciário, conforme fica explicitado no seguinte trecho:

Considerando que as pessoas que compõem a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) encontram especiais dificuldades para exercitar com plenitude ante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, enquadram-se no conceito de pessoas em situação de vulnerabilidade da regra n. 3 do documento internacional conhecido como ‘100 Regras de Brasília sobre acesso a justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade’, estando a demandar a atuação do NUDIVERSIS, a fim de buscar-se a efetividade do acesso à justiça. (Justificativa para autuação de procedimento, grifos no original)

Assim, as profissionais do núcleo atuam em diversos tipos de “casos”, como por exemplo, processos por danos morais e agressões físicas provocadas por discriminação em relação à orientação sexual e/ou identidade de gênero, pedidos de adoção por parte de pessoas LGBT, ações de dupla maternidade ou paternidade, garantia de direitos associados à dissolução de uniões estáveis ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo, violação de direitos sucessórios, reconhecimento de união estável post mortem, pedidos de requalificação civil, obrigação do Estado de prestação de serviços de saúde pública, entre outros. Durante o trabalho de campo, tive como foco a apreciação da administração daquilo que as pessoas transexuais reivindicam enquanto “seus direitos”. Neste sentido, a principal demanda apresentada por estas pessoas é a requalificação civil, ou “redesignação de prenome e sexo” no registro civil. Outros pedidos e reclamações feitas pelos sujeitos transexuais estavam relacionados à falta ou ao não acesso aos medicamentos indicados como terapêuticos para a transexualidade – geralmente hormônios e/ou inibidores de hormônios; ou ainda, reclamações sobre serviços de saúde prestados pelos programas transexualizadores, como o longo tempo de espera para a marcação de consultas, a falta de vaga em ambulatórios e a não previsão de realização da cirurgia transgenitalizadora, o não respeito ao uso do nome social etc.

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Nos casos em que é solicitada a modificação de prenome e sexo de pessoas transexuais, a atuação do núcleo consiste em elaborar uma ação de requalificação civil, que, em outras palavras, é uma petição inicial a ser entregue as/aos assistidas/os para dar início ao processo de “alteração de prenome” ou “alteração de prenome e sexo”. A distinção da demanda entre “alteração de prenome” e “alteração de prenome e sexo” se faz importante na medida em que cada uma delas é remetida a diferentes Varas do poder Judiciário, implicando, entre outras coisas, distintos tempos médios de julgamento da ação. Os processos de requalificação civil que visam à mudança de sexo no registro civil da/o assistida/o são de competência da Vara de Família por se tratar de uma alteração no “estado da pessoa”. Já os pedidos de modificação apenas do prenome, por não terem essa especificidade, são distribuídos nas Varas de Registros Públicos. A construção da ação de requalificação civil traz consigo um processo de produção, organização e apresentação de “provas” de que o indivíduo autor da ação se trata de um “verdadeiro transexual” (Bento, 2006) e que, por conta disso, deve ter seu desejo pela alteração de nome e/ou sexo acolhido pelo Judiciário. Dentre os diversos tipos de documentos que figuram como “provas”16 nestes processos, encontram-se laudos de psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais atestando a transexualidade do sujeito; certidões de “nada consta” emitidas por Ofícios de Registro de Distribuição (ORD) comprovando que não existe nenhum tipo de pendência judicial, tributária, criminal etc. associada àquela pessoa; Estudos Sociais elaborados por psicólogos e assistentes sociais vinculados à Defensoria Pública avaliando a procedência do pedido de requalificação civil; fotos da assistida ou assistido “vivendo sua identidade de gênero”; e uma lista com, ao menos, três pessoas “dispostas a testemunhar em juízo que tal pessoa se trata de uma ou um transexual”. De acordo com as estagiárias, o tempo médio de duração do acompanhamento de uma/um assistida/o pelo NUDIVERSIS, isto é, o período que compreende desde o primeiro atendimento até a entrega da petição inicial, é de dois a três meses. Segundo a Defensora Pública que coordena o núcleo, o trabalho executado pelas profissionais é rápido: uma vez que se tenha em mãos todos os documentos necessários para o ajuizamento da ação de requalificação civil, levam-se em média três dias para a produção da petição inicial17. Por um lado, o longo tempo

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O status de prova que determinados papéis adquirem nos processos de requalificação civil de pessoas transexuais será discutido em maior profundidade no terceiro capítulo deste trabalho. 17

Cabe salientar que as petições iniciais seguem um modelo previamente estabelecido, com pouco espaço para modificações, as quais dependem das trajetórias das/os assistidas/os. Este modelo de petição inicial é tomado como objeto de análise no quarto capítulo desta dissertação.

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de espera a qual os sujeitos estão submetidos é oriundo do funcionamento de outras instituições, como por exemplo, a Coordenação de Psicologia e Serviço Social da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e os ORD. Por outro, tal demora é atribuída pelas profissionais ao “desinteresse” ou “descompromisso” das/os assistidas/os em buscar ofícios e apresentar a documentação que precisa a ser anexada à ação. Ressalto que durante os meses em que acompanhei e participei das rotinas de trabalho das profissionais do NUDIVERSIS, nenhuma/um das/os assistidas/os as/os quais pude observar desde o primeiro atendimento teve a petição inicial entregue. Até o momento em que encerrei o campo, nenhuma dessas pessoas havia reunido a documentação completa para o ajuizamento da ação. De acordo com as estagiárias, algumas destas pessoas “simplesmente desistiram” da demanda, tendo em vista que não mais entravam em contato ou respondiam as solicitações das profissionais do núcleo. De um modo mais difuso, a espera dos indivíduos “realmente interessados” na requalificação civil é produzida como “culpa da burocracia”, o que, em última instância, pode ser compreendido como a responsabilização do “Estado”. Para pensar sobre este ponto, trago as colocações de Herzfeld (1993) sobre a teodiceia secular. Segundo o autor, é a teodiceia secular que permite a problematização daquilo que é descrito como errado sem descrer completamente na cosmologia do Estado. Em outras palavras, esta é uma linguagem utilizada para falar contra o Estado sem abalar sua crença fundante, construindo a inteligibilidade das situações através da acomodação dos infortúnios. Como mencionado anteriormente, o NUDIVERSIS atua somente na fase prévia a instauração do processo judicial propriamente dito. Logo, o trabalho do núcleo tem início com a recepção da demanda através daquilo que é nativamente nomeado como primeiro atendimento e encontra seu fim, ao menos no plano teórico, com a entrega da petição inicial a/ao assistida/o. Após estar com a petição inicial em mãos, a/o assistida/o deve protocolá-la no Fórum competente, ou seja, aquele que abrange seu bairro de residência. Conforme exposto acima, a distribuição da ação vai depender dos pedidos constantes no documento: ações para alteração somente de prenome são encaminhadas para a Vara de Registros Públicos, enquanto os processos de modificação de prenome e sexo são de competência da Vara de Família. A partir do momento em que a ação é protocolada, é a/o Defensora/or Pública/o da Vara à qual o processo foi distribuído que se torna responsável pelo caso. No plano formal, é este movimento que encerra o papel das profissionais do NUDIVERSIS, uma vez que a Defensora Pública do núcleo não é legitimada a fazer nenhuma manifestação escrita no processo. Fazer uma manifestação escrita em um processo significa intervir oficialmente no se andamento. 23

Apesar não estar autorizada a fazer isso, a Defensora aciona certos mecanismos para atuar de modo informal nos processos sobre “direitos LGBT”, como por exemplo, a troca de e-mails com outras/os Defensoras/es, a comunicação das reclamações das/os assistidas/os, o envio de modelos de ação do núcleo e de compilação de jurisprudência sobre o assunto, entre outras coisas. Entretanto, não é incomum que as/os assistidas/os retornem ou liguem para o núcleo para tirar algumas dúvidas relativas ao seus processos e/ou para saber sobre o andamento de suas ações. Outro tipo comum de retorno ao núcleo é para reclamar sobre o atendimento prestado por profissionais de outros órgãos de atuação da Defensoria Pública. De acordo com um discurso nativo que circula entre os corredores e mesas de trabalho, não são todos os profissionais da Defensoria Pública que estão preparados para lidar com os casos e demandas característicos da população LGBT por uma série de questões. Uma delas é que as matérias – muitas vezes relativamente recentes e não previstas legalmente – não são do conhecimento de todos os operadores do Direito. Além disso, é mencionado pelas funcionárias do núcleo que muitos desses operadores não possuem contato com indivíduos LGBT, o que os torna menos sensibilizados aos problemas enfrentados por essa população. Em outras palavras, estes sujeitos são, de certa forma, acusados de não terem empatia pelas pessoas LGBT, em especial, as pessoas transexuais. Este último discurso reforça algumas ideias largamente reproduzidas entre as profissionais do núcleo: a de que a segunda instância do Judiciário é mais receptiva às demandas LGBT e que os desembargadores são mais competentes e atuam de acordo com uma ética profissional que não é característica dos magistrados de primeira instância.

A estrutura profissional do núcleo

O NUDIVERSIS contava, na época da pesquisa, com cinco profissionais atuando em seu quadro: uma defensora pública, uma assessora, uma técnica de nível médio e duas estagiárias. Esta estrutura se mantém constante praticamente desde a criação do núcleo, em maio de 2011, exceto pelas estagiárias, cujos contratos duram seis meses e podem ser renovados de acordo com o interesse tanto das mesmas quanto da coordenadora do núcleo, até o prazo máximo de dois anos. Apresento agora um breve resumo das trajetórias de cada uma destas profissionais18. 18

Um quadro resumido das funcionárias que atuavam no NUDIVERSIS na época em que realizei a pesquisa encontra-se nos anexos deste trabalho.

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A Defensora Pública é também a coordenadora do núcleo. Ela tem 32 anos e é concursada da Defensoria Pública desde 2006 (cerca de oito anos quando no fim do trabalho de campo). Antes de coordenar o NUDIVERSIS, ela atuou como defensora substituta, cobrindo as férias de outros Defensores. No início de 2011 ela passou a integrar a administração da instituição, trabalhando na corregedoria da Defensoria Pública. Formada em Direito por uma universidade pública do Rio de Janeiro em 2005, ela defendeu uma monografia cuja temática envolvia um dos aspectos dos “direitos de pessoas LGBT”. Ela diz também ser interessada neste tema desde sempre, e isso, somado ao seu descontentamento em trabalhar na corregedoria, foi crucial para que ela fosse convidada pelo Defensor Público Geral para coordenar o NUDIVERSIS desde a sua criação, em maio de 2011. Durante o trabalho de campo, ela também integrava a equipe de um núcleo regional da DPGE-RJ, revezando seus dias de trabalho entre as duas instituições. Enquanto coordenadora e única Defensora Pública em atuação no núcleo, é ela quem responde pelo NUDIVERSIS e representa o órgão em algumas situações, como por exemplo, nas reuniões do Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT do Rio de Janeiro; é ela também quem assina e carimba todos os documentos produzidos no âmbito do núcleo, desde os ofícios até as petições iniciais. A Assessora tem 54 anos e, além de advogada, é também professora de história. Ela atua no NUDIVERSIS desde o fim de 2011, por volta de seis meses depois da criação do núcleo (quase três anos quando no fim do trabalho de campo). Seu cargo é comissionado, ou seja, é um cargo de confiança. Dentre suas funções, destaca-se o assessoramento da Defensora em reuniões e eventos, o acompanhamento de determinados atendimentos aos assistidos e assistidas, o auxílio em relação aos conhecimentos sobre “direitos LGBT” das estagiárias, o atendimento telefônico do núcleo e a marcação de primeiro atendimento no calendário. Antes do NUDIVERSIS, ela atuava em outro órgão da Defensoria Pública, entretanto, devido à sua identificação com as causas LGBT, foi convidada a formar a equipe do núcleo. Sua trajetória é marcada pelo ativismo desde sua juventude, quando era ligada a um partido de esquerda, o qual ela descreve como aberto às questões das minorias sociais. Em sua entrevista, ela afirmou ter interesse na “defesa dos direitos daqueles que não têm muita voz” e é isso que a motiva a trabalhar no núcleo. A Técnica Administrativa tem 27 anos é uma funcionária concursada de nível médio da Defensoria Pública lotada no NUDIVERSIS. Entretanto, ela também possui graduação em Direito, o que faz com que ela exerça funções que seriam de uma técnica de nível superior, como por exemplo, revisão das petições iniciais e auxílio nas dúvidas das estagiárias. Além disso, ela também desempenha funções administrativas, como a emissão de ofícios, marcação 25

de primeiro atendimento, atendimento telefônico, controle da planilha de ofícios, organização dos procedimentos e acompanhamento processual e administrativo dos processos no âmbito do núcleo. Ela tomou posse em julho de 2012 (cerca de dois anos quando no fim do trabalho de campo) e foi imediatamente lotada no núcleo, não tendo trabalhado em outros órgãos da Defensoria Pública anteriormente. Ela diz que ser lotada no núcleo foi muito bom, pois fez com que ela entrasse em contato com assuntos e experiências de vida que até então eram pouco conhecidos por ela, seja no plano do conhecimento jurídico, seja em sua vida pessoal. A Estagiária I tem 21 anos e é estudante do 7º período da graduação em Direito de uma universidade pública do Rio de Janeiro. Ela chegou ao NUDIVERSIS em outubro de 2013 (cerca de dez meses quando no fim do trabalho de campo) através de um anúncio de vaga de estágio que circulou em um grupo voltado para estudantes de Direito de uma rede social, bem como pela indicação de uma amiga, que na época estagiava no núcleo. Ela conta que tinha interesse em trabalhar com “direito homoafetivo”, mas que até então não sabia da existência de um núcleo especializado nesta área e não tinha experiência com a temática. Seu processo seletivo consistiu de uma prova com perguntas sobre a atuação da Defensoria Pública e sobre direitos da população LGBT, uma redação e uma entrevista com a Defensora do núcleo. A Estagiária II também tem 21 anos e é estudante do 5º período da graduação em Direito de uma universidade pública do Rio de Janeiro. Ela relata que entrou formalmente para os quadros do NUDIVERIS em abril de 2014, mas que já estava efetivamente trabalhando desde meados de fevereiro (cerca de seis meses quando no fim do trabalho de campo). Seu processo seletivo foi praticamente idêntico ao da outra estagiária: prova e redação sobre direitos LGBT e uma entrevista que, no seu caso, foi conduzida pela funcionária técnica administrativa. Ela conta que estava buscando um estágio e que foi informada da existência da vaga no núcleo por um amigo que era estagiário do NUDEDH. Apesar de ter vagas disponíveis para estagiar em outros locais e, consequentemente, com outras questões, ela preferiu o NUDIVERSIS por acreditar que ela iria gostar muito de trabalhar no núcleo. De acordo com sua narrativa, ela destaca que apesar de nunca antes ter estudado ou trabalhado com direitos LGBT, ela vivenciou algumas questões “na prática”, pois seu pai é homossexual e uma de suas primas é uma mulher transexual. Estes resumos das trajetórias pessoal e profissional das pessoas que trabalhavam no núcleo durante a realização de minha investigação revelam algumas importantes questões sobre a estrutura profissional da instituição. A primeira, e mais óbvia, é que todas as pessoas que trabalhavam no NUDIVERSIS durante a realização da pesquisa eram mulheres. Percebe-se então que tal estrutura, do modo como se encontra configurada, está orientada por determinadas 26

concepções de gênero. Conforme apontado na seção anterior – e que será explorado ao logo deste trabalho – as pessoas LGBT são vistas como “vulneráveis”, ou seja, como pessoas que necessitam de um serviço qualificado e especializado para que tenham o acesso aos direitos garantido. Para além dos papéis, esta visão é constantemente reproduzida nas falas e nas atuações das profissionais, como podemos ver no trecho da entrevista realizada com a Defensora aqui reproduzido:

Primeira coisa, a gente tem que ter na estrutura do núcleo pessoas que tenham o mínimo de sensibilidade e identificação com a causa. A partir do momento que você se identifica com aquela causa, que você consegue se colocar no lugar da outra pessoa, você estuda a fundo o que significa, como é a luta, como é a história de luta dessa população LGBT, como é o engajamento das pessoas no sentido de ver reconhecido um direito que eu acredito que elas realmente tenham e eu efetivamente acredito que elas tenham todos os direitos pelos quais eu luto aqui, eu não luto da boca pra fora, eu realmente acredito no que eu faço. A partir do momento que você acredita nisso e tem o mínimo de sensibilidade, é mais fácil você conseguir atender essa pessoa sem tornar apenas mais um atendimento. Aqui, cada um que eu atendo eu tento me colocar no lugar daquela pessoa e eu tento pensar que aquele é um atendimento especial em relação ao outro. Todos são especiais, eu não trato aqui como mais um, como um processo a mais. E isso eu sempre falo para as estagiárias, para as servidoras: todas as pessoas aqui precisam ser muito bem atendidas. Porque eu parto do princípio que a pessoa antes de chegar aqui já sofreu muito. Já passou um processo de vitimização. De repente aqui foi a última porta que ela veio bater e pra chegar até aqui, de repente, ela precisou de muita coragem, de muita energia, muito esforço para ter ânimo de vir bater na porta da Defensoria Pública. Porque, com certeza, pra chegar aqui a pessoa já sofreu, já bateu muito com a cabeça. (Defensora Pública)

Uma cena que condensa o modo como esta representação opera se deu quando uma das estagiárias manifestou que se preocupa quando alguma/um assistida/o transexual para de procurar o núcleo e que se incomoda com tempo que se leva não só para a produção da petição inicial, mas também para o julgamento da ação. Segundo ela relata, seu medo é de que a pessoa venha a se suicidar durante este período. O suicídio apareceu em vários momentos como aquilo que simbolizaria o fracasso absoluto do serviço no que se refere a assistência de pessoas transexuais. Este temor do suicídio tem a ver com o modo pela qual as concepções médicopsiquiátricas da transexualidade atravessam o discurso jurídico. Se as pessoas transexuais estão sujeitas a um sofrimento intenso e contínuo, faz sentido conceber tais indivíduos como se eles estivessem sempre propícios a dar fim na própria vida. Todas as funcionárias do núcleo afirmam, de formas mais e menos explícitas, que para trabalhar no NUDIVERSIS é preciso possuir certa sensibilidade e capacidade empática para lidar com assistidas e assistidos que chegam à sala de espera com percursos de vida marcados 27

por episódios de sofrimento e discriminação. Tal sensibilidade está associada a uma dimensão do cuidado e do afeto, que seria característica do feminino, evidenciando uma espécie de “generificação do cuidado”. Um cenário parecido com o do NUDIVERSIS foi anteriormente observado na pesquisa etnográfica empreendida por María Gabriela Lugones (2012). Ao acompanhar o cotidiano dos Tribunales Prevencionales de Menores na cidade de Córdoba, a autora demonstra como as práticas de administração e gestão de uma população produzida como vulnerável – no caso, crianças e adolescentes – é perpassada por construções do gênero cuja centralidade pode ser localizada na figura da mulher-mãe que tem não somente a capacidade de compreensão dos dramas que afligem as pessoas e famílias, mas também o dever moral de cuidar das crianças. Outros tópicos recorrentes nas falas sobre as características requisitadas para atuar no NUDIVERSIS são sobre o interesse, no âmbito normativo, pelos “direitos LGBT” e a identificação com a “causa LGBT”19. O interesse aparece como a vontade de estudar matérias específicas dos direitos da população LGBT, como por exemplo, o matrimônio igualitário, a adoção por casais do mesmo sexo, dupla maternidade ou paternidade, repressão à discriminação por orientação sexual e/ou identidade de gênero, requalificação civil de pessoas transexuais etc.; já a identificação surge nas trajetórias de cada uma delas por diferentes motivos. No caso da Defensora, a identificação é fruto do interesse pelo tema no campo jurídico; a Assessora, que já foi militante de um partido de esquerda, diz identificar-se não apenas com a causa LGBT, mas com uma questão mais geral das minorias sociais; e a Estagiária II possui familiares LGBT, o que faz com que ela se identifique com a causa. A possibilidade de identificação é condição-chave para que se tenha empatia por determinado caso e/ou pessoa, contudo, tal questão será abordada mais adiante. Por ora, me limito a citar a proposição de Lynn Hunt sobre o funcionamento da empatia. De acordo com a autora, “a empatia depende do reconhecimento de que os outros sentem e pensam como fazemos, de que nossos sentimentos interiores são semelhantes de um modo essencial” (Hunt, 2009, p. 27). Subjacente tanto ao interesse quanto à identificação está uma espécie de crença no mérito das demandas das/os assistidas/os e de comprometimento com a promoção daquilo que é justo, ambos ancorados em um idioma ético e moral compartilhado.

A passagem dos “casos” às “causas” é uma das formulações propostas por Boltasnki (1999). De acordo com o autor, tal passagem depende uma determinada economia entre o individual e o coletivo. Em outras palavras, é preciso de uma certa forma de disposição e exposição do “caso” para que ele possa ser encarado como um exemplo de um mal mais amplo que pode atingir a todos, transformando-se em uma “causa” política. No caso da investigação ora apresentada, os “casos” se configuram a partir do momento em que “o procedimento é aberto”, ou seja, a partir da criação da pasta da/o assistida/o, como será discutido no próximo capítulo. 19

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1.2 A política dos sujeitos e os sujeitos das políticas: o papel do NUDIVERSIS na constituição da “população LGBT” e do Estado

A seção anterior traz algumas importantes informações para se ponderar sobre o modo como a estrutura de um serviço público para o atendimento da chamada “população LGBT” espelha a forma pela qual tais pessoas são vistas e como suas demandas são produzidas e incorporadas nas agendas políticas e aparatos administrativos do Estado. Oferece, também, certas pistas para se refletir sobre como tais instituições contribuem para a formação das pessoas LGBT enquanto sujeitos de direitos. Ou ainda, como aponta Aguião (2014), permite pensar sobre como um conjunto de direitos é capaz de materializar certas identidades e como certas identidades engendram um determinado conjunto de direitos. Deste modo, nesta parte do capítulo, meu esforço se concentra na análise do contexto político da criação do núcleo e suas consequências na constituição da “população LGBT”. Busco também apresentar algumas reflexões sobre o papel do NUDIVERSIS dentro de uma malha de instituições que produzem o efeito de Estado (Mitchell, 2006), ou seja, como a complexidade de dimensões que compõem o Estado se articulam de modo a construí-lo enquanto uma espécie de entidade autônoma capaz de regular e administrar não somente os sujeitos, mas também uma série de conflitos.

A criação do NUDIVERSIS

O NUDIVERSIS foi criado no dia 12 de maio de 2011 através da Resolução DPGE nº 580, assinada pelo então Defensor Público Geral do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, é preciso destacar que a resolução que regulamenta e define precisamente quais são as atribuições do NUDIVERSIS se encontrava em discussão até o momento em que finalizei o campo, tendo sido pauta de diversas reuniões do Conselho Superior da Defensoria Pública sem que se chegasse a um consenso. A criação do núcleo se deu junto com a campanha de promoção e inauguração dos serviços oferecidos pelo programa Rio Sem Homofobia, uma iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro. O programa, criado em 2008, consiste na elaboração de um Caderno de Ações e Metas a ser assinado por diferentes secretarias, instâncias administrativas e órgãos do estado do Rio de Janeiro para que estes se envolvam no “combate à discriminação por orientação sexual e identidade gênero e na promoção da cidadania das pessoas LGBT”. 29

Neste sentido, o programa já estabeleceu “parcerias” com outras instituições, como por exemplo, a Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro; e promoveu uma série de eventos e cursos para sensibilização e capacitação para a promoção dos “direitos humanos da pessoa LGBT”, como a Jornada Formativa de Segurança Pública e Cidadania LGBT, empreendida com o apoio das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro para qualificar policiais civis e militares do estado para o atendimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, visando o enfrentamento à homofobia. Sobre as “parcerias” entre diversas instituições, cabe salientar que esta é uma importante categoria nativa da administração pública, que visa à distribuição das atribuições e conformação de uma malha de entidades, organizações etc. que estabelecem o controle minucioso de determinados sujeitos e/ou coletividades. A concepção do núcleo vem na esteira deste processo de produção de políticas de governança e serviços públicos voltados para a “população LGBT”. Logo, o NUDIVERSIS é criado através do comprometimento da Defensoria Pública, representada pelo Defensor Público Geral, com a assinatura do caderno proposto pelo Rio Sem Homofobia. Em outras palavras, o núcleo surge como uma das frentes do programa. No entanto, atualmente, a autonomia do NUDIVERSIS em relação ao programa é objeto de algumas disputas. Um dos discursos correntes defende que a Defensoria Pública é uma instituição estatal independente e que o núcleo, enquanto um órgão de atuação da Defensoria, é subordinado somente a esta. Assim, a autonomia do NUDIVERSIS se materializa através do atendimento de assistidas/os que chegam ao núcleo por outros caminhos; e também através da existência de um termo de cooperação assinado entre o núcleo e a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, uma iniciativa semelhante ao Rio Sem Homofobia, só que de outra instância governamental, a Prefeitura do município do Rio de Janeiro. Apesar da reiteração da independência do NUDIVERSIS, este continua ligado ao programa Rio Sem Homofobia, considerando que: 1) a grande maioria das/os assistidas/os vem encaminhada deste serviço; 2) o núcleo é concebido como parte integrante do programa. Esta imbricação é explicitada no texto do termo de cooperação técnica celebrado entre o programa – representado pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro (SEASDH-RJ) – e os núcleos de defesa tanto da diversidade sexual (NUDIVERSIS) quanto dos direitos humanos (NUDEDH) – representantes da DPGE-RJ para o referido assunto. De acordo com este documento, é atribuição dos núcleos:

1) prestar assistência jurídica integral e gratuita a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT e seus familiares em especial aos usuários encaminhados

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pelos Centros de Cidadania LGBT e outros órgãos da SUPERDIR/SEASDH do Programa Estadual Rio Sem Homofobia, no âmbito das tutelas individual e coletiva, nos casos envolvendo busca e direitos e ou situações de discriminação e violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT e seus familiares; [...] 5) manter a participação de Defensor Público em atuação no NUDIVERSIS e no NUDEDH no Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT (CELGBT/RJ) e Comissões afins; [...] 12) divulgar em todos os materiais do NUDIVERSIS, a parceria Programa Estadual Rio Sem Homofobia, SUPERDIR/SEASDH e NUDIVERSIS/DPGERJ. (Termo de cooperação técnica RSH-NUDIVERSIS, grifos meus).

A complexidade das múltiplas dimensões que compõem o Estado fica evidente quando voltamo-nos para a análise deste termo de cooperação técnica. Ambas as instituições são, de certo modo, políticas públicas e ambas fazem parte do Estado. Entretanto, esta separação entre aquilo que é programa governamental de iniciativa do poder Executivo – o RSH, a SuperDir e a SEASDH-RJ – e aquilo que é um órgão auxiliar do poder Judiciário – a DPGE-RJ e seus núcleos –, opera para produzir um efeito de Estado, como proposto por Mitchell (2006). Ou ainda, ambas fazem parte da malha de mecanismos e instituições que compõem o Estado e reforçam seu poder através desse espraiamento e distribuição de deveres e responsabilidades administrativas, botando em evidência o “Estado enquanto administração” (Teixeira e Souza Lima, 2010).

Especificando “sujeitos de direitos”: a constituição da “população LGBT” a partir do discurso sobre direitos humanos

Antes de iniciar o desenvolvimento do raciocínio proposto nesta parte, é preciso ter em mente que sua construção é orientada por uma questão central formulada por Butler (2003). Tomando como objeto de reflexão a fabricação das “mulheres” enquanto “o sujeito” do feminismo, a autora sugere que se compreendam as identidades como efeito de práticas discursivas. Butler então se pergunta se existiria um “sujeito” – uma figura crucial para a organização política – anterior à construção política de seus interesses e demandas. Em suas palavras, “a formação jurídica da linguagem e da política que representa as mulheres como ‘o sujeito’ do feminismo é em si mesma uma formação discursiva e efeito de uma dada versão da política representacional” (p. 18-9). Assim, é a partir destas colocações que busco discutir o

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papel do NUDIVERSIS na produção da inteligibilidade dos sujeitos que compõem a “população LGBT”. No documento de criação do núcleo é apresentado um conjunto de considerações que fundamentam e justificam a formação de um órgão de atuação voltado para o atendimento específico de demandas da “população LGBT”. Dentre estas, destaco aquelas que sumarizam não só o escopo de atuação do núcleo, mas também condensam muitas das questões que serão abordadas ao longo deste trabalho:

- a descentralização administrativa, através da criação dos Núcleos Especializados de Atendimento, prima pela excelência e crescente especialização dos serviços prestados e tem como escopo a prestação de atendimento cada vez mais eficaz aos hipossuficientes, para a efetiva concretização do acesso à Justiça; [...] - a necessidade de crescente qualificação e especialização na defesa da Diversidade Sexual e dos Direitos Homoafetivos, garantindo-se a efetivação do acesso à justiça e a inserção do direito das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros (LGBT) no sistema jurídico, especialmente no que concerne à vedação à discriminação por orientação sexual, propositura de ação judicial para retificação do nome e sexo registral do transexual, reconhecimento da união homoafetiva e seus consectários jurídicos, tais como, direito à percepção de alimentos, sucessão, partilha de bens, homoparentalidade, ou na defesa de qualquer outro direito relacionado à dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, inciso III da Constituição Federal, de modo a garantir o pleno exercício do direito de todos em realizar os seus atributos inerentes à personalidade e concretizar os direitos constitucionalmente previstos. (Resolução de criação do NUDIVERSIS, grifos no original)

Como apontado na seção anterior de forma breve, antes da criação do NUDIVERSIS, as demandas de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais eram recepcionadas pelos Defensores Públicos ligados ao NUDEDH. Como proposta analítica, sugiro pensar tanto a definição de direitos quanto a produção dos sujeitos destes direitos – a “população LGBT” – como duas faces de um mesmo processo: a especificação contínua dos direitos humanos, tendo em vista que, no atual quadro político, marcado pela emergência da razão humanitária (Fassin, 2012), os “direitos humanos” funcionam como uma espécie de parâmetro ético supostamente universal. Tenho como ponto de partida a ideia colocada por Vianna (2012) de que as práticas, sujeitos e experiências implicados nos chamados “direitos sexuais” conformam um “conjunto disperso e heterogêneo de princípios, demandas, incômodos e subjetividades políticas” (p. 228). A autora compreende os direitos sexuais como derivados de um discurso sobre direitos humanos através da autonomização da esfera da sexualidade, a qual transforma o seu exercício 32

em uma espécie de “direito humano legítimo”. Vianna observa também que este processo acarreta a invenção de “solidariedades não muito simples de serem articuladas no plano das iniciativas políticas” (p. 229). Tomo, então, a produção da “população LGBT” como um exemplo desta “invenção de solidariedades”, uma vez que uma gama complexa de sujeitos e demandas é colocada sob uma mesma categoria. Claudia Fonseca e Andrea Cardarello (1999) identificam um processo de luta simbólica pela efetivação dos direitos humanos, que elas denominam de definição dos “mais e menos humanos”. Isto é, existe uma disputa de poder para determinar quem tem a autoridade para designar quem são os sujeitos detentores de direitos. Um dos principais conceitos trabalhados pelas autoras em suas análises é o de frente discursiva, a qual possui um duplo-efeito: ao mesmo tempo em que movimenta um suporte político ao grupo tematizado, o reifica e reforça imagens que pouco têm a ver com a realidade concreta vivenciada pelas pessoas. Como o nome sugere, a frente discursiva é formada por “processos discursivos” que produzem sujeitos políticos através da definição de categorias que conformam um sistema de classificação. Tais categorias de classificação são fundamentais para o acesso aos direitos, já que, segundo as autoras, os direitos humanos, enquanto um ideal, seriam esvaziados de significados. Tais significados só são adquiridos na prática, quando colocados em “categorias semânticas precisas” (1999, p. 3). De modo semelhante a Fonseca e Cardarello, Lynn Hunt (2009), ao analisar a história do desenvolvimento dos direitos humanos, propõe que estes sejam vistos como um tipo de linguagem que aparece sem uma definição exata daquilo sobre o que ela fala, ou seja, sem esclarecer quais são esses “direitos”. É a partir desta indefinição que os conteúdos dos direitos humanos começam a ser produzidos através da especificação, fazendo surgir, por exemplo, os chamados “direitos sexuais”. Nesta esteira aparecem também os sujeitos e grupos que se constituem através de determinados direitos, como por exemplo, as vítimas de uma dada doença. Neste sentido, a criação de um núcleo especializado no atendimento a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais pode ser identificado com este processo que busca constantemente delimitar quais sujeitos e quais direitos estão sendo tratados, produzindo assim a população LGBT e o direito homoafetivo20 (ou direitos LGBT).

“Direito Homoafetivo” é uma expressão que designa o conjunto de direitos que seriam característicos das pessoas LGBT e cuja autoria é creditada a Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e vicepresidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias. De acordo com a autora, o termo deriva de outro: “união homoafetiva”, o qual foi cunhado com o objetivo de “retirar o estigma de que os vínculos homossexuais teriam uma conotação exclusivamente de natureza sexual” (Dias, 2011, p. 9) e também para incorporar a mudança no conceito jurídico de família, que passou a ser definida como “uma relação íntima de afeto”. Destaco que a expressão foi rechaçada por alguns setores e ativistas do movimento LGBT por conta da 20

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De acordo com Fonseca e Cardarello (1999), é preciso atentar para “a importância dos sistemas de classificação embutidos na linguagem que usamos para descrever (e apreender) a realidade” (1999, p. 2). Contudo, defendo que a linguagem não é apenas utilizada para “descrever” e “apreender” a realidade, mas sim tem potencial para produzi-la, de forma que o aparente efeito de “descrição” serve para obnubilar relações de poder que perpassam a construção de enunciados, dando a estes um caráter de “verdade” e “objetividade”. O potencial produtivo da realidade contido na linguagem se torna especialmente significativo quando o que está em questão é o discurso jurídico. Foucault (1988) demonstra o modo pelo qual o poder jurídico produz os sujeitos que consecutivamente ele alega apenas representar. Para o autor, o poder não é somente proibitivo, mas possui também uma dimensão positiva. Nas suas palavras: “deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (Foucault, 1979, p. 8). Poder e verdade são então indissociáveis, uma vez que os discursos carregam “efeitos de verdade” que são frutos do poder. Por outro caminho, Bourdieu (1989) chega a uma conclusão análoga. Segundo o autor, a “força do Direito” está no seu poder simbólico, ou seja, na sua capacidade de fabricar documentos carregados de “enunciados verdadeiros”, ao mesmo tempo em que apaga as condições sociais de criação destes documentos. Em última instância, a produção da verdade está intimamente conectada com a própria construção da realidade21. Apresento estas reflexões para sustentar o argumento de que a criação do NUDIVERSIS implica um processo de dupla constituição, ou seja, a produção simultânea e espelhada tanto dos sujeitos de direitos quanto dos direitos dos quais estes sujeitos necessitariam. De acordo com Vianna (2012), este processo de criação mútua está associado a uma espécie dimensão demiúrgica que é característica dos cenários de disputa por “direitos”. Esta dimensão está “traduzida na possibilidade de fazer nascer necessidades e sujeitos para essas necessidades ao enunciá-las e mesmo ‘revelá-las’” (2012, p. 229-30).

“moralização” que esta sugere. O termo é utilizado de forma intermitente, por juristas e operadores do Direito e figura no nome oficial do NUDIVERSIS: Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos. 21

As relações entre poder, verdade e realidade que podem ser apreendidas a partir do processo de produção de determinados documentos serão discutidas no terceiro capítulo desta dissertação.

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O lugar da diversidade: sobre as relações entre tempo e espaço envolvidas na “espera”

Aguião (2014) descreve que os militantes presentes na I Conferência Nacional GLBT, em junho de 2008, consideraram a participação do então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva como o símbolo do momento em que o Estado passou a reconhecer a “população LGBT”. Descendo do plano do poder Executivo Federal, podemos entender a criação do programa RSH e da CEDS como parte desse reconhecimento do Estado nos planos Estadual e Municipal do poder Executivo, respectivamente. Como dito acima, é na esteira deste movimento que acontece a criação do NUDIVERSIS, o que, em última instância, pode ser visto como o reconhecimento da “população LGBT” por parte dos atores ligados ao poder Judiciário. Contudo, é preciso pensar em que lugar social se encontram os sujeitos que compõem a “população LGBT” e como isto reflete na criação destes “espaços de reconhecimento” por parte do Estado. Assim, tomo o NUDIVERSIS como um espaço físico e moral do reconhecimento de pessoas LGBT como “sujeitos de direitos”. Proponho, então, que este lugar seja pensado a partir de determinados episódios e, principalmente, das relações entre tempo e espaço que estão envolvidas no ato de aguardar nos corredores e salas de espera da Defensoria Pública. Conforme exposto acima, o NUDIVERSIS foi criado através de uma resolução em maio de 2011. Entretanto, até julho de 2014 – ou seja, pouco mais de três anos depois – a resolução definitiva que delimitava o escopo de atuação do núcleo ainda não havia sido votada e figurava como alvo de algumas controvérsias entre os profissionais da DPGE-RJ. Outra pista que aponta para esta relativa não importância do núcleo foi oferecida por um episódio vivenciado durante o trabalho de campo. Certo dia, cheguei ao NUDIVERSIS e as profissionais estavam irritadas com um problema que havia acontecido no computador do Servidor, que resultou na perda de muitas pastas virtuais e arquivos digitais do núcleo. A Técnica-Administrativa reclamou da demora do setor de informática em resolver o problema e disse também que isso já havia acontecido antes e que elas já haviam proposto uma solução definitiva que não foi apreciada pelos funcionários da DPGE-RJ. Apesar destes dados não serem suficientes para afirmar nada, tenho como hipótese que a precariedade na constituição do NUDIVERSIS diante dos outros núcleos e órgãos de atuação da Defensoria Pública é um reflexo do lugar social ocupado pelo “público alvo” de um núcleo de defesa da diversidade sexual. Como já mencionado, o NUDIVERSIS se caracteriza por ser um “núcleo especializado de primeiro atendimento”. A partir desta caracterização, é possível compreender, em certa medida, o núcleo como uma “grande sala de espera” que tem por função a manutenção de uma condição de provisoriedade e suspensão. Digo isto porque, ao menos oficialmente, o 35

NUDIVERSIS não é o lugar onde os sujeitos conseguirão “resolver suas vidas” e ter suas demandas atendidas, o que só poderá ocorrer, de fato, nos Tribunais. Em outras palavras, o núcleo corresponde a uma antessala na qual as pessoas transexuais aguardam sua vez de ter suas solicitações de alteração do registro civil julgadas, ao mesmo em que “se preparam” para esta ocasião. Ademais, esta relação entre tempo e espaço fica evidente quando observo que a grande maioria dos atendimentos – exceto o “primeiro atendimento” – se dá nas salas de espera, nas quais os sujeitos aguardam indefinidamente. Neste contexto, o “primeiro atendimento” adquire um duplo significado: um para as/os assistidas/os, ou seja, para o “lado de fora do balcão”; e outro para o Estado, isto é, para o “lado de dentro do balcão”. Para as/os assistidas/os, este é um momento no qual elas/es são instados a falar sobre suas vidas e demandas, como será discutido no próximo capítulo. Para o Estado, o “primeiro atendimento” proporcionado pela Defensoria Pública se constitui enquanto um mecanismo através do qual é possível a administração e gestão das demandas de certos sujeitos e/ou “populações”. Entretanto, ao tomar o Estado enquanto administração pública (Teixeira e Souza Lima, 2010), é preciso estar atento para este duplo registro, uma vez que os dois “lados do balcão” são, ainda que de modos diferentes, “Estado”. Em resumo, criar não só Centros de Cidadania, mas também Núcleos Especializados para o atendimento e assistência da “população LGBT” representa, sem dúvida, o reconhecimento destes sujeitos perante o Estado. Contudo, reconhece-se “o lugar da diversidade” justamente em um espaço de inferioridade, de menor importância diante das outras “urgências administrativas” que cabem ao Estado.

O NUDIVERSIS, o “Estado” e a “população LGBT”

Na primeira parte desta seção abordei o contexto da criação do NUDIVERSIS como parte de uma rede instituições concebidas especialmente para o atendimento da “população LGBT”. Na segunda, busquei refletir sobre o papel do núcleo no processo de criação desta população. Na terceira, apresentei minhas hipóteses acerca do lugar ocupado por esta população na hierarquia administrativa do Estado. Agora, me esforço para pensar o núcleo como parte dos aparatos administrativos que conformam o “Estado”, ou ainda, questionar que formas de Estado são constituídas a partir do núcleo. Outro ponto a ser abordado será a relação entre o núcleo, a produção de sujeitos de direitos LGBT e de que modo tal produção pode ser entendida como uma prática que faz o próprio “Estado”. 36

Inicialmente, é preciso esclarecer quais concepções de “Estado” conduzem as reflexões desenvolvidas nesta parte do capítulo. O Estado aqui não é encarado como uma entidade fixa, coesa e autônoma, mas sim um composto de “crença e materialidade” (Teixeira e Souza Lima, 2010, p. 57). Assim, tomo o Estado como objeto a partir do exame das práticas que posicionam sujeitos e instituições como “dentro” ou “fora” do Estado (Vianna, 2013, p. 21). Uma das principais referências utilizadas para pensar que tipo de Estado se faz no NUDIVERSIS é Philip Abrams (2006). O autor constrói o Estado a partir de duas dimensões que se conjugam: o Estado-ideia e o Estado-sistema. O primeiro corresponde à abstração do Estado enquanto uma entidade real e autônoma; ao passo que o segundo é um conjunto de práticas institucionalizadas que exercem controle político e executivo. A proposta de Abrams é chamar atenção para o plano representacional do Estado como parte da prática política que constitui o próprio Estado. Em suas palavras: “em suma: o Estado não é a realidade que se esconde atrás da máscara da prática política. Ele é, em si mesmo, a máscara que previne que vejamos a prática política como ela é” (p. 125, tradução livre)22. Mitchell (2006), por sua vez, retoma as propostas de Abrams ao defender que tanto o Estado-ideia quanto o Estado-sistema devem ser compreendidos como dois aspectos de um mesmo processo: o Estado como um fenômeno, ou, para utilizar sua terminologia, um efeito de Estado. Este efeito é fruto da produção da “sociedade” e da “economia” como “os outros” do Estado. Deste modo, a delimitação do Estado nada mais é do que uma linha desenhada no interior de mecanismos institucionais que visam à manutenção da ordem social e política (p. 175). Do mesmo que Abrams, Mitchell propõe a observação do Estado a partir das práticas políticas; práticas estas que estão fundamentadas em relações de poder internas que adquirem uma aparência de estrutura externa, dando ao Estado um duplo caráter: força material e construção ideológica. A partir destas colocações, proponho então duas formas de compreender como o Estado se faz através do NUDIVERSIS e como o NUDIVERSIS faz o Estado. A primeira destas formas aposta em um encadeamento mais evidente entre estes elementos, uma vez que a Defensoria Pública é um órgão estatal cuja função é cumprir a obrigação constitucional do Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes. Neste sentido, o núcleo – enquanto um órgão de atuação da Defensoria Pública – faz o Estado na medida em que sua existência desempenha um “dever do Estado”. Este “dever de assistência jurídica” é recorrentemente reiterado nas falas das profissionais do núcleo como forma de justificar suas atuações e se No original: “In sum: the State is not the reality which stands behind the mask of political practice. It is itself the mask which prevents our seeing political practice as it is.” (Abrams, 2006, p. 125). 22

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eximir de determinadas responsabilidades, produzindo assim o Estado enquanto uma construção ideológica de uma entidade que está acima dos sujeitos, para utilizar os termos de Mitchell (2006).

É claro que algumas pessoas chegam aqui com um tipo de demanda que você vê que evidentemente não tem a menor condição, que não tem qualquer respaldo jurídico. Aí eu sou muito honesta, muito sincera. Eu falo logo pra pessoa: ‘olha, não tem condições, isso aí não tem como fazer, você não vai ganhar’. (Defensora Pública) Essa é a forma que a gente trabalha aqui. E sempre com a isenção, não deixando que a paixão ou até mesmo o emocional do nosso assistido traga uma nuvem aos nossos olhos e a gente esqueça que antes de tudo nós somos técnicos e que a gente está aqui para trabalhar pelo Direito e não para trabalhar com a emoção. A emoção deixa para a SuperDir, deixa para o Rio Sem Homofobia, aqui nós somos os operários do Direito. (Assessora) A gente não tem como se afastar da questão jurídica, isso aqui é um núcleo da Defensoria Pública. Então a gente não pode ir só pelo lado social da coisa. Claro, a nossa vontade é ajudar todo mundo que entra aqui. Só que nem todo pedido é um pedido juridicamente possível e aqui a gente tem que avaliar isso. Então, em todo atendimento que a gente faz, por mais que a gente se envolva com a história da pessoa e por mais que a gente sinta aquela necessidade de ajudar, a todo momento a gente tem que fazer o primeiro atendimento pensando: ‘o que eu posso fazer juridicamente em relação a isso?’. (Estagiária) A gente tenta de todo jeito e se não conseguir a gente tenta consolar o assistido pelo menos pessoalmente, porque a gente não consegue fazer nada além do que a gente tem competência legal para fazer. (Estagiária)

Outra “limitação” imposta pelo Estado pode ser percebida através dos fragmentos de entrevistas apresentados: o Estado, representado pelo Judiciário, se materializa através das normas positivas do Direito, ou, na letra fria da lei23. Assim, tais normativas são apontadas como o norte das ações executadas pelas profissionais24. As normas, combinadas à repetição constante das atribuições e do lugar político do núcleo na qualidade de instituição que cumpre um dever do Estado, reforçam um efeito de Estado ao buscarem demarcar aquilo que cabe ao

A expressão “letra fria da lei” é de uso comum no jargão jurídico para indicar as normas jurídicas escritas em documentos como a Constituição Federal, o Código Civil, o Código Penal, entre outros. Estas normativas se configuram como um “texto relativamente fechado” – ou seja, que permite algum grau de interpretação – que deve orientar toda e qualquer decisão judicial. 23

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As justificativas elencadas para legitimar as atuações das profissionais serão discutidas com maior atenção no próximo capítulo desta dissertação.

