A memória revisitada: o processo de escritura do livro-reportagem Pedras ao Infinito

September 14, 2017 | Autor: Tito Souza | Categoria: Literary Journalism, Cultural Memory
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A memória revisitada: o processo de escritura do livro-reportagem Pedras ao Infinito1 Tito Eugênio Santos SOUZA2 Klébia de Souza Muricy PEIXINHO3 Universidade do Estado da Bahia, Juazeiro, BA

Resumo Este trabalho relata o percurso de elaboração do livro-reportagem Pedras ao Infinito, que se propõe a apresentar aspectos biográficos da trajetória do poeta e jornalista José Raulino Sampaio. Nascido em Barreiras (BA) em 1897, José Raulino chegou a Petrolina (PE) ainda na segunda década do século XX, onde viveu até a sua morte. No perfil, trazemos recortes da vida desse personagem, que contribuiu de maneira significativa para o cenário cultural e literário petrolinense. Espaço de confluência entre a escrita e a memória, o livro-reportagem pode ser considerando um gênero híbrido, pois a um só tempo reúne características que o aproximam do jornalismo e da literatura. Nesse sentido, Pedras ao Infinito é resultado de uma aproximação entre jornalismo e literatura, sendo também um convite ao passeio pelos caminhos insólitos e surpreendentes da memória. Palavras-chave: jornalismo literário; livro-reportagem; perfil; José Raulino Sampaio.

Introdução

Nascido em Barreiras (BA) no ano de 1897, José Raulino Sampaio chegou a Petrolina (PE) em 1923, onde se fixou e viveu até os últimos dias de vida. Na cidade pernambucana, Raulino exerceu atividades tão diversas quanto o ofício de tabelião, jornalista e poeta. Juntamente com José Olivá Apolinário, foi um dos fundadores do Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina, mantendo correspondência com o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade por aproximadamente uma década. A ideia de escrever um livro-perfil sobre José Raulino Sampaio surgiu a partir da nossa aproximação com a história do Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina, 1

Trabalho apresentado no GT2 - Biografias de Pessoas, Instituições e Ideias, durante o XVIII Colóquio Internacional da Escola Latino-Americana de Comunicação e o I Fórum Brasileiro das Tendências da Pesquisa em Comunicação, eventos componentes do Pens@com Brasil 2014. 2 Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharel em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). 3 Especialista em Ensino da Comunicação Social e Bacharel em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). 1

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fundado em 9 de outubro de 1977. Idealizado como forma de homenagear Drummond pela sua vasta obra, o clube reuniu poetas, escritores e intelectuais que desejavam discutir e produzir literatura, inspirados nos ideais do modernismo. Na época, Raulino ofereceu sua residência para sediar as atividades do grupo, tornando-se um dos principais representantes do movimento literário. Desde o início, a persona de José Raulino Sampaio atraiu a nossa atenção. Como tabelião, ele acompanhou de perto o crescimento da cidade sendo uma testemunha ativa. Como jornalista, escreveu sobre grandes acontecimentos e também fatos do cotidiano. Como poeta, transferiu seu pensamento para o papel transformando-o em versos. Diante disso, percebemos a importância do seu legado para a memória cultural de Petrolina e decidimos resgatar a sua história. Em Pedras ao Infinito, procuramos reconstituir alguns momentos da trajetória desse personagem e apresentá-lo em seus contornos singulares. A escolha pelo formato perfil mostrou-se a mais adequada aos nossos objetivos, uma vez que permite evidenciar o lado humano da personalidade retratada. Vilas Boas (2003, p. 13) aponta a focalização em alguns aspectos da vida de uma pessoa como característica dos perfis jornalísticos, ao passo que nas biografias “os autores têm de enfrentar os pormenores da história do biografado”. De caráter essencialmente autoral, o perfil também está profundamente relacionado às experiências pessoais daqueles que o escrevem:

Os processos de criação são multidimensionais. Neles, combinam-se memória, conhecimento, imaginação, sínteses e sentimentos, cinco elementos imprescindíveis ao trabalho autoral. A narrativa de um perfil não pode prescindir de todos os conceitos e técnicas de reportagem conhecidos, além de recursos literários e outros. Mas ela também está atada ao sentimento de quem participa. A frieza e o distanciamento são altamente nocivos. Envolver-se significa sentir (VILAS BOAS, 2003, p. 13-14).

