A Melancolia em Florbela Espanca

September 27, 2017 | Autor: Tatiana Santos | Categoria: Psychoanalysis, Depression, Poetry, Melancholy, Melancholia (Art)
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Doutoramento em Psicologia – 3º Ciclo – Área de Psicanálise

Unidade Curricular Estudos Avançados em Psicanálise II

"Podem voar mundos, morrer astros..." A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

Docente – Prof. Dr. Eduardo Sá Discente – Tatiana Santos, num. 11.854

2011 A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

Tatiana A. Santos 2011

"Podem voar mundos, morrer astros..." A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada ... a dolorida ... (Eu In Livro de Mágoas, 1919)

Flor Bela d'Alma da Conceição nasce em 1894. Filha de Antónia da Conceição Lobo e de João Espanca, que apenas a perfilha quando esta tem 19 anos deixando Flor Bela reconhecida como filha de pai incógnito durante toda a infância e adolescência (Dal Farra, 2002). A morte prematura da sua mãe (em 1908), faz com que Flor Bela seja então criada pela sua madrinha e então esposa de seu pai. É criada por Mariana do Carmo Ingleza juntamente com o seu meio irmão Apeles. Flor Bela da Conceição, mais tarde conhecida como Florbela Espanca, escreve o seu primeiro poema aos 8 anos – "A vida e a morte". Foi uma das mulheres mais marcantes da sociedade portuguesa. Casa-se 3 vezes e entra na faculdade contudo, a sua vida sempre povoada por fantasias de morte, difíceis relações sentimentais, boatos acerca de um amor proibido com o seu irmão Apeles começa a colapsar após a estranha morte deste. Apeles despenha-se no avião que pilotava. Uns dizem acidente, outros falam de suicídio por ter ocorrido após a morte da sua amada. A partir desse momento a espiral de dor em que Florbela já vivia mergulhada, intensifica-se. Por entre lutos patológicos, amores e desamores, a poetiza atinge o ponto último e incontornável do suicídio. Assim, na passagem de dia 7 para dia 8 de Dezembro de 1930, às 2 horas da manhã Florbela conclui com êxito uma das muitas tentativas de suicídio que já havia cometido. Morre precisamente à hora exacta em que nasceu, no dia em que fazia 36 anos (Dal Farra, 2002). Florbela, escritora, poetiza e intelectual sofredora despede-se então de um Portugal saudosista e tão melancólico como ela própria. A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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A Psicanálise, mostra-nos desta forma que o passado nunca é apenas o passado e revela-nos que, muitas vezes, quanto mais queremos dele escapar a um nível consciente mais insistentemente ele parece afirmar-se a um nível inconsciente (Ruti, 2005). A melancolia, tema base desta reflexão, é talvez o sintoma por excelência do espírito sofredor e é através da poesia que conseguimos aceder a muito deste conteúdo já que esta parece ter um acesso directo às camadas mais profundas da nossa psique onde é gerada e onde vive a dor psíquica (Akhtar, 2000). A Melancolia - "Castelã da Tristeza" Florbela Espanca, ícone da poesia portuguesa, representação do sofrimento no feminino, alma encarnada de melancolia, saudade e fado português, ao pôr fim à sua vida com 36 anos conduz-nos a uma viagem através de uma espiral descendente de dor e angústia que servem de mote a este trabalho. Na sua certidão de óbito, a causa de morte indicada era "neurose" e os seus poemas revelaram desde o primeiro uma tristeza basal e uma fome de um amor in utero. Para Freud, a melancolia era a incapacidade de realizar o luto ou a elaboração da perda (Freud, 1917 in Ruti, 2005), encontrando-se uma negação da realidade, uma resistência à separação e uma ancoragem à memória desse objecto perdido que persiste e se sobrepõe ao bem-estar. Resulta de uma perda insuportável. Em “Luto e Melancolia”, Freud fala da tenacidade com que a libido investe o objecto perdido. Não importam outros objectos que surjam pois a resistência é tão forte e a oposição pode ser tão intensa que acaba por dar “lugar a um desvio da realidade e um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo” (Freud, 1988 / 1917, p. 277). Se me ponho a cismar em outras eras Em que ri e cantei, em que era querida, Parece-me que foi noutras esferas, Parece-me que foi numa outra vida ... (Lágrimas Ocultas In Livro de Mágoas, 1919) Os objectos perdidos, na melancolia, ocupam um lugar permanente no Self, determinando o carácter do ego, não dando espaço à incorporação de novos objectos. A perda permanece viva como A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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parte integral do sujeito (Ruti, 2005). Esta disposição melancólica tem o seu ponto de fixação máximo em comparação na situação de fome do bebé (Radó, 1928). Mas o Mar também chora de tristeza ... As árvores também, como quem reza, Abrem, aos Céus, os braços, como um crente! (Desejos Vãos In Livro de Mágoas, 1919)