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Estado do poder Judiciário, e portanto, é de responsabilidade dos operadores do Direito; e aquilo que cabe ao Estado do poder Executivo, e consequentemente, é incumbência dos gestores públicos. Como segunda abordagem, sugiro que existe uma relação complexa entre o núcleo e o “Estado”, que é constituída a partir do processo de criação da “população LGBT”. Assim, penso que as práticas simultâneas de produção e gestão da “população LGBT” feitas no âmbito do NUDIVERSIS fazem com que este se insira em uma malha de instituições que compõem o Estado. O NUDIVERSIS cumpre então uma espécie de “função de Estado” ao produzir as classificações que dão significado à vida social (Teixeira e Souza Lima, 2010). Em outras palavras, é através do duplo processo de criação-administração da “população LGBT” que podemos compreender o modo pelo qual o Estado se faz através do núcleo. Esta segunda proposta analítica se baseia em algumas das ideias apresentadas por Aguião (2014) em sua tese de doutorado. A autora se dedica a analisar como a “população LGBT” é construída “no Estado” através de uma série de diferentes tipos de tecnologias administrativas, como eventos: as I e II Conferências Nacionais LGBT; e documentos: as três versões do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), o texto do programa Brasil Sem Homofobia, o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT e os relatórios finais das Conferências Nacionais LGBT. Uma das principais contribuições da autora é pensar como o processo de criação desta “população” implica também um constante processo de criação do próprio Estado. Em suas palavras: o fazer-se no Estado de que fala o título desta tese procura chamar a atenção não só para as formas através dos quais o Estado produz os sujeitos que governa (administra), mas também para o processo de constituição desses sujeitos como parte de um fluxo contínuo de produção do próprio Estado. (Aguião, 2014, p. 14, grifos no original). Em uma parte de sua tese, a autora se dedica a explorar a implantação de uma política do governo do estado do Rio de Janeiro que tem por objetivo prestar atendimento em diversos campos para a “população LGBT”. A política em questão é promovida pelo programa Rio Sem Homofobia e consiste na oferta de um conjunto de serviços públicos, como por exemplo, os Centros de Cidadania LGBT, o Disque Cidadania LGBT, entre outros. Considerando que o NUDIVERSIS encontra-se articulado ao programa Rio Sem Homofobia desde a sua criação, como apontado na primeira parte desta seção, penso o núcleo da mesma forma que Aguião

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pensa o programa, ou seja, como parte dos mecanismos que ao produzir os governados – a “população LGBT” –, produz também os governantes – o Estado. Em síntese, adoto aqui uma visão do Estado em ação, ou seja, o Estado que nada mais é do que “feixes de relações de poder” (Castilho, Souza Lima e Teixeira, 2014). Assim, o Estado nunca está pronto ou finalizado, mas se constitui permanentemente nas práticas, de modo que o NUDIVERSIS pode ser encarado como um local onde é possível observar e compreender as práticas de poder que conformam os fenômenos da administração e gestão estatais.

1.3 Uma etnografia estagiária

Como mencionado anteriormente, este trabalho é fruto de uma etnografia levada a cabo entre os meses de fevereiro e julho de 2014, no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DEPGE-RJ). Para encerrar este primeiro capítulo de apresentação da instituição acompanhada e contextualização da pesquisa, empreendo um esforço de expor as condições nas quais se deu o trabalho de campo, explorando algumas questões centrais: as escolhas metodológicas; a posição a partir da qual observei e participei das rotinas de trabalho das profissionais do núcleo; e as possibilidades e limitações que este posicionamento impôs ao trabalho etnográfico. Destaco que a pesquisa empreendida se caracteriza pelo que Nader (1972) chamou de studying up. De acordo com a autora, estudar o “up” significa investigar contextos nos quais o pesquisador se encontra em uma posição inferior em relação aos dos pesquisados e isto representa uma inversão na relação de poder mais comum aos trabalhos antropológicos. Neste sentido, estudar as práticas das profissionais de um dado órgão estatal, detentoras de um poder de permitir ou não o acesso à informações, acarreta em certas especificidades do trabalho de campo, as quais serão abordadas a seguir.

Ver, ouvir e ler: as opções metodológicas que conduziram a pesquisa

A construção desta etnografia ancora-se em três diferentes estratégias de pesquisa e obtenção de dados: a observação participante, a análise documental e a realização de entrevistas. Durante cerca de seis meses acompanhei as rotinas de trabalho das profissionais do NUDIVERSIS, tanto no atendimento ao público, quanto nos expedientes internos de elaboração 40

de relatórios, ofícios e petições iniciais. Além da observação participante com as pessoas, tive como fonte de dados as pastas das/os assistidas/os, nas quais constam diversos tipos de documentos. Por fim, na última semana de trabalho de campo, dediquei-me a entrevistar formalmente as funcionárias do núcleo a fim de esclarecer algumas das indagações formuladas no decorrer da pesquisa, bem como para sistematizar certas informações sobre a trajetória profissional de cada uma delas. A escolha pelo acompanhamento das rotinas de trabalho se justifica por dois motivos. O primeiro, e mais óbvio, tem a ver com a noção de Estado que balizou a construção da pesquisa e, consequentemente, as percepções das ações efetuadas não só no espaço do núcleo, mas, fundamentalmente, em nome deste – o que, em última instância, pode ser compreendido como atuações feitas em nome do Estado. Uma vez que compreendo o Estado não como uma entidade fixa e una, dotada de consciência e intenção, mas sim como um processo em permanente construção através das práticas de “agentes estatais”, é através da observação destes atos que busco produzir minhas reflexões. Castilho, Souza Lima e Teixeira (2014) argumentam que as políticas públicas são um ótimo “local” para se estudar os fenômenos estatais e que as práticas de poder efetuadas nestes contextos oferecem um importante ângulo de análise. Nas palavras dos autores, “se consideramos o Estado como feixes de processos em permanente (trans)formação, é no estudo dessas práticas (mas não só) que a Antropologia pode aportar contribuições significativas” (p. 22). O segundo motivo se relaciona com a escolha por complementar os dados de pesquisa através da inclusão de uma segunda fonte: a análise dos documentos que compõem as pastas das/os assistidas/os, pois, como aponta Ferreira (2011), tais documentos podem ser compreendidos como “artefatos etnográficos” através dos quais o cotidiano das repartições públicas são, de certa forma, arquivados. Se na pesquisa empreendida pela autora cada pasta equivale a um “caso de desaparecimento” – ou, uma sindicância –, no contexto do NUDIVERSIS, cada pasta representa um “caso de requalificação civil” ou um procedimento. A leitura destas pastas é fundamental na medida em que estes papéis carregam em si as marcas das técnicas burocráticas da administração estatal. Castilho, Souza Lima e Teixeira (2014), por sua vez, apontam a investigação com documentos como um imperativo para a realização de etnografias sobre as práticas de poder que conformam os Estados-nação contemporâneos, tendo em vista que, nas sociedades letradas, a escrita funciona como um instrumento de poder e segregação. Além disso, como defendido por Valente (2014), a pesquisa documental é fundamental para os estudos sobre burocracias e práticas de gestão de populações. 41

Vianna (2014) se detém um pouco mais sobre a questão da etnografia com documentos. Segundo a autora, os documentos figuram como elementos capazes de produzir mundos sociais e é esta característica que os torna tão importantes em certas investigações. Em suas palavras:

levar a sério os documentos como peças etnográficas implica tomá-los como construtores da realidade tanto por aquilo que produzem na situação na qual fazem parte – como fabricam um ‘processo’ como sequência de atos no tempo, ocorrendo em condições específicas e com múltiplos e desiguais atores e autores – quanto por aquilo que conscientemente sedimentam (Vianna, 2014, p. 47). A autora também assinala que um dos estranhamentos relacionados à etnografia com documentos se deve ao fato de que estes estão sempre submetidos a determinados regimes de fala e de silêncio, concretizados nas inescapáveis lacunas daquilo que não é ou não pode ser escrito. São estas lacunas que provocam uma sensação contínua de falta, posto que só é possível observar aquilo que foi registrado e não como ocorreu a produção do registro e o que ficou de fora. Deste modo, combino o exame dos documentos – e com isso “levo a sério” o potencial produtor da realidade dos mesmos – com a observação participante. Acredito que o acompanhamento das atividades das profissionais funciona como uma ferramenta para “superar” as lacunas inerentes aos documentos apontadas pela autora. Contudo, saliento que isto não permite a solução de todos os hiatos, mas tão somente dos documentos produzidos pelo próprio núcleo, como relatórios de primeiro atendimento, ofícios e petições iniciais. Perto da finalização do trabalho de campo, optei por realizar entrevistas individuais com cada uma das profissionais do NUDIVERSIS como forma de acessar uma terceira fonte de dados, diferente daqueles obtidos até então. Não obedeci a um roteiro pré-definido, de modo que as perguntas variaram de acordo com o desenvolvimento da conversa. Mas, todas as entrevistas tiveram como solo comum questões sobre trajetória profissional e atividades desempenhadas no núcleo. As entrevistas se mostraram úteis para sistematizar algumas das reflexões que se desenvolveram ao longo da pesquisa, bem como para abordar questões que dificilmente seriam debatidas publicamente nos corredores da Defensoria Pública.

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Tornar-se um estagiário: o trabalho no campo

As profissionais do NUDIVERSIS foram receptivas à minha presença desde o início da pesquisa. Meu contato se deu da mesma forma que é considerada como “ideal” para as/os assistidas/os: primeiramente, enviei um e-mail expondo meu interesse. Este foi respondido algumas horas depois com os números de telefone do núcleo e uma solicitação para marcar um “atendimento” diretamente com a Defensora Pública. Na época deste primeiro encontro, em fevereiro de 2014, minhas questões de pesquisa ainda não estavam muito bem formuladas e por isso me limitei a dizer que meu interesse era acompanhar as atividades realizadas no núcleo, em especial o atendimento às pessoas transexuais. Esta primeira conversa transformou-se em uma espécie de entrevista informal, uma vez que a Defensora Pública me ofereceu um panorama sobre a instituição a partir do qual pude começar a afinar minhas propostas de investigação. Conversamos sobre o funcionamento da Defensoria Pública, as atribuições do NUDIVERSIS, as principais demandas recepcionadas, os limites da atuação do núcleo, entre outros assuntos. Além disso, a Defensora também me ensinou a consultar jurisprudência no site do Tribunal de Justiça e outras informações que pudessem ser úteis à minha investigação. Em seguida, neste mesmo dia, a Defensora me apresentou à Assessora e à Estagiária I. Conversei um pouco com esta última sobre o funcionamento do núcleo e sobre o que é o “primeiro atendimento” das/os assistidas/os. Ao fim desta primeira visita, a Defensora pediu que a Estagiária imprimisse uma cópia de uma petição inicial de requalificação civil para que eu pudesse ler com calma e compreender que tipo de trabalho é feito no núcleo. Ela informou que a estagiária deveria tomar os cuidados necessários de apagar toda e qualquer informação que pudesse identificar quem era a/o autora/or da ação, demarcando assim quais seriam os limites do meu acesso aos dados e o que eu poderia “levar para casa”. A partir do dia seguinte, passei a frequentar os corredores e salas do NUDIVERSIS quase todos os dias da semana, até o fim do mês de julho. Um período de exceção se deu entre os meses de junho e julho, quando a cidade do Rio de Janeiro foi um dos palcos de um megaevento que estava ocorrendo no país, a Copa do Mundo de 2014. Entre estes dois meses, diversos feriados foram decretados, implicando no fechamento de boa parte das instituições públicas, especialmente nas regiões próximas de onde aconteceriam as partidas do referido evento. Por uma casualidade, a Estagiária II começou a trabalhar na mesma época em que iniciei o trabalho de campo, o que se configurou como uma excelente oportunidade de observação. Assim, pude apreender muito das atividades realizadas no núcleo através dos ensinamentos que 43

a estagiária mais antiga passava à mais nova, em um processo de formação de uma expertise necessária para atender as demandas recebidas pelo núcleo. Afirmo que esta pesquisa pode ser percebida como um tipo de “etnografia estagiária” pois, desde o início do trabalho de campo, minha presença ficou quase o tempo inteiro restrita à sala dos estagiários. Além disso, este trabalho pode ser entendido como tal na medida em que há algo de “estagiário” na constituição do próprio núcleo enquanto um órgão da Defensoria Pública. Conforme abordado nas seções anteriores, não é efetivamente no NUDIVERSIS que as pessoas transexuais adquirem “seus direitos”, sendo função do núcleo a realização do “primeiro atendimento”, a atuação na etapa pré-processual, a preparação todos os trâmites para que ação de requalificação civil seja julgada etc. Ao explicitar qual foi minha posição no campo, busco deixar claro que minhas observações se deram a partir de um determinado ângulo. Listo agora as quatro razões que explicam este posicionamento, o qual não foi nem totalmente imposto, nem totalmente autodeterminado: 1) meu evidente interesse em acompanhar os atendimentos às pessoas transexuais fez com que a Defensora me orientasse a permanecer junto às estagiárias, uma vez que são elas as responsáveis pela grande maioria dos atendimentos feitos pelo núcleo; 2) o fato de ser da mesma faixa etária das estagiárias – e com isso compartilhar de algumas inquietações, gostos e interesses – contribuiu para o estabelecimento de uma relação de confiança e proximidade crucial para o acesso aos dados, levando a um constante processo de estabelecimento de certas “moedas de troca”25 (Barroso, 2014) que dinamizaram o campo; 3) por estarem elas em posição de menos autoridade na estrutura do núcleo e, consequentemente, menos responsabilidade, as assimetrias de poder entre pesquisador e pesquisados característica dos estudos de instituições do Estado foram consideravelmente reduzidas; 4) o volume de trabalho acumulado pelas estagiárias acarretava, por vezes, em situações limite, nas quais minha ajuda era solicitada para a realização de algumas tarefas simples. Assim, foi por meio da proximidade com as estagiárias do NUDIVERSIS que o “trabalho de campo” se transformou também em “trabalho no campo”, ou ainda, foi desta maneira que passei da observação para a observação participante. Em pouco tempo, fui incluído como parte da equipe de estagiários e passei a realizar certas atividades de auxílio, como por exemplo, fotocopiar documentos, intervir nos atendimentos, ajudar na elaboração de relatórios

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Barroso (2014) discute em seu texto o modo pelo qual o pesquisador negocia sua aceitação no campo investigado, especialmente quando se trata de um campo no qual os pesquisados possuem mais poder que o pesquisador. A autora utiliza a imagem de “moedas de troca” para se referir aos acordos – tácitos e explícitos – que legitimam a presença do pesquisador em um determinado contexto.

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e ofícios, revisar alguns textos etc. A partir do momento em que passei a ser considerado, de certo modo, como um integrante do núcleo26, alteraram-se as percepções do campo e o acesso aos dados. As pastas das/os assistidas/os, repletas de documentos que em um primeiro momento não poderiam ser vistos para que as informações pessoais das/os assistidas/os permanecessem preservadas, tornaram-se não apenas facilmente alcançáveis, mas também de manejo incontornável.

De um dos “lados do balcão”: sobre as implicações de um posicionamento Estar no NUDIVERSIS me obrigava a lidar com dois diferentes tipos de “condição nativa”: de um lado, estavam as operadoras do Direito, funcionárias do núcleo; de outro, estavam os assistidas/os da Defensoria Pública. Antes de iniciar a pesquisa, minha ideia era focar no modo pelo qual as pessoas transexuais davam sentido aos desconfortos, transformando-os em demandas judiciais e lutas por direitos, isto é, meu interesse estava em ficar “do lado de fora do balcão”. Entretanto, o fato de encontrar-me junto das estagiárias durante a maior parte do tempo – ou seja, “do lado de dentro do balcão” – acarretou uma mudança neste desenho inicial, de modo que estas se tornaram as “nativas privilegiadas” da investigação. Lugones (2012) escreveu sobre uma topografia classificatória do espaço que vigorava nos Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba. De acordo com a autora, a posição ocupada no espaço destes Tribunais era definidora do modo pelo qual ela seria vista pelos atores em campo. Logo, sua presença no corredor à associava aos administrados, enquanto dentro das salas ela era encarada como uma administradora. Além disso, ela destaca que não fazia sentido para as funcionárias a sua permanência nos corredores, uma vez que ela, enquanto pesquisadora, deveria ficar nas salas. No caso do NUDIVERSIS, estas reflexões encontram certo eco. Da mesma forma que Lugones, não me era “permitido” ficar na sala de espera e estar constantemente na sala dos estagiários significou ser lido pelas/os assistidas/os como um integrante do núcleo.

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É preciso ressaltar que ao dizer que fui absorvido como parte da equipe, não pretendo sustentar de maneira ingênua a crença de que é possível tornar-se um nativo. Como apontado por Barroso (2014), a necessidade de produção de um relatório final – a qual guia a etnografia desde o momento em que se realiza as observações – implica uma disjunção pesquisador-nativo que é impossível de transpor.

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Apesar dos meus inúmeros esforços para demarcar minha posição enquanto um “pesquisador independente” durante os atendimentos, as/os assistidas/os pareciam não me dissociar da estrutura profissional do núcleo e isto ficava cada vez mais claro na medida em que algumas/uns delas/es me procuravam para pedir informações, tirar dúvidas e saber sobre o andamento de seus processos. Esta parece ser uma marca das investigações realizadas junto à funcionários e servidores de repartições públicas. Para citar apenas um exemplo, trago as narrativas de Ferreira (2011). Segundo a autora, ainda que ela informasse que não era uma policial, mas sim uma pesquisadora, isto não impedia os sujeitos que telefonavam para o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) de tentar sanar suas dúvidas com ela. Acredito que esta percepção não era ocasionada apenas por eu estar sempre junto das estagiárias, mas também por outros fatores como, por exemplo, não compartilhar de experiências de transgeneridade e a diferença nos modos de se vestir: enquanto grande parte das/os assistidas/os utilizam roupas mais leves e menos formais, eu buscava me vestir de acordo com as regras previstas para as pessoas que atuam em repartições públicas, sempre utilizando calças compridas e sapatos fechados. Além disso, os motivos que me levavam a circular pelos corredores do NUDIVERSIS eram completamente distintos das razões das/os assistidas/os: ainda que as profissionais do núcleo também tivessem alguma “autoridade” sobre mim, estas só poderiam influenciar nos rumos da minha pesquisa e não sobre alguns dos “meus direitos”, como era o caso das/os usuárias/os da Defensoria Pública. A partir do momento em que passei a frequentar o núcleo com o propósito de empreender uma investigação, percebi que meu modo de agir em relação às/aos assistidas/os não era muito diferente das atitudes das estagiárias, pois, assim como estas fazem no “primeiro atendimento”, eu também estava ali para fazer uma série de perguntas sobre a vida de cada uma/um delas/es. Assim, se pensarmos em uma linha contínua em que assistidas/os e funcionárias do núcleo se encontram em extremidades opostas, eu, enquanto pesquisador, só poderia me posicionar mais próximo das segundas, embora jamais no ponto extremo. Ser percebido como um dos funcionários do NUDIVERSIS foi uma dificuldade encontrada nas tentativas de me aproximar das/os assistidas/os. Por acreditarem que eu teria algum poder de decisão sobre o encaminhamento de suas demandas, muitas/os delas/es mantinham posturas reservadas e desconfiadas. A impossibilidade de estabelecer o mesmo tipo de relação com ambas as partes ficou clara quando me envolvi em uma situação de tensão entre uma assistida e uma das estagiárias:

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Já não era a primeira vez que Helena27 se dirigia ao núcleo para “saber como estava seu processo”. Segundo a assistida, ela vem ao NUDIVERSIS desde 2012. Ao verificar a pasta da mesma, a estagiária afirmou que o procedimento não poderia ser aberto porque Helena estava respondendo um processo por lesão corporal e não é possível alterar o registro civil enquanto não houver sentença. Esta informação foi passada na sala de espera, onde os atendimentos às/aos assistidas/os são realizados, e outras pessoas estavam presentes. Irritada, a assistida se virou para as outras pessoas e disse em voz alta que “isso era um absurdo”, pois ela apenas se defendeu de um homem que a agredia e que os policiais, por serem preconceituosos, acreditaram na versão do outro envolvido, levando somente a ela para a delegacia. A estagiária então insistiu que não poderia fazer nada diante desta situação. Inconformada, Helena disse que iria até a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pois lá ela poderia “resolver seus problemas”. Até então, eu apenas observava a cena se desenrolar. Entretanto, quando a assistida mencionou que iria até a UERJ, perguntei para onde exatamente ela iria, no intuito de direcioná-la ao Escritório Modelo28 da universidade. Helena então me respondeu que isso “não era da minha conta”, ao passo que retruquei afirmando que só estava tentando ajuda-la. Neste momento, ela me disse de forma ríspida que se minha intenção fosse realmente ajudar, eu não teria ficado calado ao lado da estagiária durante todo esse tempo. Sem saber bem como agir, respondi que ela então fizesse o que considerasse melhor. (Diário de campo, junho de 2014).

Em suma, nesta parte da seção busquei explicitar de qual perspectiva realizei a pesquisa ora apresentada, bem como os caminhos que foram construídos e alterados ao longo do trabalho de campo. Se, por um lado, lidar diretamente com as estagiárias facilitou a obtenção de um importante conjunto de dados, trazendo assim um inegável viés; por outro, isto impôs certos limites no observar e zonas de circulação parcialmente interditas, como as salas dos funcionários técnicos-administrativos e da Defensora Pública, assim como implicou na dificuldade de aproximar mais intimamente das/os assistidas/os.

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Como de praxe nas pesquisas antropológicas, todos os nomes citados se tratam de codinomes utilizados para preservar a identidade dos sujeitos envolvidos. “Escritório Modelo” é uma espécie de instituição de algumas faculdades de Direito que prestam assistência e aconselhamento jurídico gratuito às pessoas. Geralmente, seus principais “atendentes” são alunos da própria faculdade que realizam um estágio obrigatório e não remunerado como parte da formação. 28

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Capítulo 2 Quem Tem Direito a Pleitear Direitos? sobre tornar-se uma/um assistida/o da Defensoria Pública

Em linhas gerais, este capítulo aborda o processo pelo qual as pessoas transexuais se tornam efetivamente assistidas/os do NUDIVERSIS. Deste modo, analiso as práticas de assistência postas em práticas no núcleo – desde o “primeiro atendimento” até as “peregrinações burocráticas” –, levando em consideração que estas implicam uma constante definição de quem tem a legitimidade necessária para demandar a requalificação civil. Em outras palavras, trato aqui do modo pelo qual é determinado “quem tem direito a pleitear direitos”. Por meio de descrições tanto das atuações das profissionais do núcleo durante os diversos “momentos” que compõem o chamado “primeiro atendimento”, quanto da peregrinação burocrática através de outras instituições na busca por uma série de documentos que são considerados necessários para instruir a ação de requalificação civil, busco refletir sobre a forma pela qual se definem os “sujeitos de direitos” no cotidiano da administração pública. Schritzmeyer (2012) relaciona a demanda por “direitos aos direitos” às múltiplas formas com que se tenta “acessar à Justiça”. Os sentidos atribuídos aos termos e às experiências vivenciadas pelos sujeitos no que se refere ao direito, direitos e Justiça são variados, pois o controle burocrático estatal convive com uma série de outros sistemas de obrigação e controle social, gerando assim tensões entre estes sistemas e os aparatos legais administrativos. Deste modo, a autora propõe que “refletir sobre o acesso à Justiça implica pesquisar como o poder se distribui nas próprias instituições e nos grupos responsáveis por ela” (p. 266, grifos no original). Seguindo esta pista, busco neste capítulo não apenas rastrear a distribuição do poder nas instituições, mas também pensar como as dinâmicas que cercam o “acesso à Justiça” são atravessadas por afetos, ideais e compromissos morais diversos.

2.1 “Primeiro Atendimento”: enquadrando sujeitos Como já abordado, o “primeiro atendimento” é uma das categorias nativas mais importantes no ambiente do NUDIVERSIS, uma vez que realizar uma espécie de “primeiro atendimento” é a principal função do núcleo, como apontado no capítulo anterior. Assim, se faz mister distinguir os dois tipos de “primeiro atendimento” que estão sendo aqui discutidos. No 48

âmbito da Defensoria Pública enquanto instituição, realizar um “primeiro atendimento” significa prestar assistência e realizar todos os procedimentos pré-processuais necessários para o ajuizamento de uma determinada demanda. No cotidiano do NUDIVERSIS, esta categoria é utilizada para descrever, em linhas gerais, as situações nas quais os indivíduos apresentam suas solicitações às operadoras do Direito. É durante este primeiro atendimento que tais demandas e pessoas são avaliadas, podendo ou não se transformarem em assistidas/os. A seção encontra-se dividida em quatro partes, que representam, de certo modo, as etapas sequenciais pelas quais o primeiro atendimento é constituído. Assim, exploro desde a chegada ao núcleo até a produção do relatório de primeiro atendimento, passando pela entrevista e o processo de avaliação das possibilidades jurídicas de atendimento à certas demandas.

Primeiro passo: bater na porta Antes de mais nada, é preciso mencionar que aquilo que fica registrado como “primeiro atendimento” pode não coincidir com a primeira vez em que a pessoa compareceu ao núcleo ou entrou em contato com uma das profissionais. Muitas vezes, as pessoas transexuais que chegam ao NUDIVERSIS foram encaminhadas por funcionários de outras instituições, como os Centros de Cidadania do programa Rio Sem Homofobia e a Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro; por profissionais que atuam nos programas de saúde que prestam atendimento às pessoas transexuais29; ou até mesmo através de uma rede de troca de informações que se estabelece entre as/os usuárias/os destes serviços. Nas concepções das profissionais, a realização de um primeiro atendimento ideal está condicionada a uma marcação prévia. Este imperativo de planejamento está ligado ao imaginário que cerca a noção de “primeiro atendimento”. Este, por ser de importância fundamental para a abertura de procedimento, é construído como algo demorado e trabalhoso, demandando muita atenção e tempo para o seu fazer. Na prática, muitas pessoas chegam ao núcleo apenas “batendo na porta”, ou seja, sem ofícios de encaminhamento – principalmente

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Geralmente, as/os assistidas/os são encaminhados por assistentes sociais e/ou psicólogos do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) ou do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE), que são as principais instituições públicas que prestam serviços de saúde à pessoas transexuais, como exames, consultas, acompanhamento médico, hormonoterapia e cirurgia transgenitalizadora no Estado do Rio de Janeiro.

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nos casos de indivíduos orientados a procurar o NUDIVERSIS pelos profissionais dos pelos serviços médicos ou por outras pessoas transexuais – e sem agendar previamente. Se não há nenhuma/um assistida/o com atendimento marcado e as estagiárias não se encontram ocupadas com outras tarefas do núcleo, o primeiro atendimento é realizado imediatamente. Quando elas estão ocupadas, a atitude prevista no modelo de atendimento é a de anotar a “demanda geral” do sujeito – que no caso das pessoas transexuais geralmente é a requalificação civil – e marcar uma data para que este retorne e tenha seu primeiro atendimento efetivado. Entretanto, este modelo está sujeito a negociações, de modo que sua aplicação é sempre contextual. Muitas vezes as pessoas foram de fato remarcadas para outro dia, mas, dependendo do caso, as estagiárias interrompem suas atividades para realizar o primeiro atendimento.

Cheguei ao núcleo um pouco mais cedo que o habitual, antes das estagiárias. Enquanto lia os documentos contidos em uma pasta, um dos funcionários do NUDEDH foi até a sala dos estagiários e me perguntou se eu era do NUDIVERSIS. Respondi que não. Ele perguntou se eu era então um estagiário voluntário, ao passo que expliquei que era um pesquisador. Ele então disse que tinha uma assistida na sala de espera que gostaria de entregar algum documento para as estagiárias e me pediu para recebê-la. Concordei e me dirigi à sala de espera. Carmem se apresentou e disse que foi encaminhada pela SuperDir e que estava ali para “mudar seus documentos”. Perguntei se Carmem já havia sido atendida antes e ela respondeu que não. Avisei então que seria preciso esperar que uma das estagiárias chegasse, pois eu não poderia realizar um atendimento deste tipo sozinho e expliquei que não era um funcionário do núcleo, mas sim um estudante fazendo uma pesquisa. Carmem então me disse que sua residência fica em um bairro no interior do município de São Gonçalo e que o deslocamento para o Rio de Janeiro é difícil e dispendioso. Por conta disso, ela perguntou se poderia ser atendida ainda no mesmo dia, ao passo que respondi que somente uma das estagiárias poderia dizer. A Estagiária I chegou pouco tempo depois e eu logo disse que havia uma assistida aguardando para um primeiro atendimento. Ela respondeu que não poderia fazer e seria preciso marcar o atendimento de Carmem para outro dia, pois já havia marcado um primeiro atendimento para às 14:30 com uma assistida que viria de um município na região serrana do Rio de Janeiro. Contei que a assistida morava em São Gonçalo e que vinha pouco ao Rio. Ela então disse que tentaria entrar em contato com a outra estagiária, para saber se ela poderia ficar encarregada pelo atendimento das 14:30. Neste instante, a Estagiária II chegou e elas dividiram o trabalho, de modo que ambas foram atendidas no mesmo dia. (Diário de campo, março de 2014). Estávamos na sala dos estagiários quando o segurança anunciou que havia duas pessoas na sala de espera para atendimento pelo NUDIVERSIS e que uma delas era um primeiro atendimento. A estagiária falou que marcaria o primeiro atendimento para depois. Após receber a lista de testemunhas deixada por uma assistida, a estagiária perguntou a Pedro qual seria sua demanda, e ele respondeu que gostaria de realizar a “redesignação de nome e sexo”. Pedro trazia consigo uma bengala e permaneceu de olhos fechados durante todo o

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tempo, dando indícios de que era cego. Ele estava acompanhado de sua esposa, uma senhora em uma cadeira de rodas. Ele explicou que morava em um município na região dos lagos do estado do Rio de Janeiro e que estava na cidade pela ocasião de retirada dos pontos cirúrgicos da mastectomia30 realizada na semana anterior. Diante desse quadro, a estagiária pediu que eles dirigissem à sala da Defensora e os atendeu imediatamente. (Diário de campo, maio de 2014).

A partir dos fragmentos apresentados, é possível perceber que atender ou não atender imediatamente a pessoa que bate na porta do NUDIVERSIS é a primeira situação na qual os sujeitos e suas narrativas são avaliadas para que eles possam se tornar assistidas/os da Defensoria Pública. A possível exceção do modelo se dá na medida em que as circunstâncias despertam a compaixão das profissionais. Os casos de Carmem e Pedro oferecem algumas pistas para a compreensão da função da compaixão na escuta promovida pelas estagiárias e as subsequentes ponderações sobre a situação da/o assistida/o, como será discutido mais adiante.

Segundo passo: tomar notas O “primeiro atendimento” consiste basicamente em uma entrevista com a/o assistida/o, na qual suas demandas são registradas. O foco da entrevista é levantar alguns momentos específicos da trajetória do indivíduo. Apesar de pedir de modo relativamente vago para que a pessoa “conte sobra sua vida” e deixá-la livre para construir sua biografia do modo mais conveniente, algumas questões são apontadas como fundamentais para a elaboração da petição inicial de requalificação civil. Assim, se não mencionados ao longo da narrativa da/o assistida/o, estes episódios são diretamente perguntados: com qual idade que começou a se apresentar e se vestir como alguém do “sexo oposto” em tempo integral; como é a relação com a família; como foi a descoberta da transexualidade; se utilizou ou utiliza hormônios por conta própria; se já realizou algum procedimento cirúrgico para a composição da imagem do gênero identificado; se esteve ou está em acompanhamento por algum programa transexualizador; se possui laudos médicos que atestem a transexualidade; se já realizou a cirurgia de transgenitalização ou se

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Mastectomia é o nome dado à cirurgia de remoção completa da(s) mama(s). Ao contrário de cirurgias plásticas com fins estéticos, como a implantação de uma prótese de silicone ou a redução dos seios, a mastectomia é um procedimento que só pode ser realizado como parte de um tratamento para uma determinada patologia, ou seja, está restrito à pessoas que possuem um diagnóstico preciso, como por exemplo, câncer de mama. No caso das pessoas transexuais, é o diagnóstico da “disforia de gênero” que permite o acesso a este tipo de intervenção corporal sem acarretar uma responsabilização ética e criminal da/o médica/o que a realiza.

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possui previsão de quando fará; se trabalha ou já trabalhou; grau de escolaridade; se está ou já esteve em um relacionamento estável; e se tem ou não filhas/os. Além destas informações, as pessoas transexuais são instadas a narrar dificuldades enfrentadas e eventos de discriminação vivenciados em função da posse de documentos com o nome e o sexo de registro, o que se transformará na base da argumentação a favor da procedência do pedido de alteração de nome e sexo no registro civil, como será discutido no último capítulo. É justamente a centralidade dos episódios de sofrimento que faz com que estes possuam sua existência presumida, mesmo quando não relatados. Esta presunção está ligada a dois fatores: 1) as teorias que constroem o fenômeno da transexualidade como uma experiência marcada pela angústia e pelo sofrimento; 2) os ideais morais e comprometimentos políticos que sustentam toda a construção da política pública de assistência jurídica voltada para a população LGBT, como abordado no capítulo anterior.

Elisa narrou uma série de sofrimentos durante sua entrevista, como por exemplo, que seu pai a obrigava a ficar em silêncio quando na presença dos amigos dele. Alguns episódios foram mais marcantes que outros. Em seguida, Elisa revelou aos prantos que foi estuprada aos 15 anos por colegas de escola após uma partida de futebol. Além disso, ela contou que já foi recusada em empregos por conta da divergência entre sua aparência e seus documentos. Seu sustento é oriundo de trabalhos informais e ela passa por dificuldades econômicas, de modo que, naquele momento, a luz e água de sua residência estavam cortadas devido à falta de pagamento. (Diário de campo, março de 2014) Estava na sala de espera aguardando o retorno da estagiária e aproveitei para conversar com Amanda. A assistida me contou que seus documentos masculinos geram muitos constrangimentos, especialmente quando ela está acompanhada de seu enteado, filho de seu parceiro. Segundo ela, o menino tem apenas sete anos de idade e não sabe que ela é transexual. Em um episódio, ela estava com o menino quando foi chamada pelo nome de registro por um funcionário de uma instituição, o que fez com que a criança estranhasse. Ela disse que desconversou e que os funcionários haviam se enganado. Isto se repetiu uma segunda vez e ao utilizar a mesma explicação, a criança questionou, deixando-a embaraçada. (Diário de campo, março de 2014) Gabriela relatou que conversou com seus pais sobre seus desejos e depois disso passou a usar roupas femininas. Com isso, seu pai, que era alcóolatra, passou a agredi-la fisicamente de modo sistemático; sua mãe, apesar de não discriminá-la, nunca a defendeu das violências cometidas por seu pai e irmãos. Gabriela disse que após sair de casa passou muito tempo afastada de sua família e que mesmo após tanto tempo, a relação com os familiares não é de proximidade. (Diário de campo, março de 2014) A estagiária pediu que Marta contasse sobre sua trajetória. A assistida reclamou e disse que já não aguenta mais repetir as mesmas histórias toda vez que é atendida por um funcionário

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diferente. Diante da resistência da assistida, a estagiária resolveu fazer somente as perguntas padrão para a elaboração da petição inicial, de modo que a assistida se limitou apenas a responder tais questões de modo curto e objetivo. (Diário de campo, maio de 2014)

Como é possível perceber, os relatos de dor giram em torno de experiências de discriminação e conflitos em múltiplos planos: com si mesma/o, com familiares, com colegas de escola ou trabalho, com amigos e com desconhecidos em espaços públicos. Uma das trajetórias que mais mobilizou as profissionais do núcleo foi a de Pedro. De acordo com as funcionárias, sua narrativa foi uma das mais dramáticas e impactantes que elas já atenderam no núcleo, marcada, por um lado, por duas ordens distintas de sofrimento – problemas de saúde tanto próprios quanto de sua esposa e dificuldades econômicas – e, por outro, por uma espécie de “força de vontade” e determinação, como podemos ver no trecho a seguir.

Após não obter êxito no pleito de uma vaga no programa transexualizador do HUPE, Pedro buscou informações em grupos virtuais de transexuais FtM [Female to Male]. O assistido conseguiu, com a ajuda de amigos, consultas com profissionais da rede pública de seu município para adquirir o diagnóstico de transexualidade e assim começar as mudanças corporais. Antes disso, ele contou que pedia aos médicos que retirassem suas mamas, e estes se recusavam alegando que isso seria mutilação. Assim, Pedro pedia constantemente para ter câncer de mama para que os médicos fossem obrigados a retirar seus seios. Após o início da utilização de hormônios, o problema de visão que Pedro tinha se aguçou, de modo que ele perdeu completamente este sentido. Ele relatou que a médica oftalmologista que o acompanhava havia alertado sobre essa possibilidade. Antes que pudéssemos dizer alguma coisa ou expressar qualquer reação, Pedro comentou com orgulho que não se arrependia de sua decisão, pois somente assim ele conseguiu “ser o que ele é” e que perder a visão é preferível a “olhar no espelho e não se reconhecer”. Pedro emendou o assunto dizendo que não pretende fazer a cirurgia transgenitalizadora porque ainda possui caráter experimental. Ele diz que sua esposa é cadeirante e depende de sua ajuda para a realização de muitas das atividades cotidianas, de modo que ele não pode se arriscar a ter um problema grave de saúde, pois isso afetaria a rotina de ambos. (Diário de campo, maio de 2014).

Ao analisar os processos de requalificação civil em uma Promotoria Pública de Brasília, Teixeira (2013) salienta o modo como as histórias eram escutadas a partir de um roteiro único. No cotidiano do NUDIVERSIS, a construção da semelhança dos relatos também é significativa. Deste modo, me aproprio da ideia de convenção narrativa utilizada por Nadai (2012) para pensar os modos de narrar que são possíveis no cenário do primeiro atendimento do núcleo. Segundo a autora, as convenções narrativas são as formas pelas quais os relatos de experiências das pessoas podem se tornar inteligíveis em determinados contextos. Assim, uma biografia marcada por experiências de sofrimento e constrangimento é compreendida como a primeira

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convenção narrativa que opera nos atendimentos realizados pelas profissionais do núcleo. Passo agora para a análise de outras convenções que foram percebidas ao longo do trabalho de campo. Elisa diz que nunca se sentiu gay e que ainda sente raiva quando alguém diz que ela é um “viado de saia”. Ela afirma o tempo inteiro que age como uma “mulher normal”, uma “senhora de respeito” e que não conseguiria, nem mesmo se tentasse, reproduzir os “trejeitos dos viadinhos”. As travestis, por sua vez, são imediatamente associadas à prostituição, de modo que Elisa diz querer alterar seus documentos para poder ter um “emprego digno” e parar poder voltar a universidade “com a cabeça erguida”. [...] A assistida conta que não se sentia nem gay e nem travesti, mas que nunca havia ouvido falar sobre transexualidade até ingressar no programa transexualizador do HUPE. Somente durante as consultas que ela adquiriu informações e passou a se identificar como transexual. (Diário de campo, março de 2014) Pedro relatou que foi casado durante nove anos com uma mulher, mas que não se sentia pleno. Em um dado momento, ele viajou para um sítio de uma amiga psiquiatra e esta sugeriu que ele usasse as roupas de seu filho e passasse a se apresentar como Pedro. O assistido disse então que se sentiu muito feliz agindo desse modo. [...] Ele afirmou que não sabia nada sobre transexualidade e seu primeiro contato com o assunto se deu quando ele e uma amiga alugaram o filme Meninos Não Choram31 [Boys Don’t Cry]. Segundo ele, assistir ao filme foi como se olhar no espelho. (Diário de campo, maio de 2014)

A partir destes trechos, identifico outras duas convenções narrativas, ambas relativas à construção de subjetividade e à elaboração de uma identidade transexual. A primeira delas busca reforçar a distinção entre a transexualidade e outras formas de significar as experiências dissidentes de identidade de gênero e orientação sexual: os homens gays, as mulheres lésbicas e as travestis. Algumas interpretações sobre este ponto já foram oferecidas por autoras que pesquisam o fenômeno da transexualidade. De acordo com Teixeira (2013), estas distinções se fazem necessárias para a manutenção das pessoas transexuais no programa transexualizador, que se destina somente àquelas/es que possuem o diagnóstico. A análise de Ventura (2010) é semelhante à de Flavia Teixeira. Para Ventura, o caráter diferencial do diagnóstico da transexualidade cumpre a função de delimitar quem são os “sujeitos de direito” de uma determinada política. Já Zambrano (2005) propõe que a utilização de um discurso sobre a transexualidade embasado pela medicina tem por objetivo afastar das pessoas transexuais os estigmas que recaem sobre as travestis e as pessoas homossexuais. Bento (2006), por sua vez,

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O filme Meninos Não Choram, de 1999, dirigido por Kimberly Pierce, é baseado na história real de Brandon Teena, um homem transexual assassinado em uma pequena cidade do Estado de Nebraska, nos Estados Unidos. O caso de Brandon tornou-se emblemático para a militância LGBT estadunidense. Uma instigante análise sobre o filme pode ser encontrada em Halberstam (2005).

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ao discutir a constituição da identidade transexual, argumenta que o ato de dizer que “não é viado”, “não é travesti” e “não é sapatão” representa a construção da identidade na e pela diferença. Sem desprezar as outras análises, dou um peso maior aos escritos de Berenice Bento em minha reflexão sobre esta convenção narrativa. Como pode ser visto nos relatos das/os próprias/os assistidas/os, todas essas categorias muitas vezes são, nas interações cotidianas, colocadas sob os signos da homossexualidade ou da travestilidade. Em outras palavras, as pessoas transexuais continuam sendo socialmente identificadas como “viados”, “sapatões” e travestis (Bento, 2006). Assim, a expressão “viado de saia” evidencia os limites da performatividade na construção de uma identidade de gênero. Como apontado por Butler (1993), a produção de um gênero implica identificações com e rejeições de determinados atos performáticos, um processo que acarreta a construção de margens e fronteiras que delimitam o humano, criando assim uma matriz excludente. Deste modo, “viados”, travestis e “sapatões” que habitam o espaço da abjeção conformam o “exterior constituinte” de uma identidade transexual que busca se estabelecer através da hierarquização das diferenças. O raciocínio da autora se complexifica quando ela oferece algumas respostas às críticas feitas ao seu primeiro grande trabalho sobre gênero: Gender Trouble, de 1990. Segundo Butler, uma leitura simplista de sua obra fez com que muitos acreditassem que ela definia o gênero como uma escolha livre e autônoma, baseada apenas na performance dos sujeitos. Em outras obras, Butler (1993, 2004) observa que os limites da invenção da performatividade é o olhar do outro, e é esse olhar que confere a materialidade dos corpos. Neste sentido, os “corpos importam” pois é o corpo que oferece a matriz da performatividade de gênero possível, uma vez que este é visto como uma espécie de “lugar” no qual as normas sociais são incorporadas e atualizadas. A segunda convenção narrativa, que está intrinsecamente relacionada a primeira, diz respeito a um tipo de “tomada de consciência” que é promovido pelo contato com os discursos médico-científicos sobre transexualidade, seja por meio de filmes, reportagens, outras pessoas transexuais ou médicos e profissionais de saúde. Neste sentido, perceber-se como transexual oferece uma estabilização, ao menos temporária, de uma identidade que confere sentido às suas experiências. Como consequência, tal percepção traz uma ressignificação dos eventos que compõem a biografia dos sujeitos. Como escreve Bento,

[o] conhecimento da existência de outras pessoas que compartilham a mesma sensação de não-pertencimento ao gênero atribuído é relatado 55

como um momento de “revelação” e de encontro. Finalmente, conseguem nomear; situar o que sentem; entender que não são os únicos com aqueles conflitos e, principalmente, que não são gays, travestis ou lésbicas. Ser “transexual” oferece uma posição identitária que dará um sentido provisório a suas vidas. (Bento, 2006, p. 209, grifos no original) Por fim, além de produzirem narrações compreensíveis, podemos pensar que as convenções narrativas estabelecem, em certa medida, limites tanto daquilo que pode ser falado, quanto daquilo que pode ser ouvido32. Em última instância, tais limitações funcionam para a construção de uma espécie de “homogeneidade experiencial” que cerca os modos de vida das pessoas transexuais, como apontado nas investigações realizadas por Bento (2006), Teixeira (2013) e Ventura (2010), já citadas anteriormente.

Terceiro passo: definir possibilidades

Uma vez que se tenha escutado as narrativas e demandas das pessoas transexuais, o passo seguinte que determinará a abertura de um procedimento e, consequentemente, oficializará a condição de assistida/o da pessoa, é a avaliação sobre a possibilidade de procedência dos pedidos apresentados. Conforme discutido no primeiro capítulo, o “respaldo jurídico” é o que aparece nos discursos das profissionais do NUDIVERSIS para justificar suas atuações. Nos casos de requalificação civil, ao final da entrevista, as estagiárias explicam como funciona o expediente para este tipo de demanda, o tempo médio de elaboração da petição inicial e descrevem quais documentos e condições necessárias para que o pedido de alteração do registro civil possa ser julgado como procedente pelo Judiciário. Assim, elas expõem o caráter de “primeiro atendimento” do núcleo ao deixar claro que só podem atuar oficialmente em uma etapa pré-processual. Sobre os documentos, as profissionais avisam que só é possível dar início ao procedimento após a entrega das cópias dos documentos de identificação ou qualificação civil: Certidão de Nascimento; Carteira de Identidade (RG); CPF; Título de Eleitor; Certificado de Reservista (para aqueles cujo sexo de registro é masculino); Passaporte (caso tenha); Carteira 32

O lugar do silêncio e sua subsequente elucidação sobre o que pode ser dito na interação cotidiana entre usuários e funcionários de um serviço público de saúde foi discutido por Balthazar (2012). De acordo com a autora, o silêncio é também uma forma de discurso e ocupa um determinado “espaço de fala”. Para um debate mais amplo, consultar a referida dissertação.

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de Habilitação (caso tenha); Carteira de Trabalho, contracheque e/ou outro comprovante de renda; Comprovante de Residência e diplomas e certidões de escolaridade e/ou cursos profissionalizantes. Além dos documentos de identificação, são solicitados uma lista de testemunhas; laudos psiquiátrico, endocrinológico, psicológico e social que atestam a transexualidade; atestado médico de realização da cirurgia de transgenitalização (nos poucos casos em que isso se aplica); exames médicos; receitas de hormônios; e fotos nas quais as/os assistidas/os se apresentem com a “identidade de gênero pretendida”. Com tudo isso em mãos, inicia-se o processo de assistência, que implica, basicamente, na produção de outros documentos que serão anexados como “provas” na petição inicial. São estes: as certidões emitidas pelos Ofícios de Registro de Distribuição (ORD); e os relatórios psicológico e social que são entregues mediante um ofício enviado à Coordenação Geral de Serviço Social e Psicologia da DPGERJ no qual é solicitada a realização de um “estudo social” da/o assistida/o33. Ter todos os documentos listados se configura como a dimensão mais formal da avaliação pelas quais as pessoas transexuais passam para se tornarem assistidas e assistidos. No plano das práticas, é admitida uma margem de manobras e negociações das regras de procedimento. Um exemplo se dá com a comprovação da hipossuficiência. Segundo a Defensora, a ideia de não ter como pagar os custos do processo sem comprometer o próprio sustento ou da família precisa ser alargada no NUDIVERSIS, para abarcar o máximo de pessoas possível, pois ela acredita que as pessoas LGBT são atendidas de forma insatisfatória em outras instituições. Neste sentido, alguns manejos são permitidos quanto à necessidade da carteira de trabalho, contracheque e comprovante de renda, uma vez que o propósito destes documentos é comprovar a condição econômica da/o assistida/o, para que ela/e possa obter a assistência pela DPGE-RJ e, consequentemente, a gratuidade de justiça. Muitas/os assistidas/os nunca trabalharam e não possuem Carteira de Trabalho. Neste caso, elas/es são aconselhados a levar extratos de contas correntes, caso possuam, o que também não é sempre é aplicável, tendo em vista que a grande maioria das pessoas transexuais evitam o máximo possível usar seus nomes de registro para abrir conta em banco, se credenciar em serviço de distribuição elétrica, etc. Como último recurso, é possível ainda apresentar declarações de dependência econômica de familiares com os documentos comprobatórios da hipossuficiência das pessoas que assinam a declaração.

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Este capítulo se concentra nos procedimentos administrativos efetivados no âmbito do NUDIVERSIS. Os documentos, que são também peças fundamentais destas dinâmicas, serão analisados no próximo capítulo.

