A Medicina e o Trato na Família Carlos

June 3, 2017 | Autor: Florbela Veiga Frade | Categoria: Early Modern History, Portuguese History
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Ilustração da capa: Pormenor de Paisagem com a queda de Ícaro, de Pieter Brueghel, o Velho

A MEDICINA E O TRATO NA FAMÍLIA CARLOS

Florbela Veiga Frade Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia Investigadora do Projecto M ercadores e Gente de Trato

No século XVI leccionou na Universidade de Coimbra um douto professor de M edicina chamado Francisco Carlos. Foi nomeado pela primeira vez a 18 de Abril de 1556 para lente duma das cadeiras ordinárias de Vacações, tal como Bastião Lopes, pelo reitor da Universidade, Afonso do Prado. A docência teria lugar nos meses de Agosto e Setembro com 4.000 reais de ordenado. A catedrilha de Vacações era tradicionalmente pouco frequentada pois coincidia com a época em que os alunos abandonavam Coimbra. De acordo com Teixeira de Carvalho1 a leitura e frequência de Vacações contavam como dois meses para os cursos que eram obrigados, o que contribuía para a diminuição do interesse dos alunos em tal disciplina. Ainda segundo o mesmo autor, a nomeação dos lentes era feita pelo reitor quando não existia uma provisão régia nesse sentido. Contudo, a 22 de Junho de 1556 foi recebido na Sala dos Paços da Universidade um documento exarado por vontade do Rei em que se designava o licenciado Afonso Rodrigues de Guevara para uma cadeira de Medicina e Anatomia com 50.000 reais anuais. Estavam pre­ sentes e reunidos em conselho o reitor Afonso do Prado e, na qualidade de conse­ lheiros, o mestre D. Jorge de Ataíde, o bacharel Bastião Madureira, o bacharel Afonso de Guimarães, o mestre Francisco Carlos e o mestre Afonso Pires. A tomada de posse deu-se no mesmo dia sendo testemunhas o Dr. Cosme Lopes, Bastão Rodrigues e Francisco Carlos, mestres e bacharéis em Medicina. As fontes são mudas sobre a docência efectiva da catedrilha de Vacações no Verão de 1556. Por um lado a sua leitura permitia a Francisco Carlos e a Bas­ tião Lopes ganharem experiência como lentes com o aval do reitor, por outro podia ser contra a vontade régia que nomeara novo professor para o curso de Medicina e que deveria ser integrado e aceite. A actividade lectiva daqueles dois professores podia afrontar a importância e o papel de Afonso Rodrigues de Gue-

1 J. M. Teixeira de Carvalho, A Universidade de Coimbra, Coimbra, 1922, pp. XVI-XVII.

Rumos e Escrita da História. Estudos em Homenagem a A. A. Marques de Almeida, L isboa, E dições Colibri, 2006, pp. 253-269.

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vara e iniciar um conflito entre o reitor e o Rei e em última instância entre a Universidade e a Coroa. Assim sendo, é provável que Francisco Carlos e o seu colega tenham dado o lugar a Guevara, pois o dever era acatar a provisão e admitir no seio da Uni­ versidade o novo lente de confiança régia. No entanto existem indicações que Francisco Carlos assumiu a catedrilha de Vacações2 sucedendo a Ambrósio Nunes, um outro famoso médico de origem judaica3, o que leva a concluir que a nomeação régia para Anatomia e a do reitor para Vacações eram independentes uma da outra e não se sobrepunham. O livro manuscrito do reitor da Universidade refere que Francisco Carlos, natural de Coimbra, foi lente de Vacações em 1556, duma outra catedrilha em 1560 e 1563, sendo nomeado no ano seguinte para a cadeira de Terça4 em que também lia Avicena5 cuja duração era de cinco anos. O mestre de Medicina estava, portanto, bastante empenhado na sua actividade lectiva desde 1556 devendo o seu contributo como lente da Universidade terminar em 1568. Este eminente professor de Coimbra formado em Medicina é provavelmen­ te o mesmo médico que foi preso em 1567 pela Inquisição de Coimbra acusado de Judaísmo quando contava apenas 34 anos. As coincidências do nome, da formação e do local de origem assim o determinam. Na mesma altura foi presa a mãe Leonor Lopes e toda a sua família mais chegada, nomeadamente os irmãos M aria Antónia, Ana Antónia, Filipe Carlos e Paulo Fernandes; a tia Branca Fernandes e os seus filhos Fernão Lopes e Branca Simões; e uma outra prima cujo nome e ascendência se desconhecem. Nesta leva de prisões apenas escaparam os avós, a irmã Guiomar Lopes e o pai Antó­ nio Fernandes que tinham falecido, assim como a tia materna Ana Lopes que parece ter-se ausentado de Coimbra uns anos antes. Mais tarde, em 1572, foi preso em Lisboa o primo do médico de Coimbra seu homónimo, mas filho de Ana Lopes6 que teve a ousadia de escrever ao Rei denunciando que os cristãos-novos eram impelidos a dizer serem judeus com o que, de acordo com a avaliação de Francisco, ofendiam a Deus. Francisco Car­ los foi condenado a pena de cárcere e hábito irremissíveis para ser examinado. A missiva de Francisco Carlos ao monarca português revela a coragem dum mero mercador de Lisboa. De acordo com os processos inquisitoriais, Francisco Carlos dedicava-se à solicitação e a fazer as transacções que lhe encomendavam. Pertencia assim aos estratos mais baixos dos que se dedicavam aos negócios, sen­ do provavelmente caixeiro ou aprendiz numa das casas comerciais lisboetas. 2 Francisco Leitão Ferreira, Alphabeto dos Lentes, Coimbra, 1937, p. 162. 3 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. V, Lisboa, s.d., p. 945. 4 Francisco Leitão Ferreira, Op. Cit., p. 162. 5 Id., Ib., p. 333. 6 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 8939 e 8940 (Francisco Carlos).

