A maturidade poética de AS FILHAS DE LILITH

June 16, 2017 | Autor: Johnny Martins | Categoria: Literature, Poetry, Poesia
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A maturidade poética d’As Filhas de Lilith

Não é necessário ir muito longe, nem na sociologia nem na psicologia nem nos agrupamentos humanos, para se verificar que a constituição da identidade de um sujeito não advém apenas do local de sua origem ou de sua forma biológica. A identidade dos sujeitos é atravessada por discursos, práticas culturais, desejos ortodoxos e não ortodoxos, tradições e transgressões. Um livro, cujo título alude a uma origem remota, assume essa constatação na forma de poesia: As Filhas de Lilith (Editora Calibán, 89 páginas), a mais recente produção ― lançada no ano passado ― da poeta Cida Pedrosa. Nessa obra, que vem a ser uma das conquistas mais exemplares da atual produção literária feminina de Pernambuco, as fronteiras do binômio origem/identidade são reiteradamente postas em questão através de uma poesia marcada pelo tom narrativo, no qual se pode encontrar a influência ― longínqua, mas patente ― da literatura de cordel. É possível descobrir na tradição do imaginário nordestino muita coisa ressignificada a partir do imaginário medieval europeu. Em termos literários, o próprio cordel tem parentesco com a poesia trovadoresca da Idade Média. Naquele período, também o mito de Lilith, cantado em verso e prosa desde priscas eras, esteve frequente, e de forma acentuada, na fantasia das pessoas. Porém, as sociedades patriarcais trataram de tentar apagá-lo da cultura cristã por não lhes parecer um bom exemplo o dessa mulher que voluntariamente recusou viver no Jardim do Éden sendo submissa a Adão. Depois da fuga de Lilith, Deus teria “dado” a Adão uma Amélia, digo, Eva, ao refletir que “não é bom que o homem esteja só”. O desfecho (infeliz) dessa história todos os pecadores já o conhecem bem. Relacionada ao sedutor demônio Succubus durante a Idade Média, a aura negativa que envolve o mito de Lilith é convertida, na obra de Cida Pedrosa, em valor positivo, associada à idéia de liberdade, coragem, independência e sedução. Sem deixar de cultivar suas raízes nordestinas, Cida Pedrosa, no entanto, assume que o livro é “um caldo de cultura que existe dentro e para além de mim mesma”, como disse em entrevista publicada no site Escritoras Suicidas. Esse “caldo de cultura” se revela, sobretudo, nos poemas sihem, que alude à opressão que o fundamentalismo islâmico impõe às mulheres, e juanita, que faz referência às Mães da Praça de Maio, mulheres que tiveram seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina. Assim, As Filhas de Lilith acolhe várias formas de identidades estéticas e discursivas, o que não significa que a obra tenha o caráter de um Frankenstein literário. Um dos grandes eixos de unidade da obra é a questão da identidade: o que não é biologicamente mulher, o travesti, torna-se também uma filha de Lilith, e o que

não é formal e estritamente nordestino, como o cordel, torna-se nordestino a partir das imagens, vocabulário e tom narrativo. [...] tudo nele era lindo aqueles rapazes o desejavam de verdade e não sabiam nunca se ouviu falar de bunda igual àquela e de pentelhos louros quais aqueles o corpo dele era feito para a saia e para o justo e para homens que gostam de mulher [...] (melissa, p.45) Todos os poemas de As Filhas de Lilith são intitulados por nomes femininos, começando pela letra A e culminando na letra Z. Esse detalhe, aparentemente trivial, traz um significado importante dentro de todo o discurso poético da obra, se nos lembrarmos de que Deus, entidade masculina no imaginário cristão, faz referência a si mesmo nos seguintes termos: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso.” (Apocalipse do apóstolo S. João, cap.1, versículo 8, grifo nosso). Portanto, a primeira e a última letra do alfabeto grego, usadas metaforicamente nas Sagradas Escrituras para representar um Deus macho “todo-poderoso”, e que é “o princípio e o fim”, são subvertidas por Cida Pedrosa nas letras do alfabeto latino, ampliando metaforicamente para as mulheres esse espaço em que estão “o princípio e o fim”, reivindicando o fato de poderem ser também “toda-poderosas”. Nada mais coerente: todos nós temos nosso “princípio” no corpo de uma mulher (pelo menos até onde alcança nossa ciência atual) e voltaremos inapelavelmente à “mãe terra” algum dia. A personagem do poema “angélica” nos lembra do poder que temos de ressignificar nosso corpo, seja para conquistar o homem ou a mulher, mesmo que seja o homem ou a mulher dentro de nós mesmos.