Melancolia e Poesia em Espanca - "Rimas perdidas, vendavais dispersos" Segundo Kaplan (1981) recentemente tem vindo a ressurgir o interesse da Psiquiatria pela área da poesia. Também Silverman & Will (1986) defendem que a criatividade não serve apenas propósitos estéticos mas auto-reparação do artista. Os aspectos formais e estruturais da poesia têm, eles próprios, efeitos reparadores (Akhtar, 2000). Bem como a melancolia. Segundo Radó (1928) ela própria representa uma tentativa de reparação em grande escala, levada a cabo com uma consistência psicológica férrea. É um processo que pretende reavivar a auto-estima egóica, destruída pela falta de amor e restaurar a relação interrompida. Ruti (2005) descreve a melancolia como tendo tido sempre um papel fundamental na criatividade, tendo vindo a ser vista como característica intrínseca

das personalidades mais

artísticas, espirituais ou filosóficas. A melancolia, defende então Ruti (205), tal como a poesia, são tentativas de comunicar significados que não se conseguem transmitir de outro modo já que algo na vida psíquica do sujeito ficou imobilizado num padrão de sofrimento. Para Akhtar (2000) a poesia usa uma complexa mistura de defesas psíquicas. Ler ou escrever um poema, em sofrimento, requer uma retirada da atenção no que toca ao real e trata-se de uma tarefa que exige uma acalmia no diálogo com os objectos internos mais perturbadores. Este compromisso permite ao indivíduo o transformar da passividade do sofrimento para a actividade da criação. Assim, Fonagy & Target (1997 in Akhtar, 2000) defendem que a poesia fala ao inconsciente facilitando a mentalização dos substratos não verbais da psique.

A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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Segundo Bratton (2001) a fantasia melancólica da introjecção é a incorporação que funciona como solução mágica para lidar com um objecto outrora idealizado, contudo, tendo agora perdido a sua inocência. O que acontece é que a falha em introjectar uma certa realidade traduz-se então pela incapacidade de exprimir ou de verbalizar a situação. O “ser ou não ser?” prende-se mais com o “eu ou não eu?” já que não objecto e eu são uma só realidade. Ainda Bratton (2001) acrescenta que na melancolia os sentimentos são virados para dentro e o Eu identifica-se com o objecto abandonado, a causa da tristeza. Esta dúvida sobre quem se é e sobre a delimitação entre Eu e objecto está patente em toda a obra de Espanca. Saudade que eu sei donde me vem Talvez de ti, ó Noite! ... Ou de ninguém! Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!! (Noite de Saudade In Livro de Máguas, 1919) Esta dor patente em permanência tem a sua referência na família de Florbela, que sempre serviu de base a boatos e histórias sobre a escritora. O facto de ter vivido com um pai que apenas a perfilha aos 19 anos e viver uma relação muito próxima com o irmão Apeles fá-la escrever poemas como "Crucificada" Amiga... noiva... irmã... o que quiseres! Por ti, todos os céus terão estrelas, Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las, Ao beijar a esmola que me deres. (...) E depois... Ah! depois de dores tamanhas, Nascerás outra vez de outras entranhas, Nascerás outra vez de uma outra Mãe! (Crucificada In Charneca em Flor, 1931)

A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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Bratton (2001) descreve que, para Freud, o resultado final da melancolia é o suicídio. Durante um estado prévio ao suicídio o paciente, diz Campbell (1995), é influenciado em vários graus por fantasias desse suicídio. A fantasia pode ou não tornar-se consciente e é, sem dúvida, a força motivadora.