Rodrigues

Ilustração I

Antónia

Fernandes

Família do Dr. Francisco Carlos segundo os processos inquisitoriais.

Antónia

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A audácia manifestada nesta carta para tentar de alguma forma alterar a situação injusta em que se encontravam os cristãos-novos não terá sido plenamente anali­ sada no que diz respeito às consequências que daí poderiam advir. A comunicação da Inquisição de Lisboa com a sua congénere de Coimbra revelou muito provavelmente os graus de parentesco com diversos membros da família encarcerados anos antes. Todavia, a ocultação da ascendência cristã-nova e a prisão dos seus familiares não devia ser o que o negociante Francisco Carlos pretendia ao escrever ao Rei. A sua intenção seria talvez procurar uma forma de negar, ou de suavizar, as chamadas culpas dos cristãos-novos em geral, e dos seus parentes em particular, considerando o seu aprisionamento na Inqui­ sição como um tremendo mal-entendido na medida em que todos eram bons cristãos. Francisco Carlos aponta a existência de pressões compelindo as pessoas a confessar serem judias quando de facto o não eram. De acordo com o seu teste­ munho todos cumpriam escrupulosamente as suas obrigações religiosas e acredi­ tavam em Cristo e na Igreja Católica Apostólica Romana. Por conseguinte, seria ofender a Deus confessar o que não era verdade. Reafirma, deste modo, a fé cristã que ele, os seus familiares e todos os cristãos-novos presos pelo Santo Ofício partilhavam com os cristãos-velhos. Esta necessidade de acentuar a convicção religiosa dos cristãos-novos não é inocente e muito menos isenta. Pois apesar de existirem cristãos-novos convic­ tos da sua fé recente, também é provável a existência dos que pretendiam manter a sua parte da Aliança e manter-se fiéis à religião dos seus antepassados. Para além disso, Francisco Carlos era parte interessada; ao salientar a convicção cató­ lica dos cristãos-novos pretendia inserir-se plenamente na sociedade e garantir desse modo a equidade no tratamento e o acesso a ofícios públicos. Esta hipóte­ se é corroborada pelo facto dos tabeliães do público e do judicial de Coimbra terem uma demanda contra Francisco Carlos por este pretender servir um ofício de escrivão - que tinha vagado - tendo de recusar o mesmo por ser suspeito assim como a sua família7. Portanto, a causa de tudo deveu-se ao facto de Fran­ cisco Carlos pretender preencher a vaga de escrivão na sua terra natal e de recair sobre si e sua família o estigma dos neófitos. O acesso dos cristãos-novos a ofícios públicos foi sendo limitado nos mais diversos locais, instalando-se paulatinamente uma determinação em afastar os candidatos com as mais leves suspeitas de ascendência judaica. Este processo atingiu um dos pontos altos em 1595 quando o rei deu instruções para o estabe­ lecimento do estatuto de limpeza de sangue8. Durante a segunda metade do século XVI, e até ao final do mesmo, as exigências quanto às provas genealógi­ 7 Id., Ib. 8 Maria José Tavares, Los Judios en Portugal, Madrid, 1992, p. 355.

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cas tomaram-se cada vez maiores e a ascendência sem sangue judeu ou de cristão-novo era valorizada. Do ponto de vista da hierarquia social o acesso a ofícios e serviços públicos permitia ingressar e ascender a um novo escalão de servidores e funcionários liga­ dos à Coroa e aos municípios. Deste modo, as estratégias pessoais ou familiares de ascendência social passavam também por preencher as vagas para estes ofícios. Tudo parece indicar que Francisco Carlos se candidatou ao lugar dum escrivão para a qual estava habilitado, mas teve de o recusar porque a sua ascen­ dência familiar contava com cristãos-novos presos pela Inquisição e acusados de judaísmo. Muito provavelmente Francisco contestou a decisão e, tal como os tabeliães do público e judicial testemunharam mais tarde9, essa situação acabou em conflito. A família e o próprio Francisco Carlos fizeram demandas e apela­ ram à justiça sendo os referidos tabeliães julgados. Ignora-se qual foi o desfe­ cho, mas é provável uma sentença no sentido de vedar ao cristão-novo de tal pretensão pois de acordo com a hierarquia social estabelecida - e embora cada um individualmente procurasse exactamente o contrário - cada um tinha o seu lugar de onde não podia sair ou sequer ambicionar um lugar acima do que lhe era destinado pelo resto da sociedade e pelo seu nascimento. A Inquisição de Lisboa parece ter entrado em contacto com a de Coimbra uma vez que esta o mandou apresentar-se na inquisição daquela cidade no espa­ ço de seis dias. Nesta eventualidade ficou ciente de todos os acontecimentos relativos à sua família que se tinha mantido na terra natal. Para garantir que o prisioneiro voltava a Lisboa os inquisidores estabeleceram uma caução de 500 cruzados e determinaram que devia voltar também em seis dias com a obrigato­ riedade de entregar uma certidão da sua comparência no Tribunal do Santo Ofí­ cio de Lisboa. O referido mercador alegou então que estava preso e era pobre não podendo entregar a quantia exigida porque deixara de trabalhar e ninguém lhe fiava o dinheiro. Os inquisidores baixaram a caução exigida para 200 cruza­ dos10, mas não deram aval ao pedido de Francisco Carlos para que as suas decla­ rações fossem feitas em Lisboa escusando-se desse modo a viagem a Coimbra. A certidão passada pelos inquisidores de Coimbra datada de 18 de Julho de 1572 dá conta que Francisco Carlos foi preso naquela cidade até apresentar os 200 cruzados de fiança. O atestado foi entregue em Lisboa passados dez dias e não no período de tempo estipulado. A partir daqui toda a vida de Francisco Carlos foi transtornada por ter ousado denunciar às mais altas esferas do poder o que se passava com os cristãos-novos e por considerar que a sociedade portu­ guesa não era um organismo estático, mas sim em transformação. A história deste mercador de Lisboa, tem características semelhantes à do Dr. Francisco Carlos licenciado em Medicina e professor na Universidade de 9 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 8939 (Francisco Carlos). 10 Id., Ib.