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Outro campo sujeito a ajustes e acordos é o dos laudos que atestam a transexualidade. Como apontado por Zambrano (2005), o direito de requalificação civil só pode ser reclamado por quem passou por mudanças corporais feitas de acordo com as regras definidas pelo Conselho Federal de Medicina. De acordo com a resolução nº 1.955/2010 do CFM, que regula desde os critérios diagnósticos até os procedimentos terapêuticos para o tratamento do “transexualismo”, sujeitos transexuais devem ser acompanhados por um período mínimo de dois anos por um programa transexualizador que conte com uma equipe multidisciplinar envolvendo cirurgiões, endocrinologistas, anestesistas, enfermeiros, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, a fim de obter não somente o laudo da transexualidade, mas também a permissão para a realização da cirurgia transgenitalizadora. Algumas/ns das/os assistidas/os do núcleo não possuem tais laudos por uma série de razões como, por exemplo, terem ingressado nos serviços de saúde há menos de dois anos. Nestes casos, os laudos podem ser substituídos por declarações constando que a pessoa está em acompanhamento pela equipe de algum programa transexualizador e, se possível, a previsão de a partir de quando ela poderá realizar a cirurgia de transgenitalização. Ainda sobre os laudos, existe outro espaço de negociação, referente à origem do documento. Por conta da restrição em atender somente pessoas residentes do Estado do Rio de Janeiro, os laudos apresentados ao NUDIVERSIS são, em sua grande maioria, oriundos de setores do HUPE ou do IEDE, as únicas duas instituições públicas do Rio de Janeiro que possuem programas destinados à assistência em saúde de pessoas transexuais34. Há, entretanto, pelo menos um caso em que o laudo afirmando a transexualidade do sujeito foi dado por um psiquiatra que não faz parte de uma equipe específica de atendimento a pessoas transexuais, não configurando um fato impeditivo para que a alteração do prenome e sexo seja pleiteada.

Quarto passo: registrar sujeitos, trajetórias e demandas

Após a realização da entrevista no primeiro atendimento, as estagiárias transformam as informações anotadas em um documento chamado de Relatório de Primeiro Atendimento. É este ato que materializa sujeitos e suas trajetórias e demandas ao documentá-los, tornando-os oficialmente assistidos do NUDIVERSIS. Assim, ao tomar estes relatórios como objetos da

A cirurgia de transgenitalização é tida como a intervenção corporal mais complexa envolvida na “terapia de mudança de sexo”. No âmbito público, esta é realizada, no Rio de Janeiro, somente pelos profissionais do HUPE. 34

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investigação pretendo explorar o modo pelo qual as narrativas das/os assistidas/os são apropriadas pelas profissionais do núcleo e o que é levado em consideração ou não no processo de elaboração dos registros oficiais. Este relatório contém informações básicas sobre o primeiro atendimento, tais como o nome do profissional responsável pela entrevista, a data em que a pessoa compareceu na Defensoria, os nomes social e de registro do/a assistido/a, a qualificação do/a assistido/a (naturalidade, estado civil, profissão, números de RG e CPF), telefones de contato, lista de testemunhas (quando entregue no primeiro atendimento, o que não acontece sempre) e um resumo do caso. Concentro-me aqui na análise do que consta como “resumo do caso”. A partir da comparação entre minhas anotações no diário de campo, as notas feitas pelas estagiárias durante o primeiro atendimento e as informações contidas no relatório de primeiro atendimento, é possível perceber que a produção deste relatório deve ser apreendida como um processo através do qual as narrativas dos sujeitos são reduzidas e traduzidas para uma linguagem juridicamente tanto compreensível quanto aceitável. Contudo, ressalvo que não tomo as diferenças entre estas três modalidades de registrar narrativas de forma ingênua ou hierárquica. Apesar de, grosso modo, todas elas terem por função produzir uma espécie de memória, elas possuem finalidades, interesses e linguagens utilizadas muito distintas, o que afeta sua constituição desde o início. Logo, os três registros são produzidos no interior daquilo que pode ser dito, ouvido e escrito. A primeira característica do relatório de primeiro atendimento é a discrepância entre aquilo que é dito e aquilo que fica registrado. É neste sentido que afirmo a existência de um ininterrupto processo de contração destas narrativas, uma vez que nem tudo que é dito durante as entrevistas é anotado pela estagiária e nem tudo aquilo que é anotado é posteriormente descrito no Relatório de Primeiro Atendimento35, pois certas coisas não são passíveis de tradução para a linguagem jurídica e, portanto, não podem ser judicializáveis. Aproximo a elaboração do relatório de primeiro atendimento ao movimento que Herzfeld (1993) denomina como o da produção de informação classificada. De acordo com o autor, enquadrar demandas, sujeitos e narrativas em determinadas categorias faz parte de uma taxonomia fundamental ao controle burocrático do Estado exercido pelas instituições. Assim, redigir um relatório de primeiro atendimento significa também traduzir dramas sob a forma de escrita e produzir a realidade através de um documento. Retomo então a ideia de convenção

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Nem mesmo tudo aquilo que consta no relatório de primeiro atendimento é transposto para a petição inicial. Contudo, isto só será abordado no último capítulo.

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narrativa para pensar sobre um caso que ilustra qual tipo de demanda cabe em uma ação judicial de requalificação civil, apontando assim os limites do que deve ser registrado pelas estagiárias durante o primeiro atendimento. Ao elencar uma série de “sonhos e aspirações”, Elisa disse que quer fazer a cirurgia de transgenitalização para poder ter uma vagina e assim se tornar uma “mulher de verdade”. Em seguida ela disse sentir atração apenas por homens e não por “viados”. Além disso, a assistida relatou que não gosta de penetração anal e que quando finalmente tiver passado pela cirurgia, poderá “dar” como sempre quis. (Diário de campo, março de 2014)

Elisa enfatizou sua vontade de fazer a cirurgia de transgenitalização para exercer uma prática sexual específica – isto é, a penetração vaginal – em vários momentos durante a entrevista de primeiro atendimento. No entanto, nada foi anotado sobre isso e não há nenhuma menção ao exercício da sexualidade no relatório de primeiro atendimento. Por ora, abordo apenas como isto é representativo do processo que enquadra os sujeitos em determinadas formas narrativas, uma vez que as justificativas que são consideradas plausíveis para o pedido de requalificação civil serão discutidas posteriormente. A tradução dos dramas em papéis e os limites dessa transposição para uma linguagem juridicamente compreensível foram objetos da investigação empreendida por Lugones (2012). A autora explora, através de sua etnografia, a disparidade entre as atuações das administradoras dos Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba e os autos processuais. Já na introdução de seu trabalho, a pesquisadora aponta que há um hiato entre as práticas efetuadas nos tribunais e aquilo que fica registrado nos documentos, de modo que as formas de aconselhamento36 não estão presentes nas atas assinadas pelos administrados, aparecendo somente aquilo que pode ser legalmente tratado. Do mesmo modo, as reclamações feitas e justificativas dadas pelos tutelados nestes tribunais não são tomadas na íntegra, mas sim passam pelo processo de adequação executado pelas funcionárias dos tribunais. O mesmo acontece com as pessoas transexuais durante o período em que se encontram sob a assistência promovida pelas profissionais do NUDIVERSIS. Neste sentido, as narrativas apresentadas tanto pelos tutelados estudados por Lugones (2012) quanto pelas/os assistidas/os do núcleo são transpostas para que possam ser contidas nas formas legais previstas.

O aconselhamento é uma das técnicas de menorização – ou seja, de exercício do poder administrativo – utilizadas pelas operadoras do Direito nos Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba que depende de um modo determinado de dispor o corpo, o qual envolve o tom de voz, a postura corporal, o uso da linguagem etc. O aconselhamento é visto como um tipo de ordem com “boas intenções”, tendo em vista que as profissionais encaram suas atuações como uma forma de ajudar os responsáveis dos menores que se encontram nos tribunais. 36

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Por fim, reforço que, uma vez que a inteligibilidade jurídica destes dramas é condicionada a um ajuste de linguagem, é necessário ressaltar que este processo de tradução é sempre insatisfatório e a conversão nunca é completa. Os pormenores dos dramas sociais e individuais “não cabem” nos documentos oficiais e a linguagem jurídica não dá conta de cobrir aquilo que é movimentado pelos sujeitos moral e subjetivamente.

2.2 Peregrinações burocráticas: em busca dos atestados da “verdade”

Tendo em mente que o primeiro atendimento deve ser previamente marcado através de contato telefônico ou por correio eletrônico e que neste contato as profissionais informam a lista de documentos necessários para a abertura de procedimento, espera-se que a pessoa leve toda a documentação quando na ocasião da entrevista. Contudo, isto raramente acontece, seja porque os sujeitos não possuem ou não levam tais documentos no primeiro atendimento, seja porque em algumas situações as pessoas são atendidas mesmo que não tenho agendado antecipadamente. Isto faz com que as/os assistidas/os tenham que fazer várias visitas ao NUDIVERSIS até que todos os documentos considerados necessários sejam reunidos. O constante ir e voltar das/os assistidas/os às salas de espera da Defensoria Pública representa um dos aspectos da peregrinação burocrática a qual estão submetidos. Utilizo a ideia de “peregrinação burocrática” para descrever os trânsitos dos sujeitos através de determinados espaços e instituições para adquirir declarações, certidões, relatórios etc. necessários para a efetivação de alguma demanda. No caso das pessoas transexuais, a peregrinação burocrática representa uma etapa na busca pela requalificação civil, na qual é preciso agregar documentos que funcionam como provas necessárias à apreciação do pleito no âmbito do Judiciário. Ressalvo que o núcleo figura como parte de uma peregrinação burocrática mais ampla37 pela qual as pessoas transexuais precisam passar para ter atendido seu desejo de alteração de prenome e sexo, já que a grande maioria das/os assistidas/os chegam ao núcleo através de encaminhamentos feitos por outras instituições, como os centros de cidadania do programa Rio

É preciso ressaltar que a peregrinação pode ser não somente “burocrática”, uma vez que, segundo a portaria do Ministério da Saúde nº 457 de agosto de 2008, apenas quatro hospitais públicos estão habilitados a oferecer a cirurgia de transgenitalização: o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro; o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; a Fundação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo; e o Hospital de Clínicas de Goiânia, em Goiás. Assim, muitas pessoas transexuais migram de suas cidades de origem em busca da realização dos procedimentos necessários para a realização da cirurgia de transgenitalização. 37

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Sem Homofobia (RSH), a Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual (CEDS) e os programas de saúde voltados para o atendimento de pessoas transexuais do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) e do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE). Ademais, após a entrega da petição inicial, os sujeitos precisam se dirigir até os Tribunais de Justiça e/ou Fóruns para protocolar este documento e assim dar início ao processo judicial em si, o que pode implicar mais visitas a estas instituições para comparecer à audiências. Entretanto, devido aos dados aqui discutidos serem oriundos de uma etnografia realizada no âmbito do NUDIVERSIS, é preciso reconhecer que isto implica certos limites para pensar sobre esta peregrinação burocrática. Assim, por conta dos objetivos da investigação empreendida, abordo somente os caminhos percorridos em decorrência da assistência prestada pelas profissionais do núcleo. Isto é, tomo como objeto as jornadas pela Sede da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ) e pelos nove Ofícios de Registro de Distribuição (ORD) da cidade do Rio de Janeiro38. Para tentar situar o leitor na dimensão espacial da peregrinação burocrática feita pelas pessoas transexuais, apresento um mapa de parte da região central da cidade do Rio de Janeiro no qual se encontram marcados todos os locais para os quais que estas precisam se deslocar.

Figura 2: Pontos da peregrinação burocrática no Centro da cidade do Rio de Janeiro. 38

Ressalto que, nesta seção, exploro apenas o processo de circulação das pessoas transexuais pelas instituições. Os documentos obtidos através da peregrinação burocrática serão analisados em outro capítulo.

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Sede da DPGE-RJ

A Sede da Defensoria Pública também fica localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro, a aproximadamente 750 metros de distância do NUDIVERSIS. As/os assistidas/os são direcionados para a Coordenação Geral de Serviço Social e Psicologia da DPGE-RJ através de um ofício no qual é solicitada a realização de um Estudo Social do indivíduo encaminhado. Após a entrega do ofício, a pessoa deve levá-lo até a Sede da DPGE-RJ para assim agendar atendimentos em dias e horários específicos. Além de cópias de todos os documentos coletados durante o primeiro atendimento, o modelo de ofício de encaminhamento traz como elementos: a identificação da pessoa (nome social, nome de registro, nacionalidade, profissão, estado civil, números de RG e CPF e endereço); a demanda da/o assistido (“A/o assistida/o é transexual feminina/masculino. Busca redesignação de nome e sexo pela via judicial, tendo procurado o NUDIVERSIS/DPGE-RJ após tomar conhecimento da atuação do núcleo”); alguns parágrafos sobre a trajetória do sujeito, focado no momento de descoberta da transexualidade, na relação com a família, na utilização ou não de hormônio por conta própria e no acompanhamento ou não por profissionais de programas transexualizadores (tais trechos são retirados do relatório de primeiro atendimento); e, por fim, a justificativa da necessidade de requalificação civil e a solicitação aos funcionários da Coordenadoria Geral de Serviço Social e Psicologia.

Por conta de dificuldades em relação ao prenome masculino/feminino e a sua atual aparência, passa por situações vexatórias ao ser chamada/o em público por seu nome de registro, fazendo-se necessária, para que viva com dignidade, a requalificação civil em seus documentos pessoais. Este comunicado oficial segue com cópias dos documentos pessoais e comprovantes de residência, renda, bem como fotos da/o mesma/o, para solicitar Estudo Social do caso e elaborado o respectivo Relatório social e psicológico, a fim de instruir ação judicial. (Ofício de encaminhamento à Coordenação Geral de Serviço Social e Psicologia da DPGE-RJ)

O estudo social consiste basicamente em entrevistas realizadas com assistentes sociais e psicólogos servidores da Defensoria Pública. Seu objetivo é avaliar a procedência do pedido de requalificação civil da pessoa transexual. As entrevistas feitas tanto pelos assistentes sociais quanto pelos psicólogos possuem praticamente o mesmo caráter da realizada pelas funcionárias do NUDIVERSIS. Após estes atendimentos, os profissionais emitem seus respectivos relatórios, os quais são enviados diretamente para o núcleo e anexados a petição inicial de requalificação civil a ser entregue à/ao assistida/o. 63

Ofícios de Registro de Distribuição Os Ofícios de Registro de Distribuição (ORD) são órgãos extrajudiciais do Estado – e fiscalizados pelo Poder Judiciário – encarregados de registrar diversos tipos de atos, documentos e títulos no município do Rio de Janeiro, bem como garantir a disponibilidade, perpetuidade, conservação e autenticidade dos mesmos. Em outras palavras, os ORD são entidades que até a Constituição de 1988 eram chamadas de cartórios e realizam “serviços notariais”, isto é, dão fé pública aos diversos tipos de documentos com que lidam. Como apontado por Miranda (2012), estes se dividem de acordo com três funções: tabelionato, responsável pelo reconhecimento de firma, autenticação de documentos, certidões, registro de procurações etc.; escrivanias de Justiça, encarregadas de registrar os feitos relacionados com os direitos civil e processual criminal; e registros públicos, incumbidos de realizar o registro civil de pessoas naturais, de pessoas jurídicas, de títulos e de documentos. Além disso, a autora destaca o papel dos funcionários destas instituições na construção de uma “cultura legal” no Brasil, exercendo assim uma significativa influência nos processos de construção da verdade39 (p. 279). Existem ao todo nove ORD na cidade, todos localizados na região central. Cada um desses Ofícios é responsável por lidar com determinadas categorias de documentos. De modo resumido, aos 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios é delegado o registro de todos os feitos ajuizados na Comarca da Capital (e Foros Regionais) e distribuídos ao Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, ou seja, tudo aquilo que é levado a juízo. Os 5º e 6º Ofícios são responsáveis pela ordenação dos atos praticados pelos cartórios de notas e registros de imóveis. O 7º Ofício é encarregado de registrar e distribuir os protestos de títulos40. O 8º Ofício possui uma “atribuição residual” de registrar todos os títulos e documentos que não são feitos ajuizados. Por último, o 9º Ofício assume a responsabilidade de registrar todos os feitos ajuizados no qual o Estado ou o Município figuram como uma das partes do processo – réu ou autor41 –, especialmente quando se trata de cobrança de impostos de contribuintes inadimplentes.

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O papel dos documentos no processo de criação de verdades/realidades será abordado no próximo capítulo.

De acordo com a Lei 9.492/97, “protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida” (Brasil, 1997). 40

Geralmente, um indivíduo pode assumir três distintas “posições” em um processo judicial: réu, aquele em face de quem é feita a demanda ou pedido; autor, quem propõe a ação; ou testemunha, quem tem algo a declarar sobre o assunto em questão. Logicamente, Pessoas Jurídicas, isto é, entidades, instituições, empresas etc., só podem assumir uma das duas primeiras posições. Além disso, pode existir processos sem réus, como é o caso das ações de requalificação civil de pessoas transexuais. Estes processos sem réu são chamados na praxe jurídica de 41

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As/os assistidas/os do NUDIVERSIS são encaminhados a estes nove Ofícios com o intuito de retirarem Certidões sobre as mais variadas questões. Após a entrega do ofício do núcleo em que consta a solicitação, é preciso esperar um período médio de até sete dias úteis para retornar às instituições e assim pegar os documentos. Do mesmo modo que os relatórios do estudo social, tais certidões são anexadas a petição inicial de requalificação civil. Segue abaixo um quadro sucinto com os requerimentos das funcionárias do núcleo aos ORD42.

Ofício

Competências

Solicitação



Falências, Cível e Criminal

Certidão acerca da existência ou inexistência de ações criminais



Falências, Cível, Criminal e Concursos

Certidão acerca da existência ou inexistência de ações criminais



Falências, Cível e Criminal

Certidão acerca da existência ou inexistência de ações criminais



Falências, Cível, Criminal, Interdições e Tutelas

Certidão acerca da existência ou inexistência de ações criminais



Bens e Testamentos (Escrituras)

Certidão acerca da existência ou inexistência de escrituras em geral, títulos judiciais e instrumentos particulares (pesquisa em geral)



Bens e Testamentos

Certidão acerca da existência ou inexistência de pesquisa de bens, testamentos e procurações



Protesto de Títulos

Certidão acerca da existência ou inexistência de distribuição para protesto



Títulos e Documentos

Certidão acerca da existência ou inexistência de títulos e documentos



Fazenda Pública Estadual

Certidão acerca da existência ou inexistência de execuções fiscais

Tabela 1: Solicitações aos Ofícios de Registro de Distribuição do Rio de Janeiro

“jurisdição voluntária”, não possuindo natureza propriamente jurisdicional e processual, sendo uma atividade de cunho puramente administrativo. 42

Este quadro apresenta de modo esquemático as solicitações contidas nos ofícios de encaminhamento enviados aos ORD. Contudo, estes serviços fornecem certidões que excedem, em muito, os assuntos que são do interesse das profissionais do NUDIVERSIS para a instauração da ação de requalificação civil. Um quadro completo com todos os assuntos mencionados nas certidões pode ser encontrado nos anexos deste trabalho.

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É preciso levar em consideração que, usualmente, estas certidões possuem custos relativamente elevados para serem obtidas. Os valores43 cobrados por cada um dos Ofícios variam. Os 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios Distribuidores cobram, cada um, um valor de R$ 84,57 por certidão. As certidões dos 7º, 8º e 9º custam, respectivamente, R$ 63,62, R$ 70,90 e R$ 75,46. Logo, as certidões dos Ofícios cujos valores cobrados são conhecidos somam um custo total de R$ 548,26. Contudo, ao serem encaminhados munidos de ofícios da Defensoria Pública e declarações de hipossuficiência, as/os assistidas/os do NUDIVERSIS conseguem solicitar tais documentos sem custos, uma vez que eles se encaixam na definição de serviço extrajudicial necessário para o ajuizamento da causa, garantindo assim a gratuidade de justiça. A entrega das certidões dos ORD é o último passo dos procedimentos de assistência que precisa ser cumprido antes da elaboração da petição inicial. De certo modo, tais certidões imprimem um “ritmo de trabalho” entre as funcionárias do núcleo e impõem uma espécie de data limite para que o processo administrativo do NUDIVERSIS tenha fim, pois estes documentos possuem, ao menos teoricamente, uma validade de noventa dias.

2.3 Produzir uma/um assistida/o: definindo quem tem direito a pedir direitos

Tanto o primeiro atendimento quanto as peregrinações burocráticas fazem parte de um processo que produz sujeitos legítimos para reclamar direitos na esfera judicial, uma das preocupações centrais do trabalho ora apresentado. Ou ainda, dito de outro modo, estes procedimentos efetivam a construção de determinados sujeitos políticos a partir de uma linguagem “dos direitos” (Vianna, 2013). O termo que designa as/os usuárias/os dos serviços da Defensoria Pública – “assistidas/os” – permite uma dupla apreensão: por um lado, uma/um assistida/o é alguém que recebe assistência da instituição; por outro, ser assistido remete ao ato de ser observado por terceiros. Uma vez que o NUDIVERSIS se caracteriza por ser um “núcleo especializado de primeiro atendimento”, a assistência oficial prestada pelas profissionais se limita ao âmbito préprocessual. Nada garante que a demanda por requalificação civil venha a ser julgada procedente após o ajuizamento da ação, contudo, para que haja a possibilidade de tal vontade ser apreciada pelo Judiciário, é preciso que a pessoa ou tenha contratado um serviço privado de advocacia 43

Os valores cobrados pelos 5º e 6º Ofícios não estão disponíveis online. Os custos aqui mencionados foram verificados na página da Rio Rápido Central de Certidões. Disponível em: < http://www.riorapido.com.br/tabelade-emolumentos.php>. Último acesso em setembro de 2014.

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ou, como é o caso das/os assistidas/os do núcleo, tenha passado pelos trâmites de atendimento da Defensoria Pública. É neste sentido que a expressão que dá título ao capítulo – “direito a pleitear direitos” – se faz fundamental para compreender as práticas de administração empreendidas no contexto do NUDIVERSIS.

A avaliação dos sofrimentos que contam: definindo prioridades

Consoante ao descrito na primeira seção deste capítulo, o primeiro atendimento é o movimento pelo qual as pessoas se tornam efetivamente assistidas/os do NUDIVERSIS. Durante o primeiro atendimento, tais pessoas são avaliadas em múltiplos planos, desde a percepção sobre o grau de sofrimento e constrangimento enfrentados na vida cotidiana até os julgamentos sobre o comprometimento e interesse em conseguir a alteração de prenome e sexo no registro civil. Proponho agora discutir como se dão estas avaliações e mensurações. A construção desta subseção está inspirada, principalmente, em três autores: Lugones (2012), Boltanski (1999) e Fassin (2012). Aproprio-me aqui de algumas de suas reflexões para discutir duas questões entrelaçadas: 1) as formas pelas quais o sofrimento pode ser politizado; e 2) o processo avaliativo no qual se constituem os sujeitos de direitos. Estas questões precisam ser observadas em conjunto na medida em que, como destacado no início do capítulo e será demonstrado ao longo desta seção, a gestão de demandas e sujeitos exercida pelas profissionais do NUDIVERSIS é perpassada por afetos, obrigações morais e compromissos político-institucionais, conectando, assim, emoções e modos de fazer política. Utilizo, então, a noção de micropolítica das emoções – isto é, a capacidade das emoções de alterar as macrorrelações sociais nas quais emergem – proposta por Coelho e Rezende (2010) para compreender as múltiplas formas de politização do sofrimento, pois esta assume uma posição fundamental na fabricação dos casos que precisam ser “solucionados”. Além disso, a objetivação política do sofrimento só é possível e eventualmente eficaz porque se dá no campo essencialmente polissêmico “dos direitos”, como salientado por Vianna (2013), uma vez que a linguagem da reivindicação de “direitos” é um dos modos de produção política dos sujeitos através das construções de narrativas de sofrimento no espaço público. Em “o sofrimento à distância” (Distant Suffering), Boltanski (1999) discute os modos pelos quais as cenas de sofrimento podem produzir causas políticas e fazer com que as pessoas se engajem em tais causas. Em outras palavras, o autor se interessa por estudar o capital político que pode ser mobilizado através da exposição do sofrimento. Uma das contribuições trazidas 67

por Boltanski diz respeito às escalas de mediação e mensuração do sofrimento. De acordo com o autor, é preciso medir corretamente a exibição de um infortúnio para que a indignação seja moralmente aceitável. Assim, o sofrimento não pode ser insignificante a ponto de não mobilizar os atores, tampouco catastrófico de mais que faça com que as pessoas se sintam incapazes de ajudar. Boltanski discute também como a escala de mediação do sofrimento engendra uma hierarquização dos “sofrimentos que contam”, das situações que precisam ser mais imediatamente remediadas. Por outro caminho, Didier Fassin (2012) explora questão semelhante. Em um capítulo intitulado “escolha patética” (pathetic choice), o autor expõe como se deu a distribuição de um bilhão de francos (ou 150 milhões de Euros) do Fundo de Emergência Social (FUS – Fonds d’urgence sociale) como uma resposta política às mobilizações promovidas pelos movimentos sociais de pobres e desempregados na França. A distribuição deveria ser feita de modo “eficiente” e ficou a cargo dos governos locais, que decidiriam não somente quem teria direito a receber este auxílio, mas também a quantia a ser recebida por cada indivíduo ou família. Um comitê de assistentes sociais ficou responsável por avaliar os requerimentos dos solicitantes. É a partir desta configuração que Fassin argumenta que a exposição da pobreza, marcada por uma retórica das necessidades vitais e da sobrevivência, foi alvo da avaliação da equipe. O autor diferencia quatro critérios de julgamento dos casos: necessidade, justiça, mérito e compaixão; e duas formas ideais de decisão que se combinam: uma baseada em uma medida geral, que promove a igualdade (liberação de uma quantia fixa por pessoa ou por família); e outra baseada em uma medida individual, que promove a equidade (quantia definida a partir das avaliações das justificativas apresentadas pelos requerentes). De modo semelhante ao abordado por Boltanski, tais decisões também acarretam mensurações e hierarquizações dos sofrimentos suportáveis e de quem seriam os mais e menos sofredores. Escrevendo sobre um contexto não tão diferente do da Defensoria Pública, Lugones (2012), por sua vez, faz uma etnografia sobre o cotidiano dos Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba. O objetivo da investigação da autora é compreender o exercício do poder administrativo-judicial sobre menores de idade e seus responsáveis nos casos em que há a presunção da condição de vítima. Neste sentido, seu trabalho traz ricas contribuições sobre práticas de administração e técnicas de gestão que constroem o poder do Estado. Contudo, destaco aqui somente um dos aspectos da pesquisa que pode ser utilizados para pensar as rotinas do NUDIVERSIS: o processo pelo qual as narrativas dos sujeitos se transformam em um expediente judicial. 68

Um dos pontos que gostaria de chamar atenção é sobre “os casos que se tomam”. Segundo Lugones, os “casos tomados” são oriundos das avaliações e interpretações feitas pelas administradoras – ou pequenas juízas – nos balcões de atendimento, as quais são influenciadas por concepções morais acerca da infância e do cuidado na criação de filhos e filhas. Assim, as narrativas são primeiramente classificadas como “coisas de adulto” ou “coisas de criança”. Diversos elementos são levados em consideração durante a avaliação como, por exemplo, a “urgência”, a existência ou não de uma intervenção prévia, a presença ou não de advogados particulares e o modo como os denunciantes se apresentam nos tribunais. Sobre este último elemento, a autora destaca que a expressão de emoções – principalmente o choro – durante relatos de sofrimento é crucial para que um caso seja tomado. Como o título deste capítulo aponta, tenho por objetivo compreender como se constituem os sujeitos que têm “direito a pleitear direitos”. Passo agora a discussão das especificidades do NUDIVERSIS na administração das pessoas que poderão ou não almejar a alteração de seus documentos de identificação civil. Os casos de requalificação civil eu ainda não fiz nenhuma que seja urgente, urgente mesmo. Agora, por exemplo, existem casos de união estável post mortem que o falecido deixou uma pensão ou deixou algum tipo de previdência e o banco não está deixando a pessoa pegar esse dinheiro porque não tem o reconhecimento da união estável ainda. E a pessoa está passando por necessidade, alguma coisa assim nesse sentido. São casos que a gente costuma dar prioridade porque a gente sabe que a pessoa está passando diariamente por necessidade, questão às vezes até de gente que não tem condição de pagar a casa que está morando e tal. A gente costuma priorizar. Mas é algo feito informalmente. Foi o que eu falei com a [outra estagiária], do caso que ela atendeu ontem. Era um caso desses de urgência e eu orientei ela da seguinte forma: faz a petição independente do procedimento voltar, manda os documentos, faz o relatório de primeiro atendimento e tal, mas fica com os documentos da pessoa aqui também, deixa uma cópia com você para que quando o procedimento retornar, você já tenha feito a petição. É algo que, assim, foge aos padrões do procedimento administrativo. É o que a gente faz diretamente, pede permissão a Defensora, explica para ela e a gente adianta por conta própria. Mas não é algo que a gente possa solicitar. A gente não manda para a Defensoria e pede “ah, olha só o caso é urgente, acelera aí esse procedimento”. [...] Normalmente, na questão de requalificação civil a prioridade vem nesse sentido: ou alguém que tem N qualificações profissionais e não consegue emprego nenhum por causa do documento; ou então alguém que está em vista um emprego muito bom e não consegue por causa da documentação. Algo nesse sentido. É isso. Requalificação civil seriam casos nesse sentido. Ou quando a única coisa que realmente está travando a vida da pessoa é a questão documental. Ou alguém que, sei lá, esteja a ponto de cometer suicídio. Algo assim, algo extremo. Aí tem como passar na frente, mas é mais incomum. (Estagiária)

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Geralmente não existe nenhum tipo de hierarquização. O que acontece é que, por exemplo, os casos por danos morais geralmente são casos mais urgentes em si. Eles precisam andar mais rápido, eles precisam ser protocolados mais rápido para o processo andar porque a gente entende que são mais urgentes pelo tipo de caso que é, de agressão. Mas, ao mesmo tempo, no caso dos transexuais, a gente sabe também que eles acabam sofrendo agressões justamente pela dualidade entre a identidade, o nome que consta na identidade, e a aparência. Então a gente até tenta que seja feito o mais rápido possível, mas como é a nossa maior demanda, acaba que as coisas vão fluindo mais devagar. E como a gente tem um procedimento extenso, dentro da defensoria, para lidar com esses casos, vai caminhando bem mais devagar do que os outros casos que você atende a pessoa, pega os documentos e já faz a ação. O que geralmente tem mais urgência, são os casos de união estável post mortem porque aquela pessoa fica dependendo dessa ação para conseguir os direitos dela, às vezes a pessoa não tem nem como sobreviver sem conseguir mexer numa conta ou conseguir algum benefício. Às vezes também o casal tem filhos, então é uma questão complicada que a gente tem que priorizar. Entre os transexuais, a gente tenta priorizar quem está há mais tempo. Como os estagiários aqui saem de seis em seis meses, às vezes fica alguma coisa faltando que um estagiário antigo não fez e a gente não sabia e que descobre depois. Então a gente tenta dar prioridade para esses casos porque a gente vê que eles entraram aqui há mais tempo. Dentre os casos que eu peguei, já aqui na defensoria, eu vou seguindo a ordem cronológica da qual cada um chegou, a não ser, por exemplo, uma assistida que a gente tem que mora nos Estados Unidos e que vai voltar para lá, aí eu tentei fazer uma parte do procedimento dela mais rápido porque ela não estaria aqui e isso atrasaria em um ano o procedimento dela para fazer depois. Mas acaba que a ação mesmo, eu não vou priorizar porque não vai fazer diferença para ela. Vou seguir a ordem cronológica mesmo igual dos outros assistidos. Ah, as pessoas mais velhas também, se o assistido é idoso a gente entende que é preciso priorizar, mas eu atendi só uma, que é a que já tem 67 anos, mas como ela também já estava aqui há muito tempo, deu na mesma, porque eu priorizei ela, mas eu teria priorizado ela sendo ou não idosa. Até agora não peguei outro idoso, mas se eu pegar, certamente será priorizado. (Estagiária)

Um dos primeiros aspectos que precisa ser abordado é o cálculo das “dores insuportáveis” dentro de uma espécie de economia moral do sofrimento. Como é possível perceber através destes trechos de entrevistas, a demanda por requalificação civil de pessoas transexuais não figura como situações prioritárias usualmente, o que aponta para o lugar desta demanda em uma escala dos sofrimentos que precisam ser aliviados. A sobrevivência aparece como o horizonte destas avaliações e é por isso que somente os casos de requalificação civil de pessoas transexuais que ameaçam suicidar-se são considerados como urgentes no quadro que engloba todas/os assistidas/os e demandas do NUDIVERSIS. Curiosamente, a situação citada por ambas as estagiárias como uma urgência inquestionável envolve a restrição à renda, moradia e bens de consumo, e é isto que a configura como tal. Entretanto, relatos de privação econômica são frequentes nas biografias de pessoas transexuais, não só entre as assistidas/os da Defensoria – como o já descrito caso de Elisa –, 70

bem como é apontado em outras pesquisas (Bento, 2006; Teixeira, 2013; Ventura, 2010). O que diferencia as pessoas transexuais que solicitam a alteração do registro civil das/os outras/os assistidos seria então a previsibilidade da situação de penúria. Um sujeito que perca a/o parceira/o repentinamente, se vê em uma situação inesperada de dificuldades financeiras; ao passo que um indivíduo transexual pode já estar vivendo tal situação cotidianamente há um longo tempo. Assim, a transexualidade pode ser percebida como uma experiência que contém um potencial de sofrimento que é inevitável e, justamente por ser inevitável, é alvo de uma resignação, tornando-se menor porque comum. Contudo, é preciso fazer duas ressalvas: 1) a definição das situações prioritárias obedece uma lógica por tipo de demanda e não por sujeitos, ou seja, no caso de uma pessoa transexual apresentar um pedido de união estável post mortem, provavelmente este será considerado “urgente”; 2) a alteração do registro civil não acarreta nenhuma mudança imediata na situação econômica das pessoas transexuais, ainda que isto se se encontre no horizonte de possibilidades que é construído pela “terapia de mudança de sexo”; ao passo que nos outros casos citados, uma atuação rápida das operadoras do Direito implica modificações quase instantâneas das situações dos sujeitos. Em certa medida, a hierarquização dos casos obedece uma lógica do “bom senso” – e, obviamente, todas as conotações morais implicadas – que perpassa todos os atendimentos realizados pelas profissionais do núcleo. Segundo Miranda (2012), o “bom senso” é um componente indispensável da administração pública e representa “um poder discricionário exercido pelos funcionários ao tomar decisões e julgar com base não na lei, e sim na avaliação de que cada caso é um caso” (p. 282). A hierarquia dos casos urgentes não funciona apenas no plano geral das demandas atendidas no NUDIVERSIS, existindo também uma mensuração dentre os casos de requalificação civil de pessoas transexuais. Para além do quadro normativo que regula as práticas no núcleo – como por exemplo, a prioridade legal do atendimento à pessoas idosas –, existem gramáticas emocionais que influenciam as percepções e avaliações das histórias narradas, que por sua vez determinam o andamento dos processos. Neste sentido, destaco que as apreciações das estagiárias são frutos de negociações que ocorrem durante a interação proporcionada pelo primeiro atendimento, no qual as pessoas transexuais elencam uma série de argumentos que constrói e justifica a sua necessidade de requalificação civil. Assim, ao mesmo tempo em que se definem quais são as possibilidades da pessoa transexual conseguir ter sua demanda pela requalificação civil atendida, determina-se quem terá prioridade na assistência promovida pelo núcleo. Como ressaltado por uma das estagiárias, o 71

critério geral de organização dos atendimentos é a “ordem de chegada” no NUDIVERSIS, logo, as/os assistidas/os que estão em acompanhamento por mais tempo são os que têm prioridade. Além das prioridades legais, existem ainda outros dois fatores influenciam diretamente a disposição dos sujeitos em uma fila de atendimento: o “real interesse” da/o assistida/o e a “urgência” do caso. De acordo com as profissionais, só é possível iniciar o processo de elaboração da petição inicial após a entrega de toda a documentação que precisa constar anexada e cabe às/aos assistidas/os reunir tais documentos. Procurar o núcleo, entregar os documentos rapidamente, comparecer nos dias e horários agendados, entre outas atitudes, são vistos como formas de demonstrar que efetivamente se tem uma necessidade de ser reconhecido como mulher ou homem, bem como reivindica a mudança de prenome e sexo no registro civil como parte deste processo. Assim, fica clara a existência de uma relação entre o ritmo da peregrinação, o andamento dos procedimentos de assistência e os valores morais que os cercam; relação esta que possibilita a constante modificação da ordem dos atendimentos na medida em que algumas pessoas são consideradas mais “interessadas” que outras. É a relação entre estes três fatores que faz com que a responsabilidade pelo “avanço dos processos” seja, quase que inteiramente, atribuída às/aos assistidas/os. Na medida em que as operadoras do Direito só podem realizar aquilo que é considerado tanto como o “seu trabalho” quanto a principal função do núcleo – isto é, a elaboração de petições iniciais – depois que as/os assistidas/os entregam toda a documentação exigida, concerne a estes sujeitos “correr atrás de seus interesses” e impor uma determinada velocidade na resolução de seus casos e efetivação de demandas. A “urgência”, por sua vez, se constrói desde o momento em que a pessoa chega pela primeira vez ao núcleo. Ter o primeiro atendimento remarcado ou ser atendida/o imediatamente depende do modo pelo qual as narrativas dos sujeitos serão avaliadas pelas profissionais do núcleo. Ao apresentar suas dificuldades, as/os assistidas/os conseguem ou não fazer com que seus sofrimentos “contem” e despertam, assim, a compaixão das funcionárias. Ao formular a ideia da tópica do sentimento, Boltanski (1999) discute como alguns casos se tornam “urgentes” e como a urgência, combinada com um conjunto de elementos, pode transformar estes casos em causas. De acordo com o autor, algumas formas de exibição dos sofrimentos são capazes de gerar uma exigência de engajamento por parte dos atores sociais que são expostos às imagens ou relatos de infortúnios, pois existe um constrangimento moral que tornaria impossível a apatia. No contexto do NUDIVERIS, é o episódio do primeiro atendimento que influenciará todo o andamento do processo do sujeito na Defensoria Pública, 72

tendo em vista que ao ser considerado como um sofrimento intolerável que precisa ser ouvido imediatamente sem a necessidade de agendamento prévio, é quase sempre um indicativo de que tal situação será enquadrada como um “caso urgente”. Logo, a urgência pode ser oriunda das mais diversas situações. Em linhas gerais, a definição dos casos urgentes depende do modo como a/o assistida/o constrói sua trajetória narrativamente e como essa narrativa é apreendida pelas profissionais do núcleo, como podemos ver nos exemplos a seguir. O caso de Pedro, já descrito anteriormente, foi considerado como urgente por causa de três elementos contidos em sua narrativa: a perda da visão ocasionada pelo início da hormonoterapia, que foi interpretada como prova indiscutível da vontade de Pedro de construir sua identidade de gênero e, portanto, da necessidade de ter seu registro civil alterado; o fato de sua esposa ser cadeirante, o que faz com que se acredite o cotidiano de ambos seja marcado por dificuldades; e sua indicação para assumir a presidência da associação de cegos de seu município – ou seja, a oportunidade de um “bom emprego” –, tendo em conta o constrangimento pelo qual ele passaria ao ser obrigado a assinar todos os documentos da instituição com seu nome de registro. Já Carmem é uma assistida casada há muitos anos e moradora de um bairro no interior do município de São Gonçalo. Em seus relatos, ela afirma que nenhum dos amigos de seu marido sabe que ela é uma mulher transexual. Após contar uma série de problemas enfrentados no lugar onde reside, Carmem mencionou que foi selecionada para integrar o programa federal de habitação Minha Casa, Minha Vida. Contudo, ela disse que pretendia desistir, pois a correspondência de cobrança de condomínio chegaria com seu nome de registro e isso revelaria sua transexualidade. A partir das falas das estagiárias citadas acima, é possível afirmar que existe um tipo de “circuito de bens e perdas” – representado exemplarmente pela oportunidade de um “bom emprego” – que pode acelerar o andamento dos procedimentos de administração executados pelo núcleo. Diante deste quadro, isto é, da possibilidade da assistida abdicar um bem conseguido, o caso de Carmem foi considerado como urgente. O caso de Camila funciona como um contraponto aos dois primeiros e nos permite pensar como se dá a assistência do NUDIVERSIS quando o sofrimento e o constrangimento não são o centro dos relatos de uma/um assistida/o. Camila chegou ao núcleo às 16h, acompanhada de duas amigas. Seguindo as orientações de um advogado particular que foi consultado antes de sua ida ao núcleo, ela trazia consigo uma pasta com documentos e outros registros que ela considerava importantes, como alguns de seus trabalhos como modelo e uma entrevista dada em um programa de televisão. A estagiária disse então que agendaria um dia para que Camila pudesse ser atendida. O fato de chegar perto do fim do horário de expediente 73

e de ser encarada como alguém “de sucesso” porque possui uma fonte de renda relativamente estável e teve condições de acionar um serviço privado de advocacia previamente, fez com que Camila não fosse classificada no rol das urgências atendidas pelo núcleo. Levando em consideração que os processos de requalificação civil não possuem réus44 a serem julgados, faz sentido que me aproxime mais da “tópica do sentimento” que da “tópica da denúncia” descrita por Boltanski (1999). A tópica dos sentimentos agrega alguns elementos fundamentais: 1) a figura de um “bem-feitor”; 2) a centralidade dos sentimentos de bondade por parte dos que ajudam, e de gratidão por parte dos que são ajudados. Além disso, o autor destaca que esta é marcada por uma metafísica da interioridade, pois a relação entre o espectador e a vítima é essencialmente sentimental, pois se constrói a partir do momento que o primeiro se sente tocado pela condição sofredora do segundo. Estes dois elementos se fazem presentes no cotidiano do NUDIVERSIS. As profissionais representam a si mesmas como pessoas comprometidas com a luta pela promoção dos “direitos LGBT” e o próprio núcleo se constitui a partir de uma chave política baseada na retórica da necessidade de um serviço especializado no assunto, como abordado no primeiro capítulo. Neste contexto, falas sobre sentir-se feliz em poder ajudar de alguma forma são comuns por parte das funcionárias, bem como os elogios e outras formas de expressão da gratidão, em situações particulares, por parte de algumas/uns assistidas/os. Em suma, observo a localização das pessoas transexuais no NUDIVERSIS a partir de um quadro de constante avaliação. Tendo em vista que as estagiárias do núcleo são as responsáveis por realizar todos os procedimentos de assistência, desde o primeiro atendimento até a elaboração da petição inicial, é possível estabelecer uma analogia com as pequenas juízas descritas por Lugones (2012). Tais profissionais possuem um campo de manobra no qual exercem um poder administrativo-jurídico ao definir quem terá direitos a pleitear direitos. Assim, buscar a ajuda das profissionais não é o suficiente para demonstrar a vontade de alterar o prenome e o sexo no registro civil, tal interesse precisa ser constantemente reiterado através de ações. A urgência de um caso de requalificação civil diante dos outros só se institui quando a sobrevivência da/o assistida/o é posta em questão. O sofrimento que é construído como inerente à experiência da transexualidade – isto é, os constrangimentos, a rejeição familiar, a baixa escolaridade, as dificuldades de ingresso no mercado de trabalho formal, etc. – não mobiliza atuações particulares por parte das operadoras do Direito, nos casos de 44

Como vem sendo demonstrado, as pessoas transexuais são representadas nas petições iniciais como vítimas. Entretanto, as acusações se dirigem não à pessoas ou instituições específicas, mas a entidades abstratas, como a “natureza” e a “sociedade”. De todo modo, este assunto será abordado no último capítulo.

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requalificação civil, porque não podem ser resolvidos através da judicialização. Apenas quando há um ponto de inflexão, ou seja, quando estes sofrimentos de certa forma “transbordam”, como nos casos de Pedro e Carmem, é que há um imperativo moral de “fazer alguma coisa” por aquela pessoa. Ou ainda, é somente quando o sofrimento deixa de ser ordinário e passa a ser visto como extraordinário que os atores sociais são confrontados com o constrangimento de agir para aplacar as dores do outro.

Controle burocrático: a administração e o exercício do poder

A construção dos sujeitos que podem pleitear o direito à requalificação civil pode ser lida também a partir da chave de uma racionalidade burocrática, ao menos no nível da justificação das práticas de gestão executadas pelas profissionais do NUDIVERSIS. O Estado se faz a partir desta lógica burocrática, ou seja, através da criação de instituições que dividem entre si a tarefa de exercer o controle social e administrar os cidadãos. Tal lógica é caracterizada, principalmente, pela impessoalidade e pelo legalismo formal (Weber, 1999). Conforme apontado em outras partes deste trabalho, as normativas legais são descritas como um norte que deve orientar as atuações de operadores do Direito e, consequentemente, que as legitima, como por exemplo, quando a prioridade é dada às pessoas idosas e quando são determinadas quais demandas serão ou não incluídas na petição inicial de uma/um assistida/o. O caso de Yasmim ilustra bem este último ponto. Quando compareceu ao núcleo para entregar alguns documentos pendentes, a assistida levou também uma mamografia e alguns laudos médicos. Ela havia sido atropelada por um ciclista e o impacto não apenas deslocou sua prótese de silicone, como também a arrebentou, podendo gerar complicações de saúde em virtude do vazamento do líquido no interior de seu corpo. Deste modo, Yasmim solicitava além da alteração de prenome e sexo em seu registro civil, a reparação de sua prótese em um hospital público ou que o Estado arcasse com os custos. A estagiária anotou a demanda da assistida e ficou com cópias da mamografia e dos laudos. Ela informou a Yasmim que consultaria a Defensora para saber se no seu caso era possível apelar para o dever do Estado de prover serviços públicos de saúde. No entanto, a questão da reparação da prótese permaneceu em aberto e até o fim do trabalho de campo e somente a petição inicial de requalificação civil havia sido entregue à assistida quando parei de acompanhar o cotidiano do núcleo. O controle burocrático é acionado para explicar outras atuações das funcionárias do núcleo, mesmo que estas não obedeçam a um horizonte de normativas legais. Isto ocorre 75

principalmente nas ocasiões em que as estagiárias se recusam a fazer um primeiro atendimento imediato, alegando, por exemplo, que este precisa ser previamente marcado ou que, de acordo com o horário de atendimento, não há tempo hábil para que este seja realizado – especialmente quando o indivíduo chega ao núcleo depois das 16h. Outro importante aspecto deste controle se refere à imprescindibilidade da juntada de todos os documentos antes da elaboração da petição inicial. Primeiramente, é preciso registrar que: 1) existe um modelo de petição de requalificação civil; e 2) as alterações da petição entre uma/um assistida/o e outra/o são mínimas e sempre localizadas na seção que apresenta a trajetória da/o autora/or. Levando isso em consideração, saliento que tal necessidade configura uma das facetas do exercício do poder administrativo, uma vez que nada impede que a petição seja elaborada durante, por exemplo, o período em que a pessoa aguarda a emissão das certidões dos Ofícios de Registro de Distribuição. Sugiro então que pensemos esta forma de gestão como parte da indiferença produzida pela burocracia ocidental. O Estado se materializa no balcão, através da experiência de submissão que ocorre durante o atendimento. A lógica burocrática faz com que os atendimentos sejam cercados por um ideal de neutralidade e impessoalidade. É este ideal que permite ao “fatalismo” funcionar como um sistema de justificação dos atos discricionários dos funcionários (Herzfeld, 1993). Ao atribuir a “culpa” à burocracia, a assimetria que marca as relações entre as pessoas que se localizam em um dado lado do balcão – ou seja, administrados e administrados – é encoberta, uma vez que, por meio deste discurso, ambos são dispostos como “sujeitos impotentes” diante da “máquina estatal”. Herzfeld (1993) argumenta que o controle do tempo dos administrados é um dos componentes da indiferença que caracteriza as tecnologias burocráticas de administração do Estado. A seu turno, Lugones (2012) associa o controle do tempo ao exercício do poder nos Tribunais, como por exemplo, quando os sujeitos são chamados a comparecer em dado dia e horário. Neste sentido, sugiro que, quando uma das profissionais do núcleo diz a alguém que ele precisa agendar o primeiro atendimento e retornar outro dia, há, além do exercício do poder, o estabelecimento de mensurações e valorações distintas aplicáveis ao tempo de cada um, indicando uma desvalorização do tempo das/os assistidas/os. O controle e a disposição do tempo das/os assistidas/os se faz presente durante todo o período em que é prestada a assistência. Os encaminhamentos à Sede da Defensoria Pública e aos Ofícios de Registro de Distribuição são uma das faces desta forma de gestão, pois os sujeitos precisam comparecer nestes locais ao menos duas vezes antes de retornarem ao NUDIVERSIS (no caso da Sede da DPGE-RJ, é preciso ir uma vez para marcar e outra para ser entrevistada/o 76

pelas/os psicólogas/os e assistentes sociais; e nos ORD é preciso ir a primeira vez para solicitar as certidões e uma segunda para retirá-las). Além de administrar as pessoas através da disposição de seu tempo, a peregrinação burocrática também cumpre um importante papel na determinação de quem serão os sujeitos que terão direito a reivindicar a requalificação civil. Apesar das solicitações que constam nos ofícios de encaminhamento serem sobre “a existência ou não” de um dado assunto, só é possível instaurar a ação caso não tenha nenhum registro de dívida, protesto, processo criminal etc., ou seja, que tais certidões sejam do tipo nada consta. De acordo com o discurso das profissionais do NUDIVERSIS, estas certidões não apenas compravam que o sujeito não possui nenhuma “pendência com a Justiça” – condição legalmente indispensável para a possibilidade de alteração do prenome e sexo –, mas também se fazem necessárias para afastar uma suspeita que sempre paira sobre as pessoas que requerem a requalificação civil: a de que estejam se utilizando de uma exceção da regra de imutabilidade do prenome para fugir de dívidas, crimes, ou outros tipos de atos ilícitos por ventura cometidos. Deste modo, compreendo a peregrinação burocrática e os documentos que são produzidas por ela como um tipo de burocracia de exceção que tem por objetivo regular o acesso ao direito de requalificação civil. Este aspecto se conecta com uma gramática comum da luta por direitos que os produz como uma espécie de “bem escasso” que necessita de uma constante supervisão dos sujeitos que os acessam, enfatizando assim uma dimensão do merecimento de determinados atores políticos (Vianna, 2012 e 2013). Por fim, a necessidade de apresentar certidões em negativo pode ser considerada como uma das faces da constituição de si: a comprovação de que não se é, no caso, uma/um farsante ou “criminosa/o”. O outro lado desta constituição apoia-se na comprovação de quem se é, no caso, comprovar que se trata, de fato, de uma pessoa transexual. Esta será a discussão da próxima subseção.