o pênis de angélica era de plástico passou a vida a esfregar-se no espelho eis a sina mulher ou homem [...] (angélica, p. 17) angélica, título do poema que abre a obra, surpreende o leitor incauto com uma personagem cujo amor sensual é dedicado a outras mulheres. Poderíamos entrever aí uma evocação de um dos nomes mais primevos da literatura de autoria feminina: Safo de Lesbos, cujos poemas, dedicados às suas amantes, resistiram a séculos de mudanças socioculturais, chegando até nossos dias, embora em fragmentos. Essa pequena ousadia de Cida Pedrosa já anuncia ao leitor que sua obra não está disposta a reforçar convenções morais ao poetizar o universo feminino. O poema angélica, assim como os demais, assume uma linguagem cotidiana, como é próprio da poesia da autora, rejeitando o lugar “superior” da linguagem em favor do diálogo com o imaginário do leitor, por vezes subvertendo esse imaginário. O lugar “superior” da linguagem, entendase, é aquele rebuscamento com que alguns poetas julgam tornar sua poesia “sublime”, forçando o leitor a recorrer ao dicionário para lhe acudir com tantos ornamentos eruditos e tantos revoluteios na sintaxe. E, convenhamos, desde os modernistas, daqui e de alhures, a poesia já descobriu os encantos de todas as palavras, sejam quais forem, se usadas dentro de um projeto estético maduro. “Lilith é minha maturidade poética”, afirma a autora na mesma entrevista supracitada. De fato, o trabalho com a linguagem segue o mesmo rumo da representação do mundo da mulher que a autora constrói, ressignificando atividades corriqueiras, comumente associadas ao cotidiano feminino, como no poema grace, em que várias gerações de mulheres são ligadas pela prosaica tarefa de fazer um café, numa associação bastante sensível entre coar café e “coar” as mudanças tecnológicas e sociais pelas quais elas passam. Este é um dos momentos mais interessantes da obra. Como se o leitor estivesse a tomar café com a poeta, a linguagem de As Filhas de Lilith é construída num tom tão natural que quase se pode ouvir a voz de Cida Pedrosa recitando os poemas. Sua dicção, que antes me causava certo

desconforto por considerar ser um clichê de ritmo usado por vários poetas em Recife, agora me chega com outro significado. Em conversa com o poeta e pesquisador André Telles, cuja dissertação de mestrado discutiu a poesia de Miró da Muribeca, ele me fez ver que essa forma particular de recitar ― que se pode ouvir em muitos dos poetas do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, do qual fez parte Cida Pedrosa ― tem o objetivo de colocar a poesia num movimento diferente daquele da fala cotidiana, já que é esta fala o principal substrato da poesia deles e delas. Esse dado, bastante interessante, liga a poesia de Cida Pedrosa, e de tantos outros poetas que produzem em Recife, ao costume quase perdido da recitação, o que faz com que a voz de sua poesia ultrapasse as fronteiras das letras impressas. Em termos visuais, o livro é belíssimo, com design assinado por Jaime Cintra. As ilustrações de Tereza Costa Rêgo dialogam com os poemas não apenas pela representação nada convencional dos corpos, gestos e posturas femininos, mas também pelo tom preto e branco, que confere aos desenhos uma semelhança com fotografias envelhecidas, reforçando a atmosfera de certa nostalgia que atravessa a obra As Filhas de Lilith. Os compromissos ideológicos com a igualdade ― compromissos que perpassam todo o discurso poético de As Filhas de Lilith ― estão marcados em muitos detalhes, inclusive visuais: conta-se apenas três ou quatro letras maiúsculas em todo o livro. Até mesmo os nomes próprios, que intitulam os poemas, são grafados em iniciais minúsculas. O poeta norte-americano modernista e. e. cummings assinava o nome em minúsculas como protesto contra a desigualdade entre as pessoas. Cida Pedrosa, além de igualar todos os personagens através desse recurso do uso de minúscula, também iguala todas as palavras, como se dissesse ao leitor que todas elas são passíveis de estarem na poesia, mesmo as mais rudes, comuns e obscenas.

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