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Coimbra, presumindo-se serem primos maternos11. Este grau de parentesco determina-se partindo do pressuposto de que Ana Lopes - a mãe do mercador de Lisboa - é a irmã com o mesmo nome de Leonor Lopes mãe do médico. Deste modo, ambos seriam homónimos do avô12, corroborando um costume sefardita da herança dos nomes de geração para geração. O mandato de captura conjunto de Francisco Carlos, Paulo Fernandes e Filipe Carlos data de 19 de Setembro de 1567, talvez em sequência da prisão e interrogatórios feitos a Maria Antónia, também sua irmã, uns dias antes. Na mesma altura outros membros da família foram processados acusados de Judaísmo. Todos confessaram ter práticas judaicas, como a guarda de determi­ nados dias, os jejuns, rituais fúnebres, a celebração da Páscoa e outras festas, contudo apenas a mãe Leonor Lopes declarou ser judia13. A prisão de Francisco Carlos durou desde o dia 21 de Setembro de 1567, data em que foi entregue ao carcereiro, até 9 de Agosto de 1568. A sentença foi decidida nos autos da M esa da Inquisição em 21 de Maio de 1568 que o conde­ nou a cárcere e hábito perpétuos sem remissão tendo de ir ao auto com fogos no hábito14. Francisco Carlos saiu no auto da fé que se realizou na praça de Coim­ bra em 1 de Agosto daquele ano onde abjurou sendo posteriormente reconcilia­ do com a Igreja. Seguindo as informações constantes no processo de Coimbra, poucos dias depois do auto o Dr. Francisco Carlos foi mandado para casa para cumprir a sen­ tença de acordo com as condições estabelecidas por uma directiva do cardeal D. Henrique aplicável a todos os presos. Aparentemente teria de envergar o hábito que o descriminava face ao resto da população, pois a sua sentença ditava o seu uso até ao fim da vida e o testemunho do Dr. António Sebastião, décadas mais tarde, referir-se-ia ao Francisco Carlos com hábito penitenciai, embora não se possa confirmar o sentido literal da descrição. O requerimento de dispensa do uso de hábito pode ter sido metido por Francisco Carlos, no entanto nada indica que este o tenha feito. Por seu turno, os irmãos Paulo Fernandes e Filipe Carlos conseguiram despacho favorável por parte dos inquisidores em 13 de Setembro de 1568 isentando-os do uso de hábito penitenciai. Estes irmãos tinham dirigido um pedido nesse sentido à Inquisição de Coimbra alegando que necessitavam ganhar a vida. O argumento utilizado para que a mãe deixasse de utilizar o hábito foi o de ser velha15. 11 ANTT, Inquisição de Coimbra, Proc. 9162 (Guiomar Lopes); Id., Proc. 8940 (Francisco Carlos). 12 Id., Proc. 9162 (Guiomar Lopes). 13 Id., Proc. 9176, (Francisco Carlos), fls. 4 v.-5 v. 14 Id., Ib., fl. 29 v. 15 Id., Proc. 5789 (Paulo Fernandes), fls. 11 V.-12 v.

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O médico depois de voltar a sua casa foi desempenhando o seu ofício, curando as pessoas como sempre tinha feito, todavia, e de acordo com a lei e os novos estatutos da Inquisição, não o podia fazer. Segundo o testemunho do físi­ co da Inquisição, que faz parte do processo de Francisco Carlos, na década de 1580 afixou-se um édito no mosteiro de Santa Cruz pelo qual os reconciliados incorriam em nota de infâmia se continuassem a desempenhar ofícios públicos considerados honrosos; deviam ser privados das honras, proeminências e graus para além de não poderem curar ou exercer o ofício de medicina ou cirurgia. Por isso, a 5 de Setembro de 1581, Francisco Carlos resolveu fazer um pedido especial ao Santo Ofício de forma a poder continuar a praticar a sua pro­ fissão uma vez que era reconhecido como bom médico, letrado e experimentado, tanto pelos doentes como pelos seus pares16. Esta atitude não pode ser entendida como soberba de Francisco Carlos por se considerar acima da Lei. Uma das características da sociedade moderna é precisamente a profusão de privilégios e isenções face a todas as leis, ordenações ou directivas que devi­ damente justificados faziam as autoridades concederem graças e mercês, mesmo que a justificação Real se limitasse à fórmula “de minha própria ciência e poder absoluto” ou ao “sem embargo da Ordenação e dos pareceres dos doutores”. As autoridades podiam de facto conceder - caso o desejassem ou considerassem útil e necessário - mercês e privilégios que isentavam determinada pessoa de nor­ mas gerais aplicadas à maioria da população. Nos treze anos que mediaram a reconciliação e o pedido à Inquisição tratou várias pessoas, pobres e religiosos, sem levar dinheiro. A sua fama foi aumen­ tando à medida em que conseguia curas notáveis de doenças prolongadas e gra­ ves de enfermos que anteriormente tinham recorrido a outros médicos de quem não tinham obtido remédio. Os doentes acorriam de cidades e comarcas ao redor de Coimbra o que causou um certo mal-estar a outros médicos. O Dr. Jorge de Sá chegou a denunciar a situação aos inquisidores Manuel de Quadros e Luís Alvares de Oliveira, pedindo-lhes que proibissem Francisco Carlos de curar uma vez que se encontrava em penitência17. Apesar disso os inquisidores nunca chegaram a deferir o pedido, principalmente depois do surto de tabardilho, considerando ser melhor não usar do rigor da lei contra quem fazia bom serviço à comunidade. O tabardilho18, conhecido na Península Ibérica desde a Idade Média, foi