Da necessidade de pertencer a uma categoria como forma de “acessar direitos”: as travestis, as/os “verdadeiras/os” e as/os “falsas/os” transexuais.

Conforme abordado na introdução deste trabalho e discutido em diversas pesquisas sobre transexualidade, ser considerada/o como uma/um “verdadeira/o transexual” é condição fundamental para que os corpos e narrativas das pessoas que vivem as múltiplas formas de transexualidade possam ser incluídas dentro da margem do “humano”. Isto é, ser 77

diagnosticada/o com a “disforia de gênero” é a única forma de dar inteligibilidade a um conjunto de experiências e, assim, ser incluída/o em uma economia jurídico-moral que regula o acesso aos direitos, tendo em vista que, no âmbito do NUDIVERSIS, o laudo é elencado como um dos documentos necessários para a elaboração da petição inicial. Proponho agora uma discussão sobre a exclusão de determinados sujeitos na gestão dos que tem direito a solicitar a requalificação civil.

A maior parte das travestis com as quais eu tenho contato, não sei se é a maior parte das que existem, mas são as que eu tenho contato. Muitas vezes não se incomodam de mudar o nome no registro. Elas têm um nome social, obviamente, mas, assim, não é uma reinvindicação tão evidente como no caso das transexuais. Ai fala: “não, eu só quero meu nome social, se puder botar no crachá do emprego já está bom”. Não se importam com isso. Mas nós já fizemos ações aqui pra mudança só de nome de travestis sim. A grande dificuldade que a gente encontra no Poder Judiciário é explicar para um juiz o que é travesti. Porque o juiz acha que travesti é drag queen, é transformista, é qualquer coisa, menos travesti. Então se a gente falar “olha, fulana é travesti” o juiz já vai achar graça e vai julgar improcedente. Então o caminho que a gente faz é tentar aproximar o máximo possível a lógica da travesti da lógica da transexual. Então eu digo pro juiz “olha, essa pessoa nasceu com esse sexo biológico, mas ela assumiu uma identidade correspondente a um outro gênero, o gênero feminino e por conta disso ela já se construiu socialmente como uma mulher, então ela precisa de um nome que seja correspondente a essa aparência física dela”. E é assim que eu tento explicar para o juiz sem falar “olha, é travesti”. Eu não posso usar essa palavra travesti em uma ação. Se eu usar isso vai virar motivo de chacota. (Defensora Pública)

As diversas investigações empreendidas sobre a transexualidade no contexto do Judiciário descrevem as situações em que as vivências das pessoas transexuais não adquirem inteligibilidade como uma espécie de “estado de liminaridade”, caracterizado pela ausência ou suspensão de direitos. Para Zambrano, a experiência vivida durante os dois anos de acompanhamento como parte do processo transexualizador equivale a um tipo de “falsidade ideológica”, já que a pessoa vive uma identidade sexual na vida social discrepante da identidade sexual legal – ou, “no documento” (2005, p. 104). Isto é motivo de inúmeros constrangimentos para os indivíduos transexuais e é visto como uma das causas do sofrimento que estas pessoas enfrentam em seu cotidiano. Ao analisar as decisões judicias acerca dos pedidos de alteração de nome e sexo no registro civil de pessoas transexuais, Ventura (2010) identificou alguns processos cujos pedidos foram negados mesmo após a realização de todas as intervenções corporais previstas na “terapia de mudança de sexo”, isto é, utilização de hormônios, cirurgias plásticas, e, inclusive, a transgenitalização. A autora cita uma apelação judicial que descreve tal episódio como um 78

“limbo do purgatório eterno”, uma vez que a pessoa não consegue viver de forma plena em nenhum dos dois sexos. É a necessidade de enquadramento em uma determinada categoria como pressuposto para o acesso aos direitos que permite que aproximemos as pessoas transexuais da situação vivenciada pelos apátridas, como exposto por Hannah Arendt (1989). Ao ser desvinculado de todo e qualquer sistema jurídico – o que em última instância significa não pertencer a nenhum Estado-nação – o apátrida encontra-se privado do exercício de direitos. Assim, a autora demonstra como a garantia de direitos é inseparável do enquadramento dentro de uma determinada forma de organização política e como a “humanidade nua” do sujeito – objeto do discurso sobre direitos humanos – representa na verdade o completo fracasso de tal garantia45. De modo semelhante aos apátridas, pessoas que desejam as alterações de nome e sexo e modificações corporais, mas que não consideradas “transexuais verdadeiras/os” são deixadas no “limbo do purgatório eterno”. Tais corpos não adquirem uma inteligibilidade médica, a qual é transformada em inteligibilidade jurídica para a efetivação dos direitos. Em outras palavras, pode-se pensar como as profissionais do NUDIVERSIS efetuam uma espécie de tradução da linguagem médica contida nos laudos de psiquiatras, a qual sempre remete às convenções estabelecidas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)46, na Classificação Internacional de Doenças (CID) e nas resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). É preciso destacar que, segundo Bento (2004), Teixeira (2013), Ventura (2010) e Zambrano (2005), isto não é incomum, uma vez que muitos sujeitos não desejam realizar a cirurgia de transgenitalização devido aos mais diversos motivos, como por exemplo, as possíveis complicações de saúde que esta pode gerar. Ainda sobre o pertencimento à humanidade como condição fundamental para a reivindicação de cidadania, podemos nos apropriar novamente das reflexões de Fonseca e Cardarello (1999). Segundo as autoras, o processo através do qual o discurso sobre direitos humanos se consolida implica sempre na definição de quem são os “mais e menos humanos”. Tal processo está relacionado à necessidade de pertencimento a uma determinada categoria de classificação para o acesso a um certo conjunto de direitos. É possível observar efeito semelhante no fenômeno da transexualidade, já que o dispositivo da transexualidade encerra uma série de práticas de dominação que consequentemente encapsulam os sujeitos em Sobre este ponto, cabe ressaltar que “ter uma pátria” é um dos direitos humanos universais consagrados em documentos internacionais. 45

Tais convenções, as quais se referem principalmente às definições da “disforia de gênero” e de seus critérios diagnósticos, serão abordadas no próximo capítulo. 46

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determinados modelos (Bento, 2006). Como efeito inevitável, a produção discursiva da/o “verdadeira/o transexual” gera também um tipo de “gêmea/o maligna/o”: a/o “falsa/o transexual”. Berenice Bento (2004 e 2006) nomeia os sujeitos que são deixados de fora do programa transexualizador como “outros transexuais”, uma vez que é nesta categoria – transexual – que estes se identificam, mesmo sem o aval da equipe médica. Segundo a autora, o fenômeno transexual se caracteriza por ser uma experiência de deslocamentos, de “interpretações negociadas em atos sobre o masculino e o feminino” (Bento, 2004, p. 170). Assim, a/o “verdadeira/o transexual” não existe, mas é somente uma criatura do imaginário médico que é imposta aos sujeitos, relegando às margens as múltiplas e distintas formas de expressão da transexualidade. Nos corredores e salas de espera do NUDIVERSIS, a/o “falsa/o transexual” não parece ser uma preocupação, tendo em vista que aquilo que atesta a transexualidade de alguém – isto é, a aquisição de um laudo médico – não é encarado como competência do núcleo. A figura que se encontra excluída da economia que regula o acesso aos direitos no âmbito do Judiciário é a travesti. Distante do discurso médico-científico que esquadrinha e certifica a transexualidade de determinadas pessoas, as travestis não são “levadas a sério”, como a Defensora salientou durante a entrevista. Portanto, as travestis não são consideradas como legítimas a pleitearem a requalificação civil, a não ser que abdiquem desta forma de identificação e passem a dizer, ao menos nos corredores do núcleo, que são pessoas transexuais. Em resumo, evidencia-se então uma questão crucial: o estabelecimento de uma categoria que é sujeito de direitos implica sempre a exclusão daqueles que não se encaixam nela. Este é o efeito negativo de tal produção discursiva, um algo que “sempre sobra”. Para utilizar os termos de Fonseca e Cardarello (1999), a frente discursiva que produz o sujeito “verdadeiramente transexual” classifica-o como mais humano que as/os “outras/os transexuais” e as travestis. Deste modo, ao ser visto como vítima de um transtorno do qual não é culpado, a/o “verdadeira/o transexual” pode exercer seus “direitos humanos”, enquanto as/os “outras/os transexuais” e travestis permanecem excluídas tanto das instituições de saúde, quanto das judiciais.

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Assistência e peregrinação burocrática: fazendo Estado e sujeitos ao longo do tempo

Tendo já demonstrado como os médicos, principalmente os psiquiatras, exercem a autoridade concedida pela posse de um saber no processo de designação de uma categoria que conformará, em última instância, sujeitos de direitos específicos, gostaria de adicionar mais elemento neste quadro: as operadoras do Direito. Para sustentar essa ideia, remeto à relação entre o período de acompanhamento – ou o tempo da tutela – e a peregrinação burocrática na produção das pessoas que terão direito a pleitear a requalificação civil. Vianna (2002) demonstra a vinculação entre tempo e tutela na gestão da infância. Através da análise de um conjunto de processos judiciais envolvendo a guarda de crianças e adolescentes, a autora argumenta que o exercício do poder tutelar precisa, necessariamente, se estender ao longo do tempo, uma vez que a tutela tem por função proteger sujeitos em transição e, assim, salvaguardar o “correto desenvolvimento” dos mesmos. No caso dos menores de idade, esta relação entre tempo e tutela se dá um modo óbvio, pois, ao atingir a maioridade legal, tais indivíduos deixam de ser “naturalmente tuteláveis” (p. 271). Na tentativa de transpor esta ideia para o contexto etnográfico no qual realizei esta pesquisa, penso que o período de acompanhamento que as pessoas transexuais passam não só no NUDIVERSIS, mas também nos programas transexualizadores47, pode ser compreendido como um “tempo de tutela”. Durante o tempo em que permanecem sendo, às vezes simultaneamente, assistidas pelas profissionais da Defensoria Pública e atendidas por psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas e assistentes sociais dos serviços do HUPE ou do IEDE, as pessoas transexuais aguardam o cumprimento de uma promessa forjada tanto pelos discursos médicos quanto pelos jurídicos: a de que através da cirurgia de transgenitalização, por um lado, e da alteração do prenome e sexo no registro civil, por outro, estas pessoas conseguirão finalmente serem “homens e mulheres de verdade”. Estes atos são considerados as etapas finais da “terapia de mudança de sexo” e representam o fim do “estado de liminaridade”. Por último, proponho olhar para as peregrinações burocráticas e os procedimentos de assistência descritos ao longo do capítulo a partir de uma das principais questões deste trabalho, abordada desde o primeiro capítulo: a produção espelhada – isto é, mútua e simultânea – dos sujeitos e do Estado, materializado tanto no balcão do NUDIVERSIS quanto nos “papéis” (relatórios, certidões, etc.). Como discutido por Souza Lima (2002), existem nuances no 47

De acordo com a resolução nº 1955/2010 do CFM, a qual dispõe à cirurgia de transgenitalização no Brasil, a/o paciente só poderá obter a autorização para a realização do procedimento após o acompanhamento por uma equipe multidisciplinar durante um período mínimo de dois anos (CFM, 2010).

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exercício do poder tutelar. Tais nuances podem ser compreendidas a partir do par gestar-gerir, no qual o primeiro termo compreende práticas constitutivas e pedagógicas do “ensinar a ser”; enquanto o último faz referência ao controle administrativo cotidiano (p. 16). Aproprio-me aqui destes conceitos para defender que, além de produzirem os sujeitos tutelados ao conduzirem o seu “correto desenvolvimento” – gestando-os –, o acompanhamento jurídico e as peregrinações burocráticas por uma série de instituições têm por função proteger a maquinaria burocrática de conceder direitos às pessoas que não são legítimas, ou seja, aqueles que não são considerados como as “verdadeiras vítimas” da transexualidade – ações que podem ser lidas na chave do gerir.

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Capítulo 3 Corpos de Papel, Sujeitos Impressos: sobre documentos e a construção de sujeitos e realidades

O terceiro capítulo deste trabalho deve ser lido como uma continuação do anterior, não apenas por uma questão de coerência sequencial, mas também porque seu objetivo é analisar os “produtos” dos procedimentos de assistência e das peregrinações burocráticas discutidas no capítulo dois: os diversos documentos reunidos pelas/os assistidas/os do NUDIVERSIS. Tomo aqui como principal objeto de investigação as pastas das pessoas que já haviam sido ou que estavam sendo acompanhadas pelas profissionais da Defensoria Pública. Logo, faz sentido considerar que é neste capítulo que realizo com mais rigor uma “etnografia dos papéis”, pois estes são peças-chave para responder umas das principais perguntas de pesquisa que orientou a investigação empreendida: de que forma o Estado administra a demanda por requalificação civil de pessoas transexuais? Antes de iniciar as discussões propriamente ditas, destaco que estas pastas são constituídas por dois tipos distintos de “papéis”: as folhas que estão devidamente presas à pasta por “bailarinas” e se encontram furadas, numeradas e carimbadas por algum funcionário da DPGE-RJ; e os outros papéis que são entregues pelas/os assistidas/os e permanecem “soltos” no interior das pastas, dentre os quais se encontram cópias extras dos documentos de identificação, matérias de jornais, crachá de trabalho etc. Afirmo que estes papéis são de tipos diferentes porque os primeiros, aqueles que estão registrados e adequadamente apensados à pasta, são sempre anexados à petição inicial, enquanto os últimos podem ou não vir a figurar como elementos necessários para a comprovação de algo. Por conta das questões que pretendo abordar, concentro-me aqui no primeiro tipo de papel descrito, ou seja, aqueles documentos que adquirem um estatuto de prova nas ações de requalificação civil. Uma “etnografia dos papéis” se justifica na medida em que podemos pensar os processos burocráticos de administração pública – os quais representam a rotinização do poder do Estado – que envolvem a etapa pré-processual de alteração do nome e sexo no registro civil de pessoas transexuais como uma espécie de fabricação contínua de papéis. Além disso, como dito no primeiro capítulo, Ferreira (2011) argumenta que nos contextos de pesquisa em instituições públicas, os documentos figuram como “artefatos etnográficos” por meio dos quais é possível acessar os modos como o cotidiano administrativo das repartições é arquivado.

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Ao chegar no NUDIVERSIS, a/o assistida/o precisa entregar um enorme conjunto de papéis (as cópias dos documentos civis, a lista de testemunhas e as fotos) para que se possa solicitar outros papéis (as certidões dos ORD e o Estudo Social), os quais servirão de base para a produção de mais papéis (a petição inicial) que terão por objetivo argumentar em favor da aquisição de novos papéis (os documentos civis alterados). Dito de outro modo, estes processos de Estado se materializam neste complexo de papéis de diversos tipos que compõem não somente as pastas das/os assistidas/os da Defensoria Pública, mas as/os acompanharão durante toda a vida. Tomo como ponto de partida a apresentação da lista de documentos comuns que compõem as pastas das/os assistidas/os e busco discutir uma espécie de poder mágico que estes papéis possuem, uma vez que são capazes de fabricar e materializar uma determinada “versão” dos sujeitos que descrevem, sujeitos que são generificados e inseridos em ordens morais de distintas formas. Além disso, demonstro como os documentos possuem poderes desiguais de instituição da realidade, não apenas porque eles “falam” sobre coisas distintas, mas também porque são produzidos por atores sociais que se encontram em diferentes posições em uma escala de distribuição do poder. Por fim, discuto também como estes documentos criam também “realidades internas”, influenciando o modo pelo qual se dá a subjetivação e a significação das experiências vivenciadas pelos indivíduos.

3.1 Dos documentos que fazem pessoas: as múltiplas formas de materialização dos sujeitos e da realidade

Conforme descrito no capítulo anterior, existe uma lista de documentos que são considerados como necessários para que a ação de requalificação civil seja instaurada. No âmbito da qualificação civil, é preciso apresentar uma série de documentos: Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, CPF, Título de Eleitor, Certificado de Reservista (para aqueles cujo sexo de registro é masculino), Passaporte (caso tenha), Carteira de Habilitação (caso tenha), Carteira de Trabalho, contracheque e/ou outro comprovante de renda, comprovante de residência e diplomas e certidões de escolaridade e/ou cursos profissionalizantes. Além disso, são solicitados outros tipos de documentos, que possuem poderes de produção de verdade distintos uns dos outros; dentre estes se encontram: uma relação de ao menos três testemunhas, laudos que atestam a transexualidade, atestado médico de realização da cirurgia de transgenitalização (nos poucos casos em que isso se aplica), exames 84

médicos, receitas de hormônios, Estudo Social emitido por psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública, certidões de nada consta dos Ofícios de Registro de Distribuição e fotos nas quais as/os assistidas/os se apresentem com a “identidade de gênero pretendida”. Esta lista de documentos será o objeto de análise desta seção. Proponho discutir como tais documentos possuem a função de produzir e dar materialidade à realidade ao descrever e classificar indivíduos em determinadas categorias, bem como o status de prova que estes adquirem neste contexto. Além disso, busco demonstrar como tais papéis ajudam a construir uma imagem de “sujeito idôneo” que justifica o merecimento do acesso aos direitos48.

Lista de Documentos

Lista de testemunhas

Uma das primeiras exigências feitas pelas profissionais do NUDIVERSIS às/aos assistidas/os é uma lista com três testemunhas. É preciso informar o nome completo, o endereço residencial, telefone para contato e, eventualmente, o número de CPF. Tais pessoas devem estar dispostas a testemunhar em juízo, caso sejam chamadas a comparecer na audiência de requalificação civil. Em certa medida, a lista de testemunhas funcionam como um tipo de “contrato de fiança” no qual outros sujeitos auxiliam a produção da verdade através da assunção da responsabilidade pela veracidade dos relatos apresentados. Portanto, as/os assistidas/os são aconselhados a chamarem pessoas de sua confiança, que confirmarão a história apresentada na petição inicial e que responderão “corretamente” qualquer pergunta que o indivíduo responsável pelo julgamento faça. Contudo, as estagiárias geralmente sugerem que não se chame familiares para compor a lista de testemunhas, pois, de acordo com a interpretação dos juízes, os laços de parentesco indicam que as pessoas possuem “interesse na questão julgada”, “contaminando” os depoimentos com interesses particulares e desvalorizando o testemunho de tais sujeitos.

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Embora não apareça na lista de documentos como um tópico específico, o Relatório de Primeiro Atendimento também é um dos elementos que opera a materialização dos sujeitos. Este foi discutido no capítulo anterior por ser o único documento cuja produção depende única e exclusivamente das profissionais do NUDIVERSIS. É por esta razão que este não aparece aqui com uma descrição detalhada, como os laudos, fotos, etc.

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Laudos psiquiátrico, psicológico, endocrinológico e social

Outros documentos que são descritos como fundamentais para que o pedido de requalificação civil seja julgado como procedente são os laudos de psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, assistentes sociais e quaisquer outros profissionais que possam atestar a transexualidade de uma/um assistida/o ou, nos casos que se aplicam, o atestado de realização da cirurgia transgenitalizadora. Neste sentido, as estagiárias do núcleo pedem que a pessoa transexual leve o máximo possível destes laudos, de preferência, de profissionais de distintas especialidades. Como já mencionado, algumas/ns das/os assistidas/os não possuem tais laudos, pois ingressaram nos serviços de saúde há menos de dois anos ou por uma série de outras razões. Nestes casos, são requeridas declarações constando que a pessoa está em acompanhamento pela equipe de algum programa transexualizador e, se possível, a previsão de quando ela poderá realizar a cirurgia de transgenitalização, como fica evidente nos seguintes exemplos:

Informamos que o paciente [nome de registro], nome social: [xxxx], registro [xxxx], se encontra em acompanhamento no serviço de Urologia na Unidade de Urologia Reconstrutora, no Programa de Atenção Integral a Saúde Transexual aguardando processo transexualizador (CID F64.0). (Atestado psiquiátrico do HUPE) Atesto, a pedido da própria, que [nome de registro] (nome social), Registro Geral no HUPE nº xxxx está inscrita no programa de cirurgia de transgenitalização do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ, fazendo acompanhamento psicológico, psiquiátrico, urológico e endocrinológico, devendo ser submetida à cirurgia a partir de [mês] de [ano]. (Atestado psiquiátrico do HUPE)

Além destes laudos e atestados, sempre assinados por algum profissional autorizado, são apresentados alguns documentos auxiliares que comprovam a transexualidade da/o assistida/o, tais como: exames de taxas hormonais, receituários de hormônios e inibidores hormonais, cartões de ambulatório de programas transexualizadores com datas de consultas, atestados de realização de determinados procedimentos de intervenção corporal – como por exemplo, implante de próteses de silicone ou de retirada dos seios – e tudo mais que possa funcionar como “prova” nas ações de requalificação civil de pessoas transexuais. Conforme discutido no capítulo anterior, é a exigência destes tipos de laudos que faz com que o direito a requalificação civil seja restrito àquelas pessoas que se enquadram na lógica médica do “transexualismo” ou “disforia de gênero”, excluindo assim as travestis e as múltiplas formas de vivenciar as experiências da transexualidade. 86

Estudo Social

O Estudo Social, fruto das avaliações feitas por psicólogos e assistentes sociais servidores da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, consiste em dois documentos distintos e complementares: o relatório social e o relatório psicológico. Ambos têm por objetivo atestar a procedência do pedido de requalificação civil e seguem um modelo préestabelecido. Da mesma forma que as petições iniciais, estes dois documentos são praticamente idênticos para todas/os as/os assistidas/os, exceto no que se refere à trajetória de cada uma/um. Assim, de modo paradoxal, o Estudo Social funciona como uma tecnologia que produz a singularização do caso através de um documento padronizado. O Relatório Social contém, geralmente, apenas uma página e enfatiza a convicção da/o assistida/o de não pertencer ao sexo registrado e não vivenciar tal identidade, de modo que a alteração do registro civil se faz premente. A breve argumentação apresentada pode ser tomada como um resumo da contida na petição inicial, isto é, baseada no direito da personalidade de ser identificado pelo nome que utiliza publicamente e na obrigação do Estado de resguardar a “dignidade da pessoa humana”, como será discutido no próximo capítulo deste trabalho. O Relatório Psicológico é mais detalhado que o social e encontra-se dividido em alguns tópicos: limites (salienta que o objetivo do psicólogo, neste caso, é avaliar a motivação e condição psíquica frente a demanda por requalificação civil); validade (informa que os resultados obtidos são temporários); procedimento (adoção como método de uma “entrevista individual com escuta psicológica” e observação dos atos da/o entrevistada/o); síntese da entrevista (apresenta, de modo muito resumido, os episódios destacados no Relatório de Primeiro Atendimento); interação com a imagem feminina/masculina (um tipo de avaliação sobre a performance de gênero da/o assistida/o); e conclusão (ressaltando a convicção da/o entrevistada/o e as situações de constrangimento às quais estão submetidas/os por conta do registro civil não espelhar sua “verdadeira identidade”).

Certidões dos Ofícios de Registro de Distribuição

As certidões emitidas pelos Ofícios de Registro de Distribuição certificam a existência ou não de registros de atos, documentos e títulos em nome de alguém na cidade do Rio de Janeiro, como por exemplo, a existência de processos criminais e dívidas. Como demonstrado no capítulo anterior, o objetivo de tais certidões é comprovar a ausência de “pendências 87

judiciais”, uma vez que essa é uma condição indispensável para que a demanda por requalificação civil possa ser julgada procedente. Os documentos dos 1º, 2º, 3º, 4º e 6º Ofícios atestam que “nada consta” em um período de 20 anos anteriores a data de solicitação. As certidões emitidas pelos 5º, 7º e 8º Ofícios se referem a períodos de cinco anos. O documento emitido pelo 9º Ofício, a princípio, também investiga a existência de registros em um período de 20 anos, exceto por duas questões específicas que implicam períodos distintos: Indisponibilidade de bens, arrestos, sequestros, intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras pelo Banco Central do Brasil ou Ministério da Fazenda e outras determinações comunicadas pela Corregedoria Geral da Justiça (Lei 6.024/197449); e Ações nos Juizados Especiais Fazendários (Ato Executivo nº 6340/201050 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Existe uma discrepância entre aquilo que consta nos ofícios de encaminhamento do NUDIVERSIS e os assuntos investigados pelos ORD que são mencionados nas certidões. Enquanto as profissionais da Defensoria Pública solicitam certidões apenas sobre algumas matérias que são consideradas relevantes para o processo de alteração do registro civil – as quais estão disponíveis na tabela apresentada no capítulo dois –, os funcionários dos Ofícios emitem documentos acerca de todas as questões que são responsabilidades da instituição. Tal disparidade não parece representar um problema no âmbito do núcleo. Pelo contrário, tendo em vista a economia de provas à qual as/os assistidas/os estão submetidas/os – que pode ser compreendida, grosso modo, como “quanto mais melhor” –, tais certidões, no modo como são escritas, possuem um imenso valor. Ao elencar uma gama de assuntos, ainda que completamente dispensáveis em um processo de requalificação civil, tais documentos produzem e reforçam uma imagem de “sujeito idôneo” que é merecedor de direitos, como será abordado mais adiante.

Fotografias

Logo no primeiro atendimento, as/os assistidas/os são informadas/os que precisam entregar fotografias de si, em tamanho 10x15, reveladas em papel fotográfico. A quantidade de 49

A Lei 6.024/1974 dispõe sobre as condições de possibilidade de falência ou de intervenção e liquidação extrajudicial em instituições financeiras e cooperativas de crédito privadas e públicas não federais. 50

O Ato Executivo 6340/2010 disciplina a criação dos I, II e III Juizados Especiais de Fazenda Pública da cidade do Rio de Janeiro.

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fotos não é especificada, mas, durante a entrevista realizada no primeiro atendimento, as estagiárias sugerem, informalmente, um mínimo de quatro ou cinco retratos. As fotos ficam nas pastas das/os assistidas/os até que a petição inicial seja elaborada, quando estas são então anexadas à ação – junto com as cópias dos documentos de identificação, a lista de testemunhas, o estudo social e as certidões dos ORD. Como se pode imaginar, não é qualquer tipo de fotografia que pode ser entregue ao núcleo e, consequentemente, utilizada no processo de modificação do registro civil. Existem certas exigências que são passadas às/aos assistidas/os, dentre as quais estão: 1) a/o assistida/o não deve estar sozinha/o nas fotos; 2) as fotografias devem retratar a/o assistida/o em locais públicos; 3) é preciso que a foto retrate a “verdadeira identidade” de gênero da pessoa, ou seja, é preciso que esta esteja utilizando roupas, acessórios, cortes de cabelo, etc. típicos do gênero com o qual se identifica. Esta última é a principal condição para que a foto seja aceita pelas profissionais do NUDIVERSIS e a única que, se não cumprida, implica a rejeição da fotografia. Não é incomum que as/os assistidas/os perguntem sobre a utilidade das fotos e até mesmo questionem tal obrigação. Diante disso, as estagiárias explicam que estas fotos se fazem necessárias para comprovar que a/o autora/or da ação se trata de uma/um “verdadeira/o transexual”, e não alguém que pretende utilizar o recurso à requalificação civil para “fugir de algum crime”. Em outras palavras, tais fotografias, supostamente, apresentam uma pessoa que “realmente vive como uma mulher ou um homem” e é por isso que são exigidas como comprovação de que o sujeito de fato se apresenta publicamente como alguém de um determinado gênero. Neste sentido, estas fotografias possuem a mesmas função que as certidões dos ORD e o estudo social, isto é, afastar a constante suspeita de que as pessoas que desejam a alteração do registro civil o fazem para fins moral e legalmente condenáveis, bem como comprovar a transexualidade do indivíduo. Esta função se torna ainda mais evidente quando verificamos o papel histórico das fotografias na identificação e controle social exercidos pelos registros policiais. É por conta destas características que atribuo às fotografias o mesmo estatuto de documento que os outros itens listados acima.

Um espelho da realidade? sobre o papel das provas e documentos na construção dos sujeitos

Parte da argumentação para que a demanda transexual seja julgada procedente apresentada pelos operadores do Direito nas petições iniciais de requalificação civil se baseia 89

na função legal dos documentos de registro civil de “refletir a realidade”. Assim, defende-se que, uma vez que a pessoa se apresenta por um nome e possui a “aparência” do sexo oposto ao que consta no registro, estes devem ser “corrigidos” para que cumpram corretamente sua função, como podemos perceber no trecho aqui reproduzido:

O Presidente da Câmara e relator do recurso, Desembargador [nome], votou pelo provimento do apelo do requerente destacando-se na motivação do voto as ponderações sobre o alcance do registro civil de uma pessoa e se deve o mesmo refletir uma realidade apenas biológica. O fato é que, na sua forma exterior, na sua aparência e em confronto com essa aparência, o registro civil do apelante não reflete a realidade. Por não refletir a realidade é que ele incute terceiros em erro, que abalam o equilíbrio jurídico. Na lúcida visão do relator, a indução de terceiros em erro não ocorreria em virtude da redesignação do assento de nascimento, que revelaria o transexual operado como mulher, mas sim o oposto. (Modelo de petição inicial, grifos meus)

Nesta subseção pretendo problematizar a premissa de que um documento deve ser “espelho da realidade” através da sua inversão. Ou seja, considero que, ao invés de descrever ou refletir a realidade, tais documentos possuem a função de produzir, dar materialidade e estabilizar a realidade ao classificar indivíduos em determinadas categorias, atestar determinados aspectos, comprovar certas experiências etc. Tenho como pressuposto a já abordada ideia de Vianna (2014) de “levar os documentos a sério” pelo seu potencial de produzir mundos sociais. Neste sentido, busco demonstrar como estas certidões, relatórios, laudos, atestados, fotografias etc. funcionam para materializar os sujeitos nos processos judiciais e quais relações de poder perpassam a produção dos mesmos. Os documentos que constam na lista descrita na subseção anterior são exigidos para que a ação de requalificação civil seja instaurada. Segundo um discurso diversas vezes reiterado pelas funcionárias da Defensoria Pública, estes servem para comprovar – e neste processo sedimentar determinadas “verdades” – uma série de coisas: a transexualidade, a condição de sofrimento, a identidade de gênero e, principalmente, a legitimidade da demanda pela modificação do registro civil. Conforme já salientado na introdução, tais exigências são fruto da dimensão normativa e legal na qual os pedidos de alteração do registro civil são feitos, isto é, a inexistência de uma lei de identidade de gênero que padronize os procedimentos e permita que o processo possa ser “simplificado”. A necessidade de apresentação de provas está ligada à prerrogativa do poder Judiciário de julgar objetiva e imparcialmente qualquer assunto que lhe seja apresentado. De acordo com Weber (1999, p. 14), o Direito Objetivo possui um caráter formal, dada sua composição por 90

disposições jurídicas, e seu desenvolvimento está ligado ao surgimento de um modo de governo marcadamente burocrático. Em outras palavras, este formalismo jurídico é consequência de um Direito que prevê uma suposta racionalidade administrativa. Neste sentido, as decisões judicias do Direito moderno são tomadas com base em um processo formal e em determinadas “provas racionais e objetivas”: documentos, testemunhas, dentre outras. Além disso, as provas se fazem necessárias na medida em que impera uma lógica da suspeição na administração pública, isto é, existe uma presunção de culpa que implica a adoção de uma série de procedimentos que visam comprovar a inocência de quem se põe sob o escrutínio do Estado. Para Miranda (2012), a imprescindibilidade das provas está ligada a uma “longa tradição do Estado brasileiro, a de se colocar num legalismo formalístico caracterizado pela necessidade de documentos com fé pública, em que cabe ao cidadão provar quem é, o que faz e quais suas intenções” (p. 280). Nos casos do processo de requalificação civil administrados pela Defensoria Pública, tal lógica de suspeição se torna evidente quando as profissionais do NUDIVERSIS afirmam que boa parte dos documentos requisitados funcionam como provas para afastar a constante suspeita de que as pessoas solicitam a alteração do registro civil para escapar do julgamento e/ou condenação por conta de algum crime, dívida etc. Assim, a noção de prova está intimamente conectada com a ideia de verdade, pois sua função é, obviamente, provar a veracidade de uma dada afirmação. O ato de provar nada mais é que atestar, confirmar, comprovar, certificar a autenticidade de um fato ou alegação. Ou ainda, provar não é senão que uma forma de demonstrar a realidade. Verdade e realidade podem então ser compreendidas como noções inseparáveis e quase indistinguíveis, sinônimas. Se algo é considerado como verdadeiro, ele é imediatamente encarado como real e vice-versa. No campo do Direito, o jurista Moacyr Amaral Santos (1994) conceitua a prova judiciária como “a verdade resultante das manifestações dos elementos probatórios, decorrente do exame, da estimação e ponderação desses elementos; é a verdade que nasce da avaliação, pelo juiz, dos elementos probatórios” (p. 11). Esta pequena citação oferece uma pista para pensarmos nas complexas relações que se estabelecem entre autoridade, poder, verdade e realidade. Por ora, preocupo-me em discutir os três últimos elementos – isto é, poder51, verdade e realidade –, deixando a inclusão da questão da autoridade para a próxima subseção. Se os documentos são considerados provas e as provas criam a realidade, passo então para a discussão da capacidade do campo jurídico de regular, moldar, produzir, mediar, manter

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Enfatizo que a concepção de poder utilizada neste trabalho é de inspiração foucaultiana. Neste sentido, o poder não é algo dado a priori, mas sim permanentemente constituído nas relações.

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etc. as relações, os conflitos, os laços e os mundos sociais. Proponho que pensemos nos procedimentos de assistência às pessoas transexuais executados pelas profissionais que atuam no NUDIVERSIS e no processo de fabricação de provas documentais a partir de chaves analíticas propostas por três autores que refletem sobre os modos pelos quais o Direito adquire o poder de produção da realidade52: Foucault, Bourdieu e Boltanski. Em A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault (1973) demonstra como as práticas sociais de controle e vigilância – como por exemplo, o “inquérito”, o “exame”, a apresentação de “provas” –, as quais se tornaram algumas das principais “práticas jurídicas”, fundamentaram a construção de um determinado campo do conhecimento: o Direito. Este domínio do saber está intrinsecamente conectado aos modos de produção da verdade, sendo o “efeito de verdade” garantido pela rede de relações de poder na qual o discurso é enunciado. Um dos efeitos de verdade mais significativos do discurso jurídico é sua capacidade de fabricar sujeitos que ele alega apenas representar (Foucault, 1988). Em outras palavras, o autor evidencia como a linguagem jurídica é capaz de construir e estabilizar determinadas coisas como “verdades indiscutíveis”. A linguagem jurídica também é um dos temas de interesse de Bourdieu (1989). Como mencionado no primeiro capítulo, para o autor, a “força do Direito” se encontra no seu potencial de não apenas descrever a realidade, mas sim produzi-la efetivamente. Tal força está ancorada no monopólio do exercício da violência simbólica. A partir deste poder simbólico são criados documentos que, em última instância, produzem verdades e a própria realidade em si. Se para Foucault a estabilização da verdade é conseguida através de uma suposta representação dos indivíduos, para Bourdieu este efeito é fruto do apagamento das condições sociais da criação dos documentos probatórios, ou seja, das relações de poder que condicionam a sua produção. Boltanski (1990), por sua vez, pensa a tensão que perpassa a construção da realidade a partir de outra perspectiva. De acordo com o autor – que é um dos representantes de uma corrente denominada sociologia da crítica53 –, a realidade é um espaço crítico por excelência, sujeito à disputas por definições de mundos alternativos. Boltanski toma por objeto a construção de denúncias públicas na busca por justiça, de modo que os conflitos contidos nas tentativas de

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Ressalto que o poder de produção da realidade não é exclusivo do Direito. Como Foucault demonstra, a criação de diversos aparelhos de Estado fraciona, capilariza e faz circular os efeitos de poder (1979, p. 8). Mais adiante, poderemos ver como os outros profissionais também detêm de uma parte desse poder de construção da realidade. 53

A sociologia da crítica surge como um contraponto à sociologia crítica. De acordo com Boltanski (1990), a sociologia crítica não leva em conta a capacidade crítica dos atores sociais. Para o autor, as sociedades contemporâneas são “críticas”, pois todos os atores dispõem, em alguma medida, de uma capacidade reflexiva. É neste sentido que Boltanski descreve uma passagem da sociologia crítica para a sociologia da crítica.

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constituição da “verdade dos casos” se tornam mais evidentes. A transformação de um “caso” em uma “causa”, ou seja, a coletivização de um mal individual, depende da competência do sujeito em produzir a plausibilidade da denúncia e, portanto, a “verdade do caso”. Uma das preocupações de Boltanski são as condições de produção de enunciados que são tidos como verdadeiros. Deste modo, o autor apresenta a construção da realidade como algo que não está dado, pois existe um espaço de negociação no qual os atores disputam pelo estabelecimento da “verdade”. Entretanto, ele não ignora que tais condições são marcadas por desigualdades. É introduzida então a noção de magnitude dos sujeitos para compreender os quadros nos quais as denúncias são construídas. Há uma multiplicidade de magnitudes possíveis e é a equivalência entre tais magnitudes que conformam determinados ideias de justiça e formas de justificação, o que, em última instância, aponta para um reconhecimento da impossibilidade da efetivação da igualdade plena. Segundo o autor, um dos principais elementos que garantem a eficácia da denúncia é a apresentação de provas. As provas adquirem validez a partir do regime de justificação nas quais estão inseridas. Uma vez que o regime de justificação encontra-se ligado à magnitude de alguém, “a execução da justiça pode, portanto, ser comparada à realização de uma disposição justificável de pessoas e coisas”54 (Boltanski, 1990, p. 93, tradução livre). Assim, a busca por algo que é visto pelo sujeito como “justo” – no caso das pessoas transexuais, a aquisição de documentos que melhor expressam suas identificações – implica “pôr-se à prova”, isto é, se submeter ao escrutínio de terceiros que avaliarão a legitimidade de tal demanda. É a partir deste referencial teórico que busco desconstruir a premissa de que os documentos devem representar ou refletir a realidade, apresentada nas petições iniciais como uma argumentação dos operadores do Direito em favor da requalificação civil. Defendo que estes documentos exercem um papel fundamental no processo de construção de verdades e, consequentemente, da realidade. O primeiro documento que precisa ser analisado é o Relatório de Primeiro Atendimento. Conforme já apontado no capítulo anterior, é este relatório que materializa os sujeitos, transformando-os em assistidas/os do NUDIVERSIS. O campo “resumo do caso” cristaliza não apenas as trajetórias das pessoas, mas também suas demandas e anseios. Reproduzo aqui dois destes relatórios para ilustrar o modo pelo qual tais indivíduos são construídos a partir da ênfase em determinados episódios de suas biografias.

No original: “La ejecución de la justicia puede asimilarse con ello a la realización de uma disposición justifícable de personas y cosas” (Boltanski, 1990, p. 93). 54

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Trata-se de resignação de nome. A assistida foi encaminhada pela Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da SEASDH. A assistida se identificou desde a infância como diferente das outras crianças do seu convívio social. Segundo a mesma, não se interessava pelas mesmas brincadeiras dos meninos, se identificando com as meninas. Aos 19 anos assumiu a transexualidade para a família passando a se vestir como mulher dentro e fora de casa e assumindo seu nome social, pelo qual se apresenta e é conhecida por seus amigos e familiares. Afirma que obteve apoio de seu pai e de uma de suas irmãs. No entanto, o mesmo não ocorreu com sua mãe, a qual, por ser muito religiosa, não soube lidar com a situação. Aos 23 anos começou a tomar hormônios femininos por conta própria, porém interrompeu a ingestão dos mesmos devido a efeitos colaterais, procurando orientação médica no HUPE, onde é acompanhada atualmente, apresentando interesse na cirurgia de readequação sexual. A assistida apresenta como principal motivação para a mudança de prenome a possibilidade de plena convivência social, livre de preconceitos e das situações vexatórias pelas quais é submetida devido a atual discrepância entre a sua identificação física de gênero e o prenome constante do seu registro. (Relatório de primeiro atendimento de Larissa) Nasceu no Rio de Janeiro, desde pequena se identificara com o universo feminino. Por volta de seus 7/8 anos, os próprios colegas de classe se questionavam sobre o gênero de Elisa. Por volta dos 12/13 anos seus seios começaram a se desenvolver e com 15 anos passou a vestir-se de forma feminina na escola e foi introduzindo essas vestimentas em casa e seus pais foram aceitando bem. Iniciou a faculdade de Direito [em uma universidade particular], cursando até o 4º período. Elisa não concluiu a faculdade porque ficou desacreditada de conseguir um emprego devido a sua identidade de gênero. O mesmo aconteceu com a faculdade de Geografia, a qual cursou até o 4º período, sem concluir pelos mesmos motivos. Ela sempre se reconheceu como mulher, nunca como homossexual, no entanto não conhecia a transexualidade. Aos 18 anos Elisa passou a se vestir integralmente de forma feminina. Atualmente ela trabalha em [nome da instituição] confeccionando fantasias e durante o final de semana apresenta-se numa peça, na qual é voluntária. Em 2010 começou o acompanhamento no HUPE, encaminhada pelo posto de saúde, o qual a encaminhou para o programa de transgêneros, para acompanhamento endocrinológico. Foi no HUPE que conheceu o transexualismo, pois se identificava como mulher, mas não sabia “o que era”. Antes do HUPE nunca havia tomado hormônios. (Relatório de primeiro atendimento de Elisa)

Outros documentos que constroem a realidade dos sujeitos são os laudos, atestados e declarações emitidos por profissionais da Medicina, principalmente psiquiatras. É a partir destes papéis que as/os assistidas/os conseguem comprovar a transexualidade, condição fundamental para o acesso ao direito à requalificação civil, como já abordado anteriormente. Entretanto, apesar do caráter “patologizante” que os laudos e atestados carregam, estes documentos frequentemente funcionam como os únicos “passaportes” que permitem que pessoas transexuais consigam obter sucesso em atividades cotidianas como, por exemplo, 94

realizar operações bancárias em que o documento de identificação é solicitado ou até mesmo viajar para fora do estado ou país. Tendo em vista que muitas vezes ao apresentarem seus documentos de identidade, as pessoas transexuais têm a veracidade dos mesmos questionada, de modo que a apresentação de um laudo de “disforia de gênero” pode ser um caminho para evitar maiores transtornos e constrangimentos55.

Levo ao conhecimento deste serviço que a paciente [nome de registro] (nome social: xxxx), registro geral no HUPE nº xxxx apresenta as condições previstas na Resolução nº 1.958 de 12 de agosto de 2010 do Conselho Federal de Medicina, publicada no Diário Oficial da União em 03 de setembro de 2010, que dispõe sobre cirurgia de transgenitalização, ou seja: a) tem o diagnóstico médico de transexualismo; b) apresenta desconforto com o sexo anatômico natural; c) exibe o desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; d) o distúrbio permanece de forma contínua e consistente por mais de dois anos; e) há ausência de outros transtornos mentais. (Encaminhamento interno do setor de perícia psiquiátrica para a unidade de urologia reconstrutora do HUPE) Declaro, para fins judiciários, que [nome de registro] (nome social: xxxx) está em acompanhamento neste serviço com vista à futura cirurgia de transgenitalização por apresentar transexualismo. (Declaração psiquiátrica do HUPE)

Do mesmo modo que os Relatórios de Primeiro Atendimento, os laudos e relatórios de assistentes sociais que atuam junto às equipes que compõem programas transexualizadores (IEDE e HUPE), nos programas governamentais atendimento à população LGBT (CEDS e RSH) ou na DPGE-RJ também sedimentam certas verdades sobre a trajetória das/os assistidas/os. Entretanto, o foco destes documentos é apresentar, por um lado, as condições socioeconômicas nas quais as pessoas vivem (composição familiar, fontes de renda, condições de habitação, etc.); e, por outro, as formas pelas quais elas exercem ou não a cidadania. Além disso, estes também podem apresentar algumas recomendações, mais ou menos explícitas, direcionadas aos operadores do Direito, no sentido de defender a legitimidade do direito à alteração do registro civil. A usuária [nome social], sob o nome de registro [xxxx], prontuário nº xxxx, é acompanhada por equipe multiprofissional (médicos urologistas, psiquiatra, serviço social e psicologia) do Hospital Universitário Pedro Ernesto, responsáveis pelo processo transexualizador no Estado do Rio de Janeiro. [...] A equipe de Serviço Social do programa em questão assiste 55

Agradeço ao professor Guilherme Almeida por, na ocasião da defesa desta dissertação, sugerir que eu olhasse para estes laudos como “passaportes” que legitimam as pessoas transexuais a se moverem mais livremente pelos espaços.