Como pálpebras roxas que tombassem Sobre uns olhos cansados, carinhosas, A noite desce... Ah! doces mãos piedosas Que os meus olhos tristíssimos fechassem! Assim mãos de bondade me beijassem! Assim me adormecessem! Caridosas Em braçados de lírios, de mimosas, No crepúsculo que desce me enterrassem! (...) (A Noite Desce in "Livro de Sóror Saudade", 1923)

A falta do Nome-do-Pai e o abandono que sente o melancólico, manifesta-se em Florbela quando nos mostra na sua escrita a dimensão da mãe abandónica imaginária (Bigati, 2008). Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? Entre agonias e em dores tamanhas Pra que foi, dize lá, que me trouxeste (Deixai Entrar a Morte, In Sonetos Completos, 1934)

A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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A Melancolia num país Melancólico e Saudosista – Portugal E quem dera que fosse sempre assim: Quanto menos quisesse recordar Mais saudade andasse presa a mim! (Saudades in "Livro de Sóror Saudade")

Contudo, a melancolia presente em Florbela Espanca pode encontrar paralelismos com a melancolia de um país saudosista como o país que acolheu e viu nascer a poetiza. Terá a saudade, esse sentimento tão Português, relação directa com a melancolia? O infante D. Duarte dizia que "a saudade (…) é um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão, e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo. E outros vêm daquelas cousas que o homem praz que sejam, e alguns com tal lembrança que traz prazer e não pena. E em casos certos se mistura com tão grande nojo que faz ficar em tristeza." (apud. Moisés, 1998, p: 59). A saudade tem vindo a ser destacada entre as características mais correspondentes à nossa cultura. O que se valoriza então é o passado através de expressões como «dantes é que era bom» ou «as coisas vão de mal a pior» (Cardoso, 1982). Já Sá Carneiro escreveria que «para mim é sempre ontem». Este passado que se constitui como parte integrante do presente em muito se assemelha ao estado melancólico, contudo, e neste caso, sendo característica de um povo. A solidão passou então, com Garrett, a ser um elemento constitutivo da saudade portuguesa em Garrett. Já em Pascoaes, da condição saudosa resulta uma condição dolorosa com a dor da privação, a consciência de finitude, de imperfeição e insuficiência do ser (Garmes & Siqueira, 2009). Pascoaes defendia que os Portugueses seriam uma raça diferente com maior sensibilidade para a condição saudosa, como tal, mais sofredor. Florbela Espanca foi também um símbolo deste sentimento, do estado melancólico da saudade portuguesa, chegando mesmo a receber a alcunha de "Sóror Saudade" [freira / irmã saudade] na faculdade.

A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde, Que venha aquecer-se ao brando lume Dos meus olhos que morrem de saudade! (Junquilhos, in "A Mensageira das Violetas", 1999) Enquanto a vinculação à melancolia é mais frequente na relação entre pessoas amadas e perdidas, Freud (1917 cit Ruti, 2005) reconhece que também pode emergir relacionada com abstracções reverenciadas como um país ou ideais. Tal como na melancolia, a saudade está presa ao passado e há pouca delimitação do que é o objecto perdido e o Eu já que há uma permanência deste objecto, ainda que abstracto, como parte do próprio Self. O século XVI serve como exemplo do contributo que poetas e escritores deram para a construção de ideais individuais e colectivos (Carvalho, 2009). O difícil final do século XVI em Portugal com o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, a perda da independência para a Espanha e o colapso do império português vai favorecer o profetismo messiânico conhecido através das Trovas de inspiração bíblica do Bandarra, por exemplo. Também mais tarde em Fernando Pessoa se vai descobrir uma tragicidade. Segundo Pimentel (2008) a sua tragédia é a tragédia de um Portugal dominado pelo fado da infelicidade, da insatisfação e da tristeza. Florbela Espanca também escrevia sobre o seu país, sobre a sua terra onde a saudade e a melancolia eram sentimentos mútuos. Caravelas doiradas a bailar... Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar! As que eu lancei à vida, e não voltaram!... (Caravelas,, in "Livro de Sóror Saudade, 1923)