16 Id., Livro 292, fls. 488-509. 17 Id., Ib., fl. 490. 18 Tabardilho é o nome comum pelo qual é conhecido em Medicina o tifo exantemático. Esta doença foi sendo estudada ao longo dos tempos, mas só no século XX se descobriu a causa e o agente transmissor (a transmissão faz-se através do contacto do sangue humano com uma bactéria existente nas fezes de parasitas humanos como os piolhos). Os sintomas da doença são febres altas, congestão facial, bronquite, faringite e falta de ar.

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estudado por vários médicos portugueses, entre eles conta-se Amato Lusitano que na memória LXII da Quarta Centúria (1553) designa esta forma de tifo por pulicaris19. Mais tarde adoptou-se a designação popular de tabardilho que deriva da língua castelhana. As fracas condições de higiene e os ajuntamentos de pes­ soas num espaço limitado favoreciam a propagação da doença e causavam ver­ dadeiras epidemias. Também os inquisidores frei Manuel da Veiga e o Dr. Domingos de Sousa não impuseram a proibição, chegando a encomendar a Francisco Carlos a cura de alguns doentes importantes, apesar de este continuar em penitência20, con­ fiando assim na sua fama, nos seus conhecimentos e nas suas curas. O seu prestígio era de tal ordem que quando a infanta D. M aria esteve doente foi chamado à corte para, em conjunto com outros médicos, deliberar e tratar a doença que a incomodava. Em algumas juntas foram acompanhados pelo próprio cardeal D. Henrique que pretendia estar informado do estado de saúde da sua irmã. Depois disso, Francisco Carlos recebeu algumas propostas para ficar em Lisboa mas recusou voltando a Coimbra21, mesmo sem ter mulher e filhos que o esperassem. Os doentes, por seu turno, afluíam a Coimbra vindos de todas as partes para serem vistos pelo doutor Francisco Carlos que diligentemente velava dia e noite pelos seus pacientes acompanhando o tratamento; vigiava ainda os boticários garantindo que os seus remédios e mezinhas fossem rigorosamente aqueles que tinha receitado indo muitas vezes ele próprio ao boticário para que o remédio prescrito fosse como ele pretendia. Esteve sempre disponível para tratar doentes quer fossem pobres ou ricos e a qualquer hora do dia ou da noite. O seu interesse era a saúde da população. Todos os médicos, quando se lhes deparava uma doença nova, mais difícil de diagnosticar ou de tratar, iam sempre buscar conselho e a experiência daquele físico. Nas juntas de médicos que se reuniam para resolver casos de saúde públi­ ca ele era ouvido por todos e requisitado para todas elas. Os corregedores e governadores da cidade também seguiam o seu parecer. A fama deste médico de Coimbra aumentou ainda mais quando em tempo de peste, e sob perigo de vida, foi a Celas, junto àquela cidade, para ordenar a quarentena e tratar os doentes, separando-os dos sãos. Este contributo foi referi­ do nas petições cujo objectivo era obter permissão para desempenhar o seu ofí­ cio e nelas descreve a grande mortandade no burgo. A sua intervenção tinha sido pedida por Amador de Queirós e pelos juizes e vereadores pois Francisco Carlos

19 Alfredo Rasteiro, Cinco Lições de História da Medicina, Coimbra, 2005, p. 27. 20 ANTT, Inquisição de Coimbra, Livro 292, fl. 490. 21 Id., Ib., fl. 490-490 v.

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era o médico mais conceituado e experimentado22 para tentar solucionar a situa­ ção epidémica que se vivia na povoação e mosteiro de Celas. Depois de se des­ locar ao local, deu ordens para se tomarem medidas de quarentena, instalou os sãos em Santo António para não estarem em contacto com os doentes e deu ordens para a cura e remédio. Francisco Carlos para quem a Medicina era a vida fez petições atrás de petições, alegando que até o cardeal D. Henrique o deixara exercer quando foi chamado para tratar a infanta D. Maria. Apresentou testemunhas abonatórias dos mais variados círculos como Teodósio de Sá Sotomaior, bacharel em Teologia e fidalgo da Casa Real cónego da prebenda na Sé de Coimbra, prior da paróquia da igreja de Cerpins e beneficiado na igreja de Santa Justa; Diogo Marmeleiro, cavaleiro fidalgo da Casa Real e cidadão de Lisboa; o doutor Álvaro Nunes da Costa, cónego prebendado da Sé que disse conhecer o réu desde o seu nascimen­ to em Coimbra, onde o viu aprender na Universidade e viver honestamente, sen­ do habilidoso, engenhoso e grande letrado, refere ainda que depois de sair do cárcere viveu sempre com grandes mostras de bom penitente; o bispo de Martiria D. António Bernardes; Pêro Brandão, fidalgo da Casa Real e cónego preben­ dado na Sé; Francisco Pereira de Sá, fidalgo da Casa Real e cavaleiro da Ordem de Cristo; Estevão de Aires cidadão de Coimbra; e por fim o doutor Diogo Pais da Cunha23. Portanto, entre o círculo de amigos ou de conhecidos do médico de Coim­ bra que podiam dar boas informações sobre a pessoa e conduta do mesmo con­ tam-se vários fidalgos da Casa Real, membros do clero, um cavaleiro da Ordem de Cristo, um cidadão de Coimbra e um médico, para além dum teólogo. Ou seja, Francisco Carlos relacionava-se com as elites religiosas, sociais e letradas coimbrãs. Em Julho de 1575 os inquisidores de Coimbra tinham recebido o novo Regimento no qual se proibia o exercício de actividades públicas, como a M edi­ cina, aos reconciliados. Esses novos capítulos também retiravam aos procurado­ res a possibilidade de exercer uma vez que ambas as profissões eram públicas. A Inquisição via-se perante o dilema de defender a ortodoxia e o cumprimento de dois capítulos do regimento ou de dispensar um médico de grande merecimento e de quem tinham grande necessidade para velar pela saúde da comunidade. Não só era um médico excelente, mas também bom penitente e humilde. Contudo, nem todo o seu contributo para o bem estar da sociedade, nem todos os pareceres do mundo fariam demover os inquisidores da sua ortodoxia. O regi­ mento, a lei, era para cumprir escrupulosamente - pelo menos neste caso. A notificação para que deixasse de curar24 foi feita em 19 de Setembro de 22 Id., Ib., fl. 500 v. 23 Id., Ib., fls. 493-500. 24 Id., Ib., fl. 506 V.-507.