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a usuária durante todo o seu acompanhamento, tendo por base a portaria 457 de 19 de agosto de 2008 que define as Diretrizes Nacionais para o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde e a portaria 1.707 do Ministério da Saúde de 18 de agosto de 2008 que institui o processo transexualizador no âmbito do SUS, entende que é necessária e urgente a retificação de seu nome de registro, buscando interromper o intenso, continuo e sistemático processo de constrangimento que vem lhe impedindo o livre acesso aos direitos básicos da cidadania. (Laudo social do HUPE). Deseja ser reconhecida enquanto cidadã, participar da vida em sociedade como qualquer outra pessoa e não ser alijada. [...] Diante do exposto, percebeu-se que a usuária desde a sua adolescência luta por seu reconhecimento enquanto uma mulher e a retificação do nome significa o exercício da cidadania, o qual a usuária tem direito. (Relatório social do RSH).

Os laudos, relatórios e atestados propiciados por psicólogos, os quais podem ser oriundos das mesmas variadas instituições nas quais atuam os assistentes sociais, avaliam o estado mental dos indivíduos e, ainda mais importante, atestam tanto o desejo quanto o consentimento da/os assistida/o em relação aos efeitos não só das transformações corporais, mas também da requalificação civil. Assim como os laudos sociais, estes documentos também podem trazer recomendações em favor da requalificação civil. Contudo, as recomendações, por vezes, não se limitam aos operadores do Direito, direcionando-se também às/aos assistidas/os, como podemos ver em um dos exemplos a seguir:

A usuária apresenta discurso coerente e é ciente de todas as implicações decorrentes da retificação de nome. Em face ao exposto, solicito gentilmente que tais questões sejam levadas em consideração e que o referido seja retificado para que [nome da usuária] possa ter o resgate de sua autoestima e melhoria em sua qualidade de vida. (Relatório psicológico do RSH) Atesto para os devidos fins que [nome de registro] (nome social: xxxx), prontuário nº xxxx encontra-se em acompanhamento psicológico regular ambulatorial especializado neste serviço, a fim de obter o Laudo de Disforia de Gênero (CID F64.0), para posteriormente submeter-se a cirurgia para transgenitalização. (Atestado de acompanhamento psicológico do HUPE) Finalizando, caso deferidas as recomendações, é prudente que a entrevistada seja encaminhada a um tratamento psicoterápico individual, a fim de conhecer e entender melhor as dificuldades, emoções e constrangimentos que possam advir dessa etapa da transformação. Recomendação que foi acatada pela assistida. (Relatório psicológico da DPGE-RJ)

Os outros documentos que compõem as pastas das/os assistidas/os não podem ser aqui reproduzidos por algumas razões. A lista de testemunhas e as fotografias são compostas, 96

respectivamente, por nomes de pessoas e imagens das/os assistidas/os com amigos, familiares etc. e por isso, evidentemente, não podem ser expostas. Já as certidões dos ORD, apesar de não conterem nenhuma informação pessoal que não possa ser omitida, trazem uma grande quantidade de tópicos56 analisados pelos funcionários, o que tornaria a leitura maçante. Limitome então a dizer que estes documentos atestam a inexistência de pendências judiciais no nome de registro da/o assistida/o. Em suma, é a partir de um diagnóstico, de uma assinatura e de um carimbo em um relatório, um laudo, um atestado, uma certidão, etc. que as pessoas deixam de ser simplesmente pessoas e tornam-se portadores de uma “disforia de gênero”, vítimas de discriminação, sujeitos sem pendências judiciais, assistidas/os da Defensoria Pública. Em outras palavras, estes papéis não refletem a realidade, mas a cria ativamente através de inscrições, ou seja, atos que produzem coisas que não estavam lá anteriormente ao mesmo tempo em que fixam e estabilizam os sentidos e significados atribuídos à determinadas experiências.

Das pessoas que fazem documentos: entre assinaturas e carimbos, ou o papel da autoridade na produção da verdade [...] já para as transexuais o caminho é mais fácil, acaba sendo mais fácil porque juiz gosta de laudo, de documento, de atestado, de papel. Aí tem um psicólogo, um psiquiatra, um urologista, um monte de profissional que faz um documento dizendo que é transexual, que quer fazer cirurgia, eles acham ótimo e com isso eles dizem “ah, então pode mudar o nome” porque é transexual. Se eu falar que é travesti eles não vão falar que a travesti pode mudar o nome, então eu tento o máximo possível associar as duas situações, não diferenciar muito que é para não parecer para o juiz que é uma coisa muito diferente. (Defensora Pública, grifos meus)

Apesar de tratar de forma mais ou menos genérica os diversos tipos de papel localizados nas pastas das/os assistidas/os do NUDIVERSIS ao nomear todos como “documentos”, saliento aqui que é preciso distinguir o “peso” ou “valor” de cada um destes, uma vez que possuem propriedades de verdade distintas entre si. Isto é, estes documentos atestam verdades sobre diferentes aspectos da vida dos sujeitos, os quais, de acordo com a economia de provas que cerca o processo de requalificação civil, são considerados mais importantes que outros.

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Reitero que a lista completa dos assuntos mencionados nestas certidões se encontra nos anexos deste trabalho.

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Busco, então, demonstrar aqui como os documentos são diferentemente valorados e hierarquizados nos pedidos de requalificação civil de pessoas transexuais, ainda que todos sejam classificados como indispensáveis pelas funcionárias do núcleo. Como é possível perceber a partir da fala da Defensora Pública, aqueles papéis que possuem assinaturas e carimbos – isto é, que são certificados por alguma autoridade competente, detentora de um saber característico – ocupam uma posição de maior prestígio que aqueles que são produzidos pelas/os próprias/os assistidas/os, como as fotos e a lista de testemunhas. É neste sentido que inverto o enunciado que dá título à esta seção: de “documentos que fazem pessoas” para “pessoas que fazem documentos”. Logo, minha preocupação aqui é menos em como os documentos fabricam e sedimentam verdades sobre os sujeitos e mais em como determinados indivíduos são consideradas como dotados do poder de produzir a verdade por meio da escrita. A discussão sobre autoridade e conhecimento tem como base a produção de Foucault sobre as relações entre poder e saber. Uma das preocupações de Foucault foi investigar o “estatuto de política da ciência e as funções ideológicas que podia veicular” (1979, p. 1), ou a articulação entre as relações de poder e a produção de saberes. De acordo com o autor, “não há relação de poder sem a constituição correlata de um campo do saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (1997, p. 30). Para Foucault as relações entre poder e saber remontam ao estabelecimento de um novo regime do discurso, o qual implicou uma alteração nas formas pelas quais os enunciados são tomados como cientificamente verdadeiros (1979). Neste sentido, o poder não é algo externo que atua sobre a ciência, mas os próprios enunciados científicos fazem circular determinados “efeitos de poder”. Se os enunciados científicos estão ligados a uma rede de poder e são produtores e produtos da “verdade”, o intelectual precisa ser considerado como uma figura evidentemente política. Diante deste novo regime do discurso, o intelectual se torna cada vez mais “específico” e se aproxima da imagem de um “cientista-perito”: alguém chamado a utilizar o conhecimento para atuar em certas lutas políticas. Em Vigiar e Punir, Foucault (1997) tem por proposição a compreensão das transformações dos métodos punitivos. O estabelecimento de uma punição é feito através de um julgamento no qual se estabelece a verdade sobre um determinado fato, no caso, um crime. Para que a verdade seja estabelecida, o juiz conta com o apoio de “cientistas-peritos” como psiquiatras e psicólogos, multiplicando assim as instâncias anexas ao julgamento. As ideias de Foucault dialogam com as proposições de outros autores sobre a temática das relações entre poder, saber e produção da verdade. Além disso, estas serviram como ponto 98

de partida para outras investigações e vêm sendo apropriadas, problematizadas, criticadas e atualizadas por inúmeros pesquisadores contemporâneos, ainda que, por vezes, não se faça menção direta ao autor. Trago agora alguns exemplos de como estas questões têm aparecido em trabalhos que abordam contextos distintos. Bourdieu utiliza a expressão linguagem autorizada para dar conta da articulação entre poder, autoridade, discurso e produção da verdade. De acordo com esta noção, o poder não se encontra no discurso em si, mas está ancorado no reconhecimento e legitimação do sujeito que pronuncia o discurso. Esta articulação pode ser encontrada, por exemplo, no campo do Direito. Para o autor, não é qualquer pessoa que pode falar sobre “direitos”, pois as falas possuem valores distintos e é preciso um domínio da linguagem utilizada (1989). As ideias de Souza Lima (2002) sobre as formas pelas quais o Estado administra determinadas populações também podem ser lidas a partir das lentes do poder-saber. De acordo com o autor, a gestão de um dado grupo está associada a uma produção de saberes específicos e articulados às questões que necessitam de regulação. Assim, as figuras-chave da gestão pública são os especialistas: “produtores e portadores de certos saberes que se cristalizam em setores da administração” (p. 11). Por um caminho diferente de Bourdieu, Souza Lima reflete sobre uma questão muito semelhante: o papel da autoridade – concedida pela posse de um saber – na produção da verdade. A autoridade de determinados profissionais foi trabalhada também por Fassin e Rechtman (2009) em sua pesquisa sobre a construção da noção de trauma. Os autores chamam atenção para a necessidade da produção dos laudos por mediadores especialistas – no caso, psiquiatras e psicólogos – para que se concretize a figura do indivíduo traumatizado. Estes especialistas possuem o poder de escrutínio da verdade de um sofrimento que não é evidente, pois não é localizável no corpo, mas sim na psique. Detenho-me um pouco mais na obra de Fassin e Rechtman por conta das apropriações possíveis para a análise do contexto do NUDIVERSIS. Como dito anteriormente, os psiquiatras e psicólogos são aqueles que possuem o capital simbólico necessário para a transformação do sofrimento em “direitos”. Esta metamorfose é efetivada através da inscrição e tradução do dano sofrido pelo sujeito em um laudo que atesta o trauma. Entretanto, o reconhecimento do sofrimento não implica uma relação imediata com um direito de reparação, existe uma margem de incerteza que perpassa a politização do sofrimento. Guardadas as devidas proporções, apresento as profissionais da Defensoria Pública como mediadoras especialistas que efetuam uma espécie de “metatradução”. O primeiro movimento de atribuição de significados é feito pelos psiquiatras, os quais transformam as 99

experiências dos sujeitos em uma patologia codificada – “disforia de gênero”, F64.0 – por meio da emissão de um laudo, um papel devidamente assinado e carimbado. Concomitante ao surgimento desta categoria nosológica aparece seu respectivo tratamento: a “terapia de mudança de sexo”, a qual inclui, no plano das intervenções corporais, a ingestão de determinados hormônios e uma série de cirurgias, sendo a mais importante a de transgenitalização; e no plano jurídico, a alteração do nome e sexo no registro civil. Uma vez de posse desses laudos, cabe às operadoras do Direito efetivar uma segunda transformação para fazer com que as prescrições médicas se tornem compreensíveis na linguagem jurídica, criando, neste processo, as pessoas transexuais como sujeitos de direitos específicos. Como já mencionado várias vezes, os laudos, apesar de serem considerados os mais importantes, não são os únicos documentos necessários para a instauração da ação de requalificação civil, pois eles só podem atestar verdades sobre determinadas áreas da vida de um indivíduo. Reitero então que psicólogos e psiquiatras são autorizados a falar somente sobre as condições psíquicas de uma pessoa; endocrinologistas proporcionam atestados referentes apenas à “vida hormonal” dos sujeitos; assistentes sociais descrevem a situação socioeconômica na qual o indivíduo vive (fonte de renda, habitação etc.) e também as formas pelas quais ele consegue ou não exercer a cidadania; tabeliões e funcionários dos ORD comprovam a existência ou não de registros oficiais em nome da/o assistida/o; as testemunhas são chamadas à comprovar a veracidade da biografia; e, por último, as fotos completam a constituição do sujeito ao oferecerem uma imagem que servirá para ancorar todas as outras “verdades”. Deste modo, é possível pensar como a “verdade” dos sujeitos – e no caso da administração pública do direito à requalificação civil de pessoas transexuais o que está em jogo é a “verdade da transexualidade” – se distribui por diversos aspectos: ela está na psique, na corporalidade e na performatividade, como será discutido mais adiante. Considerando esta distribuição, sugiro que os sujeitos dos quais estes papéis falam devem ser vistos como um mosaico: uma imagem constituída por peças de diferentes tamanhos, mas que são complementares, pois somente quando todas se encontram reunidas é que a figura se torna evidente e pode ser percebida em sua totalidade. Contudo, não basta que todos os pedaços estejam juntos, estes precisam estar corretamente dispostos e encaixados para que a imagem não fique distorcida ou ambígua. Uma imagem que não seja suficientemente clara e coerente abre espaço para dúvidas acerca de sua compreensão, uma vez que é possível ver coisas distintas daquilo que era pretendido por quem a montou. A fabricação de uma imagem precisa das/os assistidas/os será o assunto da próxima subseção.

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Fabricando sujeitos idôneos: uma forma de “acessar direitos”

Foram abordadas até aqui duas ideias sobre os documentos: 1) seu potencial de construção da realidade e não mera representação ou reflexo; 2) o papel de determinadas autoridades profissionais, detentoras de saberes-poderes específicos, na produção dos documentos e, consequentemente, da realidade. Além destes dois aspectos, é preciso salientar que tais documentos não fabricam “qualquer verdade” sobre os sujeitos. Deste modo, passo agora para a discussão de quais verdades são produzidas pelos ditos papéis. Uma vez que estes estão inseridos em uma economia jurídico-moral que regula o “acesso aos direitos”, seu principal objetivo é a produção da única figura legítima a pleitear as alterações do prenome e sexo no registro civil: um sujeito idôneo que, por ser portador de um transtorno, configura-se como uma vítima que precisa e merece ter seu sofrimento aliviado57. Todos os documentos que compõem as pastas das/os assistidas/os – isto é, o Relatório de Primeiro Atendimento, os laudos, a lista de testemunhas, as certidões dos ORD, o Estudo Social e as fotografias – funcionam, em maior ou menor grau, como peças na fabricação da idoneidade e do sofrimento da pessoa e da verdade sobre a transexualidade. De um modo mais ou menos implícito, as estagiárias indicam que as testemunhas elencadas devem estar dispostas a confirmar todas as informações contidas na petição inicial, que é basicamente a condição de constante infortúnio da/o autora/or. O extenso período da vida da/o assistida/o que é submetido à investigação – geralmente 20 anos – pelos Ofícios de Registro de Distribuição e a quantidade de assuntos verificados sugerem que estas certidões não só comprovam a inexistência de pendências judiciais, mas também fazem parte da construção da imagem de uma pessoa idônea, merecedora dos direitos pleiteados. Os limites das narrativas que podem ser registradas durante o primeiro atendimento também apontam este aspecto. O já mencionado caso de Elisa, que gostaria de realizar a cirurgia de transgenitalização para poder exercer sua sexualidade como, segundo ela, uma “mulher de verdade”, exemplifica esta construção de um tipo de sujeito da política que seja legítimo. Neste sentido, somente as experiências de sofrimento e martírio têm lugar nos relatórios de primeiro atendimento; o prazer e o desejo sexual não soam como motivos possíveis de figurarem nas petições iniciais escritas pelas profissionais do NUDIVERSIS. Como discutido no capítulo anterior, os Relatórios de Primeiro Atendimento são caracterizados pela construção de

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A questão da vitimização será discutida com maior atenção no próximo capítulo.

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trajetórias marcadas pelo sofrimento e, por vezes, pela superação de obstáculos, como podemos ver no seguinte exemplo:

A assistida era constantemente transferida de setor e sofria acusações infundadas, como, por exemplo, um boato acerca de Selma ter assediado um rapaz e mãe desse rapaz ter formulado uma queixa junto à administração da [empresa]. [...] Por fim, Selma cedeu à pressão e pediu demissão. A partir daí Selma teve dificuldade em conseguir outro emprego, devido a divergência entre seus documentos pessoais e sua aparência. Selma então mudouse para a casa de amigos, que a apoiaram e ajudaram-na a se requalificar no mercado de trabalho. A assistida trabalhou como faxineira e cabelereira para manter seu sustento. [...] Nem mesmo sua qualificação profissional venceu os obstáculos empregatícios impostos por sua aparência feminina e Selma continuou desempregada. Seguindo o conselho de seus “irmãos”, Selma decidiu prestar concurso público. A assistida foi bem sucedida em sua empreitada e foi aprovada no concurso para [cargo e instituição]. Após tomar posse, foi aprovada também no concurso de [cargo e instituição], optando por esse último. (Relatório de Primeiro Atendimento de Selma)

Os laudos dos psiquiatras e psicólogos atestam o desconforto do indivíduo em relação ao seu próprio corpo, enquanto os assistentes sociais comprovam como a vida social das/os assistidas/os é marcada por experiências de constrangimento e discriminação que geram incessantes sofrimentos, demandando, assim, que algo seja feito por essas pessoas. Segue alguns exemplos de laudos sociais:

É necessária e urgente a retificação de seu nome de registro, buscando interromper o intenso, continuo e sistemático processo de constrangimento que vem lhe impedindo o livre acesso aos direitos básicos da cidadania. (Laudo social do programa transexualizador do HUPE). Atualmente trabalha na empresa [nome], onde é necessário a utilização de seu nome para todos os processos de intervenção, gerando assim situações de extremo constrangimento, expondo a vida íntima da usuária. Tem sido utilizado o nome de registro em sua apresentação na empresa. (Relatório social do RSH).

Os relatórios psicológico e social que compõem o Estudo Social avaliam a procedência do pedido de requalificação civil na medida em que também reforçam esta visão das/os assistidas/os como sujeitos a um incessante sofrimento psíquico e social causado pelos episódios de constrangimento e discriminação. As fotografias, por sua vez, constatam não o sofrimento ou a idoneidade, mas sim a vivência pública da identidade de gênero requerida.

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3.2 Certificações do sexo e gênero: a produção de identificações a partir de documentos

Um dos aspectos mais relevantes da construção dos sujeitos através dos documentos, no caso das pessoas transexuais, é uma espécie de “certificação do sexo e gênero” que estes papéis conferem. Butler (2003) postula que não existe corpo sem sexo, pois esta é uma categoria fundamental que confere inteligibilidade às figuras humanas. Apoio-me na ideia da autora e afirmo que, no caso brasileiro, não existe cidadão sem sexo, pois o registro da masculinidade/feminilidade dos sujeitos implica “direitos e deveres” em relação a uma comunidade imaginada como “nacional” que são sexualmente diferenciados, como por exemplo, a obrigatoriedade do alistamento militar e a idade mínima para aposentadoria convencional. Assim, esta seção se concentra em observar os modos pelos quais o conjunto de documentos presentes nas pastas das/os assistidas/os produzem sujeitos sexuados e generificados.

Atestando o sexo e gênero: dos documentos que produzem sujeitos generificados Com exceção das certidões dos ORD e dos documentos de identificação civil – justamente os que necessitam de alteração – todos os papéis envolvidos nas ações de requalificação civil contribuem, cada um ao seu modo, para a produção de um sujeito generificado. Como discutido na seção anterior, estes documentos possuem a capacidade de atestar verdades sobre diferentes aspectos da vida dos indivíduos e o mesmo se repete quando os observamos com lentes do sexo e gênero. Em outras palavras, estes papéis falam sobre o sexo e o gênero a partir de distintos lugares e de diversas formas e é este ato de falar sobre que produz a verdade sobre o sexo e o gênero das/os assistidas/os. Os Relatórios de Primeiro Atendimento constroem biografias marcadas por sentimentos de desconforto em relação ao próprio corpo e à identidade de gênero que era atribuída à/ao assistida/o. Deste modo, todos estes papéis mostram como as pessoas não se identificavam com o sexo imputado e/ou se identificavam como alguém do sexo oposto desde a infância, produzindo assim uma trajetória coerente que culmina no diagnóstico da transexualidade e na demanda pela alteração de prenome e sexo no registro civil. Esta identificação é fabricada através de narrativas sobre escolhas de roupas, cortes de cabelo, preferência por determinadas brincadeiras ou por colegas do sexo oposto, entre outras coisas.

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Desde sua infância, Selma se identificava com o gênero feminino e usava maquiagem da avó e convencia sua mãe a não lhe obrigar a cortar o cabelo, para manter sua aparência mais feminina. Aos 18 anos iniciou, por conta própria, o uso de medicamentos hormonais. A assistida se lembra de sempre se apresentar como Selma, mesmo enquanto criança. Por possuir curso técnico de auxiliar de enfermagem, Selma foi convocada a servir o Exército. Selma foi alocada na área médica do quartel e não praticava as atividades do quartel, tais como treinamentos físicos e vigília. Por servir ao lado de oficiais médicos, não sofreu repreensões, mas ainda assim foi submetida a constrangimentos, como olhares e comentários pejorativos por parte dos demais soldados. (Relatório de Primeiro Atendimento de Selma) A assistida declara-se transexual, se identificando com os indivíduos do gênero feminino desde tenra idade, preferindo comportar-se de forma feminina e realizar brincadeiras ditas socialmente como de meninas, se assumindo gradualmente para seus familiares, com os quais sempre manteve um bom relacionamento. (Relatório de Primeiro Atendimento de Samanta)

Da mesma forma que os Relatórios de Primeiro Atendimento, os documentos assinados por assistentes sociais também produzem biografias coesas sobre os caminhos que levam à estabilização da identidade de gênero dos sujeitos, isto é, partindo de um momento inicial de questionamento do próprio sexo, passando pela busca da compreensão dos desejos, preferências e gostos experienciados e resultando em um processo de subjetivação58 através do diagnóstico da transexualidade.

Aos 4 anos de idade se questionou sobre seu sexo. No entanto, sua família, evangélica, fazia as orientações à usuária a partir de seu sexo biológico, omitindo sua transexualidade. Aos 19 anos passou a se vestir como mulher e teve apoio de uma de suas irmãs e a aceitação de seu pai. (Relatório Social do RSH) [nome social da usuária] tem sexo biológico masculino, mas desde muito cedo sempre se identificou com o sexo feminino. A usuária informa que iniciou o processo transexualizador em 2005 e que este se tornou mais concreto após adquirir sua prótese de silicone no ano passado. [...] Sendo assim, há anos que [nome de registro da usuária] não existe mais. Na verdade, esta pessoa jamais existiu, sendo apenas consequência de uma imposição da vida civil, que lhe impôs um sexo jurídico, o cárcere de sua identidade feminina. (Relatório Social do RSH)

Os laudos, relatórios, declarações e atestados emitidos por psiquiatras e psicólogos também certificam que, por um lado, a/o assistida/o vivencia, “pensa como”, “age de acordo Os processos de subjetivação – ou seja, de atribuição de significados a determinadas experiências – propiciados pelo diagnóstico da transexualidade já foram sinalizados no capítulo anterior, mas serão abordados na última seção deste capítulo. 58

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com” e “se identifica como pertencente” ao gênero que é oposto ao sexo que lhe foi atribuído no momento de seu nascimento e posteriormente reiterado nos seus documentos de identificação civil, condições imprescindíveis para que o diagnóstico da “disforia de gênero” seja obtido. Por outro lado, tais documentos também afirmam que a/o assistida/o rejeita e nega qualquer forma de identificação com o sexo atribuído. Interação com a imagem feminina: [nome social da assistida] veste-se como mulher, age como mulher, feminina e muito educada, possui um bom nível de aspiração com relação à vida pessoal e profissional. (Relatório psicológico da DPGE-RJ)

Gostaria então de destacar dois aspectos sobre o conjunto de documentos descrito acima. Primeiramente, em certa medida, todos eles realizam, através da escrita, a produção da coerência dos sujeitos por meio do apagamento e silenciamento das ambiguidades, contribuindo, assim, para a composição de um mosaico que só pode formar uma única imagem. É este procedimento de fabricação da coerência que elimina qualquer possibilidade de dúvida ou questionamento sobre a realidade da transexualidade – e também do gênero – da/o assistida/o por parte dos juízes responsáveis pelo julgamento do pedido de requalificação civil. Em segundo lugar, saliento como estes papéis – todos produzidos por alguém que faz parte de uma dada categoria profissional – refletem a disseminação, circulação e articulação entre duas teorias sobre a formação da identidade sexual: de um lado, é possível verificar a forte presença de uma abordagem mais próxima a um dos modelos do construtivismo social (Vance, 1995), principalmente quando o que está em questão é o gênero; e de outro, há uma marca do essencialismo, especialmente quando se fala sobre o sexo. Em linhas gerais, a abordagem essencialista do sexo o compreende como algo que possui uma essência que é fixa e imutável, designada não pelo homem, mas pela natureza. Já esta vertente construtivista social, oriunda das críticas feministas datadas da década de 1970, opera uma separação entre sexo, que seria biológico e, portanto, “natural”; e gênero, que seria as formas culturais pelas quais a diferença sexual seria significada e, por conseguinte, “social”. Em outras palavras, o sexo seria uma espécie de tábula rasa (natureza) sobre a qual o gênero (cultura) trabalharia para produzir a distinção entre homens e mulheres. Nota-se, então, como este tipo de construtivismo carrega em si algo do essencialismo, uma vez que o sexo é posto em um lugar de naturalidade e, como consequência, é encarado anterior ao gênero. A incorporação de ambas teorias se faz ver a partir das muitas passagens nas quais as/os assistidas/os são descritos e caracterizados. Frases como “veste-se como mulher”, “age como mulher”, “possui sexo biológico masculino, mas desde muito cedo identifica-se com o sexo 105

feminino”, entre outras, apontam tanto para uma concepção essencialista de sexo, baseada nos discursos de saber da medicina e da biologia – ou seja, uma identificação da verdade do sexo a partir dos órgãos genitais, do aparelho reprodutor, e/ou dos genes; quanto para uma concepção construtivista do gênero, uma vez que é possível pertencer a um dado sexo biológico e ainda assim vivenciar uma identidade sexual distinta do mesmo. Deste modo, o sexo aparece como algo que é natural do indivíduo, dado desde a sua gestação e “confirmado” no momento de seu nascimento; já o gênero parece ser um tipo de roupagem que reveste esse corpo natural, atribuindo-lhe características masculinas ou femininas de acordo com os desejos e vontades dos sujeitos. Entretanto, ressalvo que é preciso estar atento para até que ponto o essencialismo está de fato presente nestes documentos. Pois bem, se todos os procedimentos da “terapia de mudança de sexo” trazem como promessa a transformação de homens em mulheres e viceversa, como o próprio título indica expressamente, é preciso questionar o quão essencialistas são as visões destes profissionais, uma vez que ao defenderem esta “terapia”, desestabilizam a fixidez do sexo, demonstrando como até mesmo este pode ser literalmente (re)construído; bem como pensar sobre quais e como outras teorias se articulam em determinados campos do saber. Em resumo, todos esses documentos fazem gênero a partir de uma linguagem escrita. Contudo, as palavras não são suficientes para convencer os juízes do gênero da/o assistida/o e assim fazer desaparecer qualquer dúvida sobre a intenção da/o autora/or da ação. É neste sentido que as fotografias se fazem necessárias nos processos de requalificação civil, para oferecer uma imagem concreta da identidade de gênero dos sujeitos. Passo agora para a essa discussão.

As provas visuais do gênero: as fotografias das assistidas

Conforme dito na seção anterior, as fotografias encontradas nas pastas das/os assistidas/os – e que serão anexadas à petição inicial quando na conclusão dos serviços de assistência prestados pelo NUDIVERSIS – oferecem, literalmente, imagens nas quais todas as outras “verdades” sobre o sujeito podem ser ancoradas. De certo modo, as fotos reproduzem a lógica do “teste de vida real” que é aplicado por psicólogos que acompanham as pessoas transexuais durante o período mínimo de dois anos, tempo para que o laudo da disforia de gênero seja emitido. Além disso, estas também funcionam como “provas visuais” da identidade de gênero na medida em que cumprem a função de demonstrar para os juízes que os indivíduos de fato vivem publicamente o gênero pleiteado. 106

Há uma média de oito fotografias por pasta, algumas com mais e outras com menos (o mínimo solicitado pelas profissionais do núcleo é quatro ou cinco). As composições destas são as mais variadas possíveis. Entretanto, é possível observar alguns pontos comuns entre elas59. Em algumas fotos é possível ver a assistida em seu ambiente de trabalho (entre aquelas que possuem algum tipo de emprego), seja exercendo suas atividades, seja conversando com colegas, ou em outras situações. Fotos com membros da família são também muito comuns – especialmente com mulheres mais velhas, que podem ser mães, avós, tias etc. – e retratam alguns eventos familiares como, por exemplo, festas de aniversários, de fim de ano e outras comemorações. Estas fotos de família operam uma espécie de performatividade moral ao demonstrar que as autoras das ações de requalificação civil se encontram inseridas em uma rede de relações familiares. Se observadas em conjunto com o que é descrito nos relatórios de primeiro atendimento e no Estudo Social, podemos perceber como a família não apenas presta um certo tipo de apoio às pessoas transexuais, mas também “sofrem” junto a estas. Assim, a requalificação civil pode ser construída pelas operadoras do Direito como um “benefício de largo alcance”, na medida em que “corrige” não só a “incoerência” do sujeito transexual, mas também ajuda de alguma forma os seus familiares. Chama atenção o fato de a maioria das assistidas apresentarem fotos que retratam a força da maternidade, ou seja, interagindo com bebês e/ou crianças em diferentes situações: dando de mamar, brincando, passeando em parques, fazendo algum lanche ou refeição, etc. Apesar de ser impossível afirmar com certeza qual o laço que une a assistida às crianças, em alguns casos – aqueles em que tais crianças figuram nos Relatórios de Primeiro Atendimento – é justificável deduzir que se tratam de sobrinhos, filhos de amigos, afilhados e enteados. As fotografias com os parceiros também apareceram nas pastas das assistidas. Tais fotos retratam majoritariamente apenas o casal, quase sempre abraçados ou muito próximos um do outro, em diversas situações: em passeios por parques públicos, restaurantes, bares, shows, entre outras. Assim, é possível visualizar como estas fotografias também (re)produzem imagens morais que circundam o gênero, pois a “verdadeira mulher” é aquela que é mãe e esposa.

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A construção deste tópico encontra-se, obviamente, limitada pelas fotografias disponíveis nas pastas das/os assistidas/os do núcleo. Deste modo, destaco que pude analisar somente as fotografias apresentadas por mulheres transexuais. Durante o trabalho de campo, pude acompanhar o atendimento de apenas dois homens transexuais. Em um dos casos a petição inicial já havia sido distribuída e, portanto, as fotos já não se encontravam mais em posse do núcleo. O outro caso, de Pedro, teve seu primeiro atendimento realizado durante a pesquisa. Até o fim do trabalho de campo o assistido não havia entregado nenhuma fotografia.

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Retomando a discussão sobre a fabricação de “sujeitos idôneos” que “merecem” acessar determinados direitos, estas fotos não fazem qualquer mulher, mas “mulheres direitas”. Como dito anteriormente, a performatividade é um dos aspectos que carrega a “verdade da transexualidade”. Assim, as cores, os estilos de roupas, os cortes de cabelo, a utilização de maquiagem, etc. também são característicos nas fotografias entregues por mulheres transexuais. Neste sentido, a cor rosa, as estampas floridas, as saias, os vestidos, os sapatos de salto, as bolsas, os cabelos tingidos e compridos, os batons e sombras coloridas, etc. aparecem em pelo menos uma foto de cada uma das assistidas do NUDIVERSIS. De certo modo, estas fotografias são o registro visual e impresso de atos performáticos que constroem o gênero. Assim, proponho que estas fotos sejam encaradas em si mesmas como objetos performativos, tendo em vista que possuem um poder próprio de materializar não apenas os sujeitos mas também as relações que os constituem enquanto tal. A ideia de performatividade aqui utilizada é uma apropriação da noção descrita por Butler. Para a autora, “a performatividade deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, em vez disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (Butler, 1999, p. 154). Logo, mais do que retratar, estas fotografias funcionam como elementos que produzem uma imagem determinada das pessoas. Levando a sério o objetivo destas fotografias, é preciso atentar para o fato de que estas não apenas produzem sujeitos, mas também materializam sujeitos generificados. E novamente o aporte deste raciocínio pode ser encontrado na obra de Butler. A autora define a estabilização do gênero como um processo decorrente da reiteração de atos performativos ou, em suas próprias palavras como “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (Butler, 2003, p. 59). A investigação empreendida por Teixeira (2013) sobre os processos judiciais de alteração de nome e sexo no registro civil de pessoas transexuais também apresenta uma análise dos conjuntos de fotografias dos sujeitos constantes dos autos processuais. De acordo com a autora, estas fotografias “buscam cobrir, explicitar, dar a ver o retratado tendo como crença central a certeza na ‘imparcialidade’ e na ‘verdade’ do registro fotográfico” (p. 126). Embora esta crença também esteja presente no discurso que cerca a necessidade das fotografias no NUDIVERSIS, há, ao menos, três diferenças entre os registros imagéticos que figuram nos autos processuais da Promotoria de Brasília e os que se encontram nas pastas das/os assistidas/os da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro.

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A primeira distinção se encontra em quem produz tais fotografias. No âmbito do núcleo de diversidade sexual, as fotos são pedidas diretamente às/aos assistidas/os e cabem a elas/es a realização de todo o processo de produção: o ato de fotografar, a escolha parcial das fotos que vão constar na ação civil, a revelação e a entrega às funcionárias do NUDIVERSIS. No caso das pessoas transexuais inscritas no Programa de Transgenitalização do Ministério Público de Brasília, estas fotografias são solicitadas formalmente aos técnicos do Instituto Médico Legal (IML) através de um documento de encaminhamento. São os profissionais da instituição os responsáveis pela fabricação do registro visual das/os inscritas/os. Deste modo, as fotografias produzidas pelos peritos do IML possuem um potencial de estabelecimento da verdade/realidade que é muito distinto das fotos entregues pelas/os assistidas/os da Defensoria Pública, uma vez que as primeiras são produto do investimento de um suposto saber feito por uma autoridade competente. A segunda diferença se dá no conteúdo retratado por estas fotos. Teixeira (2013) descreve que são fotografadas as genitálias, os seios, as mãos, os pés, o rosto, etc., com a lente da câmera muito próxima – ou com muito zoom – para que uma maior quantidade de detalhes sobre os corpos dos sujeitos possa ser captada. Já as fotografias das/os assistidas/os do NUDIVERSIS apresentam planos mais abertos, tendo como foco não os detalhes do corpo, mas sim tudo aquilo que o cobre – roupas, cabelos, pelos e maquiagens – e os lugares por onde este circula: os espaços públicos. Seguindo as pistas da teoria construtivista que atravessa a construção das ações de requalificação civil na Defensoria Pública, arrisco dizer que a terceira distinção, a qual conecta a primeira e a segunda, se refere aos objetivos e significados que estas fotografias adquirem nos dois contextos. Ao retratarem com riqueza de detalhes as mais diversas partes do corpo, os técnicos do IML pretendem mostrar aos juízes e promotores uma verdade sobre o sexo dos sujeitos, verdade esta que é determinada com base em critérios anatômicos definidos pelos saberes médico-biológicos. Ao apresentarem as assistidas portando signos tidos como femininos – cabelos longos, vestidos e saias, performances maternais, etc. – na companhia de outras pessoas e em lugares públicos, as profissionais do núcleo pretendem demonstrar uma verdade sobre o gênero dos sujeitos, o qual é legitimado socialmente. Em suma, a primeiras operam um tipo de inspeção física do corpo, enquanto as últimas realizam uma verificação social da identidade.

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Onde está a verdade da identidade? as apropriações dos saberes nas petições iniciais de requalificação civil

O registro civil, tal como está no original, induziria terceiros em erro, por revelar a estes um homem, quando, na realidade, a constituição morfológica do indivíduo e toda a sua aparência é de mulher. O registro mantido originalmente propicia constrangimentos individuais e perplexidade no contexto social. Deve o mesmo, por tudo isso, ser corrigido, a fim de garantir a paz jurídica. (Modelo de petição inicial) O que a cirurgia [de transgenitalização] modifica são os órgãos sexuais, o sexo psicológico e a identidade sexual não são alterados, não havendo nenhuma ameaça à ordem social. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

Conforme já demonstrado, a prerrogativa legal dos documentos de identificação civil de “refletirem a realidade” aparece nas petições inicias elaboradas pelas profissionais do NUDIVERSIS. Diante deste quadro, é fundamental que se ponham algumas perguntas: de qual realidade está se falando? Quais são seus critérios de definição? Quando as operadoras do Direito acionam tal atribuição como parte da argumentação que defende a legitimidade da alteração do registro civil da/o assistida/o, afirma-se determinados lugares nos quais a verdade sobre a identificação sexual do sujeito pode ser encontrada: na sua psique e na sua expressão pública de gênero. Como já abordado, os laudos, atestados, relatórios, etc. dos diversos profissionais que contribuem para a construção da verdade do sujeito mesclam visões essencialistas e construtivistas sobre sexo e gênero. Ao apresentarem certas “considerações sobre a identidade sexual”, no modelo de petição inicial, as operadoras do Direito articulam teorias e conhecimentos produzidos por representantes de diferentes campos do saber – e aqui estão incluídos não somente psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, entre outros profissionais dos ramos da saúde e da biologia, mas também reflexões produzidas por cientistas sociais – para a construção de um raciocínio que opera uma distinção entre sexo e gênero. Neste sentido, o sexo é tomado como algo que possui uma essência dada pela natureza, enquanto o gênero não passa de uma espécie de construção cultural baseada na diferença sexual. O saber médico, segundo ANTONIO CHAVES60, tem como verdade que a definição do sexo no ser humano obedece a critérios estabelecidos: 1) pelo sexo genético que irá informar a 60

Antonio Chaves foi um jurista, professor e diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Dentre suas interesses figurou o tema do “direito ao corpo” e as discussões sobre transexualidade, intersexualidade e transplante de órgãos.

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constituição cromossômica (XX ou XY); 2) pelo sexo gonadal que irá conduzir a formação da estrutura morfológica das gônadas; 3) pelo sexo fenotípico, que respeita ao estado hormonal e é responsável pela estrutura morfológica dos condutos genitais e dos genitais externos. No entanto, além destes fatores, na formação da identidade sexual, o indivíduo recebe inafastáveis influências psicológicas, socioculturais e ambientais que são, da mesma forma, responsáveis pelo estabelecimento de seu sexo de criação e pelo seu comportamento e identificação sexuais. MIRIAM VENTURA61 vai além, ao analisar o que chama de caracteres funcionais do sexo, elencando, assim, sexo cerebral, que se refere à possibilidade de se compreender a diferença sexual a partir das diferenças de estrutura, ritmo e níveis químicos, identificados nos cérebros femininos e masculinos; sexo psíquico, constituído por uma série de reações psicológicas diferenciadas em razão do sexo biológico do indivíduo, frente a determinados estímulos, que estaria diretamente ligado à conduta sexual da pessoa; sexo psicossocial, entendido como aquele que resulta de interações genéticas, fisiológicas e psicológicas que se formam dentro de uma determinada atmosfera sócio-cultural, cujo produto final será a percepção do indivíduo de si mesmo, como homem ou mulher. Destaque-se a definição de sexo psíquico, uma vez que a Resolução n.º 1.652/2002, do Conselho Federal de Medicina, afirma que o propósito terapêutico da cirurgia de transgenitalização é o de adequar a genitália ao sexo psíquico; O termo gênero, igualmente, admite muitos significados. Para a antropologia é a forma culturalmente elaborada que a diferença sexual toma em cada sociedade, e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade sexual dos indivíduos e, na biologia, expressa uma categoria taxonômica compreendida entre a família e a espécie. Introduzida pelos cientistas sociais a partir dos anos 60-70, a categoria gênero tem o objetivo de evidenciar as determinações ou estereótipos do masculino e do feminino. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

A partir do fragmento recortado do modelo de petição inicial, nota-se que existe uma disputa no interior do campo médico entre endocrinologistas, geneticistas e psiquiatras pela definição do sexo. Segundo o discurso apresentado nestas petições, a verdade sobre o sexo se encontra não nas genitálias, nos órgãos reprodutores ou nos genes, mas sim na mente dos sujeitos. É neste sentido que busco problematizar até que ponto uma visão essencialista se faz presente nestes processos, ou melhor, como o essencialismo é apropriado por estas profissionais. A partir desta argumentação, podemos dizer que há algo de essencial no sexo, mas tal essência não é mais localizável no corpo, como proposto originalmente pela teoria essencialista, mas sim na mente. O corpo, que já não é mais imutável, deve passar por intervenções de diversos tipos – cirúrgicas, hormonais etc. – para se adequar ao verdadeiro sexo da/o assistida/o: o psíquico. 61

Miriam Ventura é advogada e mestre em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Sua dissertação de mestrado, “A Transexualidade no Tribunal” figura aqui como uma das referências em investigações sobre a transexualidade no âmbito judicial.

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De acordo com este entendimento, a constituição do sexo de um corpo não ocorre somente através dos procedimentos médicos, mas também através do investimento de símbolos de gênero que são socialmente estabelecidos. Assim, a “expressão pública do gênero” – condição fundamental para o convencimento dos juízes acerca da transexualidade da/o pleiteante da requalificação civil e comprovada por meio das fotografias – representa, senão, a manifestação do “verdadeiro sexo” do sujeito. Se o gênero não passa de uma exibição e demonstração do sexo, faz sentido pensar que, embora a teoria construtivista social tenha separado sexo e gênero, esta ainda carrega marcas do essencialismo. Sobre este ponto, se faz necessário, mais uma vez, trazer para o centro da discussão as proposições de Butler. De acordo com a autora, ao elaborar um discurso sobre o gênero como elemento cultural, a teoria construtivista colocou o sexo em um lugar de natureza que é prédiscursivo e, portanto, inquestionável. Butler apresenta então duas críticas ao construtivismo: por um lado, ela aponta um paradoxo inerente à esta abordagem, uma vez que o pré-discursivo é delimitado justamente por um dado discurso; e por outro, argumenta que o conceito de “natureza” é histórico e ligado à emergência dos meios tecnológicos de dominação (1993). Com isso, a autora busca problematizar a dicotomia sexo-gênero ao afirmar que gênero sempre foi sexo, na medida em que “a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” (Butler, 2003, p. 24). Na hipótese apresentada pela autora, a “construção” é substituída pela “materialização”. Deste modo, aquilo que é pensado enquanto “materialidade do corpo” – isto é, aquilo que é compreendido como sexo na teoria construtivista – é efeito de um poder produtivo e também é governado por normas culturais que determinam a possibilidade de reconhecimento da existência do sujeito. Assim, não existe um sujeito prévio ou exterior aos mecanismos de regulação que operam simultaneamente a sujeição e a subjetivação dos indivíduos (2004), ou, em outras palavras, não há corpo sem sexo, uma vez que o sexo é “uma das normas pelas quais o ‘alguém’ se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural” (1999, p. 155). Se estar de acordo com as normas de gênero – ou seja, constituir-se enquanto alguém que possui um gênero inteligível – é condição fundamental para o reconhecimento da humanidade, ter documentos de identificação civil que atestem o sexo/gênero com o qual se identifica é condição fundamental para aquisição de cidadania no contexto brasileiro. É essa dupla busca – pelo reconhecimento enquanto humana/o e cidadã/ão – que marca as trajetórias das/os assistidas/os do NUDIVERSIS, a qual nem sempre é bem sucedida, como discutirei a seguir. 112

Quem diz a “verdade do sexo”? as tensões que perpassam os processos de requalificação civil

As alegações constantes das petições iniciais sobre a localização da verdade do sexo na mente dos sujeitos nem sempre são eficazes. Esta determinação se dá em meio a tensões e conflitos entre os diversos operadores do Direito: Defensores Públicos, Juízes, Desembargadores, Promotores, Advogados particulares etc. Se na subseção anterior minha pergunta era sobre os critérios de definição da realidade acionados nos discursos das profissionais do NUDIVERSIS, nesta, a questão fundamental é: quem são os responsáveis pela determinação da verdade do sexo? Assim, pretendo explorar aqui as várias contendas que se desenrolam a partir desta pergunta. Antes de mais nada, é preciso lembrar que o NUDIVERSIS se caracteriza por ser um núcleo especializado de primeiro atendimento e, portanto, sua função oficial é atuar apenas na etapa pré-processual. Assim, minha discussão sobre o que acontece durante o julgamento do processo está limitada etnograficamente aos casos das/os assistidas/os que retornaram à Defensoria Pública por alguma razão – geralmente uma sentença indeferindo a alteração do nome e/ou do sexo. Durante o trabalho de campo, muito se foi falado sobre o julgamento das ações de requalificação civil de pessoas transexuais. Na percepção das profissionais do núcleo, há um movimento na primeira instância do Judiciário no sentido de autorizar – e aqui o uso do verbo autorizar não é despropositado – a mudança do prenome, mas não a do sexo. A alteração do sexo só é concedida, geralmente, à/ao assistida/o que tenha realizado a cirurgia de transgenitalização, cumprindo assim a principal etapa da “terapia de mudança de sexo”. Em todo caso, a jurisprudência – ou o entendimento – não está pacificada62. Nos meses em que acompanhei as rotinas de trabalho no NUDIVERSIS pude entrar em contato com casos que tiveram desfechos distintos, os quais exemplificam algumas das possibilidades existentes. Sônia teve seu processo suspenso até a realização da cirurgia de transgenitalização sem que nenhuma sentença fosse proferida, ou seja, sem que nada fosse modificado em seu registro civil. Eduardo também teve seu processo suspenso por conta da não realização da cirurgia, contudo, o assistido obteve a autorização judicial para alterar somente seu nome. Aline teve seu pedido negado em primeira instância, mas após recorrer da decisão, a assistida conseguiu a mudança tanto do nome quanto do sexo sem ter feito a cirurgia de

Jurisprudência ou entendimentos “pacificados” são expressões que designam a consolidação da jurisprudência sobre um dado assunto, ou seja, é quando conclui-se que uma determinada interpretação é a mais adequada para julgar casos semelhantes. 62

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transgenitalização. Michele adquiriu o direito de modificação do nome e sexo em primeira instância mesmo ser ter passado pela intervenção médica de “redesignação sexual”. O entendimento não está pacificado porque não há um consenso entre os atores sociais ligados ao Direito sobre o conceito de sexo. Por mais que as profissionais da Defensoria Pública argumentem – apoiadas em documentos produzidos por outros inúmeros profissionais – que a verdade do sexo se encontra na mente do sujeito e na sua percepção sobre si mesmo, alguns Juízes, Promotores e Desembargadores insistem em localizar a essência do sexo na dimensão fenotípica, ou seja, nos pênis e vaginas das/os assistidas/os, condicionando, assim, o acesso aos direitos à realização da cirurgia de transgenitalização. Já a percepção das funcionárias do NUDIVERSIS acerca da permissão para alteração apenas do nome das/os assistidas/os que não passaram pela intervenção cirúrgica pode ser associada a uma relativa difusão da noção de gênero defendida pela teoria construtivista entre os operadores do Direito. O nome, enquanto um signo generificado – afinal, a grande maioria destes se divide entre “nomes masculinos” e “nomes femininos” –, pode ser modificado na medida em que os sujeitos são socialmente reconhecidos em suas identificações de gênero masculinas ou femininas. Deste modo, ao conceder a alteração do nome, os juízes admitem a existência de uma dimensão social na construção das identidades sexuais ao mesmo tempo em que, através da manutenção do sexo como foi registrado, subordinam o social ao natural, em um ato que assegura não somente a essência do sexo, mas também o sexo como a essência da identidade. A disputa pelo estabelecimento da localização da “verdade do sexo” remete ao contexto descrito por Fausto-Sterling (2002) no capítulo em que a autora trata dos “dualismos em duelo”. Partindo do caso da descoberta do cromossomo Y em uma atleta espanhola, a autora desenvolve uma reflexão acerca dos “testes do sexo” e todos os pares de oposições implicados nestes: masculino-feminino, sexo-gênero, real-construído e natureza-criação. Em linhas gerais, FaustoSterling argumenta as crenças sobre gênero influenciam de forma crucial a produção do conhecimento científico e, consequentemente, o que será compreendido como sexo. De modo semelhante, Nucci (2010) parte do pressuposto que a produção do conhecimento científico não é neutra, como a ciência postula, mas sim permeada por valores e interesses políticos, econômicos e sociais. A autora investiga de que modo os artigos científicos postulam a existência de um “sexo cerebral” que é determinado pela distribuição dos hormônios sexuais no corpo e suas conexões com o cérebro. Nucci argumenta que o desenvolvimento da endocrinologia e dos hormônios “masculinos” e “femininos” alteraram o cenário do debate sobre a diferença sexual. Ou seja, a partir deste movimento, os endocrinologistas se 114

constituíram como mais um grupo de atores no terreno altamente disputado da “verdade do sexo”. Ao postularem a existência de “cérebros masculinos” e “cérebros femininos”, os cientistas articulam uma série de gostos, comportamentos e habilidades à uma base biológica e, portanto, supostamente natural: o cérebro dos indivíduos. No contexto dos processos de requalificação civil de pessoas transexuais, ressalto que a capacidade de determinação do sexo no âmbito jurídico obedece a uma distribuição hierárquica do poder e da autoridade dentre os operadores do Direito e é alvo de constantes disputas. Os casos de Aline e Sônia, citados acima, ilustram bem tais conflitos e as manobras de exercício do poder e contestação da autoridade executadas pelos distintos atores envolvidos nestes processos. Aline saiu do NUDIVERIS com uma petição inicial solicitando a modificação tanto do prenome quanto do sexo, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização. Após a audiência com o juiz, ambos os pedidos foram negados. Os profissionais da Defensoria Pública da Vara de Família na qual seu processo tramitava apresentaram então um recurso a esta decisão. Tal recurso foi acolhido e os Desembargadores julgaram procedente a demanda de Aline, reformando assim a sentença da primeira instância. A situação de Sônia se revela particularmente dramática. A assistida relatou que no decorrer de sua audiência a Promotora recomendou ao juiz que negasse o pedido da autora da ação, caso contrário, o Ministério Público (MP) – representado ali pela Promotora – iria recorrer da decisão, o que levou o Juiz a suspender o processo até a realização da cirurgia de transgenitalização sem oferecer nenhuma sentença. Uma vez que um processo suspenso não admite recurso, o magistrado assegurou que sua autoridade não seria contestada nem por Promotores, caso julgasse o pedido como procedente; nem por Defensores Públicos, caso indeferisse a solicitação. Ao condicionar sua decisão à realização da cirurgia de transgenitalização, este juiz operou uma aparente transferência de poder – ainda que temporária – e colocou Sônia e em uma posição de completa incerteza, refém de outros profissionais, pois nada pode garantir que ela terá acesso a tal intervenção médica um dia.