Bigati (2008) acrescenta que, por ter sido “tudo que no mundo há de maior”(in Meu Mal, Livro de Sóror Saudade, 1923), Florbela parece ter uma saudade desse tempo de plenitude. Mais uma vez, tal como o sentimento melancólico em que objecto perdido e Eu não se distinguem, Florbela não localiza o que perdeu embora sinta a saudade de algo. Para Bigati (2008) remete para A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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Freud em Luto e Melancolia havendo a perda de um objeto de amor, mas sem que o sujeito saiba o que realmente perdeu. Florbela viveu sempre sob a sombra desta falta, alimentada pelo desamparo fundamental e um vazio estrutural. Florbela era uma mulher profundamente melancólica que viveu e marcou um país onde a melancolia ainda hoje é culturalmente celebrada.

A Melancolia e a Saudade em Florbela Espanca

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Referências Bibliográficas Akhtar, S. (2000). Mental Pain And The Cultural Ointment Of Poetry In International Journal of Psycho-Analysis, Vol. 81(2). Barros, E. (2010) Os enigmas do dizer poético de Florbela Espanca. In Psicanálise & Barroco Em Revista, Vol.8(1), pp: 114-129. Bigati, J. M. (2008). Rastros da violência entre mãe e filha: a melancolia da ausência.. In: III Congresso de Psicopatologia Fundamental, Niterói. III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental. Bratton, M. (2001). Me or Not Me: The Lost Object? In Gender and Psychoanalysis, Vol. 6(2). Campbell, D. (1995). The Role Of The Father In A Pre-Suicide State In International Journal of Psycho-Analysis, Vol. 76. Cardoso, M. E. (1982). Misticismo e ideologia no contexto cultural português: a saudade, o sebastianismo e o integralismo lusitano. In Análise Social, Vol. XVIII (72-73-74), pp: 13991408. Carvalho, J. (2009). Cultura, literatura, identidade e a construção de ideais nacionais. In Carnets, cultures littéraires: nouvelles performances et développement, n.º spécial, automne / hiver, pp: 81-90. Dal Farra, M. L. (2002). Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário). São Paulo: Editora Iluminuras, LTDA. Espanca, F. (1919). Livro de Mágoas, Lisboa: Tipografia Maurício. Espanca, F. (1923). Livro de Sóror Saudade. Lisboa: Tipografia A Americana. Espanca, F. (1931) Charneca em Flor. Coimbra: Livraria Gonçalves.

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Espanca, F. (1934). Sonetos Completos, (Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade, Charneca em Flor, Reliquiae), Coimbra: Livraria Gonçalves. Espanca, F. (1978). Sonetos. Amadora: Bertrand Espanca, F. (1999). A mensageira das violetas: antologia. Porto Alegre: L&PM. Freud, S. (1988/1917). Luto e Melancolia. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Imago. Garmes, H. & Siqueira, J. (2009). Cultura e memória na literatura Portuguesa. Curitiba: IESDE Brasil, S. A. Kaplan, A. (1981). Poetry, Medicine and Metaphysics In Journal of the American Academy of Psychoanalysis, Vol. 9(1). Pimentel, M. (2008). O mito de Portugal nas suas raizes culturais In Lages, M. & Matos, A. (coord) Portugal, percursos de interculturalidade. Matrizes e Configurações, Vol III. Lisboa: Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI, I.P.). Moisés, M. (1998). A literatura Portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix. Radó, S. (1928). The Problem of Melancholia In International Journal of Psycho-Analysis, Vol. 9. Ruti (2005). From Melancholia to Meaning: How to Live the Past in the Present In Psychoanalytic Dialogues, Vol. 15 (5).

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