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1581 e Francisco Carlos apressou-se a apelar da decisão. A resposta do inquisi­ dor à sua intenção de formalmente apelar da deliberação foi que iria ser indefe­ rido todo e qualquer apelo que fizesse pois ele era um mero executor25. As dúvi­ das sobre a possibilidade de Francisco Carlos continuar a ser médico continuavam e por isso se decidia pela aplicação do artigo 17 do Regimento e da carta do inquisidor-geral que proibia aos reconciliados médicos de curar e os procuradores de procurar. Francisco Carlos ainda alegou nas suas petições que ser médico e estar ao serviço da comunidade era proveitoso à república. Defendeu que não causava escândalo algum, era caridoso com os pobres e não os distinguia dos ricos; que o deferimento da sua pretensão devia ser feito pela grande necessidade do seu ofí­ cio, por ser do proveito do público e remédio das populações. Portanto, os seus pedidos não tinham a intenção do proveito e honra pessoais. Francisco Carlos constatou ainda ser possível autorizar a prática da Medicina a homens e mulhe­ res de muito pouco saber, sem qualquer habilidade e experiência assim como a idiotas, por isso não compreendia porque razão lho negavam a ele26, sabendo os inquisidores que era insigne na arte e já tinha cumprido as suas penitências. Apesar disso aplicavam-lhe o rigor das directivas e das penas. Um dia antes de ser notificado para não poder curar foi denunciado pelo padre Francisco de Gouveia. Este testemunhou na Inquisição que Francisco Car­ los disse ter sido sentenciado pelos inquisidores como quiseram, descrevendo os gestos e meneios com que dissera tal frase27. A sua actividade foi vigiada de perto pela Inquisição pelo menos durante vinte anos, por conseguinte em 1597 juntam-se ao processo os testemunhos do Dr. António Sebastião e do Dr. Pedro de Barros, ambos médicos da Inquisição. Estes referem que, inicialmente, Francisco Carlos se fechara em casa sem curar recusando qualquer apelo para que o fizesse, nomeadamente o de João Henrique Mascarenhas. Contudo, um pouco mais tarde reiniciou a sua actividade, mas desta vez em casas particulares designadamente na do bispo e no cabido assim como no mosteiro de Santa Cruz e na casa da Companhia de Jesus. A sua parti­ cipação em juntas também se manteve a par desta prática restrita da Medicina. O médico a partir da década de 1580 passou a desempenhar a sua função em círculos restritos da sociedade, deixando para trás o serviço à comunidade e a esfera pública28. Curiosamente, e de acordo com este testemunho, os seus pacientes eram exclusivamente membros do clero, constituindo-se numa situa­ ção de privilégio tácito dado por estas entidades, permitindo-lhe o desempenho 25 Id., Ib., fl. 508-508 v. 26 Id., Ib., fl. 491. 27 Id., Proc. 9176 (Francisco Carlos). 28 Sobre estes conceitos ver Hannah Arendt, A Condição Humana, Lisboa, 2001.