3.3 Papéis mágicos: sobre documentos e atos de magia Explorei até aqui como os documentos presentes nas pastas das/os assistidas/os – muitos deles adquiridos através das peregrinações burocráticas – são capazes de produzir os sujeitos. Mais do que produzir os sujeitos, estes papéis constroem uma figura de mosaico muito 115

específica, que possui um dado gênero (aquele que é pleiteiado na ação de requalificação civil), uma certa índole (alguém que não possui nenhuma pendência para com a “sociedade”) e uma determinada biografia (uma pessoa que passou e passa por constantes episódios de constrangimento e discriminação, gerando assim um sofrimento incessante). Ou ainda, como sinalizado no capítulo anterior, estes documentos operam um “fazer existir” da pessoa transexual através da produção de uma figura ausente: as travestis. Esta ausência é construída por meio da constante eliminação e apagamento das múltiplas possibilidades de leitura e interpretação das experiências da transexualidade. Este poder de fabricação da realidade que os documentos têm é inegavelmente dependente da crença que estes possuem a capacidade de criar, reforçar, modificar e desfazer mundos sociais. É esta crença que sustenta a promessa de “transformação de homens em mulheres” e vice-versa que perpassa toda a visão da “terapia de mudança de sexo” como a “cura” para a “disforia de gênero”, que tem na cirurgia de transgenitalização e na subsequente alteração do registro civil seu ápice, permitindo que a pessoa reconstrua e recomece sua vida de acordo com sua “verdadeira identidade”. A disseminação e presença desta crença – e também promessa – pode ser percebida a partir dos seguintes fragmentos:

Conforme relato da usuária, a retificação de nome representa o seu renascimento, o começo de uma vida sem preconceito, discriminação e violência no convívio social devido sua aparência feminina e, principalmente, a necessidade de utilizar legalmente o nome masculino. (Relatório de um assistente social do RSH) Durante o primeiro atendimento de Marta, me chamou atenção a narrativa da assistida sobre o relacionamento com sua família. Ela contou que nenhum de seus familiares a chama pelo seu nome social e que ela compreende a atitude deles, uma vez que ela ainda não “trocou seus documentos”. A mesma situação se repete em seu trabalho. De um modo geral, Marta disse que evita se apresentar pelo seu nome social em situações que ela acredita que serão constrangedoras. (Diário de campo, maio de 2014)

Se considerarmos que de fato estes documentos possuem o poder de criar e definir o que é real e o que não é – ou ainda, o que é verdade e o que não é – e que tal poder é oriundo de uma crença socialmente compartilhada, proponho que estes papéis sejam pensados a partir do seu caráter “mágico” e que as ações que os produzem sejam vistas como “atos de magia” (Mauss, 2003). Deste modo, os movimentos executados durante a peregrinação burocrática – ou seja, as consultas com psicólogos, psiquiatras e endocrinologistas, as entrevistas com assistentes e as solicitações aos funcionários dos ORD – constituem atos mágicos rituais que, ao serem 116

executados por uma autoridade, constroem uma dada realidade. De acordo com Bourdieu (1996), é a partir da linguagem autorizada que os atos de instituição – isto é, de nomeação, categorização, etc. – se configuram como uma espécie de magia performativa do ritual. Em outras palavras, tais atos representam o poder das palavras de não apenas descrever algo existente, mas instituir realidades a partir do discurso, corroborando para a hipótese ora apresentada de enxergar estes papéis como peças dotadas de poderes mágicos. A ideia de encarar os documentos como artigos mágicos não difere radicalmente da noção de objetos performativos construída anteriormente a partir de apropriações particulares da teoria da performatividade apresentada por Judith Butler, tendo em vista que ambas pretendem dar conta da fabricação de realidades executada por meio dos papéis. Contudo, é impossível falar de magia e atos mágicos sem retornar às proposições clássicas de Marcel Mauss (2003), discutidas em seu “esboço de um teoria geral da magia”. As ideias do autor são fundamentais para a compreensão do contexto investigado, especialmente se levarmos em consideração que o que sustenta o poder dos artigos mágicos é a crença na sua capacidade de fazer efetivamente aquilo que este se propõe e a materialidade adquirida após os atos mágicos, representada, no caso, pelos documentos. Para Mauss, três são os elementos constituintes da magia: 1) os agentes, aqueles que executam os atos mágicos; 2) os atos, ou ritos mágicos que funcionam como um tipo de linguagem através da qual as ideias são traduzidas; e 3) as representações, o sentido adquirido pelo rito mágico. A partir destes elementos, a magia é encarada então como um fenômeno indiscutivelmente social, pois depende fundamentalmente, por um lado da crença de seus praticantes na sua eficácia e veracidade e, por outro, da materialidade dos atos mágicos. Outra observação do autor que precisamos levar em consideração no contexto desta pesquisa é sobre a aproximação entre magia e ciência. Mauss demonstra em diversos pontos do seu texto o evidente parentesco entre a magia e a ciência, uma vez que o êxito desta última também depende da crença dos sujeitos no seu funcionamento, desfazendo assim uma visão que opõe as duas coisas. A partir destas colocações, sugiro que pensemos nos diversos profissionais envolvidos nos processos de requalificação civil, ou seja, psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas e assistentes sociais – todos dotados de um conhecimento científico que autoriza o exercício do poder – de modo semelhante ao utilizado por Mauss para descrever os mágicos. Ambos, mágicos e cientistas (ou profissionais), produzem algo – ou seja, dão materialidade a alguma coisa – que não existia antes através de algum tipo de encantamento ou ato mágico.

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Apesar de não ser o objeto privilegiado da investigação aqui empreendida, a produção mágica dos sujeitos por essa série de mágicos-profissionais pode ser condensada na sentença proferida por um Juiz após o julgamento do processo de requalificação civil, uma vez que este menciona os documentos emitidos por todos as outras categorias envolvidas na questão. Quando o pedido é julgado procedente, tal sentença é encarada como um marco do surgimento de uma nova pessoa, como mencionado por uma assistida do NUDIVERSIS que retornou ao núcleo para agradecer as profissionais após ter seu registro civil alterado. Trago agora um trecho de uma sentença que exemplifica tal “ato mágico”:

Vistos, etc. [nome social], cujo nome de registro é [xxx], requereu a Retificação do seu Registro Civil, para redesignação de prenome, com as demais anotações sem qualquer referência, no assentamento do seu Registro de Nascimento. [...]. A inicial veio com os documentos de fls. 44/58 e 63, dentre eles a quesitação respondida pela Coordenadoria Geral do Serviço Social e Psicologia-CGESSP, às fls. 52/53, que conclui, favoravelmente, a mudança de nome do requerente. A parte assistida pelo NUDIVERSIS, foi lhe deferida a gratuidade de Justiça ás fls. 60. O Ministério Público à fls. 83, não se opõe a mudança do nome do requerente. É o relatório. Decido. Cuida-se de requerimento de retificação de registro civil de nascimento, para substituir o nome masculino que ali conste [nome social]. O pedido foi devidamente instruído com documentos médicos que atestam a condição de transexual do requerente, o qual, sendo anatomicamente do sexo masculino, apresenta personalidade inversa, ostentando, desde a infância, comportamento feminino, encontrando-se feliz com a nova condição física, mas vive recolhido sob o temor de vir a ter que identificar-se com seus documentos masculinos, sofrendo grande constrangimento. Cuidando-se de procedimento de jurisdição voluntária, não houve impugnação ao pedido e o Ministério Público opinou favoravelmente. [...] Isto posto, defiro o requerimento, para determinar a retificação do assento de nascimento da requerente, com substituição do prenome [xxx] para constar [xxx], permanecendo as demais anotações. (Sentença de um processo de alteração de prenome no registro civil)

Em suma, os documentos podem então ser compreendidos como artigos mágicos na medida em que possuem o poder de, por meio de uma ação – geralmente uma assinatura e uma carimbo –, criar realidades e materializar sujeitos que não existiam previamente. Seguindo de perto as ideias de Mauss, identifico no processo de fabricação das provas os mesmos elementos que compõem a magia: os agentes (psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, funcionários de instituições estatais, etc.), através de atos mágicos (consultas, entrevistas, verificação de arquivos) apoiados em certas representações (autoridade profissional, definição médica da transexualidade, normativas legais), produzem papéis com poderes para definir e certificar o gênero, as condições psíquicas, a idoneidade, dentre outros aspectos da vida dos indivíduos.

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3.4 Para além do papel: inteligibilidade de experiências e construção de subjetividades Além do poder de criação de mundos sociais e “realidades compartilhadas”, os documentos analisados produzem também – através da categorização – a inteligibilidade das experiências transexuais e oferecem modos de construção de uma espécie de “realidade interna” dos sujeitos. Assim, esta seção busca discutir de que modo as práticas e as discursividades tanto médica quanto jurídica produzem não somente o diagnóstico de uma patologia, o “transexualismo” ou “disforia de gênero”, mas também uma categoria que conforma subjetividades e cria identidades: a pessoa transexual. Em outras palavras, a ideia é refletir sobre as disputas de poder na elaboração da verdade do sujeito e, consequentemente, da “verdade sobre a transexualidade”. Inspiro-me aqui nas ideias de Foucault (1988 e 1997) sobre o poder-saber e as práticas disciplinares. Segundo o autor, a constituição de um saber ou de um determinado campo do conhecimento estão inegavelmente relacionadas a uma série de relações de poder. Já as práticas disciplinares conformam um exercício minucioso, capilar e constante do poder através do qual os sujeitos são constituídos. Outra noção fundamental para a construção do raciocínio aqui apresentado é a de dispositivo da transexualidade (Bento, 2006). Berenice Bento retoma a ideia foucaultiana de dispositivo da sexualidade e afirma que existe também um dispositivo específico que regula as vivências de pessoas transexuais. Assim como o descrito por Foucault, o dispositivo da transexualidade encerra uma série de práticas discursivas que se apoiam em certos saberes para estabelecer e produzir “verdades” sobre a transexualidade e sobre os sujeitos transexuais. Antes de mais nada, é preciso deixar claro que a/o “verdadeira/o transexual” é aquela/e que se encaixa nos critérios diagnósticos da disforia de gênero descritos na 5ª edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) da American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria). O DSM-V, como é mais conhecido, foi lançado em meados de 2013 e apresentou algumas mudanças significativas no capítulo referente à transexualidade. Dentre estas, destaco duas: 1) os termos “transexualismo” e “transtorno da identidade de gênero” foram substituídos pela expressão “disforia de gênero”; 2) foram atribuídos critérios diagnósticos diferenciais para adultos/adolescentes e crianças, como podemos ver no seguinte trecho:

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Disforia de gênero em crianças A. A incongruência entre o gênero experienciado/expressado e o gênero atribuído, com duração mínima de 6 meses, manifestada por pelo menos seis dos seguintes sintomas (um dos quais deve ser considerado o critério A1): 1. 2.

3. 4. 5. 6.

7. 8.

B.

O persistente desejo por ser do outro gênero ou a insistência de que alguém é do outro gênero (ou algum gênero alternativo diferente do atribuído). Nos meninos (gênero atribuído), a significativa preferência por vestir-se com roupas de outro gênero ou simular o vestuário feminino; nas meninas (gênero atribuído), a persistente preferência por vestir apenas roupas tipicamente masculinas e forte resistência em vestir roupas tipicamente femininas. A persistente preferência por papéis do outro gênero em brincadeiras de faz-de-conta ou de fantasia. A persistente preferência por brinquedos, jogos e atividades estereotipicamente utilizados ou exercidas pelo outro gênero. A persistente preferência por companheiros de brincadeira do outro gênero. Nos meninos (gênero atribuído), a persistente rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente masculinas e a evasão de esportes de contato; nas meninas (gênero atribuído), a persistente rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininas. A forte antipatia à sua anatomia sexual. O persistente desejo por características sexuais primárias e/ou secundárias que combinem com o gênero experienciado. A condição está associada ao sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo em campos social, escolar ou outras áreas relevantes para seu funcionamento.

[...] Disforia de gênero em adolescentes ou adultos A. A incongruência entre o gênero experienciado/expressado e o gênero atribuído, com duração mínima de 6 seis meses, manifestada por pelo menos dois dos seguintes sintomas: 1.

2.

3. 4.

A incongruência entre o gênero experienciado/expressado e as características sexuais primárias e/ou secundárias (ou no caso de jovens adolescentes, as antecipadas características sexuais secundárias). O persistente desejo de perder as características sexuais primárias e/ou secundárias por causa de sua incongruência com o gênero experienciado/expressado (ou no caso de jovens adolescentes, o desejo de prevenir o desenvolvimento de antecipadas características sexuais secundárias). O persistente desejo por adquirir as características sexuais primárias e/ou secundárias do outro gênero. O persistente desejo por ser de outro gênero (ou algum gênero alternativo diferente do atribuído).

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5. 6.

O persistente desejo de ser tratado como alguém de outro gênero (ou de algum gênero alternativo diferente do atribuído). A persistente convicção de que possui os sentimentos e reações típicas de outro gênero (ou de algum gênero alternativo diferente do atribuído).

B. A condição está associada ao sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo em campos social, ocupacional ou outras áreas relevantes para seu funcionamento. (APA, 2013, p. 452-453, tradução livre).

É preciso ter em mente que os critérios diagnósticos daquilo que é considerado um transtorno mental se diferenciam radicalmente de outros tipos de doenças. Enquanto o aumento da temperatura corporal e a indisposição física podem indicar uma gripe, a “disforia de gênero” é diagnosticada através da patologização de gostos, desejos, experiências e comportamentos. Esta espécie de “patologização da vida” fica ainda mais clara com a inclusão de um tópico específico para a identificação da transexualidade em crianças, de modo que condutas como preferir brinquedos, jogos e atividades que são consideradas como parte do estereótipo do sexo oposto, ou preferir brincar com colegas do sexo oposto passaram a figurar como indicativos de uma ruptura com a identidade de gênero atribuída. Neste sentido, penso que mais que descrever certos critérios diagnósticos, as formas pelas quais a “disforia de gênero” é identificada prescrevem também modos específicos de subjetivação e de compreensão das experiências vivenciadas pelas pessoas transexuais. Através destas prescrições que as potenciais ambiguidades são eliminadas e as possibilidades de significação, inteligibilidade e interpretação dos desejos e comportamentos dos sujeitos são restringidas, reforçando assim a construção de uma imagem única e coerente para a pessoa transexual. Para desenvolver esta ideia, relembro duas das convenções narrativas discutidas no capítulo anterior: a distinção entre transexualidade, travestilidade e homossexualidade; e a “tomada de consciência” promovida pelo contato com o discurso médico sobre transexualidade. Não raras foram as narrativas das/os assistidas/os que produziam um sentimento difuso de desconforto com aquilo que era socialmente esperado para alguém de determinado sexo desde a infância. Sentimento este que só adquiria inteligibilidade após o contato com a discurso médico-psiquiátrico da “disforia de gênero” e da “terapia de mudança de sexo”. Além de promover uma interpretação plausível para as experiências de “inadequação”, o discurso médico funciona como âncora para a construção de uma identidade transexual minimamente estabilizada, a qual é fabricada através do contraste e diferença entre as pessoas transexuais e as travestis e homossexuais. Estas dois desdobramentos do contato com profissionais da 121

Medicina e da Psiquiatria podem ser vistos através dos depoimentos dados por duas assistidas do NUDIVERSIS quando na ocasião da entrevista realizada no primeiro atendimento:

A estagiária perguntou quando Gabriela começou a se perceber como alguém do sexo feminino. A assistida respondeu que tinha por volta de doze ou treze anos de idade, quando começou a sentir atração por homens. Ela comentou que sempre foi chamada de “viado” pelas pessoas do bairro onde ela cresceu, mas que nunca se sentiu dessa forma. De acordo com ela, essa era a única forma de dar sentido às suas experiências. Gabriela afirmou que não se via como gay ou travesti, mas que não sabia o que era até ver uma reportagem sobre transexualidade na televisão. Foi então que ela procurou o IEDE e “descobriu” que era transexual e passou a entender a “vontade de ser mulher” que ela sentia desde criança. (Diário de campo, março de 2014). Yasmim contou que sempre se sentiu presa e quando jovem eram muito tímida e retraída. Ela narrou que chegou na Europa aos 23 anos de idade e que trabalhou em diversas casas que ofereciam shows de travestis. Era sob o signo da travestilidade que Yasmim se reconhecia até descobrir a possibilidade de “mudança de sexo” através da cirurgia transgenitalizadora e assim passou a se considerar como transexual. (Diário de campo, março de 2014)

Dito de outro modo, ao descrever determinadas atitudes e percepções como sinais da disforia de gênero, o discurso médico permite que os sujeitos operem determinadas construções de si, acarretando em uma estabilização – ao menos temporária – da “identidade transexual”; e possibilita a ressignificação de uma série de experiências, produzindo assim uma coerência biográfica. Estes foram os casos de Gabriela, Yasmim, Elisa, Pedro, dentre outras/os assistidas/os do NUDIVERSIS. Situações semelhantes foram descritas por outras pesquisadoras que se dedicaram ao tema da transexualidade, como por exemplo Bento (2006) e Zambrano (2005). Assim, o discurso médico-científico adquire um papel fundamental nas negociações dos sentidos atribuídos às experiências de pessoas transexuais. De acordo com Bento (2004), no caso da transexualidade, os médicos não tratam terapeuticamente nem o corpo e nem a mente, mas sim realizam uma função moral de manutenção do padrão de normalidade. Neste sentido, acredito que ao elencar determinadas características como critérios diagnósticos da disforia de gênero em crianças, os médicos não identificam uma espécie de transtorno mental, mas sim asseguram um “correto” desenvolvimento do gênero ao produzir meninos-masculinos e meninas-femininas, ditando como, com o que e com quem as crianças devem conviver e brincar. Podemos trazer novamente a ideia de magia performativa do ritual de Bourdieu (1996) para compreender o diagnóstico da disforia de gênero e a construção de subjetividades de 122

pessoas transexuais. De acordo com o autor, a função social de um ritual de instituição é demarcar uma diferença, transformando limites arbitrários em algo legítimo e natural (p. 98). A instituição de uma determinada identidade contém um indicativo que é também um imperativo; em outras palavras, ao indicar quem se é, indica-se também quem se deve ser. Assim, ao escrever, assinar e carimbar uma folha de papel, um médico exerce seu poder mágico de não apenas conferir uma identidade a uma pessoa, mas também cria uma série de expectativas em relação aos modos como esta pessoa deverá se enxergar, se identificar e se comportar. Saliento também que os critérios diagnósticos descritos são parte constituinte do dispositivo da transexualidade. De acordo com Bento (2004), este dispositivo exemplifica o exercício do poder de autoridades profissionais. Esta autoridade é obtida através da localização do conflito no indivíduo, e não nas normas de gênero, gerando assim uma despolitização. Nas palavras da autora, “a despolitização do conflito gera o apagamento, por meio da naturalização das condutas, das relações de poder que se engendram para naturalizar as verdades que estruturam o funcionamento do dispositivo” (Bento, 2004, p. 155). Por fim, chamo atenção para o fato de que é preciso estar atento para os limites do discurso médico na produção das subjetividades. Por um lado, as investigações empreendidas por Bento (2006) e Teixeira (2013) apontam como este discurso é rapidamente aprendido e manejado pelas pessoas transexuais. Ambas as autoras descrevem uma série de comportamentos e estratégias acionadas pelas/os “candidatas/os”63 durante as primeiras consultas de inscrição no Projeto Transexualismo e no Programa de Transgenitalização, respectivamente, para que sejam classificadas/os como “verdadeiras/os transexuais” e assim garantirem seu ingresso nas instituições hospitalares, o que, em última instância, é visto como uma “solução para os problemas” e uma segurança – ainda que mínima – de que seus direitos serão respeitados. Por outro, Almeida e Murta (2013) buscam matizar as afirmações de Berenice Bento ao postularem que as pessoas transexuais não necessariamente se opõem às normas de gênero, como defendido pelo movimento social, mas sim contestam apenas a designação sexual que lhes foram atribuídas. No caso das/os assistidas/os do NUDIVERSIS, estes limites não foram apreendidos durante o trabalho de campo. Por um lado, nunca foi meu interesse revelar “a verdade” sobre as pessoas por dois motivos: em primeiro lugar, a discussão apresentada até aqui buscou

“Candidata/o” é o termo que designa as pessoas inscritas nos programas transexualizadores que demandam à cirurgia de transgenitalização e outras intervenções corporais. 63

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problematizar como é constituída “a verdade”, de modo que localizo minha voz como somente mais uma nesta disputa; em segundo, tomando as críticas de Boltanski (1990) sobre a sociologia clássica e a então necessidade de uma sociologia da crítica, acredito que este não é e não deve ser o objetivo de investigações antropológicas. Por outro, como já discutido no primeiro capítulo, a impossibilidade de realizar uma pesquisa dos “dois lados do balcão” e a consequente escolha pelo “lado de dentro” – isto é, tomar como principais interlocutoras as profissionais que atuam no núcleo – acarretou na circunscrição do meu contato com as pessoas transexuais ao espaço da Defensoria Pública, local onde o caráter estratégico do uso do discurso jamais seria revelado.

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Capítulo 4 Em Defesa da “Dignidade da Pessoa Humana”: política, emoções e moralidades nas petições iniciais de requalificação civil

O último capítulo64 desta dissertação traz uma análise das petições iniciais de requalificação civil elaboradas pelas profissionais do NUDIVERSIS, que são apresentadas pelas pessoas transexuais ao poder Judiciário. Estas peças vestibulares65 são os “produtos” cuja fabricação é a principal responsabilidade das operadoras do Direito que atuam em um núcleo de primeiro atendimento da Defensoria Pública. Sua construção se dá a partir de um modelo previamente escrito, cujas lacunas são preenchidas com determinadas informações pessoais e episódios pontuais que marcaram a trajetória da/o assistida/o. Como discutido ao longo dos capítulos anteriores, a produção da petição inicial é a última etapa – ao menos no plano oficial – dos procedimentos de assistência operados pelas funcionárias do núcleo e só ocorre após a conclusão da peregrinação burocrática e da reunião de todos os documentos comprobatórios considerados necessários para o julgamento do mérito da alteração do nome e sexo no registro civil. O modelo de petição inicial possui uma média de 36 páginas de texto corrido, o que não inclui todos os documentos que são anexados: cópias de documentos de identificação, Estudo Social, fotografias das/os assistidas/os e laudos psiquiátrico, psicológico, endocrinológico e social. Tal modelo é composto por, ao todo, doze seções: 1) Da gratuidade de justiça; 2) Dos fundamentos fáticos; 3) Considerações sobre a identidade sexual; 4) Considerações sobre o transexualismo; 5) Da possibilidade jurídica dos pedidos; 6) Dos direitos inerentes à personalidade; 7) Do procedimento de jurisdição voluntária; 8) Do panorama normativo; 9) Do panorama doutrinário favorável; 10) Do panorama jurisprudencial; 11) Incursão no Direito Comparado; e 12) Dos pedidos. Não vou me estender sobre o conteúdo destas seções, uma vez que grande parte dos títulos indicam de maneira explícita sobre o que cada uma delas trata. Meu objetivo neste capítulo é abordar os recursos argumentativos que são acionados pelas operadoras do Direito que atuam no NUDIVERSIS para que os pedidos de requalificação civil de pessoas transexuais sejam julgados procedentes. Neste sentido, não há como não pensar 64

Algumas das questões discutidas neste capítulo foram esboçadas em um trabalho anterior (Freire, 2014), apresentado no GT “Emoções, Política e Trabalho” da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. Agradeço aos participantes pelos comentários e sugestões feitos na ocasião do evento. 65

“Peça Vestibular”, “Exordial”, dentre outros termos, são todos sinônimos de Petição Inicial.

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no modo pelo qual todos os papéis adquiridos durante o período em que as/os assistidas/os são acompanhadas/os são cuidadosamente orquestrados e combinados – ou ainda, como a imagem do mosaico é finalmente formada – em um único documento: a petição inicial, a qual produz uma espécie de “narrativa concisa” cujo propósito é efetivar a demanda pela alteração do registro civil. Em linhas gerais, a argumentação contida nas petições iniciais segue uma linha bastante clara: inicialmente, destaca-se a condição de vulnerabilidade das pessoas transexuais, as quais são descritas como vítimas de experiências constantes de discriminação e violência, o que gera um incessante sofrimento; o sofrimento dos sujeitos é amenizado pela efetivação daquilo que é descrito como “seus direitos”, os quais, supostamente, garantem o pleno exercício da cidadania, cuja obrigação de promover é de responsabilidade do Estado e, consequentemente, dos operadores do Direito. A leitura destas peças processuais revela que diversas estratégias são postas em prática pelas operadoras do Direito na tentativa de fazer com que a demanda pela alteração dos documentos de identificação das pessoas transexuais seja atendida. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana – previsto expressamente no art. 1º, III da Constituição Federal como “fundamento” da República Federativa do Brasil – funciona como uma espécie de fio condutor da argumentação desenvolvida pelas funcionárias da Defensoria Pública e se desdobra em uma série de considerações de cunho moral e apelos emocionais que extrapolam as justificativas baseadas no conjunto de códigos, doutrinas, documentos internacionais de direitos etc. que compreendem o panorama normativo positivado do Direito e suas interpretações consagradas. Ao apelar para certa obrigação moral dos operadores do Direito em promover o “bem estar” de todos os cidadãos, em especial aqueles que são considerados como mais “frágeis”, parte da retórica utilizada nestes documentos tenta produzir no indivíduo responsável pelo julgamento uma empatia pela/o autora/or da ação. Por outro lado, há, ao longo do texto, uma série de denúncias de “contaminação moral” por parte dos Juízes e Promotores que já se posicionaram contrários aos pedidos de alteração do registro civil de pessoas transexuais. Parte da argumentação apresentada pelas funcionárias do NUDIVERSIS salienta que não existe norma proibitiva que fundamente tais negativas, sendo estas influenciadas por valores morais, os quais, obedecendo aos pressupostos de um Direito imparcial e objetivo, não deveriam estar presentes em decisões judiciais. Entretanto, ao mesmo tempo em que buscam afastar determinadas concepções morais dos processos de decisão, o texto evoca, em diversos pontos e de diferentes formas, o dever moral de promover a dignidade das pessoas transexuais.

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Tomo como premissa algumas das proposições discutidas por Butler (2004b e 2009) sobre a percepção de uma condição de vulnerabilidade compartilhada como elemento fundamental para o reconhecimento de uma humanidade comum. A autora apresenta uma importante diferença entre o reconhecimento e a apreensão da vida, sendo a última uma forma de reconhecer sem pleno reconhecimento. A vida que é somente apreendida, ou seja, que não é plenamente reconhecida, é uma vida precária, sem importância, cuja morte não será pranteada – e aqui, entendo a concepção de morte como mais que o falecimento do corpo para abarcar a espécie de “morte social” que atinge as pessoas transexuais que não têm direito ao reconhecimento de sua identidade. A pergunta feita por Butler (2004b) sobre quais seriam as vidas merecedoras de luto se assemelha, em muitos pontos, à feita por Fonseca e Cardarello (1999) sobre quem seriam os “mais e os menos humanos”. De certo modo, os dois textos indagam sobre a produção e o reconhecimento de determinadas pessoas e/ou grupos como “sujeitos de direitos”. Articulo estas ideias de Butler aos postulados apresentados por Fassin (2012) sobre ética e moral humanitárias e por Sarti (2011) sobre a figura política da vítima na luta por direitos na contemporaneidade para dar conta da política da compaixão que é acionada como estratégia na efetivação do direito à requalificação civil de pessoas transexuais. A exposição da precariedade da vida revela que tais vidas encontram-se “nas mãos dos outros”, isto é, evidencia como determinadas pessoas desconhecidas possuem poder de vida e morte sobre outras (Butler, 2009). No atual cenário ético humanitário descrito por Fassin (2012), tal exibição do sofrimento não pode ser ignorada por aqueles que veem, escutam ou são expostos aos relatos de dor de alguma forma, demandando assim uma obrigação moral de engajamento. O engajamento só ocorre quando a empatia – que é um sentimento de reconhecimento da igualdade entre os sujeitos em algum plano – se transfigura em compaixão – um sentimento que demarca a desigualdade entre aqueles que são compassivos porque podem fazer algo para ajudar e aqueles que despertam a compaixão porque precisam de ajuda. Sarti (2011), por sua vez, destaca como, contemporaneamente, os embates por aquisição de direitos de determinados indivíduos e/ou grupos encontram-se ancorados no reconhecimento das experiências de vitimização que acometem os sujeitos. O reconhecimento das vítimas implica o direito à reparação, a qual é vista, principalmente, como uma responsabilidade do Estado e seus agentes. Em resumo, busco discutir como estas petições iniciais constroem evidências dessa condição de vulnerabilidade – que é apresentada como inerente às experiências que envolvem a transexualidade – para que as pessoas transexuais tenham sua humanidade reconhecida. Uma vez que tais sujeitos são reconhecidos como humanos, a obrigação dos operadores do Direito 127

de lidar com esta vulnerabilidade a partir de um dever moral de redução desta condição é traduzido na defesa do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

4.1 Vítimas da natureza, vítimas da sociedade: a produção da vulnerabilidade das pessoas transexuais As petições iniciais – apoiadas em outros documentos produzidos ao longo do processo de assistência como o relatório de primeiro atendimento, os laudos de psicólogos, psiquiatras e de assistentes sociais – descrevem as pessoas transexuais como seres duplamente vitimados: por um lado, tais indivíduos são vistos como uma espécie de “vítimas da natureza”, pois são acometidos por uma patologia psíquica, o “transexualismo” ou a “disforia de gênero”; por outro, são encarados como “vítimas da sociedade”, uma vez que encontram inúmeras dificuldades em sua vida cotidiana, devido aos constantes episódios de discriminação e violência vivenciados por conta de um preconceito largamente difundido.

Considerando que as pessoas que compõem a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) encontram especiais dificuldades para exercitar com plenitude ante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, enquadram-se no conceito de pessoas em situação de vulnerabilidade da regra n. 3 do documento internacional conhecido como “100 Regras de Brasília para o acesso a justiça de pessoas em condição de vulnerabilidade”, estando a demandar a atuação do Poder Judiciário e das demais instituições e órgãos integrantes do sistema de Justiça, com o fim de concretizar a efetividade do direito à identidade de gênero, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

A transcrição acima é um dos parágrafos que abrem o atual modelo de petição inicial de requalificação civil do NUDIVERSIS. O texto – que também se encontra em um documento intitulado “Justificativa para Autuação de Procedimento” – demonstra que o primeiro passo para a construção das pessoas transexuais como “sujeitos de direitos” é a sua produção enquanto indivíduos em situação de vulnerabilidade. Além disso, são expostos os motivos que fundamentam a atuação do núcleo na demanda destes indivíduos, justificando, assim, a necessidade de existência do mesmo. A produção espelhada – ou constituição mútua – tanto dos “sujeitos vitimados” quanto das pessoas responsáveis por mitigar seus sofrimentos relaciona-se com a dimensão demiúrgica do Direito apontada por Vianna (2012), conforme discutido no primeiro capítulo deste trabalho. 128

“Considerações sobre o transexualismo”: as pessoas transexuais como vítimas da natureza

Uma das seções que compõem as petições iniciais de requalificação civil de pessoas transexuais é chamada de “Considerações sobre o transexualismo”. Como o próprio título deixa explícito ao mencionar a palavra “transexualismo” – termo que constava até a edição anterior do DSM e cujo uso ainda é corrente dentre determinados grupos –, tais considerações se baseiam em apropriações das teorias e discursos produzidos por autoridades da Medicina, principalmente da Psiquiatria. Assim, as/os assistidas/os que pleiteiam a alteração do registro civil são incorporadas/os nas instituições que atuam junto ao poder Judiciário como portadoras de uma determinada patologia: o “transexualismo”, ou, contemporaneamente, a “disforia de gênero”.

O transexualismo é um fenômeno da sexualidade. Caracteriza-se por uma inversão da identidade psicossocial, que conduz a uma neurose relacional obsessivo-compulsiva, que se manifesta pelo desejo de integral reversão sexual. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

Este pequeno trecho elucida as formas pelas quais tais teorias são apreendidas. Ao dizer que “o transexualismo é um fenômeno da sexualidade”, extingue-se completamente qualquer possibilidade de compreensão da transexualidade como uma experiência que diz respeito somente às percepções dos sujeitos sobre seus próprios corpos e identificações de gênero. Além disso, o termo “sexualidade” aparece em um registro ambíguo, não sendo possível estabelecer se este faz referência ao exercício erótico de atos e práticas sexuais ou se fala sobre uma determinada concepção ou modo de perceber o “sexo”66.

Seus órgãos sexuais e nome, destoantes de seu psiquismo, são verdadeira fonte de aflição, desespero, repugnância e graves distúrbios psicológicos, que não raras vezes conduzem a tentativas de suicídio e a mutilação da genitália. (Modelo de petição inicial, grifos no original) O transexual, recusando seu sexo fisiológico e admitindo como seu verdadeiro sexo unicamente o psicológico, imagina-se como se realmente tivesse nascido nesse sexo, e,

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Esta ambiguidade se torna mais evidente quando observamos as movimentações de atores sociais envolvidos na militância pelos direitos de pessoas transexuais no sentido de traçar linhas e delimitar o espaço das pessoas “T” no interior das políticas voltadas para a efetivação dos “direitos LGBT”. De acordo com estes atores, as demandas de travestis e pessoas transexuais são distintas das demandas de lésbicas, gays e bissexuais na medida em que as primeiras têm como fonte a vivência de determinadas “identidades de gênero”, ao passo que as últimas se fundamentam no exercício da “orientação sexual”.

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contrariamente ao que em geral se supõe, o transexual não é um indivíduo grotesco, mas, na maioria das vezes, bastante tímido e reservado. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

Por se tratar de um “distúrbio psicológico”, a transexualidade figura, então, como fonte de um sofrimento do qual o sujeito não pode fugir e, principalmente, não pode ser considerado culpado. Em um movimento parecido com o descrito por Zambrano (2005), a apropriação do discurso médico nestas petições iniciais busca afastar das pessoas transexuais as acusações de desvio moral que geralmente recaem sobre as travestis. Além disso, ao se revestir de um caráter científico, a definição médica do “transexualismo” funciona como um dos elementos que são elencados para que a demanda por requalificação civil destes sujeitos seja vista como justa e legítima. De acordo com Ventura (2010), o diagnóstico do “transexualismo” é do tipo diferencial – ou seja, deve distinguir transexuais, travestis e homossexuais –, uma vez que somente a/o “verdadeira/o transexual” pode ter acesso não só às mudanças corporais, mas também ao direito de requalificação civil. Além disso, uma das prerrogativas de tal diagnóstico é constatar a “condição de intenso sofrimento de seu portador” (Ventura, 2010, p. 81). Logo, tal discurso reforça um dos enunciados relacionados à transexualidade que é largamente reproduzido por atores de vários campos: a de que este fenômeno representa um tipo de “erro da natureza” do qual os sujeitos transexuais são vítimas, isto é, a ideia de uma pessoa que nasceu “no corpo errado”. Como aponta Almeida e Murta (2013, p. 386), esta noção de “corpo errado” é uma das formas de representação da transexualidade mais comum entre as pessoas transexuais. Conforme explorado no final do capítulo anterior, estas teorias não circulam somente entre representantes de distintos campos do saber, mas influenciam de modo significativo a construção subjetiva dos indivíduos transexuais. Neste sentido, a ideia de “vítima da natureza” também é reproduzida nos e a partir dos discursos das/os próprias/os assistidas/os do NUDIVERSIS. Durante as entrevistas realizadas no primeiro atendimento, não raras foram as vezes em que frases como “eu não pedi para nascer assim” figuraram nas falas dos sujeitos.

“Dos fundamentos fáticos”: as pessoas transexuais como vítimas da sociedade

A produção da condição de vulnerabilidade das pessoas transexuais é feita através de dois caminhos distintos. Se por um lado as pessoas transexuais são consideradas como “vítimas da natureza” por serem “portadoras de disforia de gênero”, por outro, elas também são vistas 130

como “vítimas da sociedade”, uma vez que são alvos de constantes discriminações em sua vida cotidiana. A seção “Dos Fundamentos Fáticos” das petições iniciais é, basicamente, a única lacuna deste modelo de ação judicial, tendo em vista que, como o título sugere, esta tem como propósito a apresentação dos “fatos do caso”. Tais lacunas devem ser preenchidas com episódios concretos das trajetórias dos indivíduos. Em outras palavras, é neste espaço que as histórias de vida dos/as assistidos/as da Defensoria Pública são contadas. Entretanto, o que são considerados como “fatos do caso” relevantes para a legitimação do direito à modificação do registro civil são as situações de violência vividas pelos sujeitos, o que, em última instância, serve para reforçar a ideia de que as pessoas transexuais são “vítimas da sociedade”.

Tal nome guarda absoluta desconformidade com a aparência [feminina] que [a Autora] apresenta, sendo ela compelida a enfrentar olhares curiosos, perguntas invasivas, ofensas preconceituosas e toda a espécie de situações vexatórias, como dificuldades de identificação. (Modelo de petição inicial, grifos no original) Cabe ressaltar que [o Autor] sofreu e sofre diversas discriminações e dificuldades nos locais públicos que frequenta como bancos, casas de show, cinemas, repartições públicas, salas de espera de hospitais e consultórios médicos e demais locais congêneres, se vendo constantemente exposto e constrangido, em razão do prenome [feminino] que carrega em seus documentos. Além disso, encontra dificuldades para ingressar no mercado de trabalho, sendo que, por vezes, é compelido a usar seu nome de registro no ambiente interno às empresas onde trabalha, assim como frequentar o banheiro [feminino]. Em outras oportunidades, não alcança a efetivação no emprego pela dicotomia entre sua aparência e seus documentos. (Modelo de petição inicial) Da análise dos documentos acostados pela [Autora], é possível vislumbrar uma série de declarações que denotam sua identificação duradoura e constante com o gênero [feminino], bem como a longa luta que vem sendo travada pela [Autora] para ser aceita na condição de [mulher], não só junto aos institutos médicos, mas sobretudo a partir do enfrentamento do preconceito fortíssimo que as transexuais enfrentam – a chamada transfobia – a qual lamentavelmente sabemos ser extremamente comum no cotidiano. (Modelo de petição inicial)

As narrativas que são apresentadas como “fundamentos fáticos” da ação de requalificação civil são oriundas, principalmente, das informações que são registradas durante a entrevista realizada no primeiro atendimento e posteriormente transformadas no Relatório de Primeiro Atendimento. Como sinalizado no segundo capítulo deste trabalho, a transposição do que é dito para as profissionais do núcleo para um relato contido numa peça processual – passando pelas anotações da estagiária e a posterior elaboração do Relatório de Primeiro 131

Atendimento – implica um processo contínuo de contração das narrativas das/os assistidas/os. A seção do modelo de petição inicial ora analisada pode ser encarada como a etapa final deste processo de redução, pois, mesmo que existam lacunas, estas são poucas e não permitem a narrativa de nenhuma história que possa vir a questionar a imagem de “vítima” da/o autora/or da ação. Dito de outro modo, a apresentação dos “fatos do caso” representa a última fase da montagem do mosaico, na qual todas as ambiguidades da imagem já foram eliminadas, assim como as possibilidades de interpretação restringidas. As informações contidas na seção dos “fundamentos fáticos” são apoiadas e comprovadas por uma série de documentos que se encontram nos anexos das petições iniciais. Dentre estes, destaco o Estudo Social feito por funcionários ligados à Defensoria Pública. Conforme abordado no capítulo anterior, os relatórios tanto dos psicólogos quanto dos assistentes sociais têm por objetivo confirmar não só as trajetórias dos indivíduos, mas também a condição de incessante sofrimento a qual as pessoas transexuais estão sujeitas por conta das experiências de discriminação vivenciadas. A construção da vitimização pela sociedade através da exposição dos “fatos do caso” possui uma inegável relação com o tempo. Ao privilegiar – na verdade, quase limitar – os episódios de sofrimento na fabricação das biografias dos sujeitos, tais narrativas fazem com que estas experiências não se limitem ao tempo presente, mas que também marcaram o passado e atravessarão o futuro caso “nenhuma atitude seja tomada”. Deste modo, faz sentido pensar estes modos de narrar operam um certo congelamento dos sujeitos, fabricando figuras que estão presas em cenários de dor e angústia. Por fim, ressalto, mais uma vez, a centralidade que as experiências de sofrimento possuem não apenas na construção da imagem das pessoas transexuais, mas também como elemento que legitima o direito à requalificação civil destes sujeitos. Tal centralidade pôde ser percebida por meio do acompanhamento das rotinas de trabalho das profissionais do NUDIVERSIS em seus atendimentos e da leitura de todos os documentos que constam nas pastas e petições iniciais das/os assistidas/os. Os episódios de discriminação, mesmo quando não diretamente relatados, têm sua existência presumida, uma vez que muitos dos parágrafos do modelo de petição inicial que permanecem inalterados salientam este aspecto da vida cotidiana dos sujeitos. Contudo, ao expor aqui tal “presunção do sofrimento”, não pretendo revelar nenhum tipo de farsa ou dizer que as pessoas transexuais não sofrem violências e discriminações ao realizarem várias atividades, mas sim busco demonstrar como uma determinada forma de fazer política e de gestão estatal se fundamentam na necessidade de criação de uma figura que é ao 132

mesmo tempo vítima de uma dada “configuração social” que relega as pessoas transexuais às margens da sociedade e de uma patologia que acomete “sujeitos inocentes”.

4.2 Em defesa da “dignidade da pessoa humana”: os argumentos que legitimam a demanda por requalificação civil

Uma vez que se tenha construído a figura da pessoa transexual como alguém que está sujeito aos mais diversos sofrimentos, a argumentação apresentada nas petições iniciais toma como base a defesa do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto expressamente no art. 1º, III da Constituição Federal como “fundamento” da República Federativa do Brasil. Ao contar histórias e expor sofrimentos, o leitor é, de certo modo, envolvido. A narrativa produz um efeito de cumplicidade naquele que escuta, lê, ou tem acesso de algum modo aos infortúnios vividos pelo outro. É no contexto de cumplicidade que o apelo ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana pode ser eficaz, uma vez que a condição de cúmplice só pode ser superada se o sujeito atuar, de alguma forma, para mitigar as dores do outro. Neste sentido, a defesa de tal Princípio67 extrapola aquilo que pode ser visto como uma dimensão mais normativa ou positivada constitucionalmente e se desdobra em uma série de estratégias discursivas que visam, por um lado, legitimar o pleito pela alteração de pronome e sexo através do acionamento da empatia e de um sentimento de pertencimento a uma humanidade comum; e, por outro, questionar e deslegitimar as alegações que são comumente utilizadas por Juízes e Promotores para negar tais pedidos.

“De que direitos estamos falando?”: os múltiplos discursos sobre “direitos” que figuram nas petições iniciais

O primeiro argumento utilizado pelas operadoras do Direito nos pedidos de requalificação civil das pessoas transexuais é o de que não existe nenhuma proibição legal em

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É preciso ressaltar que, no jargão jurídico, o termo princípio se refere a um conceito específico. De acordo com o filósofo do Direito Robert Alexy, as normas se dividem em dois tipos qualitativamente distintos: regras: normas “engessadas”, cuja interpretação é restrita e que são aplicadas somente em sua totalidade; e princípios: “mandados de otimização”, ou seja, postulam fins ideais e metas políticas. Nas palavras do autor: “o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.” (Alexy, 2008, p. 90, grifos no original).

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relação à alteração do registro civil dos cidadãos. No âmbito formal, é citada a Lei nº 6.015/73, também conhecida como “Lei de Registros Públicos”. A partir da combinação dos artigos 55 e 5868 do referido diploma legal, chega-se a interpretação de que o prenome pode ser alterado caso exponha a pessoa ao ridículo ou à situações vexatórias. Neste ponto, o texto assume a seguinte forma:

NÃO É OUTRA A SITUAÇÃO DA TRANSEXUAL QUE, A DESPEITO DE UMA APARÊNCIA [FEMININA] E DE COMPORTAMENTO SOCIAL CONSENTÂNEO, TENHA QUE SE APRESENTAR COM PRENOME [MASCULINO] COMPLETAMENTE DESTOANTE DE SUA CONDIÇÃO FÁTICA, SENDO, POR ESTA RAZÃO, ALVO DE CONSTANTE CHACOTA. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

Além do recurso à Lei de Registros Públicos, a leitura das petições iniciais revela que há uma combinação entre distintos discursos sobre “direitos” como formas de legitimar a demanda pela requalificação de pessoas transexuais: o direito à saúde, o direito à autodeterminação sexual e o direito à dignidade. Grosso modo, o direito à saúde faz referência ao dever do Estado de assegurar que os cidadãos tenham acesso às melhores condições de saúde disponíveis através da prestação de serviços públicos; já o direito à autodeterminação sexual incorpora um discurso sobre “liberdade” ao ser descrito como um dos direitos inerentes à personalidade e diz respeito à proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem; por sua vez o direito à dignidade fala sobre a efetivação de condições fundamentais para o exercício da cidadania. De certo modo, estes três “tipos” de direitos encontram-se, nas petições iniciais, dispostos em uma espécie de linha evolutiva. A garantia do direito à liberdade de autodeterminação sexual visa garantir a “integridade psíquica e social” dos indivíduos ao proteger aspectos de sua vida íntima; a integridade psíquica é uma das condições essenciais

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Os artigos da lei 6.015/73 dizem o seguinte:

Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente. Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público. (Brasil, 1973).