Assim, utilizando as possibilidades narrativas e expressivas do livro-reportagem, pretendemos demonstrar que o diálogo entre esses dois campos é tão possível quanto desejável. E mais: o jornalista pode e deve ultrapassar as barreiras impostas pelas rotinas de produção da notícia e romper com modelos pré-estabelecidos. Como defende Medina (2004, p. 61), “não há fórmulas, rotinas que sirvam para aplacar a inquietude de 2

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quem procura a expressão”. Desse modo, José Raulino Sampaio deixará de ser apenas uma lembrança guardada na memória dos familiares e amigos para se tornar conhecido por todos aqueles que tiverem acesso ao livro. Os aspectos da trajetória de Raulino pontuados na obra, serão também as nossas pedras lançadas ao infinito.

Jornalismo e literatura: diálogo possível

O livro-reportagem pode ser considerando um gênero híbrido, pois a um só tempo reúne características que o aproximam do jornalismo e da literatura. Assim como os acontecimentos do mundo real orientam a produção da notícia, o livro-reportagem também exige para si uma veracidade e uma verossimilhança que o jornalismo não abre mão. Por outro lado, guarda semelhanças estilísticas com a literatura, seja pela estrutura narrativa utilizada ou pela maior liberdade de escrita. De acordo com Lima (2004), o livro-reportagem caracteriza-se como um veículo de comunicação impressa não periódica, permitindo uma maior amplitude de tratamento acerca de determinado tema, se comparado ao jornal, à revista ou às mídias eletrônicas. Esse grau de amplitude manifesta-se tanto no aspecto extensivo, de ampliação do relato, quanto no aspecto intensivo, de detalhamento, e também pela combinação desses dois fatores. Ainda segundo Lima (2004), o uso desse formato, definido sugestivamente por ele como “páginas ampliadas”, possibilita a abordagem de temas um pouco mais distantes no tempo, não se limitando ao rigorosamente atual. Enquanto para o jornal diário o atual é o ocorrido ontem, no livro-reportagem ocorre uma extensão do tempo presente, superando o imediatismo da notícia que é publicada nos periódicos. Segundo o autor, além de informar, sua a função é:

[...] orientar em profundidade sobre ocorrências sociais, episódios factuais, acontecimentos duradouros, situações, ideias e figuras humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da contemporaneidade capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o significado do mundo contemporâneo (LIMA, 2004, p. 39).

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Portanto, a união de elementos presentes em dois gêneros diferentes faz surgir um inevitável caminho de metamorfose. Jornalismo e literatura se transformam para formar um terceiro gênero. Não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas sim de uma verossimilhança possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de jornalismo, nem de literatura, mas sim de livro-reportagem – espaço de autonomia. Essa autonomia criadora é ainda mais evidente no perfil: existem tantos modos de escrevê-lo quanto pessoas que se dedicam a essa tarefa. Como relembra Vilas Boas (2003, p. 13), é “impossível que as experiências pessoais de um repórter não se confundam com a temática que estiver trabalhando”. Para o autor, embora seja um gênero jornalístico, o perfil precisa assimilar recursos do jornalismo literário para envolver o leitor. Pena (2006) afirma que o jornalismo literário permite potencializar os recursos do jornalismo, proporcionando visões amplas da realidade e possibilitando profundidade aos relatos. Para o autor, uma das características do jornalismo literário é a perenidade: diferentemente das reportagens do cotidiano, que caem no esquecimento das pessoas no dia seguinte, um livro-reportagem é uma obra que permanece por gerações, influenciando o imaginário coletivo e individual.

O resgate do tempo e da memória através do livro-reportagem

Além de propiciar um autêntico encontro entre jornalismo e literatura, o livroreportagem permite revisitar o passado e reconstruí-lo, seja por meio da pesquisa histórica e/ou pelo resgate da memória. Através dele, fatos dispersos no tempo e no espaço podem ser retomados e reconstituídos, tomando-se como referência a memória dos sujeitos que participaram da história a ser contada. Na concepção de Bergson (apud BOSI 1994, p. 47), a memória permite a relação entre presente e passado e, ao mesmo tempo, intervém no processo das representações atuais:

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,

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“desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.