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da Medicina na esfera privada e em benefício delas mesmas, negando-se o mesmo proveito à restante população para além do que lhe pudesse advir da sua participação em reuniões e juntas de médicos. O saber experimentado e empenho no exercício da Medicina de nada vale­ ram para a avaliação dos inquisidores. Também pouco contaram os pareceres favoráveis com alusões à Cidade de Deus de Santo Agostinho, salientando o seu serviço a Deus e à República - invocações do conceito de “bem comum” cele­ brado pela ideologia dominante e formalizado tanto pelo direito civil como reli­ gioso e que, independentemente disso, foi sempre manifestado pela acção de Francisco Carlos como um imperativo moral. O poder da Inquisição - defensora do serviço de Deus e do bem comum dos homens e da sociedade - estava demonstrado. Coercivamente limitou e finalmente cortou a capacidade dum dos mais ilustres médicos do seu tempo, negando-lhe a possibilidade de exercer livremente as suas extraordinárias apti­ dões em prol de todos. A Igreja, com uma atitude dúplice e dúbia, apoiava a Inquisição e o contro­ lo dos homens coarctando-lhes o espírito de iniciativa e de afirmação das suas capacidades, ao mesmo tempo que lhes reconhecia competências específicas benéficas, colocando-as sob sua alçada e serviço, fazendo depender de si a auto­ rização para o desempenho das mesmas. Este controlo do exercício de actividades tão essenciais como a Medicina é também alargado a outros ofícios nomeadamente daqueles que estão ligados ao comércio. Grande parte dos encarcerados nos calabouços do Santo Ofício fazem parte deste estrato social que inclui desde simples caixeiros que trabalham para mercadores de diversos escalões até aos mercadores banqueiros29 que associam actividades mercantis, bancárias e de seguros. A família do doutor Francisco Carlos contava com pelo menos um merca­ dor que era seu primo materno, no entanto pode ser também parente duma outra família Carlos de Trancoso que se deslocou para Évora e que optaram mais tarde por se fixar em Lisboa. Esta possibilidade é viável pois uma das características da onomástica sefardita é a utilização dos mesmos nomes ao longo de diversas gerações. Para além disso, a localidade de Trancoso é referenciada como local de residência de membros das duas famílias. Por exemplo a irmã do médico de Coimbra, Ana Antónia, era casada em Trancoso com Manuel Fernandes, apelido que surge também nas ligações matrimoniais de ambas as famílias. As notícias da família Carlos de Trancoso datam de 1545 dum processo da Inquisição de Évora de Francisco Carlos30. Este mercador de panos de Castela refugiara-se no Alentejo, talvez por temer pela sua vida e a dos seus, contudo 29 Frédéric Mauro, Marchands et Marchands-Banquiers Portugais au XVIIème Siècle, sep. Revista Portuguesa de História, vol. IX, Coimbra, 1961. 30 ANTT, Inquisição de Évora, Proc. 9890 (Francisco Carlos).

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acabou por ser preso naquela cidade alentejana sendo libertado após o Perdão Geral31 de 1547. Francisco Carlos foi acusado de ser sacerdote ou rabino dos cristãos-novos fazendo sinagoga em sua casa, onde as pessoas se reuniam e praticavam cerimó­ nias judaicas. Entre as suas tarefas contavam-se as cerimónias fúnebres, lavando e vestindo os mortos com panos novos de linho. Estas acusações foram feitas pelo Lic. Gregório Martins Caminha, juiz de fora de Trancoso, por João Gomes de Andrade e por Domingos Cardoso. A função de rabino de Francisco foi provavelmente herdada do pai, mestre Carlos. Este físico de Trancoso era um judeu conhecido por Ça Coen32 ou Maese Coen e que, tal como o nome indica, era o rabi da comunidade judaica daquela vila. Após a Conversão Geral manteve-se no local de onde parece ter sido origi­ nário e onde acabou por falecer como cristão, sendo enterrado na igreja de S. Pedro em Trancoso. Geralmente os processos inquisitoriais traçam a genealogia em três ou qua­ tro gerações o que cobre cerca dum século, mas as linhas colaterais são muitas vezes omitidas, pois os interrogatórios eram feitos com o intuito de se saber quem eram os pais e avós, assim como de possíveis descendentes. Por isso não é de descurar a hipótese de Francisco Carlos de Coimbra (avô materno do licen­ ciado em M edicina Francisco Carlos) ser parente próximo de mestre Carlos de Trancoso, talvez mesmo seu irmão ou primo. Francisco Carlos, filho de mestre Carlos, nasceu por volta de 1502 quando legalmente já não existiam judeus, no entanto foi circuncidado e por volta da mesma altura foi baptizado. Segundo o seu processo cumpria as suas obrigações como católico, vestia-se a rigor aos domingos e dias santos, ajudava nas véspe­ ras e oficiava os ofícios divinos assim como cantava no canto com órgão. A acreditar nos dados do Santo Ofício, substituiu o pai nas suas actividades como rabino. Por conseguinte toda a sua formação no Judaísmo e nas tarefas rabínicas se processou por transmissão por parte do pai uma vez que legalmente não existiam escolas ou academias onde habitualmente se ensinavam os precei­ tos e a religião judaica. Entre os irmãos deste mercador de panos conta-se Manuel Carlos que era rendeiro das rendas de Trancoso, Clara Carlos casada com Cristóvão Fernandes também rendeiro, Ana do Vale e Isabel do Vale casada em Celorico com Diogo Fernandes. Francisco Carlos dedicava-se ao negócio de panos de Castela e de Flandres33, casou com Maria Drago, filha de Fernão Drago e Filipa Rodrigues. Deste 31 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 12132 (Carlos Francisco). 32 ANTT, Inquisição de Évora, Proc. 9890 (Francisco Carlos), fl. 203. 33 Maria José Ferro Tavares, Op. Cit., p. 268.