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para que os sujeitos possam usufruir do mais alto padrão de saúde; desfrutar de melhores condições de saúde é, por fim, considerado um dos elementos que configuram uma “vivência digna”. Nesta subseção, me limito a abordagem somente dos dois primeiros discursos sobre direitos, deixando o terceiro para a seguinte.

A liberdade e os direitos sexuais O surgimento de um discurso sobre a defesa dos ditos “direitos sexuais” se deu simultaneamente ao desenvolvimento de um pleito pela aquisição de “direitos reprodutivos”. Em que pese as diferenças entre demandas e sujeitos abarcados pelos dois termos, ambos são, por muitas vezes, colocados sob uma mesma rubrica. Como apontado por Vianna (2012) e discutido no primeiro capítulo deste trabalho, os direitos sexuais pressupõem uma autonomização da esfera da sexualidade na constituição dos sujeitos, de modo que seu exercício passa então a se configurar como um “direito humano legítimo”.

No sentido de consagrar os direitos sexuais e reprodutivos, os documentos internacionais avançaram com declarações e planos de ação. Tem-se o Programa de Ação do Cairo (1994) que, com os Princípios [...] e 8 (do mais alto padrão de saúde possível e benefícios do progresso científico: “Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo têm o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer.”), somado ao Capítulo XII (Tecnologia, Pesquisa e Desenvolvimento) introduziram na seara dos Direitos Humanos os direitos à saúde sexual e à saúde reprodutiva. Na Declaração de Pequim e Plataforma de Ação (1995), que segue a linha do documento produzido no Cairo, um ano antes, estão consagrados: (1) o direito à integridade psicofísica no § 12 (“O fortalecimento e o avanço das mulheres, incluindo o direito à liberdade de pensamento, consciência, religião e crença, o que contribui para a satisfação das necessidades morais, éticas, espirituais e intelectuais de mulheres e homens, individualmente ou em comunidade, de forma a garantir-lhes a possibilidade de realizar seu pleno potencial na sociedade e organizar suas vidas de acordo com as suas próprias aspirações”), (2) o direito ao pleno exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais no § 23 (“Garantir o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais às mulheres e meninas e adotar medidas efetivas contra a violação destes direitos e liberdades) e (3) o direito à saúde sexual no § 30 (“Assegurar a igualdade de acesso e a igualdade de tratamento de mulheres e homens na educação e saúde e promover

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a saúde sexual e reprodutiva das mulheres e sua educação”). (Modelo de Petição Inicial, grifos no original). Outro direito que ganha extrema relevância no caso é o direito ao reconhecimento perante a lei. Considerando que a orientação sexual e a identidade de gênero constituem parte essencial da personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação e dignidade, deve o Estado “tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos pelo Estado que indiquem o sexo/gênero da pessoa – incluindo certificados de nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a profunda identidade de gênero autodefinida por cada pessoa”, de maneira a salvaguardar os direitos dessas minorias. (Modelo de Petição Inicial, grifos no original)

No cenário político contemporâneo, uma retórica sobre o exercício de direitos sexuais tem sido apropriada, principalmente, por atores ligados aos movimentos sociais LGBT. Um exemplo dessa apropriação se faz ver na demanda por medidas que visem coibir a discriminação por orientação sexual, como o extinto Projeto de Lei da Câmara 122 de 200669 (PLC 122/2006) que pretendia criminalizar a homofobia. Para as demandas mais singulares das pessoas que compõem a letra T do movimento – as travestis e pessoas transexuais – o discurso sobre direitos sexuais se traduz na luta por determinadas liberdades fundamentais, como por exemplo, a autodeterminação da identidade sexual/de gênero.

Impende ponderar, ademais, que o direito à intimidade integra os chamados direitos da personalidade. Neste sentido, a tutela da intimidade, no direito pátrio, é elevada à categoria de direito fundamental, constitucionalmente tutelado, consistindo, sua tutela, uma das funções inderrogáveis do Estado. (Modelo de petição inicial, grifos no original)

Apesar de ser relativamente difundido entre militantes, os direitos sexuais não parecem se constituir enquanto a via mais importante para defender o direito à requalificação civil de pessoas transexuais atendidas pelo NUDIVERSIS. O modelo de petição inicial formulado pelas profissionais do núcleo traz somente uma única referência à esta expressão. Além disso, os direitos sexuais aparecem colados aos direitos reprodutivos e, por conta dessa articulação, subordinados ao “direito à saúde”, como pode ser visto nos trechos acima reproduzidos. Passo então para a discussão dessa segunda via de sustentação da legitimidade da demanda pela alteração de nome e sexo no Registro Civil de pessoas transexuais.

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O PLC 122/2006 tinha por objetivo a incluir na Lei 7.716/89, a chamada Lei do Racismo, não somente a discriminação motivada por orientação sexual, mas também em função da condição de pessoa idosa ou “deficiente”. Para uma discussão mais ampla sobre a questão, consultar Freire e Cardinali (2012).

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O bem estar e o direito à saúde

Uma segunda forma de defender o direito à requalificação civil de pessoas transexuais é pela argumentação via “direito à saúde”. A mobilização de um dado conceito de saúde e de um subsequente direito ao usufruto de melhores condições físicas e mentais é possível porque a transexualidade figura como uma “disforia de gênero” na edição contemporânea do DSM-V, como discutido ao longo deste trabalho. Deste modo, ao definir a transexualidade como uma espécie de patologia, transformando-a, assim, em uma questão de saúde pública, os médicos retiraram – em certa medida – das mãos do poder Legislativo a hegemonia da competência para regular os “direitos” das pessoas transexuais. Se observarmos que os membros do Legislativo têm se posicionado sistematicamente contrários aos avanços dos “direitos sexuais” no Brasil, muito por conta de influências de concepções religiosas, esta situação representa uma estratégia política que propõe um caminho alternativo na luta pela efetivação da cidadania de pessoas transexuais. Assim, apesar da patologização da transexualidade encapsular os indivíduos no dispositivo da transexualidade (Bento, 2006), transformando-os em “verdadeiros transexuais”, o fato de existir algo que seja considerado como uma “terapia de mudança de sexo” faz com que o Estado seja obrigado tanto a oferecer serviços públicos de saúde, quanto arcar com os custos das transformações corporais realizadas pelas pessoas transexuais. A despeito de excluir as/os “outras/os transexuais” – ou seja, os sujeitos que não conseguem um laudo médico classificando-os como portadores da disforia de gênero –, os programas transexualizadores ligados ao SUS representam um caminho para que as pessoas transexuais de classes populares – justamente as que são atendidas pela Defensoria Pública – tenham suas demandas por modificações corporais atendidas, tendo em vista o alto custo tanto das aplicações hormonais quanto dos diversos tipos de procedimentos cirúrgicos na rede privada de serviços de saúde (Almeida e Murta, 2013). Ademais, conforme já descrito na introdução, caso não fossem consideradas como terapêuticas, as cirurgias que implicam a intervenção nos e/ou retirada de órgãos – mastectomia, histerectomia70 e a própria transgenitalização – seriam enquadradas como “crime de lesão corporal”, pois seriam vistas como a amputação de membros do corpo que são considerados saudáveis. Isto implicaria não somente a criminalização, como também a cassação do Registro Profissional de Médico do cirurgião que realizasse tais procedimentos em alguém.

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Histerectomia é o nome dado ao procedimento cirúrgico de remoção do útero. A histerectomia pode ser considerada “radical” quando há também a ablação dos ovários e das trompas.

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Na pesquisa empreendida por Miriam Ventura (2010), o discurso sobre direito à saúde aparece como a principal forma pela qual a demanda pela modificação do registro civil encontrou respaldo no Judiciário. Entretanto, a autora afirma que a mudança retórica pela qual o fenômeno da transexualidade passou, no âmbito jurídico, a partir dos anos 1990, saindo do Direito Penal que condenava a cirurgia de transgenitalização para integrar o debate sobre um “direito humano à saúde” não promoveu a autonomia dos sujeitos transexuais. Conforme venho tentando demonstrar desde o início deste trabalho, especialmente nos capítulos dois e três, afirmo que esta alteração na forma de interpretar a questão a partir do dever humanitário do Estado de promover o bem estar dos cidadãos não representou nenhuma grande mudança quanto à promoção da autonomia dos sujeitos. As pessoas transexuais permanecem enredadas no dispositivo da transexualidade. Ventura busca, também, pontuar como uma argumentação centrada principalmente na defesa deste direito encontra uma série de limitações:

Os avanços obtidos se situam no restrito terreno do dever do Estado de assistência à saúde do cidadão, limitado ao fornecimento dos meios e recursos necessários para minimizar os efeitos de uma doença, incluindo-se a alteração da identidade sexual como um dos recursos terapêuticos. Isso significa afirmar que não se reconhecem a ampla autonomia pessoal em relação ao próprio corpo, que permitiria o livre acesso às transformações corporais desejadas, ou o direito à autodeterminação de identidade sexual por meio da prática das transformações corporais (Ventura, 2010, p. 91). Se, por um lado, a manutenção da patologização da transexualidade representa o não reconhecimento da autonomia das pessoas transexuais, por outro, a despatologização “pura e simples” traz uma série de riscos, pois, como salientado por Almeida e Murta (2013), as políticas públicas voltadas para a assistência de pessoas transexuais são construídas tendo como base a categoria nosológica da “disforia de gênero”. Nas palavras dos autores:

Despatologizar tão somente, sem ter as condições de manutenção/ampliação do acesso ao SUS em perspectiva é avançar em direção ao passado, reiterando a histórica exclusão deste público dos modelos de atenção em saúde disponíveis. (Almeida e Murta, 2013, p. 404). No âmbito do NUDIVERSIS, o direito à saúde é citado em alguns pontos da petição inicial elaborada pelas profissionais do núcleo, muitas vezes descrito como fundamental para o 138

desenvolvimento do sujeito. Contudo, do mesmo modo que os direitos sexuais, o direito à saúde não aparece isolado, sendo conectado, principalmente, ao dever do Estado de promover a cidadania e de se comprometer com a defesa do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como podemos verificar nos exemplos a seguir:

Assim é que o direito à vida, o direito à integridade psicofísica e o direito à saúde constituem o trinômio que informa o livre desenvolvimento da personalidade e a salvaguarda da dignidade do ser humano, traduzindo-se, finalmente, no exercício da cidadania. (Modelo de Petição Inicial, grifos no original) Inclui-se entre os princípios de Yogyakarta o direito ao padrão mais alto alcançável de saúde, que aconselha o grau mais elevado de saúde, seja mental ou física, como direito subjetivo do indivíduo, tendo a saúde sexual como aspecto fundamental e intrínseco deste direito e definindo como obrigação estatal facilitar o acesso daquelas pessoas que estão buscando modificações corporais relacionadas à redesignação de sexo/gênero, ao atendimento, tratamento e apoio competentes e não discriminatórios. (Modelo de Petição Inicial, grifos no original).

A superação das barreiras e limitações impostas por um discurso sobre direito à saúde só pode ser alcançada na medida em que a concepção de saúde é alargada e deixa de designar apenas a ausência de doenças, mas sim o bem estar do corpo e da mente. A ideia de bem estar defendida nas petições iniciais elaboradas pelas profissionais do NUDIVERSIS encontra-se articulada à noção de dignidade, a qual, por sua vez, reflete o pleno exercício da cidadania.

A saúde, muito embora venha assegurada fora do rol exemplificativo do art. 5º, da Lei Magna, é garantia de extrema importância, posto que sua pedra angular é o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, o qual não apenas consiste em um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, como consagra expressamente o art. 1º, mas também caracteriza o cerne axiológico de todo o ordenamento jurídico. (Modelo de Petição Inicial, grifos no original) [...] uma vez negado o presente pleito, condenar-se-á a Autora a um ininterrupto e profundo sofrimento – penalizando-a pela ineficiência do Estado em prover os serviços de saúde essenciais, uma vez que o Transtorno de Identidade de Gênero inscreve-se no CID-10 (através do Código F64) e o Ministério da Saúde oferece, pelo menos no plano do deverser, o tratamento adequado à “patologia”. (Modelo de Petição Inicial, grifos no original)

Em suma, apesar de aparecer mencionado em vários documentos internacionais de direitos humanos que tratam dos direitos de pessoas transexuais, o “direito à saúde” não é protagonista da argumentação desenvolvida pelos profissionais do NUDIVERSIS. A seção “do direito à saúde pública” não figura nas petições iniciais de requalificação civil de pessoas transexuais, mas somente nas que se destinam à aquisição gratuita de determinados 139

medicamentos, como hormônios ou inibidores da produção destes. O discurso sobre o caráter terapêutico das alterações de nome e sexo no registro civil – conforme apontado nas pesquisas feitas por Zambrano (2005) Ventura (2010) e Teixeira (2013) – fica ofuscado pelo dever moral de minimização do sofrimento e promoção da dignidade e da cidadania, como será abordado na subseção seguinte.

Pelo direito à vida digna: a política da compaixão e os deveres morais como estratégias de legitimação da demanda por requalificação civil

Conforme o título do capítulo sugere e como demonstrado na subseção anterior, o direito à dignidade aparece nas petições iniciais como a principal via de argumentação para que o pedido de alteração do registro civil de pessoas transexuais seja atendido. Ainda que as análises feitas neste trabalho não se orientem por um viés quantitativo, gostaria de chamar atenção para o fato de que a palavra “dignidade” aparece 34 vezes no modelo de petição inicial. Levando em consideração que este possui 36 páginas, há uma média de quase uma menção por página. As alegações apresentadas nestas peças processuais extrapolam, de certa forma, a dimensão normativa positivada ao construir uma série de apelos emocionais e deveres morais tendo como fundamento o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Em outras palavras, no contexto dos processos judiciais envolvendo transexuais, tal discurso não se limita a defesa de um princípio jurídico previsto na Constituição Federal, mas também fala sobre um modo de fazer política que pode ser eficaz em um dado quadro da economia moral contemporânea (Fassin, 2012).

A Constituição de 1988, no Título I, ao tratar dos princípios fundamentais que norteiam a República Federativa do Brasil, destaca, no art. 1º, inc. II e III, a valorização da cidadania e da dignidade da pessoa humana, elegendo, desta forma, valores humanitaristas como alguns dos princípios objetivos do Estado e da Sociedade. Assim, é que a obrigação de garantir o bem-estar do cidadão, zelar por sua dignidade e pelo livre desenvolvimento de sua personalidade, encontram amparo constitucional. (Modelo de petição inicial, grifos no original) Hodiernamente, se prevê que levariam mais de dez anos para que a integralidade dos pacientes inscritos no Programa de Transgenitalização do HUPE seja atendida. Deste modo, não se pode vincular o deferimento da alteração de registro civil da Requerente à realização de procedimento cirúrgico de reconstrução genital (neocolpovulvoplastia) – sob

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pena de postergar-se por longo período de tempo o sofrimento e os constrangimentos cotidianos que a Autora é compelida a passar. (Modelo de petição inicial)

Como aparece explicitado na primeira citação extraída do modelo de petição inicial, a Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, é representativa da incorporação de “valores humanitaristas” nas normativas legais brasileiras, inaugurando novas formas de imbricação entre moral e política. Para compreender o modo pelo qual a defesa do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana se torna um discurso politicamente eficaz é preciso fazer uma digressão teórica um tanto longa, que tem por objetivo evidenciar as conexões que estabeleço entre empatia, política da compaixão, valores morais, governo humanitário e direitos humanos. Ou ainda, para demonstrar como política, emoções e moralidades se combinam nas petições iniciais para legitimar o direito à requalificação civil de pessoas transexuais. De acordo com Fassin (2012), os sentimentos morais se tornaram uma força essencial nas políticas contemporâneas. Tais sentimentos morais conectam afetos e valores na produção daquilo que o autor nomeia por política da compaixão, característica do governo humanitário. O sentido de “governo” no referido conceito possui uma inspiração foucaultiana e se refere às formas de gestão de populações; já o termo “humanitário” possui um duplo significado: enquanto espécie – ou seja, seres que compartilham um mesmo tipo de organismo biológico – e enquanto sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade moral – a humanidade. O argumento exposto por Fassin afirma que o desenvolvimento de uma forma de gestão baseada em valores humanitários está associado a uma nova economia moral que rege os modos de fazer política. O surgimento desta nova economia moral tem a ver com as mudanças nos sentidos atribuídos à violência e à injustiça, alterando, assim, o modo pelo qual determinadas situações são investidas de significados. O governo humanitário é caracterizado pela aplicação de uma mesma razão humanitária em cenários variados, uma vez que todos eles “necessitam” de algum tipo de intervenção. Neste sentido, as três cenas humanitaristas paradigmáticas são as marcadas por epidemias, desastres naturais e conflitos políticos. De acordo com o autor, a evolução do humanitarismo como modo de governo se deu em duas temporalidades distintas: uma mais longa e antiga, que se refere à emergência dos sentimentos morais no Ocidente a partir do século XVIII, sendo o movimento abolicionista um marco no início da cristalização destes sentimentos na ordem política; e outra mais curta e recente, que remete ao final do século XX e a criação de organizações orientadas por valores humanitários. 141

A despeito de Fassin não abordar diretamente a relação entre “governo humanitário” e “direitos humanos”71, o desenvolvimento de uma política orientada por preceitos humanitários está entrelaçado com a expansão, disseminação e consolidação de uma linguagem de direitos humanos. Segundo Wilson e Mitchell (2003), o surgimento da retórica dos direitos humanos tem como marcos históricos os Julgamentos de Nuremberg e o fim da Guerra Fria. Entretanto, os debates sobre direitos humanos só ganharam força a partir da segunda metade dos anos 1990, com a multiplicação de instituições jurídicas internacionais. Contudo, mais interessante que traçar os marcos históricos do desenvolvimento da linguagem dos direitos humanos, é compreender as condições de emergência deste discurso, as transformações que este provocou na paisagem moral global e os processos que levaram a sua consolidação enquanto uma linguagem politicamente eficaz. Um trabalho cujas questões centrais eram exatamente estas foi feito pela historiadora Lynn Hunt, autora de A Invenção dos Direitos Humanos. De acordo com Hunt (2009), os direitos humanos possuem um aspecto autoevidente que está ligado à três qualidades fundamentais de direitos deste tipo: naturalidade, igualdade e universalidade. A proposta da autora é apresentar a história da afirmação desta autoevidência a partir do século XVIII. Neste sentido, a consolidação dos direitos humanos ocorre a partir de dois processos distintos: a crescente individualização promovida pela expansão de ideologias liberais, a qual é indispensável para a atual concepção de “sujeito de direitos”, que é sempre um indivíduo autônomo; e as mudanças nos patamares de sensibilidade proporcionadas pela alteração dos valores morais. Segundo a autora, tal mudança de sensibilidade está ancorada no desenvolvimento da empatia promovido pelas publicações de romances epistolares e que encontra expressão no movimento pela abolição da tortura como forma de punição aos criminosos. Em suas palavras:

Meu argumento depende da noção de que ler relatos de tortura ou romances epistolares teve efeitos físicos que se traduziram em mudanças cerebrais e tornaram a sair do cérebro como novos conceitos sobre a organização da vida social e política. Os novos tipos de leitura (e de visão e audição) criaram novas experiências individuais (empatia), que por sua vez tornaram possíveis novos conceitos sociais e políticos (os direitos humanos). (Hunt, 2009, p. 32)

Um dos poucos momentos em que Fassin (2012) escreve sobre “direitos humanos” na introdução de seu livro é para destacar o aparente paradoxo que há na utilização de uma “retórica sobre direitos humanos” para justificar práticas de exceção efetuadas no cenário político contemporâneo. 71

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A localização do papel da empatia é fundamental para a compreensão do modo pelo qual a política da compaixão adquiriu protagonismo no cenário político atual. Como escrito por Garber (2004), as últimas décadas presenciaram um significativo crescimento da associação da compaixão com questões ligadas aos direitos humanos e uma centralização desta emoção nas formulações políticas de Organizações Não Governamentais (ONGs) globais. Uma das preocupações da autora é distinguir compaixão e benevolência, uma vez que a compaixão é sempre benevolente, mas a benevolência nem sempre é compassiva. Deste modo, ter compaixão implica compartilhar do sofrimento do outro por meio da empatia; enquanto ser benevolente significa somente “querer bem ao outro”. Além disso, Garber argumenta que o trabalho da compaixão é promover um tipo de “justiça” e, por conta disso, “a compaixão parece oscilar entre duas formas de desigualdade: a benevolência daqueles que têm (o poder do rico) e o direito daqueles que precisam (o poder do pobre)”72 (p. 25, tradução livre). Berlant (2004), por sua vez, ressalta que não existe uma noção fechada daquilo que pode ser classificado ou conceituado como compaixão, exceto que tal sentimento “implica uma relação social entre espectadores e sofredores, com a ênfase na experiência do espectador de sentir compaixão e a subsequente relação com a prática material”73 (p. 1, tradução livre). Do mesmo modo que Garber, Berlant também sugere que o sentimento de compaixão emerge da necessidade de concretização de um determinado ideal de justiça. Assim, “fazer justiça” implica a avaliação dos sofrimentos na busca por uma solução adequada, a qual é sempre perpassada pelas relações de poder entre aqueles que são compassivos e aqueles que despertam a compaixão. A autora critica as análises que colocam as “boas intenções” como a essência da compaixão – como sugerido por Garber. Neste sentido, Berlant propõe que uma das formas de compreender a compaixão é encará-la como um tipo de tecnologia social e estética do pertencimento à humanidade, a qual é característica das sociedades orientadas por princípios morais influenciados pelo liberalismo. Seguindo esta ideia, ela enfatiza também o lugar da compaixão na subjetividade moderna ao se transformar em uma medida de valor dos indivíduos.

No original: “Compassion seems to waver politically between two forms of inequality: the benevolence of those who have (the power of the rich) and the entitlement of those who need (the power of the poor)” (Garber, 2004, p. 25). 72

No original: “There is nothing clear about compassion except that it implies a social relation between spectators and sufferers, with the emphasis on the spectator’s experience of feeling compassion and its subsequent relation to material practice” (Berlant, 2004, p. 1) 73

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A compaixão é também um dos temas de Didier Fassin (2012). Ao analisar os pedidos de legalização de residência na França de imigrantes enfermos, o autor propõe o conceito de protocolo da compaixão, em uma analogia ao jargão médico que postula “protocolos de atendimento”. Os apelos contidos nos formulários preenchidos e nas narrativas apresentadas se dão através da empatia e do reconhecimento de um sentimento de humanidade. Do mesmo modo que as petições iniciais apresentadas pelas pessoas transexuais são julgadas por um juiz, os formulários pleiteando direito de residência são avaliados por médicos. Em ambos os casos, instaura-se uma figura que representa um poder-saber e que tem autoridade para determinar se tais demandas são ou não legitimas de serem atendidas. Sobre os processos de julgamento dos casos que merecem ter seu sofrimento aliviado, Berlant (2004) argumenta que compaixão e frieza são os dois lados desta mesma avaliação, sempre baseada em um senso moral do que é “certo e justo”. Por outro viés, Boltanski (1999) discute a mesma questão: a legitimação – e consequente hierarquização – dos sofrimentos que “contam”, que são dignos de se transformarem em causas políticas. Segundo o autor, a construção da política do sofrimento depende de uma economia específica entre o individual e o geral, em como um drama singular se transforma em um exemplo de um mal mais amplo que pode afetar a todos. Tais situações engendram uma fabricação contínua de zonas morais ao focarem na dimensão do merecimento – quem pode e quem não pode ter seu “sofrimento aliviado”. Tais avaliações são afetadas pela capacidade dos “espectadores” de serem compassivos com a dor alheia e, em última instância, demonstram a produção de coletividades através do compartilhamento de um sentimento em comum. A questão que cruza todas as obras citadas é a empatia, ou seja, a capacidade de se reconhecer no outro ou, ao menos, de perceber o outro como igual e possivelmente se identificar com seu sofrimento. Em suma, é necessário que haja uma linguagem moral compartilhada para que o sofrimento se torne inteligível. Tal reconhecimento está na base dos direitos humanos e é condição fundamental de instituição da política da compaixão. A defesa do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana se insere neste cenário ético e político em que a obrigação moral de ser compassivo é acionada estrategicamente para que o pedido de alteração do registro civil de pessoas transexuais seja atendido por Juízes e Promotores. As considerações morais contidas nas petições iniciais falam basicamente do dever dos operadores do Direito, enquanto pertencentes a uma mesma “humanidade” que as pessoas transexuais, de se solidarizar com as situações de discriminação vivenciadas constantemente pelas/os assistidas/os e, consequentemente, de se engajar em medidas que têm por objetivo aplacar o sofrimento destes sujeitos. Assim, tais colocações fabricam a imbricação entre 144

política, moralidade e apelos sentimentais, a qual fica clara em diversos pontos das peças processuais formuladas pelas operadoras do Direito que atuam no NUDIVERSIS, como podemos verificar nas seguintes passagens:

Todos os operadores do Direito que lidam com a presente demanda devem ter em mente que o influi de forma decisiva na efetivação da cidadania e dignidade deferimento deste pleito da Requerente, uma vez que é direito da mesma ser reconhecida socialmente pelo nome com o qual se identifica. (Modelo de petição inicial, grifos no original) Uma vez constatado que o indivíduo exibe síndrome informadora de incongruência entre sexo gonadal e gênero social na determinação de seu sexo civil, e que se adapta mais a sexo diverso daquele constante de seu assentamento de nascimento, compete ao juiz deferir o pedido de retificação atentando a princípios de equidade e isonomia e ao direito que todo o ser humano tem à sua integridade psicofísica e, principalmente, ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, a teor do artigo 1º da Constituição Federal, que se apresenta como norte interpretativo e finalístico para todas as regras vigentes do sistema legal brasileiro. (Modelo de petição inicial)

A eficácia da retórica fundamentada no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana a partir do acionamento da compaixão pode ser compreendida também a partir da noção de micropolítica das emoções proposta por Rezende e Coelho (2010). Segundo as autoras, as emoções possuem uma

capacidade para dramatizar, reforçar e alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. É assim, então, que as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre grupos sociais. (Rezende e Coelho, 2010, p. 78). Antes de mais nada, é preciso lembrar que a emergência da compaixão é sempre perpassada por uma relação de poder entre aquele que sofre e aquele que se comove. Neste sentido, o “apelo empático” contido nas petições iniciais refletem não apenas as relações de poder marcadamente desiguais entre aqueles que são julgados e aqueles que julgam, mas também os princípios morais que regem a vida em sociedade. Para amarrar o raciocínio que procurei desenvolver nesta subseção, remeto às conexões entre o “fazer político” e a “micropolítica das emoções” proposta por Vianna (2013). Para a autora, a articulação entre estas duas dimensões, que a princípio não são percebidas como semelhantes, se dá no plano da reivindicação de direitos. Em outras palavras, a circulação entre 145

linguagens “do sofrimento e da objetivação política torna-se possível e eventualmente eficaz porque se dá em um campo intrinsecamente polissêmico, o dos ‘direitos’” (Vianna, 2013, p. 28). Em outro texto, Vianna (2012) argumenta que o discurso sobre direitos sexuais centrado nos sujeitos movimenta uma práxis político-afetiva. Entretanto, tal centralidade apaga as “causas” ao focar no “merecimento” como uma justificativa moral para o acesso aos direitos, ponto que será retomado na última seção deste capítulo. Por fim, destaco que se há uma “obrigação moral” de engajamento, a recusa de tal comprometimento e/ou a não preocupação com a violência cotidiana que atinge as pessoas transexuais implica uma acusação mais ou menos implícita de “contaminação moral” dos Juízes, os quais deveriam – idealmente – proferir sentenças neutras, imparciais e em sintonia com os “direitos humanos”. Passemos agora a este outro lado da discussão.

Do outro lado do muro: as acusações de “contaminação moral” dos juízes que negam os pedidos de requalificação civil

Esta subseção pretende evidenciar um aspecto verificado nas petições iniciais elaboradas pelos operadores do Direito que, à primeira vista, pode parecer paradoxal. Se, por um lado, conforme abordado anteriormente, há uma série de apelos morais e emocionais utilizados para reconhecer como “justa” a demanda pela alteração de prenome e sexo no registro civil de pessoas transexuais; por outro, a possibilidade de negação de tal pleito é inscrita a partir de uma série de considerações e acusações de uma espécie de “contaminação moral” dos responsáveis pelo julgamento. Deste modo, meu objetivo aqui é apresentar como a moralidade em torno das noções de “humanidade” e “humano” são acionadas em distintas partes das peças vestibulares como uma estratégia para a efetivação do direito a alteração dos documentos civis das pessoas transexuais.

Inicialmente, impende evidenciar que, no Direito Pátrio, não há norma proibitiva com relação ao tema. Óbices derivam, sobretudo, de considerações de cunho moral, religioso e social que partem, evidentemente, de suposições preconceituosas e de um total alheamento a questões que afligem tão dramaticamente os seres humanos portadores de deficiências ou características que os tornem diferentes dos demais. (Modelo de petição inicial, grifos no original) A Lei de Registros Públicos, diploma específico, é omisso, sendo certo que as decisões até agora prolatadas trazem como fundamento considerações de ordem moral ou religiosa, no

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sentido de desconsiderar os avanços no campo da pesquisa científica. Como negar ao transexual uma vida digna?! Uma identidade que realmente o espelhe?! Como livrá-lo da execração preconceituosa?! (Modelo de petição inicial)

De acordo com as proposições de Boltanski (1999), é possível compreender os argumentos que buscam demonstrar aquilo que estou chamando aqui de “contaminação moral” como uma forma de exposição do “caso” que o autor denomina por denúncia. Para Boltanski, a eficácia de uma denúncia está ligada à correta disposição de três elementos: as vítimas, os sujeitos que sofrem algum infortúnio; os espectadores engajados, as pessoas moralmente comprometidas em denunciar uma determinada mazela ou violação; e os perpetradores, aqueles que são acusados de causar o sofrimento das vítimas. Neste sentido, as críticas feitas à negação dos pedidos de alteração do registro civil de pessoas transexuais assumem a forma de uma denúncia na medida em que os sujeitos envolvidos nos casos são posicionados da seguinte maneira: transexuais como vítimas, defensores públicos como espectadores engajados e juízes que negam os pedidos e promotores que recorrem de decisões de procedência, senão como perpetradores, ao menos como coniventes com os causadores do sofrimento que aflige as pessoas transexuais. Esta disposição dos elementos fica evidente nos seguintes trechos do modelo de petição inicial:

A partir do momento em que uma ciência como o Direito, a qual tem um poder de influência imenso nos comportamentos humanos, se abstêm de tutelar os interesses de indivíduos invisíveis socialmente, os operadores do Direito tornam-se não somente omissos nos processos cotidianos de violação dos direitos da personalidade das quais os transexuais e travestis são vítimas, mas passam a ser agentes violadores dos direitos de tais grupos populacionais. (Modelo de petição inicial) Para os que consideram um caso, como o dos autos, uma violação às regras sociais, pergunta-se: a Requerente deveria ser mantida como pária social, recebendo uma punição, não escrita na lei, ditada aparentemente pela moral e pelos bons costumes, mas substancialmente pelo preconceito e pelo temor de servir de estímulo a tais transformações? (Modelo de petição inicial)

O último trecho transcrito vem logo após a citação de uma sentença na qual um juiz negou o pedido de requalificação civil de uma mulher transexual. Nota-se que, além da “contaminação moral”, tais discursos acusam aqueles que negam tais pedidos de “agentes violadores de direitos” – reforçando o caráter de “denúncia” de tal modo de argumentação –, ora de forma implícita, como nas perguntas retóricas; ora de forma direta, como na primeira citação transcrita nesta subseção. 147

Além da ideia de “denúncia” proposta por Boltanski, estes trechos das petições iniciais que visam construir as acusações de “contaminação moral” podem também ser lidos a partir da apropriação da noção de retórica emocional74 proposta por Geoffrey White (1990), uma vez que, “a expressão de uma emoção torna-se um pronunciamento ou uma reclamação (geralmente implícita) sobre o modo como as coisas são ou, mais significativamente, como elas deveriam ser”75 (p. 49, tradução livre). O autor empreende um esforço no sentido de evidenciar como um discurso sobre emoções veicula uma espécie de linguagem moral. Assim, White propõe duas ideias fundamentais: 1) a capacidade dos movimentos retóricos de transformarem realidades socioemocionais; e 2) o potencial do discurso emocional de falar um “idioma moral”. Estas colocações podem ser úteis para a análise do modo pelo qual os apelos emocionais são construídos nos processos de requalificação civil de pessoas transexuais, pois, é através do discurso fundamentado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que há um acionamento da empatia, a qual figurará como base da compaixão e instituirá um tipo de dever moral de amenização do sofrimento vivenciado por transexuais. Em resumo, busquei evidenciar nesta segunda seção do capítulo como os modos de argumentação contidos nas petições iniciais escritas pelas profissionais do NUDIVERSIS operam um embate entre dois tipos radicalmente distintos de moralidades, uma “tradicional” e outra “humanitária”. Em outras palavras, proponho que as considerações e enunciados presentes nas petições iniciais analisadas sejam vistas como formas de afastar aquilo que poderia ser considerado como uma “moralidade tradicional”, a qual considera a transexualidade como uma espécie de transgressão moral que, se não pode ser judicialmente condenada, ao menos não transforma as pessoas transexuais em “merecedoras de direitos”; ao mesmo tempo em que tentam implantar outra ordem moral, uma baseada na razão humanitária e no compromisso com a defesa dos direitos humanos de sujeitos socialmente vulneráveis. Cabe ainda reiterar que este embate entre moralidades reflete as tensões originadas pelo reposicionamento da transexualidade em um plano ético-moral. Conforme abordado na introdução deste trabalho, a “descriminalização” da cirurgia de transgenitalização acompanhou um movimento que fez com que a transexualidade deixasse de ser vista como um “desvio moral” e passasse a ser considerada um transtorno mental que acomete “sujeitos inocentes”. Tal reposicionamento pode acarretar na vitimização das pessoas transexuais, como discutirei a seguir. 74

Emotion Talk no original.

No original: “an expression of emotion becomes a pronouncement or claim (often implicit) about the way things are or, more significantly, the way they ought to be.” (White, 1990, p. 47). 75

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4.3 “Sofro, logo tenho direitos”: a vitimização e o “acesso aos direitos”

Nesta seção, busco costurar as duas anteriores por meio da construção de um raciocínio sobre a produção de uma forma de reivindicação de direitos que tem como base a figura de um sujeito vulnerável, o qual é, consequentemente, uma vítima sofredora que necessita de ajuda para aliviar suas dores. Em outras palavras, busco expor de que modo a linguagem dos direitos humanos e a ética humanitária são contemporaneamente apropriadas por um discurso que demanda um direito à reparação de um dado sofrimento. No caso das pessoas transexuais, o acesso à “terapia de mudança de sexo” e, consequentemente, a todos os direitos contidos neste processo – mudanças corporais, alterações de prenome e sexo no registro civil, etc. – só é concedido àquelas que são classificadas como “verdadeiramente transexuais”, ou seja, os indivíduos que possuem documentos que comprovem tal condição. Ao chegar à sala de espera da Defensoria Pública, uma das primeiras perguntas feita a uma/um assistida/o é se ela/e possui algum laudo psiquiátrico e/ou psicológico que ateste a transexualidade. Lembrando que a “disforia de gênero” constitui, no discurso médico-psiquiátrico, um tipo de transtorno mental marcado por uma série de sofrimentos nos planos psíquico e social, logo, a promoção de direitos está intimamente ligada à condição de vitimização das pessoas transexuais, cuja produção foi demonstrada na primeira seção deste capítulo. O reconhecimento de determinados sujeitos como vítimas implica uma obrigação moral dos atores sociais de agirem em favor de tais sujeitos, como abordado na seção anterior. Todos os elementos até agora discutidos – isto é, vulnerabilidade, vitimização, empatia, compaixão e dever moral de atuação dos operadores do Direito – encontram-se condensados na seguinte passagem do modelo de petição inicial:

Contudo, é notório que os transexuais há muito vêm sendo vítimas de discriminação e represálias. Ora, um direito à intimidade, protegido constitucionalmente abrange, necessariamente, a tutela do interesse das minorias que, por serem minorias, enfrentam maiores dificuldades de exercer com plenitude seus direitos, a demandar atuação pronta e sensível do Poder Judiciário, que, nesse aspecto, atua como guardião da democracia e do Estado de Direito. (Modelo de petição inicial, grifos meus)

Apesar de trabalhar no registro do sofrimento e da vitimização associados às experiências de violência física atendidas em um contexto hospitalar, os escritos de Sarti (2009) podem ser apropriados para pensar o encadeamento do “acesso aos direitos” à condição de 149

reconhecimento enquanto vítima de uma violência, um infortúnio, uma doença ou qualquer outra forma de sofrimento. A autora explora o nexo entre uma categoria diagnóstica, o stress pós-traumático, e uma categoria social, a vítima. Esta relação entre vítima e trauma, trabalhada também no já citado estudo de Fassin e Rechtman (2009), coloca os psiquiatras – uma autoridade detentora de um poder-saber – em uma posição de indispensabilidade, pois são estes que possuem a legitimidade necessária para atestar, com eficácia, a condição de vítima de alguém. No marco da expansão do discurso do “direito à saúde” – entendido não apenas como um “direito” do cidadão, mas, em muitos casos, como uma obrigação de ser saudável 76 – e ao bem-estar, “a vítima ganha reconhecimento e se afirma por meio dos seus ‘direitos’” (Sarti, 2009, p. 100). Em outro artigo, Sarti (2011) elabora melhor a politização da figura da vítima e sugere que a vitimização seja encarada como um processo de reconhecimento social do sofrimento e de legitimação moral das demandas por direitos de certos grupos identitários. Nas palavras da autora:

A noção de vítima configura, assim, uma maneira de dar inteligibilidade ao sofrimento de segmentos sociais específicos, em contextos históricos precisos, que se produzem ou são produzidos como tal, conferindo legitimidade moral às suas reivindicações (Sarti, 2011, p. 54). No caso das petições iniciais aqui analisadas, proponho que a vitimização produzida pelos relatos de violência e discriminação contidos no tópico “dos fundamentos fáticos” da ação tem por objetivo legitimar a necessidade de alteração do registro civil das pessoas transexuais não apenas em um plano jurídico-formal, mas também em um plano ético-moral. Uma observação que a autora faz é que a produção da vítima tende a essencializar os sujeitos e cristalizar as identidades, dando visibilidade a determinados indivíduos e/ou grupos e invisibilizando outros (Sarti, 2009 e 2011). Esta homogeneização dos sujeitos e das experiências também foi descrita por Fonseca e Cardarello (1999) como um dos efeitos da produção de discursos sobre determinados sujeitos de direitos, conforme já discutido no primeiro capítulo. O processo de definição da/o “verdadeira/o transexual” reproduz esta prática ao visibilizar determinadas experiências e legitimar as demandas de algumas pessoas – aqueles

A tensão entre “direito à saúde” e “obrigação de ser saudável” remete às proposições de Foucault sobre biopolítica, regime disciplinar e construção de corpos produtivos no interior de um modelo econômico capitalista e podem render uma interessante discussão sobre quais os objetivos do modelo de cidadania que é previsto pela “terapia de mudança de sexo”. Este assunto será abordado, em parte, na próxima seção. 76

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que adquirem o laudo da disforia de gênero –; ao mesmo tempo que nega o direito às transformações solicitadas por aquelas que não se encaixam no modelo previsto, reforçando o apagamento da figura das travestis. Outro ponto que merece ser ressaltado é que, segundo Sarti (2011), no campo da saúde, a circunscrição da vítima implica também a circunscrição do sofrimento e do cuidado que lhe corresponde. Estendo as proposições da autora para a esfera judiciária na medida em que verifico que existe um modelo de procedimentos de assistência – ou até mesmo um protocolo da compaixão –, o que encaro como uma repetição da situação descrita pela autora no trabalho de campo por mim empreendido. Tal reflexão dialoga com a produção de Bento (2004 e 2006) sobre o dispositivo da transexualidade, principalmente se levarmos em consideração que tal dispositivo aprisiona os sujeitos não só em uma patologia específica, o “transexualismo” ou “disforia de gênero”; como também oferece como uma única forma de tratamento, a “terapia de mudança de sexo”, a qual compreende um conjunto de procedimentos que só pode ser adotado em sua totalidade. Deste modo, a autonomia – um dos valores tido como fundamentais para a efetivação dos chamados direitos humanos – da pessoa transexual fica limitada à procura dos serviços, seja os programas transexualizadores, seja a Defensoria Pública. Após ser inserido na “máquina da cidadania”, o indivíduo precisa se adequar às normativas tanto médicas, quanto jurídicas.

4.4 “Todos são iguais perante a lei”: sobre modelos, apagamentos e homogeneizações

O termo máquina que consta no título desta dissertação possui uma dupla referência: por um lado, este remete à expressões amplamente difundidas no senso comum de “máquina burocrática” ou “máquina do Estado”, as quais insinuam que tanto a burocracia quanto o Estado são entidades autônomas que possuem um modo próprio de funcionar que independe de seus operadores; por outro, uma máquina remete ao universo das fábricas e da produção em escala industrial, em que determinados equipamentos fabricam e/ou montam coisas idênticas e funcionais de um modo rápido e padronizado. É a partir destas referências que compreendo o NUDIVERSIS como uma “máquina de produzir cidadãs/ãos” no que se refere ao atendimento à demanda por requalificação civil de pessoas transexuais. Para encerrar este capítulo, retomo alguns dos fios puxados ao longo da dissertação para dar a ver aquilo que pode ser considerado como a face perversa do maior chavão do “direito à igualdade” contido no artigo 5º da

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A modelização de procedimentos de assistência, o apagamento das singularidades e subjetividades e a homogeneização das experiências de sofrimento foram sinalizados em vários pontos deste trabalho, desde o seu início. No primeiro capítulo, estes assuntos aparecem entremeados pelo debate sobre a constituição da dita “população LGBT” e a produção de solidariedades políticas entre os diferentes sujeitos que compõem as letras deste movimento. No segundo capítulo, estas questões aparecem com mais evidência quando trato dos limites daquilo que pode figurar nos relatórios de primeiro atendimento elaborados durante a entrevista feita pelas profissionais do núcleo. Contudo, o modelo dos procedimentos de assistência também podem ser percebidos na organização das peregrinações burocráticas. No terceiro capítulo, a homogeneização e o apagamento ganham forma através da metáfora do mosaico utilizada para descrever como os documentos constroem sujeitos muito específicos. Neste quarto e último capítulo, estes aspectos atingem seu ápice, pois tratei aqui exatamente de um modelo de petição inicial, cujas alterações se resumem, basicamente, ao nome da/o autora/or e alguns relatos mais marcantes apresentados como “fundamentos fáticos” no processo. Ademais, estas mesmas questões aparecem de variadas maneiras nas pesquisas que abordam o fenômeno da transexualidade. De acordo com Bento (2006), a generalização da experiência transexual oculta as estratégias de poder e controle que produzem um suposto sujeito universal. O dispositivo da transexualidade, ao postular a existência da/o “verdadeira/o transexual”, ignora a multiplicidade de transexualidades existentes. Já Ventura (2010) discute como a regulamentação do processo transexualizador pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) reproduz uma lógica de dominação que retira a autonomia das pessoas transexuais no que concerne às intervenções corporais, que fica restrita a busca pelo “tratamento”. No âmbito jurídico, Zambrano (2005) verifica que somente os sujeitos que realizaram as modificações corporais dentro dos critérios estabelecidos pelo CFM podem requerer a alteração do registro civil, negando este direito aos indivíduos que não seguem por esse caminho, como por exemplo, as pessoas que fizeram a cirurgia de transgenitalização em outro país. Teixeira (2013), por sua vez, demonstra de que forma o cumprimento dos protocolos estabelecidos pelo programa de transgenitalização silencia as construções subjetivas da experiência transexual. Com base nas análises e discussões até aqui apresentadas, proponho que a homogeneização acarretada pelos procedimentos de assistência que envolvem a requalificação civil de pessoas transexuais seja vista como um desdobramento da política da compaixão. Esta forma de fazer política, baseada no apelo aos deveres morais dos operadores do Direito, 152

centraliza as narrativas de sofrimentos, gerando uma presunção das experiências de violência e/ou discriminação. Deste modo, tal estratégia de legitimação da demanda das pessoas transexuais sexuais acarreta um quase que completo apagamento das singularidades e trajetórias dos sujeitos ao produzir a homogeneização das experiências de sofrimento. Reitero que, ao apresentar tal homogeneização, não pretendo afirmar que as pessoas transexuais não possam compartilhar de episódios comuns de discriminação, mas sim demonstrar como a política da compaixão aprisiona os sujeitos na figura de “vítimas”. É neste sentido que compreendo tais práticas institucionais como uma “máquina de cidadania”, ou ainda, como parte do dispositivo da transexualidade proposto por Bento (2006). Por fim, gostaria de apresentar uma hipótese sobre o “modelo de cidadania” que é oferecido na esteira da “terapia de mudança de sexo”. Sugiro que tal modelo tem por objetivo integrar as pessoas transexuais em um circuito de bens e consumo característico de regimes capitalistas, especialmente se levarmos em consideração todas as vezes em que o acesso ao mercado de trabalho formal apareceu nas falas tanto das/os assistidas/os quanto das funcionárias do NUDIVERSIS. Entretanto, esta hipótese necessita de uma reflexão mais elaborada, pois não é possível estabelecer o quanto do interesse das pessoas transexuais por tal modelo pode ser, de certa forma, considerado como “genuíno” e o quanto deste é fruto da dominação e imposição institucional. Fazendo uma apropriação livre da ideia discutida por Mahmood (2005), saliento que é sempre preciso ter em mente quais são “as recompensas por habitar a norma”, pois, para manter o mesmo exemplo, o ingresso no mercado de trabalho formal possibilita que os sujeitos reivindiquem não somente direitos trabalhistas, mas também tenham acesso à previdência social, dentre outros “direitos”.

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Considerações Finais Sobre os limites de uma promessa

Antes de mais nada, gostaria de avisar ao leitor que esta talvez não seja uma conclusão usual para um trabalho monográfico deste tipo. Não tenho por intenção oferecer respostas conclusivas às perguntas, mas sim retornar às reflexões e análises elaboradas no decorrer desta dissertação e propor outras tendo como fio condutor a narrativa de um caso particularmente dramático e triste, cujo desfecho trágico se deu enquanto escrevia este texto. Conforme o título da dissertação sinaliza e busquei demonstrar ao longo deste trabalho, no que se refere à gestão administrativa-judicial da demanda por requalificação civil de pessoas transexuais, o NUDIVERSIS pode ser compreendido como uma espécie de “máquina” cuja função é produzir “cidadania”. Como será demonstrado nas páginas a seguir, o caso de Raissa foi visto como especialmente problemático por uma série de questões, sendo então considerado um tipo de caso que “deu errado”. Minha ideia inicial era escrever sobre este ao longo da dissertação como um tipo de contraponto ao modelo de assistência executado pelas profissionais do NUDIVERSIS. Entretanto, um acontecimento fez com que eu optasse por trazer a trajetória de Raissa apenas agora, ao final do trabalho.