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casamento nasceram oito filhos designadamente Branca, a mais velha, casada com Diogo Soares mercador e criado do infante D. Luís; Filipa; Fernando; Manuel; Bernardo; Diogo; Jorge; e Carlos Francisco34 também processado pela Inquisição de Lisboa. Carlos Francisco recebeu os nomes do avô paterno e do pai. Nasceu em Trancoso por volta de 1527 e desde cerca de 1546 que vivia em Lisboa, às Pedras Negras, pouco tempo depois do pai ter sido preso em Évora. Foi ele, em associação com os irmãos e cunhado, quem impulsionou os negócios da família. A actividade mercantil de Carlos Francisco comprova-se a partir de 1549 altura em que foi para S. Tomé onde esteve pela primeira vez seis anos35. Embarcou a 1 de Novembro no navio Santa Catarina como feitor de Francisco Rodrigues de Milão e seu irmão Henrique Rodrigues e ainda de Jorge Francis­ co36. Portanto, estas famílias estavam ligadas comercialmente, servindo uns como intermediários ou feitores e outros como cabeças de empresas ou casas comerciais. Carlos Francisco e Jorge Carlos e o cunhado Diogo Soares ganharam expe­ riência como mercadores e mais tarde fundaram a sua casa comercial com repre­ sentantes em Lisboa, S. Tomé e Brasil. Dedicavam-se ao comércio de escravos para o Novo Mundo e integravam nesta empresa familiar os sobrinhos, nomea­ damente João Baptista Drago37. A casa comercial Carlos segue, portanto, os trâmites das suas congéneres numa época de grande desenvolvimento comercial. Carlos Francisco casou com Leonor Nunes, natural de Trancoso38, irmã de Guiomar Dias que, por sua vez, era casada com Heitor M endes39 de Brito, o Rico que se tomou um membro da elite mercantil lisboeta. Ambos os cunhados foram alvo de processos, Carlos Francisco acabou por ser libertado depois de ser absolvido e Heitor Mendes nem sequer foi preso. De acordo com a denúncia de D. Diogo de Lima, por volta de 1629 Carlos Francisco o contratador de Lisboa, parente de Heitor Mendes, encontrava-se em Hamburgo onde abraçou a fé judaica e se chamava David Coen40. Contudo, pode tratar-se dum seu parente pois de acordo com os processos inquisitoriais o m ercador Carlos Francisco nasceu cerca de 1527. A tratar-se da mesma pessoa isso quer dizer que viveu 102 anos, uma longevidade fora do comum. Carlos Francisco deve ser o mesmo que vivia em 1565 na Rua do Adro na

34 ANTT, Inquisição de Évora, Proc. 9890 (Francisco Carlos). 35 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 12132 (Carlos Francisco). 36 Maria José Ferro Tavares Op. Cit., pp. 268-269. 37 Id., Ib., p. 269. 38 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 12132 (Carlos Francisco). 39 Id., Proc. 10377 (Heitor Mendes). 40 Id., Livro 226. fls. 260-263 v.

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freguesia de S. Mamede e que foi arrolado para contribuir para uma finta, nessa altura os seus bens foram avaliados em 1.000.000 réis ou mais41. Entre as suas posses contavam-se também propriedades em Pernambuco42, mas começou a desfazer-se delas por volta de 1616, quando o serviço de informações da Inqui­ sição o regista. Carlos Francisco teve vários filhos, a saber: Maria; Ana; Nuno; Filipa e Francisca43 e também Baltazar Guterres e Diogo Carlos44 que nasceram depois da prisão do pai. Os que continuaram a casa comercial em Lisboa foram Nuno Dias Carlos que também era contratador dos direitos régios45 e que mais tarde se fixou em Veneza e Amesterdão onde adoptou a religião mosaica e o nome Samuel Abendana46; e Diogo Carlos que se estabeleceu em Hamburgo47. Tudo leva a crer que integraram os sobrinhos nesta casa comercial. Em Portugal, é a descendência da filha Francisca Carlos que atinge os patamares superiores da escala social em Portugal com a entrada na fidalguia. Do casamento com Manuel Álvares de Castro nasceram Nuno Dias de Castro, Francisco Carlos, Fernão Dias Castro e Domingos Álvares de Castro. Nuno Dias Castro herdou o morgado do pai48, casou três vezes, mas só teve descendência do último casamento com Isabel de Tovar do qual nasceram Manuel Álvares e Catarina Carlos. Por seu lado, Fernão Dias de Castro era um homem de negócio estabelecido em Madrid casado com uma cristã-velha49 de quem teve vários filhos, e que recebeu por morte de seu pai 10.000 cruzados50. De Domingos Álvares Castro apenas se sabe que escolheu França para se esta­ belecer, onde acabou por falecer em 164551. O mais destacado neto de Carlos Francisco foi Francisco Carlos que não teve descendência de sua esposa, Isabel de Mendonça, mas foi o primeiro a alcançar a fidalguia ao ser nomeado fidalgo da Casa Real. Este mercador de Lis­ 41 António Borges Coelho, Quadros Para Uma Viagem a Portugal no Século XVI, Lisboa, 1986, pp. 118-119. 42 ANTT, Inquisição de Lisboa, Livro 209, fls. 687-688 v.

43 Id., Proc. 12132 (Carlos Francisco). 44 James Boyajian, Portuguese Bankers at the Court o f Spain, New Brunswick, 1983, Apêndice A-3. 45 Id., Portuguese Trade in Asia under the Habsburgs, Baltimore, 1993, p. 125. 46 Nicolás Broens, Monarquia y Capital Mercantil: Filipe IV y las Redes Comerciales Portu­ guesas, Madrid, 1989, p. 61 47 ANTT, Inquisição de Lisboa, Livro 220, fl. 173 v. 48 David Grant Smith, The Mercantile Class o f Portugal and Brazil, Ann Arbor, 1975, p. 56. 49 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 1716 (Francisco Carlos). 50 David Grant Smith, Op. Cit., p. 55-56. 51 I d ., I b ., p. 55.