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Raissa era uma jovem mulher transexual de 24 anos. Nascida no interior do Ceará, ela conta que se mudou para o Rio de Janeiro na busca por “melhores oportunidades de vida”, mais “liberdade” e “opções de lazer”. Iniciou seu acompanhamento com profissionais da Defensoria Pública em 2010, quando o NUDIVERSIS ainda não existia e o atendimento a pessoas transexuais era realizado por funcionários do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH). Raissa fazia parte do programa transgenitalizador do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) desde 2009. No início de 2012, ela deu entrada no processo de requalificação civil e em dezembro de 2013 obteve o direito de ser reconhecida oficialmente pelo seu nome feminino, modificando assim seu registro civil e “seus documentos”. Conheci Raissa durante o trabalho de campo realizado no NUDIVERSIS. Meu primeiro contato com sua trajetória se deu de modo indireto, quando uma das estagiárias relatou, um tanto perplexa, o que havia conversado com uma possível assistida que estava ao telefone até segundos antes.

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02.04.2014 A situação mais significativa no campo de hoje se deu quando uma mulher transexual ligou dizendo que queria reverter o processo de requalificação civil. Ela conseguiu a alteração de seu registro civil e agora quer voltar a ter seu nome masculino. As estagiárias e a técnica administrativa pareceram não entender a questão em um primeiro momento. Pelo telefone, a estagiária pediu que Raissa comparecesse ao NUDIVERSIS no dia seguinte para explicar melhor a situação. Após alguns comentários sobre o ocorrido, a técnica administrativa sugeriu que Raissa deveria estar passando por algum tipo de problema. Encerramos a conversa ansiosos para saber o que ela terá a dizer amanhã. (Diário de campo, abril de 2014)

No dia seguinte, a expectativa em relação ao caso de Raissa dominou as conversas entre as profissionais do núcleo, das quais eu usualmente participava. Muito se falou sobre os motivos que teriam levado a assistida a “desistir” da modificação do registro civil e os impactos que uma ação deste tipo poderia causar tanto nas várias teorias sobre a transexualidade quanto nas reivindicações e argumentações utilizadas por movimentos militantes pelos direitos de pessoas transexuais.

03.04.2014 Raissa chegou por volta das 15h, como havia marcado. Quando o segurança anunciou sua chegada, eu, a defensora pública, as estagiárias e a recepcionista77 conversávamos sobre o caso. A hipótese da defensora era de que Raissa havia se convertido a alguma religião que não aceita a transexualidade. Por um momento, pensamos em ir todos conversar com a assistida, tamanha era a curiosidade em relação ao caso. No entanto, a defensora pediu que não fôssemos todos juntos, para não assustá-la. Ela então sugeriu que a recepcionista acompanhasse uma das estagiárias e que eu me dirigisse até a sala apenas alguns minutos depois das duas primeiras. Raissa foi levada para a sala na qual os assistidos do NUDIVERSIS são atendidos e cerca de dez minutos depois eu bati na porta, me apresentei como um pesquisador e perguntei se Raissa se incomodaria com minha presença, ao passo que ela respondeu negativamente. Tentei me manter em silêncio o maior tempo possível. Algumas coisas me incomodaram profundamente naquela sala. Dentre elas, meu suposto interesse “científico” pela trajetória de sofrimento de Raissa fez com que me sentisse uma espécie de antropólogo “carniceiro”. Raissa disse estar passando por momentos muito difíceis em sua vida nos últimos tempos. Ela alegou que a mudança de documentos não alterou a vida dela de forma significativa. Ela migrou do Ceará para o Rio de Janeiro e aqui passou por todo o processo de transformação de seu corpo, sendo acompanhada pelo programa de transgenitalização do HUPE. Contudo, ela relatou que possui alguns problemas de saúde que a impedem de obter bons resultados com o tratamento hormonal prescrito para as pessoas transexuais. Raissa relatou que, por conta disso, ainda possui uma série de “características masculinas” que a incomodam e que a impedem de se enxergar “plenamente como mulher”. Além disso, ela 77

A recepcionista não é uma funcionária do quadro oficial do NUDIVERSIS. Pelo contrário, dentre suas atividades, destaca-se uma espécie de auxílio geral que é prestado, principalmente, para os técnicos administrativos do NUDEDH. Entretanto, ela adquiriu uma singularidade no caso da Raissa, pois é também uma mulher transexual.

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também contou que não passou pela cirurgia de transgenitalização, sem explicitar exatamente os motivos. Atualmente, Raissa diz estar insatisfeita com seu trabalho e enfrentando dificuldades financeiras devido ao aumento do custo de vida na cidade do Rio de Janeiro. Ela trabalha há quase dez anos como caixa de um café localizado em um famoso cinema na zona sul da cidade. Ela diz que já sofreu alguns assédios morais em seu emprego, mas que ela não o abandona por não ter encontrado outra oportunidade até então. Além de não ter um elevado nível de escolaridade – Raissa não concluiu o ensino médio –, a assistida diz que enfrenta muitos problemas na busca por vagas no mercado de trabalho devido ao preconceito que assola as pessoas transexuais. Segundo ela, a alteração apenas de seu nome de registro e não do sexo produziu uma situação de confusão e ambiguidade. Raissa relatou que muitas pessoas não entendem a situação quando ela entrega seu currículo com um nome feminino e o sexo masculino. Neste sentido, ela sente que é associada à travestilidade e seu currículo é descartado quase que imediatamente. Raissa contou também que tem um namorado, mas que a relação não está mais tão firme quanto já foi. Ela relatou que seu namorado já terminou o relacionamento algumas vezes alegando que gostaria de ter filhos biológicos e que isso ela nunca poderá fazer. Esta atitude do namorado contribui de forma substancial para que ela não se enxergue como uma “mulher completa”. Segundo Raissa, o somatório de todos esses problemas gerou nela um quadro de depressão. Ela está fazendo acompanhamento com um psiquiatra no HUPE, mas diz não estar tendo bons resultados. Diante disso, Raissa explicou que não quer somente “reverter” o processo de requalificação civil, mas também pretende desfazer as modificações corporais realizadas, como por exemplo, retirar as próteses de silicone. Raissa diz que não é assim que ela gostaria de viver, mas acredita que essa atitude será a solução para muitos dos problemas enfrentados. De um modo um tanto ressentido, Raissa diz que gays sofrem menos preconceito que as travestis e transexuais. Assim, ela acredita que sua vida será mais fácil caso ela “volte a ser menino”. O atendimento de Raissa consistiu, basicamente, em uma tentativa de fazer com que ela avaliasse melhor seu pedido e até mesmo desistisse de alterar novamente seu registro civil. A recepcionista contou vários casos de pessoas transexuais que obtiveram sucesso em suas vidas profissionais e se prontificou em acionar sua rede de contatos para tentar arranjar um novo emprego para Raissa. A estagiária, por sua vez, contou uma série de casos de preconceitos vivenciados por ela e por pessoas próximas por conta do machismo, racismo, homofobia etc. como forma de “naturalizar” a discriminação e mostrar pra Raissa que ela não está “sozinha no mundo” e que é preciso enfrentar certas situações. A estagiária também argumentou que por conta do estado depressivo, Raissa não estaria em condições de tomar uma decisão tão importante neste momento e que qualquer juiz entenderia a questão dessa forma, extinguindo o processo. Neste sentido, a estagiária recomendou que Raissa continuasse em acompanhamento psiquiátrico e que só retornasse à Defensoria Pública com uma decisão quando ela estivesse se sentindo melhor. Raissa se manteve firme e disse que trocou de nome a primeira vez de forma precipitada e que se trocasse novamente, não se arrependeria, pois ela sabe que alterar o registro civil “não é brincadeira” e ela também não tem condições financeiras de para ficar colocando e retirando próteses de silicone. O atendimento de Raissa durou ao todo quase três horas. Na maior parte do tempo, a assistida foi ouvida e questionada pela estagiária e pela recepcionista. Dentre as soluções alternativas oferecidas estavam 1) uma tentativa de processar o Estado com base no direito

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à saúde para que este seja obrigado a realizar a cirurgia transgenitalizadora; 2) a tentativa de alteração do sexo no registro civil para que a ambiguidade descrita pela assistida se dissipasse. Ambas as propostas obedecem o roteiro previsto pela “terapia de mudança de sexo”. (Diário de campo, abril de 2014)

Nos meses que se seguiram, muito foi discutido sobre a situação de Raissa. A assistida teve um atendimento agendado diretamente com a Defensora Pública e foi chamada a comparecer no NUDIVERSIS algumas vezes. Em uma destas vezes, Raissa teve que ir buscar um ofício que a encaminhava para a realização de um novo Estudo Social com psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública. Em maio de 2014, Raissa foi atendida por uma psicóloga da DPGE-RJ, que se recusou a fazer um relatório recomendando uma nova alteração no nome de Raissa. Este episódio fez com que o caso se tornasse novamente pauta dos assuntos das funcionárias do núcleo. Um dos assuntos deste dia foram as alegações que poderiam ser apresentadas para que o NUDIVERSIS se recusasse a atender a demanda da assistida. Após alguns debates, chegou-se à ideia de que esta ação poderia, a longo prazo, trazer certos danos para Raissa e que, portanto, não era recomendável fazê-la. Em alguns diálogos, uma das estagiárias comentava sobre seu medo de que uma/um assistida/o pudesse vir a se suicidar enquanto aguardava a resolução de seu pedido de requalificação civil. Como discutido no primeiro capítulo, o suicídio, de certo modo, figura no horizonte de acontecimentos do núcleo ao mesmo tempo em que sinaliza o fracasso absoluto do serviço de assistência. Nos momentos em que o caso de Raissa era mencionado, eu insistia em oferecer meu ponto de vista da situação: afirmava que Raissa era uma pessoa lúcida e consciente, de modo que sua autonomia não estava de modo algum comprometida. Em meados de julho, período em que eu começava a me preparar para deixar o campo, o caso de Raissa voltou a circular intensamente pelos corredores do NUDIVERSIS. No início do mês, a Defensora Pública pediu que as estagiárias marcassem um atendimento para que a situação fosse resolvida em definitivo. Neste dia, a Defensora comentou que Raissa já havia ido conversar com a psicóloga e com a assistente social da DPGE-RJ três vezes e que em todas as vezes a assistida insistiu em dizer que “já não via mais sentido em ser mulher”. A Defensora pediu que o agendamento fosse feito com urgência, pois ela estava preocupada com Raissa, uma vez que a psicóloga comentou que a assistida relatou ter comprado chumbinho78 para cometer suicídio, mas que não tinha tido coragem.

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Chumbinho é o nome dado a um produto químico clandestino popularmente utilizado como raticida. Além disso, o chumbinho figura como um dos principais meios pelos quais as pessoas tentam e/ou cometem suicídio.

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22.07.2014 Raissa chegou para ser atendida no final do dia após muitas remarcações e imprevistos. A assistida estava vestida de um modo que foi classificado pelas profissionais como “neutro”: um tênis all star xadrez, uma calça jeans escura de corte reto e uma camiseta preta sem estampas. Raissa reforçou seu desejo de ter um nome masculino novamente. De início, ela apresentou uma declaração dada por uma psicóloga do HUPE dizendo que ela não faz mais parte do programa transexualizador e que já não tem mais intenção de fazer a cirurgia transgenitalizadora. A Defensora pediu que ela explicasse melhor o que está acontecendo em sua vida. Raissa disse que não vê mais possibilidade de sucesso econômico no Rio de Janeiro e que pretende voltar para o Ceará para morar com sua família novamente. Ela reiterou que está insatisfeita com seu trabalho, mas que não tem acesso a outras oportunidades. Reclamou do aumento do custo de vida na cidade, do aumento do aluguel, dos “custos laterais” com a transexualidade, como compra de roupas, maquiagem, cuidados com o cabelo, depilação, etc., com os quais ela diz não ter mais condições de arcar. Além disso, Raissa afirmou novamente que a mudança de documentos não efetivou nenhuma grande mudança na sua vida, como ela acreditava que faria. A assistida disse que de nada adianta ter um documento feminino se as pessoas continuam tratando-a com diferença e discriminando-a. Ela relatou também que não toma hormônios, o que faz com que sua aparência se masculinize, a ponto de já ter sido tratada no masculino por clientes do café onde trabalha, situação que a deixa profundamente magoada e ressentida. Durante todo o atendimento, Raissa se referiu à alteração do nome como “resolver isso”, indicando a existência de um “problema a ser solucionado”. A assistida também insistiu que gostaria de fazer todo o processo de reversão – registral e corporal – antes de retornar ao Ceará. Raissa reclamou também das dificuldades que está enfrentando para ter sua demanda atendida e do tempo despendido em conversas repetidas com assistentes sociais e psicólogos. Após ouvir Raissa, a Defensora Pública explicou à assistida que não é possível reverter um processo judicial deste tipo. O que pode ser feito é abrir um novo processo de requalificação civil, no qual o fato da primeira alteração do nome não poderia ser omitido. A Defensora enfatizou que quer que ela consiga solucionar seus problemas, mas que ela, enquanto operadora do Direito, não poderia perder o horizonte jurídico de vista. Deste modo, a Defensora falou que compreende os motivos pelos quais Raissa deseja viver novamente com um nome masculino, mas que estes não podem ser juridicamente sustentados em uma ação de requalificação civil. Assim, a única estratégia possível é a mesma dos outros procedimentos de alteração de nome e sexo no registro civil, ou seja, convencer o juiz de que Raissa é, na verdade, um homem e que seu documento, do jeito que está, é uma verdadeira fonte de aflição. Para isso, Raissa precisará entregar, do mesmo modo que as/os outras/os assistidas/os, laudos afirmando sua condição masculina e também fotos suas retratando sua vivência do gênero masculino. Raissa disse que já conversou com a psicóloga do HUPE sobre sua vontade, mas que esta não deu a declaração que ela precisa. A Defensora então redigiu rapidamente um ofício a ser entregue para a psicóloga especificando as informações que precisarão constar na declaração emitida pela profissional. No fim das contas, a Defensora reiterou sua vontade de ajudar Raissa, mas ressaltou que é preciso reunir um mínimo de provas para que a ação

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possa ser julgada procedente. Estas provas se concentram na ideia de provar a masculinidade de Raissa. Ao ouvir isso, uma ideia passou pela minha cabeça. Curiosamente, antes de conseguir ser reconhecida oficialmente por um nome feminino, Raissa precisou comprovar sua feminilidade “apesar de ter um pênis”; agora, para recuperar o nome masculino, a assistida precisa provar que é homem “mesmo tendo um pênis”. (Diário de campo, julho de 2014)

Uma semana depois desse encontro na Defensoria Pública encerrei oficialmente o campo no NUDIVERSIS. O relativo isolamento imposto pelo processo de escrita fez com que meu contato com as pessoas do campo se tornasse muito reduzido, limitado à troca de algumas mensagens através da internet e das redes sociais. A última vez que encontrei Raissa foi no dia 11 de outubro de 2014, em seu local de trabalho, durante o expediente. Ela utilizava o crachá com o nome feminino, os cabelos loiros compridos e ainda não havia retirado a prótese de silicone, como dizia sentir vontade alguns meses atrás. Perguntei como ela estava e quais eram as novidades sobre seu processo de requalificação civil. Raissa reclamou que nada havia sido feito até então, que ela já não aguentava mais ir e voltar nos psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública para dizer e ouvir as mesmas coisas e que ela já não sentia mais ânimo em fazer nada. Pouco tempo depois, um dos funcionários do café começou a chamar seu nome enfaticamente e eu entendi que poderia estar atrapalhando-a, afinal, ela estava em horário de trabalho. Quase um mês depois, no dia 06 de novembro de 2014, por volta das 14 horas, estava escrevendo a dissertação quando recebi uma mensagem de uma das estagiárias do NUDIVERSIS noticiando que, ao que tudo indicava, Raissa havia se suicidado há alguns dias. Naquele momento a informação ainda não havia sido verificada por nenhuma das profissionais do núcleo. Uma rápida busca na internet através da rede social facebook confirmou a história. Uma página dedicada aos mais diversos assuntos relacionados a travestis e transexuais havia postado uma nota sobre o falecimento de Raissa no início da tarde daquele mesmo dia. Reproduzo aqui um trecho:

Raissa era funcionaria no Espaço Itaú de Cinema, e há pouco tempo foi notícia por vencer na Justiça o direito de ser reconhecida pelo nome conforme a sua identidade de gênero. Mesmo com todas as conquistas Raissa estava insatisfeita com a vida em continuar não sendo aceita mesmo depois da cirurgia de readequação sexual e passava por problemas de depressão, e tirou sua própria vida(suicídio).

O registro no facebook continha um link para outra nota publicada na versão online de um dos mais importantes jornais que circulam no Rio de Janeiro. Esta pequena nota consegue, 159

em apenas três linhas, reproduzir as violências que as pessoas transexuais vivenciam cotidianamente. Sem se preocupar em informar corretamente o leitor nem sobre Raissa e nem sobre o acontecido, a nota, escrita de forma extremamente ambígua, permite uma multiplicidade de interpretações. A primeira violência se faz ver quando a despeito do modo pelo qual Raissa se identificava, a autora da nota diz que “a travesti Raissa foi encontrada morta”. Localizada em uma coluna cujo título é “crime”, o texto reforça um estigma que associa travestis à criminalidade. Além disso, ao tratar a morte de Raissa como um delito, sugere-se que sua vida tenha sido tirada por alguém – possivelmente o próprio namorado? – e não que ela tenha se suicidado, como de fato aconteceu. Tomo a liberdade de copiar o conteúdo desta nota na íntegra: CRIME Travesti que mudou de nome é encontrada morta no Catete A travesti Raíssa, que trabalhava no Espaço Itaú de Cinema, em Botafogo, foi encontrada morta pelo seu namorado, ontem, no apartamento dela no Catete. Há pouco tempo, Raissa ganhou na Justiça o direito de ser chamada pelo nome79.

*** A nota de falecimento publicada no facebook descreve Raissa como um tipo de “modelo exemplar” ao enfatizar uma série de “sucessos” que ela obteve ao longo de sua vida, os quais não são tão comuns nas biografias de pessoas transexuais: um emprego formal, um relacionamento estável, a cirurgia de transgenitalização e o direito a ser reconhecida oficialmente pelo nome e sexo com os quais se identificava. Entretanto, o discurso de Raissa sobre a própria vida era um tanto diferente, afinal: 1) uma das soluções propostas pela Defensoria era tentar obrigar o Estado a realizar a cirurgia de transgenitalização; 2) em diversos momentos Raissa disse que seu relacionamento não era tão estável, o que ameaçava sua moradia, pois o apartamento pertencia ao namorado; 3) Raissa reclamou das condições de trabalho e relatou estar em busca de outras oportunidades; 4) ela adquiriu somente a modificação de seu nome de registro, não do sexo, o que, segundo seus relatos, gerou uma situação de ambiguidade e confusão “pior que a anterior”. 79

Disponível em: . Último acesso em dezembro de 2014.

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Em outras palavras, poderia dizer que as declarações contidas na postagem do facebook não levam em consideração a visão que Raissa tinha da própria vida. Contudo, ao fazer uma afirmação deste tipo – extremamente perigosa entre antropólogos – não pretendo oferecer uma explicação que torne o suicídio de Raissa compreensível ou determinar aquilo que ela considerava como “mais importante”. Como Kleinman (2006) sugere ao se questionar sobre o que “realmente importa” nas vidas dos indivíduos, os sujeitos buscam viver “vidas morais” e viver uma “vida moral” significa agir de acordo com aquilo que se considera como o mais correto. Deste modo, as pessoas constroem o sentido de suas vidas de formas particulares e, assim, sempre existirá algo inapreensível a todos os demais. Ressalto, então, que ao trazer o caso de Raissa para o centro da discussão, não pretendo oferecer uma narrativa que domestique este “inapreensível” ou que a apresente como um caso exemplar de algo, mas sim tento objetivar os acontecimentos através do enquadramento das complexidades de sua vida a partir das indexações disponíveis, isto é, a partir daquilo a que tive acesso enquanto um pesquisador atuante em um núcleo da Defensoria Pública. Assim, busco descrever Raissa como mais do que um sujeito absoluto do sexo-gênero – como a “terapia de mudança de sexo” tenta enquadrar as pessoas transexuais –, ainda que boa parte de minhas reflexões estejam relacionadas a este aspecto de sua vida. A imagem construída pelas informações mencionadas na nota encontrada na página do facebook representa aquilo que se espera do cumprimento de uma promessa de transformação radical da vida e solução instantânea dos problemas que é amplamente disseminada e consolidada entre as pessoas transexuais. Como discutido ao longo dos capítulos anteriores, tal promessa é promovida pelo discurso que constrói a “terapia de mudança de sexo”, que é elaborada como uma espécie de “cura” para todos os sofrimentos que podem estar envolvidos nas experiências de pessoas transexuais: o incômodo em relação ao próprio corpo, a discriminação vivenciada cotidianamente etc. A incorporação subjetiva desta promessa de resolução mágica das atribulações pode ser percebida nos relatos das/os assistidas/os do NUDIVERSIS, que descrevem tanto a cirurgia de transgenitalização quanto a alteração do registro civil como uma espécie de “renascimento” e recomeço da vida, como demonstrado ao final do terceiro capítulo. Visões mais ou menos parecidas foram encontradas nas investigações empreendidas ao longo dos últimos anos por Zambrano (2003), Bento (2006), Ventura (2010) e Teixeira (2013). Além disso, esta crença também ficou visível no teor da nota de falecimento publicada na rede social, que faz questão de ressaltar a insatisfação de Raissa mesmo com todas as conquistas. As/os usuárias/os do facebook que acessam a página responsável pela publicação, 161

na sua grande maioria travestis e transexuais, deixaram comentários que expressam, ao menos implicitamente, certo ressentimento por Raissa ter tirado a própria vida mesmo após ter conseguido coisas que outras pessoas transexuais – possivelmente elas/es mesmas/os – ainda buscam. Alguns destes sujeitos se manifestaram no espaço virtual através de uma pergunta quase que retórica: “como Raissa poderia estar em depressão e insatisfeita com a vida mesmo após ter conseguido a alteração de seu registro civil e a cirurgia de transgenitalização?”. Uma pergunta deste tipo faz sentido em um contexto no qual os “direitos” são construídos como “bens escassos” concedidos somente àqueles que provam serem merecedores de tais “benefícios” (Vianna, 2013). Como observado na introdução deste trabalho, não existe no Brasil uma lei de identidade de gênero que permita que travestis e pessoas transexuais acessem o direito à alteração do registro civil de forma legalmente prevista. Uma vez que os procedimentos não estão uniformizados e, como dito no terceiro capítulo, nem mesmo a jurisprudência está pacificada, o processo de definição dos sujeitos direitos acarreta a construção de uma ideia de “privilégio”. Assim, é preciso atentar para os perigos que um determinado ganho traz, ou, em outras palavras, para os “possíveis venenos que os presentes guardam” (Vianna, 2005, p. 49). Ao ser considerada como merecedora do direito à requalificação civil, a pessoa é inserida em um tipo de relação de “dívida moral”, cujo pagamento deve ser feito por meio da expressão da gratidão. Como demonstrou Coelho (2006), nas relações de troca entre pessoas de status desiguais, a demonstração da gratidão figura como uma forma possível de retribuição da dádiva, pois opera a manutenção da hierarquia. Entretanto, se existe uma dívida, se faz necessária uma pergunta: se deve a quem? No caso de Raissa, quando ela renuncia tanto ao direito à requalificação civil quanto à vaga no programa transexualizador do HUPE, ela não retribui as “dádivas” que lhe foram concedidas. Pelo contrário, Raissa, de certa forma, “ofendeu” um amplo conjunto de sujeitos: os profissionais da Defensoria Pública, que despenderam seu tempo e energia realizando os procedimentos de assistência para que ela pudesse protocolar a ação de requalificação civil; os juízes e promotores – os quais representam o “Estado” através do Judiciário – que deram procedência ao pedido de alteração do registro civil, abrindo assim uma “exceção” à regra de imutabilidade do prenome; e até mesmo as outras pessoas transexuais que ainda aguardam na fila para terem seus desejos atendidos. Isto é, a renúncia de Raissa foi vista, ao menos em um primeiro momento, como uma forma de “ingratidão”. Com relação ao ressentimento manifestado pelas/os leitoras/es da página do facebook, acredito que a resposta mais honesta para questionamento feito por estas/es pode ser encontrada na própria nota de falecimento publicada pelas/os administradoras/es da página. Como o texto 162

expõe de modo claro, apesar de – supostamente – ter passado por todos os procedimentos previstos na “terapia de mudança de sexo”, Raissa continuava não sendo aceita socialmente como mulher e, de acordo com suas constantes reclamações apresentadas nos corredores do NUDIVERSIS, essa era uma das fontes de sua insatisfação. Outras frustrações, não menos importantes, eram oriundas das dificuldades econômicas enfrentadas, das condições de trabalho, da situação de habitação etc. O não reconhecimento social da sua forma de identificação fica ainda mais evidente quando lemos na outra nota, a publicada no jornal, que Raissa era uma “travesti que mudou de nome”, cuja morte, quase que obviamente, não pode estar relacionada a outro fator que não um crime. É este não reconhecimento que revela as fragilidades do discurso sobre a “terapia de mudança de sexo” e da promessa de reconstrução da vida que a acompanha. A existência dos limites desta promessa foi sinalizada por Zambrano (2005) anos atrás, pois, segundo ela, após a cirurgia de transgenitalização, “os transexuais deixam de pertencer ao sexo de nascimento, mas não passam a pertencer inteiramente ao outro. Quero chamar atenção para o fato de a medicina continuar classificando transexuais como tais, reafirmando que serão sempre transexuais, jamais homens ou mulheres” (p. 109). É com uma discussão acerca dos limites desta promessa que gostaria de concluir este trabalho. Em primeiro lugar, é preciso destacar que as tensões entre diferentes mundos sociais não se esgotam com a aquisição de um documento, que é perigosamente fetichizado como aquilo que resolverá o “problema” das pessoas transexuais através da fabricação de uma suposta coerência entre corpo, mente e identidade. Como abordado por Goffman (1975 e 1988), a identidade não é fixa e sem contradições, de modo que seu reconhecimento faz parte de jogos relacionais e interativos complexos, dos quais os documentos de identificação, apesar de extremamente importantes, figuram apenas como mais um elemento. No caso de Raissa, foi justamente a aquisição dos documentos devidamente alterados que significou a disjunção insuportável e o desencaixe absoluto. A figura da travesti, reiteradamente apagada pelos procedimentos que compõem a “terapia de mudança de sexo”, reapareceu nas suas interações cotidianas como, por exemplo, quando ela foi buscar um novo emprego e até mesmo após sua morte, quando a nota publicada no jornal a descreveu como uma “travesti que mudou de nome”. Além disso, o Estado, enquanto produtor de categorias que regulam e dão significado à vida (Bourdieu, 1989), não é capaz de dar conta das complexidades vivenciadas pelos sujeitos. Podemos dizer que Raissa desistiu no “meio do processo” – e aqui me refiro tanto à requalificação civil, pois somente seu nome foi alterado e não o sexo; quanto à transgenitalização, uma vez que ela tinha iniciado a hormonização, mas a cirurgia ainda não 163

havia sido realizada. Sua desistência revela a ilusão da homogeneização e estabilização de uma categoria que é pretendida pelo aparato administrativo do Estado e construída através da série de mecanismos analisados nos capítulos desta dissertação: a criação de um núcleo específico para o atendimento da “população LGBT”; a delimitação daquilo que pode ser registrado durante o primeiro atendimento; a aquisição de determinados documentos por meio da peregrinação burocrática; e que é, por fim, materializada no modelo de petição inicial de requalificação civil. Ou seja, a abdicação de Raissa ilumina o efeito de “naturalização” – e, consequentemente, de apagamento das relações de poder envolvidas neste processo – promovido pelos inúmeros discursos que circundam a “terapia de mudança de sexo” na medida em que estes tentam homogeneizar os procedimentos políticos, administrativos e morais, todos produzidos para serem vistos como “corretos”. Em linhas gerais, a promessa de “mudança de sexo” nunca poderá ser efetivamente cumprida80 enquanto as normas que regulam os gêneros se mantiverem numa oposição binária que não apenas reproduz, mas também está a serviço de uma noção restritiva de sexo. A não aceitação da identidade relatada por Raissa e descrita na nota publicada no facebook sugere que há uma determinada concepção de sexo, marcada pelo essencialismo, disseminada no senso comum. Ainda que não vincule o sexo à presença das genitálias, esta concepção pode ser considerada essencialista na medida em que o sexo é tomado como algo natural e certamente biológico, mas cuja essência é difusa e não localizável, acarretando assim a sua imutabilidade. Tal inalterabilidade pode ser percebida através das máximas que escutamos cotidianamente como “fulano nasceu mulher”, “fulana nasceu homem”, “nunca será mulher porque nunca gerará filhos”, entre outras. A construção da “terapia de mudança de sexo” reforça uma lógica apontada por Bento (2004 e 2006) que aloca a fonte dos conflitos que perpassam as experiências transexuais nos “indivíduos transtornados” e não nas normas de gênero. Ou ainda, como salientado por Teixeira (2013), a definição de “disforia de gênero” que consta no DSM pressupõe que a causa do sofrimento vivenciado por pessoas transexuais é o “transtorno” ou a “perturbação”, enquanto a verdadeira fonte destas dores – as normas sociais – não são problematizadas. É esta localização do conflito nos sujeitos que atua para a despolitização da questão e reproduz os mecanismos operativos do dispositivo da transexualidade. De acordo com Bento, “o que antecede aos conflitos com as genitálias são aqueles com a própria construção das verdades para o gêneros,

Da mesma forma que a “mudança de sexo” nunca poderá ocorrer efetivamente, as normas de gênero também nunca poderão ser plenamente satisfeitas por um sujeito (Butler, 2003) e, portanto, ambas serão sempre violentas. 80

164

efetivadas nas obrigações que os corpos paulatinamente devem assumir para que possam desempenhar com sucesso os designíos do seu sexo” (2006, p. 164). Deste modo, é preciso problematizar tal promessa, pois a construção de uma única forma legítima de apreensão das experiências transexuais – o diagnóstico da disforia de gênero – e, consequentemente, de uma única possibilidade de “tratamento” – a “terapia de mudança de sexo” – impõe uma única forma de reconhecimento destas nos marcos daquilo que é considerado como “humano”, o que, por sua vez, pode inviabilizar não só o exercício da cidadania, mas a vida como um todo. Ao apreender as pessoas transexuais como sujeitos unicamente do sexo-gênero – ignorando assim uma série de outros fatores preponderantes, tais como raça, classe, idade etc. – e localizar o “problema” exclusivamente na pessoa, a “terapia de mudança sexo” passa a ser vista como a única forma possível de resolução dos conflitos e sofrimentos. Contudo, a possibilidade desta “terapia” falhar em algum ponto é grande – até mesmo quando todas as suas etapas são executadas como previsto – e, assim, a promessa de transformação da vida pode nunca ser efetivamente cumprida. Outra característica da “terapia de mudança de sexo” que precisa ser discutida é que esta, do modo como se encontra construída atualmente, invisibiliza críticas e não admite interpelações. Como observou Mauss (2003) muitas décadas atrás, quando a magia dá errado, a crença protege a magia de ser questionada e atribui ao mágico a responsabilidade pela falha. Quando a “terapia de mudança de sexo” não funciona, a autoridade médico-científica impede que o “tratamento” seja contestado, pois, uma vez que o “problema” se encontra no indivíduo transexual, somente o próprio pode ser responsabilizado pelo insucesso da “terapia”. Logo, mais do que proteger sujeitos supostamente vulneráveis – como descrito no documento que fundamenta a necessidade de criação de um núcleo especializado para o atendimento da “população LGBT” –, esta construção tem por função resguardar os aparatos do Estado. No caso de Raissa, tal preservação do Estado fica clara na medida em que a patologia é retransferida para ela – não mais a “disforia de gênero”, mas sim a “depressão” – e o “problema” é novamente localizado apenas nela. Ademais, apesar do suicídio figurar nos discursos de diferentes profissionais – operadoras do Direito, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais – como aquilo que deve ser evitado a todo custo, pois sinalizaria o “fracasso” dos serviços públicos, este, quando de fato acontece, se dá em um cenário domesticado cognitiva e politicamente, uma vez que se encontra desde o início no horizonte de possibilidades e reitera os riscos inerentes às experiências da transexualidade, reforçando, assim, a ideia de vulnerabilidade e o conjunto de fragilidades dos sujeitos que são constitutivos destes serviços. 165

Em suma, o objetivo desta dissertação foi apresentar algumas reflexões sobre a gestão judicial da demanda por requalificação civil de pessoas transexuais. Entretanto, é preciso reconhecer e ter consciência de que existem pelo menos três dimensões completamente distintas em jogo: 1) os objetivos e limites da atividade acadêmica; 2) o tipo de trabalho de assistência jurídica realizado pelo núcleo; e 3) a própria vida das pessoas transexuais com seus anseios e questões. Assim, ressalto que ao enfatizar as práticas administrativas e interações entre as profissionais do núcleo e as/os assistidas/os, não tenho por intenção me colocar na posição daquele que pode fazer uma “denúncia” sobre a desigualdade das relações de poder entre administradores e administrados, “revelar a verdade” sobre o funcionamento do Judiciário e suas instâncias anexas, como é o caso da Defensoria Pública, ou mesmo oferecer uma “fórmula correta” de realização dos procedimentos no interior do núcleo. Minha intenção é, antes de tudo, tentar iluminar algumas questões sobre como tal gestão implica um processo complexo de constituições múltiplas de “sujeitos de direitos”, políticas públicas e aparatos de Estado, que é perpassado por inúmeras contradições. Por fim, reitero que ao trazer este conjunto de críticas – e não só as contidas nas considerações finais, mas ao longo da dissertação como um todo – não pretendo, de forma alguma, desqualificar a existência do NUDIVERSIS e o trabalho realizado pelas profissionais, muito menos as demandas feitas por pessoas transexuais no que diz respeito ao acesso aos “seus direitos”, isto é, a determinados bens de cidadania como, por exemplo, a alteração do registro civil, a assistência integral à saúde, a cirurgia de transgenitalização etc. Conforme abordado na introdução, o cenário no qual as atuações das profissionais se desenrolam é marcado por incertezas e dificuldades, uma vez que não existe o amparo legal necessário para que os direitos possam ser acessados. Afinal, ainda que seja um dos discursos envolvidos nos embates e disputas

políticas

que

constroem

uma

determinada

temática,

um

trabalho

acadêmico/antropológico não deve ofertar “soluções mágicas” e assertivas para resolver algo que é constituído enquanto um “problema social”.

166

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168

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169

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que

(con)formam

as

VALENTE, Renata Curcio. “Sobre etnografar em condições de poder e assimetria: uma experiência sobre o campo da cooperação para o desenvolvimento a partir da GTZ”. In: CASTILHO, Sérgio; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; TEIXEIRA, Carla Costa (orgs.). Antropologia das Práticas de Poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2014, p. 169-198. VANCE, Carol. A Antropologia Redescobre a Sexualidade: um comentário teórico. PHYSIS – Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, v. 5, n. 1, 1995, p. 731. VENTURA, Miriam. A Transexualidade no Tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, 164 p. VIANNA, Adriana. “Quem deve guardar as crianças? dimensões tutelares da gestão contemporânea da infância”. In: SOUZA LIMA, Antonio Carlos de (org.). Gestar e Gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/NUAP/UFRJ, 2002, p. 271-311. ________. “Direitos, Moralidades e Desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças”. In: LIMA, Roberto Kant de (org.). Antropologia e Direitos Humanos 3 – Prêmio ABA/FORD. Niterói: EdUFF, 2005, p. 13-68. 171

________. “Atos, Sujeitos e Enunciados Dissonantes: algumas notas sobre a construção dos direitos sexuais”. In: MILSKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa (orgs.). Discursos Fora da Ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume, 2012, p. 227-244. ________. “Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direitos”. In: VIANNA, Adriana (org.). O Fazer e o Desfazer dos Direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013, p. 15-35. ________. “Etnografando Documentos: uma antropóloga em meio a processos judicias”. In: CASTILHO, Sérgio; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; TEIXEIRA, Carla Costa (orgs.). Antropologia das Práticas de Poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2014, p. 43-70. WEBER, Max. “Sociologia do Direito”. In: Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, vol. II. Brasília: Editora da UNB/São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 1-153. WHITE, Geoffrey. “Moral discourse and the rhetoric of emotions”. In: LUTZ, Catharine; ABULUGHOD, Lila (eds.). Language and the Politics of Emotion. New York: Cambridge University Press, 1990, p. 46-68. WILSON, Richard Ashby; MITCHELL, Jon P. “Introduction: the social life of rights. In: ________ (Eds.). Human Rights in Global Perspective: anthropological studies of rights, claims and entitlements. New York: Routledge, 2003, p. 1-15. ZAMBRANO, Elizabeth. Trocando os Documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de sexo. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003, 120 p. ________. “Mudança de nome no registro civil: a questão transexual”. In: ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula; FERREIRA, Verônica (orgs.). Novas Legalidades e Democratização da Vida Social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 95-111.

Legislação, Resoluções e Portarias consultadas

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172

CFM, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1482/1997. Brasília: Diário Oficial da União, 1997, p. 20.944. CFM, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.652/2002. Brasília: Diário Oficial da União, 2002, p. 80-81. CFM, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.955/2010. Brasília: Diário Oficial da União, 2010, p. 109-110. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria nº 457, de 19 de Agosto de 2008. Brasília: Diário Oficial da União, 2008. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2008/prt0457_19_08_2008.html>. Último acesso em fevereiro de 2015.

173

ANEXO I – Quadro de funcionárias do NUDIVERSIS durante a pesquisa

Função

Idade

Formação

Tempo na DPGE-RJ

Tempo no NUDIVERSIS

Defensora

32

Graduação em Direito; cursando Mestrado em Direito

8 anos

3 anos

Assessora

54

Graduação em Direito e em História

Não há informação precisa

3 anos

TécnicaAdministrativa

27

Graduação em Direito

2 anos

2 anos

Estagiária I

21

Cursando o 7º período da graduação em Direito

10 meses

10 meses

Estagiária II

21

Cursando o 5º período da graduação em Direito

6 meses

6 meses

174

ANEXO II – Núcleos Regionais da DPGE-RJ na cidade do Rio de Janeiro

Núcleo

Bairros de Abrangência

Anchieta

Anchieta, Acari, Barros Filho, Coelho Neto, Costa Barros, Guadalupe, Parque Anchieta, Pavuna e Ricardo de Albuquerque.

Bangu

Bangu, Campo dos Afonsos, Deodoro, Jardim Sulacap, Magalhães Bastos, Padre Miguel, Realengo, Vila Militar e Senador Camará.

Barra da Tijuca

Barra da Tijuca, Caeté, Grumari, Pau Ferro, Musema, Piabas, Recreio dos Bandeirantes, Rio Bonito, Vargem Grande e Vargem Pequena.

Botafogo

Botafogo, Catete, Copacabana, Cosme Velho, Flamengo, Glória, Humaitá, Laranjeiras, Leme e Urca.

Campo Grande

Campo Grande, Augusto de Vasconcelos, Barra de Guaratiba, Ilha de Guaratiba, Inhoaíba, Mendanha, Morro da Pedra, Praia do Aterro, Rio da Prata e Pedra de Guaratiba.

Central

Centro, Cidade Nova, Catumbi, Caju, Aeoroporto, Castelo, Estácio, Fátima, Lapa, Mangue, Ilha de Paquetá, Santa Tereza e Rio Comprido.

Ilha do Governador

Ilha do Governador.

Irajá

Irajá, Colégio, Vicente de Carvalho, Terra Nova, Vila da Penha, Vila Kosmos e Vista Alegre.

Jacarepaguá

Praça Seca, Anil, Camorim, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Pechincha, Taquara, Tanque e Vila Valqueire.

Leblon

Gávea, Jardim Botânico, Leblon, Rocinha e São Conrado.

Madureira

Madureira, Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Cavalcante, Quintino Bocaiúva, Engenheiro Leal, Honório Gurgel, Magno, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz, Rocha Miranda, Turiaçu e Vaz Lobo.

Méier

Méier, Abolição, Água Santa, Cachambi, Catumbi, Encantado, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Jacaré, Jacarezinho, Lins de Vasconcelos, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha, Sampaio, São Francisco Xavier e Todos os Santos.

Pilares

Inhaúma, Del Castilho, Engenho da Rainha, Tomás Coelho, Higienópolis e Maria Da Graça.

Ramos

Ramos, Bonsucesso, Brás de Pina, Cordovil, Jardim América, Manguinhos, Complexo do Alemão, Parada de Lucas, Penha Circular, Olaria e Vigário Geral.

Santa Cruz

Santa Cruz, Paciência, Palmares e Sepetiba.

São Cristóvão

São Cristóvão, Praça Mauá, Caju, Gamboa, Santo Cristo, Saúde, Benfica, Mangueira e Triagem.

Vila Isabel

Vila Isabel, Maracanã, Tijuca, Usina, Muda, Praça da Bandeira, Aldeia Campista, Alto da Boa Vista, Andaraí, Engenho Velho e Grajaú.

175

ANEXO III – Núcleos Especializados da DPGE-RJ

Sigla CDEDICA

Núcleo Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

NEAPI

Núcleo Especial de Atendimento à Pessoa Idosa

NUPED

Núcleo de Atendimento à Pessoa com Deficiência

-

Núcleo de Fazenda e Registros Públicos

-

Núcleo de Loteamentos

-

Núcleo de Terras e Habitação

-

Engenharia Legal

NUDECON

Núcleo de Defesa do Consumidor

NUDEM

Núcleo Especial De Direito Da Mulher E De Vítimas De Violência

NUCAPP

Núcleo de Cadeias Públicas e Apoio ao Preso Provisório

NUSPEN

Núcleo do Sistema Penitenciário

-

Núcleo da Polícia Militar

-

Núcleo dos Bombeiros Militares

NUDIVERSIS NUDEDH

Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos Núcleo da Polícia Civil Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos

176

ANEXO IV – Assuntos verificados nas Certidões dos ORD

Ofício

Competências

Assuntos Verificados nas Certidões



Falências, Cível e Criminal

A) Indisponibilidade de bens, arrestos, sequestros e outras determinações comunicadas pela Corregedoria Geral de Justiça; B) Rescisórias;







Falências, Cível, Criminal e Concursos

C) Falências, concordatas, recuperações judiciais e demais ações e precatórias distribuídas às Varas com competência empresarial;

Falências, Cível e Criminal

E) Ações incidentarias;

Falências, Cível, Criminal, Interdições e Tutelas

G) Medidas cautelares (arrestos, sequestros, buscas e apreensões, notificações, etc.) distribuídas às Varas com competência cível.

D) Separações, divórcios, alimentos e outras ações e precatórias distribuídas às Varas com competência de família;

F) Retificações, averbações e outras ações e precatórias distribuídas às Varas com competência em registros públicos;

H) Ordinárias, sumárias, despejos, consignatórias, execuções e outras ações e precatórias distribuídas às Varas com competência cível; I) Ações e precatórias de competência das Varas regionais de cada um dos Ofícios (Madureira, Jacarepaguá, Leopoldina, Campo Grande, Barra da Tijuca, Méier, Santa Cruz e Ilha do Governador); J) Inventários, testamentos, arrolamentos, arrecadações, administrações provisórias, tutelas, interdições, curatelas, declarações de ausência e outras ações e precatórias distribuídas às Varas com competência em órfãos e sucessões; K) Ações e precatórias de competência dos Juizados Especiais Cíveis afetos a cada um dos Ofícios. L) Ações distribuídas às Varas da Infância, da Juventude e do Idoso mencionadas nos §§ 1º e 3º do artigo 33 da Consolidação Normativa da CGJ/RJ (Provimento 11/2009); M) Ações de competência da Justiça Itinerante.



Bens e Testamentos (Escrituras)

A) Escrituras lavradas nos Serviços Notariais dos Ofícios Ímpares; B) Escrituras lavradas nas Circunscrições de Registro Civil com funções notariais ímpares; C) Escrituras lavradas no Ofício de Notas e Registro de Contratos Marítimos; D) Procurações em causa própria, lavradas nos Serviços Notariais ímpares;

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E) Procurações Públicas em geral, lavradas nos Serviços Notariais ímpares (Lei Estadual nº 5358/2008); F) Escrituras autorizadas pela Corregedoria Geral da Justiça; G) Testamentos Públicos e Cerrados, lavrados nos Serviços Notariais Ímpares; H) Contratos particulares equiparados a Escrituras Públicas por força de lei; I) Títulos de origem judicial, Translativos de Direitos Reais sobre Imóveis que tenham como circunscrição imobiliária serviço de registro ímpar, no município do Rio de Janeiro; J) Escrituras lavradas em outros municípios, cujo imóvel tenha como circunscrição imobiliária de serviço de registro ímpar, no município do Rio de Janeiro; K) Intervenções com Indisponibilidade de Bens determinadas pelo Banco Central ou Varas Processantes; L) Inventários, partilhas, separações consensuais e divórcios consensuais, lavrados nos Serviços Notariais Ímpares (Lei nº 11.441/2007). 6º

Bens e Testamentos

A) Escrituras lavradas nos Cartórios de Notas Pares, inclusive as decorrentes da Lei 11.441/2007; B) Contratos particulares, Testamentos públicos e cerrados, Procurações ou Títulos de origem judicial, translativos de direito real sobre imóvel.



Protesto de Títulos

Duplicatas, Triplicatas, Notas Promissórias, Letras de Câmbio, Cheques, “Warrants”, Debêntures, Conhecimentos de Frete, Confissões de Dívidas, Verificações de contas, Contratos de Câmbio, Cédulas de Crédito Bancário e outros documentos de dívida.



Títulos e Documentos

Registro das distribuições dos Cartórios dos Registros de Títulos e Documentos da cidade do Rio de Janeiro.



Fazenda Pública Estadual

A) Execuções fiscais promovidas pela Fazenda Pública Estadual e suas autarquias; B) Ações promovidas pela Fazenda Pública Estadual e suas autarquias; C) Ações promovidas pelo Estado, pelo Município e suas autarquias, tais como: Ordinárias, Sumárias e Possessórias; D) Medidas Cautelares promovidas pelo Estado, pelo Município e suas autarquias, tais como: Produção Antecipada de Provas, Notificações e Interpelações; E) Ações e Medidas Cautelares distribuídas às Varas de Fazenda Pública, tais como: Ordinárias, Sumárias, Desapropriações, Despejos,

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Possessórias, Notificações, Produção Antecipada de Provas, Protestos, Interpelações, Cartas Precatórias e outras; F) Ações de Dívida Ativa do Estado do Rio de Janeiro distribuídas à Vara com competência fazendária específica; G) Ações de Dívida Ativa do Município do Rio de Janeiro distribuídas à Vara com competência fazendária específica; H) Indisponibilidade de bens, arrestos, sequestros, intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras pelo Banco Central do Brasil ou Ministério da Fazenda e outras determinações comunicadas pela Corregedoria Geral da Justiça; I) Ações nos Juizados Especiais Fazendários.

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