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boa foi consultado em várias ocasiões pela Junta de Comércio e fez parte da Companhia do Brasil, nomeadamente como tesoureiro em 1667. Transaccionava açúcar e tabaco com a colónia do Novo Mundo e ao mesmo tempo tinha interes­ ses e partes de navios como o Santíssimo Sacramento e o 5. Miguel que faziam viagens ao Brasil, nomeadamente a Pernambuco, mas também se dedicava ao comércio com a Índia ao movimentar índigo e roupas no valor de 10.000 cruza­ dos em três anos. Para além disso fazia empréstimos52. Nos anos de 1670 comerciava ainda coral com a Índia e tinha a metade da nau N. Sra. de Cordais que costumava fazer a Rota do Cabo53. Todas estas actividades caracterizam um mercador-banqueiro tipo. A riqueza de Francisco Carlos foi sendo construída ao longo dos anos, mas também herdou por morte do pai 10.000 cruzados, tal como o irmão. Os seus bens54 incluíam uma casa no Rossio, rendas em Alvito, várias obras de arte que incluíam tapeçarias e pinturas, peças em prata, móveis de madeiras nobres alguns com incrustações em marfim e toda uma variedade de peças das mais diversas origens, uma liteira, dois machos e um cavalo. Entre as suas posses conta-se ainda uma escrava. Francisco Carlos num primeiro momento foi mandado prender a 17 de Junho de 1672 com as denúncias de João da Costa Brandão e Fernão Peres Coronel, mas as culpas não foram consideradas suficientes55. Pouco tempo depois, a 29 de Julho de 1672, acabou por ser preso pela Inquisição. Depois de ser posto a tormento e de ter passado dez anos nos cárceres saiu no auto com sentença de cárcere a arbítrio com penitências espirituais56. Nada mais se sabe deste mercador após 1682. A modo de conclusão, pode estabelecer-se a partir desta família um quadro comum a grande parte dos cristãos-novos descendentes de judeus sefarditas nos séculos XVI e XVII. Apesar de todas as dificuldades inerentes à implantação da Inquisição, esta família cujo patriarca era o rabino de Trancoso manteve-se em Portugal, com membros que mais tarde se espalharam pelo mundo, especialmen­ te no Norte da Europa e nas áreas de influência da Coroa Portuguesa. Do ponto de vista religioso é difícil classificar esta família convertida à força. Por um lado mantém as tradições e costumes judaicos e por outro cum­ prem as obrigações da Igreja Católica Apostólica Romana. Passadas cerca de duas gerações alguns membros optaram por se fixar no Norte da Europa onde assumem o Judaísmo, mas em território português afirmam-se cristãos, apesar de manterem práticas que caem fora da ortodoxia. 52 Id., Ib., pp. 54-65. 53 ANTT, Inquisição de Lisboa, Livro 254, fls. 230-250 v. 54 Id., Proc. 1716 (Francisco Carlos). 55 Id., Livro 246, fl. 332-332 v. 56 Id., Proc. 1716 (Francisco Carlos).

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A actividade principal da família Carlos era o comércio, mas a prática da M edicina também pontua algumas gerações, assim como a tendência a ocupar ofícios públicos. O percurso social é comum a vários sefarditas, geralmente um ou vários filhos começam por ser mercadores integrados numa casa comercial ou consórcio onde ganham experiência e acumulam capital, para depois inicia­ rem uma casa própria em associação com outros familiares. Quando a casa comercial atinge um certo estatuto a endogamia caracteriza­ da por casamentos entre famílias cristãs-novas com actividades comerciais dá lugar à exogamia. Geralmente os casamentos de cristãos-novos com ambições aristocratas são feitos com cristãos-velhos. Surgem então vários descendentes integrados em ordens religiosas e no clero secular. A história desta família é exemplar no que se refere ao controlo social levado a cabo pela Inquisição. A família Carlos foi alvo de perseguição ao longo de várias gerações, mesmo mudando de residência houve sempre formas de devassar a vida dos seus membros acabando muitos por serem processados e integrarem o rol dos nomes dos autos da fé. Apesar de conseguirem prosperar e atingirem um estatuto económico e social de certo relevo, isso não os impediu de serem sistematicamente alvo da coerção e do poder do Santo Ofício.

Ana Gonçalves

Carlos

João Lopes(Trancoso)

Coen/MaeseCoen (rabinoefísico) Filipa Rodrigues

Rodrigues

Gabriel Rodrigues

Ana

Lopes (IC 9162)

Fernão Lopes Manuel Carlos rendeirodas rendas

Manuel Drago Branca Simões

Fernão Lopes

Paulo Fernandes, Dr ourives(IC 5789) Carlos (IC 9176)

Filipe Carlos (IC 9168)

Mana (presaSO)

Manual Fernandes

Antónia (presaSO)

Simão Rodrigues

1530

DiogoSoares (mercadorecriado doinfanteD. Luís)

s(IL 8C 939,arlo8940)

Filipa

1533

1536

Clara Carlos

1539

Fernando Manuel Bernardo

Jorge NunoDiasde Brito

Ana Guterres Carlos Francisco/ DavidCoen (Lisboa, Hamburgo)

Mendesde Brito, oRico

Guiomar Dias

0. Maria

Tovar

164-1635 5

Carlos

Paulo

Francisca Ana Guterres

Beatriz Góis

Diogo Carlos (Hamburgo)

Filipa

NunoDiasCarl os(oucastro)/Tomás vanDach/Samuel Abendana (Lisboa.Veneza. Amesterdão) António Lopes

(Celorico)

(beneficiadodaigreja deStaCruzdoCastelo)

Grácia Jorge

Francisco Dias Jorge

Lopes Beatriz Pinto Rodrigues Domingos Álvares Castro

Nuno Dias Castro

Inês Soeres Mécia

Fernão Diasde Castro

Babel Tovar

Joãode Mendonça. cap

FranciscoCarlos (fidalgoCasa Real. deputadoetesoureirodaJun ta decomércio) (Lisboa Baía. Lisboa)

Catarina Carlos

D. José

D

António de Castro ajustadosp/casar

D

CristóvãoFernandes e(rendeirodas rendas s o c n Tra m

s Diogo d a rn e F

Carlos

Francisco

Mariade Castro

D. Francisca

FranciscoParesda Silveira(Asentista em Madrid)

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