Dessa maneira, a partir da memória individual dos sujeitos é possível alcançar uma memória coletiva. Halbwachs (2003) considera que a memória particular relacionase diretamente com o grupo ao qual o indivíduo pertence, sendo parte de uma memória coletiva. Assim, a rememoração individual se faz na tessitura das memórias de grupo, alimentando-se da memória coletiva e histórica. Bosi (1994) afirma que a linguagem é o instrumento socializador da memória por excelência. É através da linguagem que os indivíduos interagem entre si e é também por meio dela que narram suas experiências de vida. Nesse sentido, lembrar e narrar são manifestações de linguagem que caminham juntas. Para Jovechelovitch e Bauer (2008), toda experiência humana pode ser expressa na forma de uma narrativa. Contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana, e através da narrativa as pessoas não apenas lembram o que aconteceu, mas também ordenam a experiência em uma sequência, estabelecendo relações entre os diferentes acontecimentos e encontrando possíveis explicações para isso. Considerando as suas possibilidades narrativas, o livro-reportagem constitui-se em um importante instrumento de registro, permitindo a preservação da memória e o resgate histórico. Segundo Réche (2009), ao ser utilizada como recurso, a memória recupera com riqueza os acontecimentos psicológicos e sociais dos personagens envolvidos. “Em um livro-reportagem, trabalhando-se com a memória e com alguns arquivos pessoais, esse ‘estar ali’ seria se apossar dos fatos narrados para construir uma narrativa da vida real” (RÉCHE, 2009, p.6). Nesse sentido, realizar um trabalho dessa natureza requer não apenas a aplicação de conceitos e técnicas inerentes ao fazer jornalístico, mas principalmente exige sensibilidade e envolvimento de quem se propõe a fazê-lo. Para contar a história de Raulino, partimos em busca das reminiscências daqueles que com ele conviveram, assumindo o papel de “escavadores da memória”. Não obstante, os caminhos que conduzem aos subterrâneos da memória são por vezes tortuosos e imprecisos. No décimo livro da sua obra Confissões, Santo Agostinho (2000) afirma que o esquecimento também faz parte da memória, uma vez que esquecer

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nada mais é que a própria lembrança do esquecimento, ou seja, a consciência de uma lembrança apagada por ele:

Quando a própria memória perde qualquer lembrança, como sucede quando nos esquecemos e procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal, a procuramos, senão na mesma memória? E se esta casualmente nos apresenta uma coisa por outra, repelimo-la até ocorrer o que buscamos. Apenas nos ocorre, exclamamos: “É isto!” Ora, não soltaríamos tal exclamação, se não conhecêssemos esse objeto, nem o reconheceríamos, se dele nos não lembrássemos (AGOSTINHO, 2000, p. 278).

Assim, a reconstrução de um tempo passado que não presenciamos era um desafio a ser enfrentado. Como falar de uma pessoa que jamais chegamos a conhecer? Como lidar com as lacunas da própria memória, onde lembrança e esquecimento se manifestam simultaneamente? E uma vez superados esses entraves, como faríamos para escrever um livro a quatro mãos, conciliando interesses comuns e equilibrando possíveis divergências dos autores? As respostas para tais questionamentos foram surgindo no decorrer do nosso percurso de pesquisa. Embora Raulino não pudesse nos contar sua própria história, foi principalmente através dos relatos sobre ele e dos registros escritos deixados por ele que conseguimos reunir as informações necessárias para escrever o livro Pedras ao Infinito. Entretanto, nem sempre as versões apresentadas eram coincidentes entre si e alguns dados obtidos não eram suficientemente precisos. Nesses casos, procuramos confrontar as diferentes opiniões e chegar a um denominador comum, ou simplesmente evitar o uso de informações duvidosas. Quanto ao processo de escrita propriamente dito, fomos construindo a narrativa a partir de fragmentos elaborados separadamente pelos autores e reunidos em seguida para a composição do texto final. Gradativamente, o livro foi tomando forma e saindo do “limbo” em que se encontrava, para finalmente chegar às mãos do leitor.

Em busca das pedras: caminhos percorridos para a realização do livro Pedras ao Infinito

Para reconstruir a(s) história(s) de José Raulino Sampaio, falecido em 13 de 6

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janeiro de 1989, era necessário que fôssemos ao encontro do que Pollak (1989) define como “memória subterrânea”, que corresponde às vozes não difundidas pela memória oficial. Afinal, contar a trajetória de uma pessoa envolve muitos pormenores que somente a memória oficial não seria capaz de nos oferecer. Assim, procuramos coletar o máximo de informações sobre ele disponíveis nos acervos públicos e privados locais, realizando a princípio uma pesquisa nas principais bibliotecas (Municipal de Petrolina e do Serviço Social do Comércio – Sesc), instituições de ensino e pesquisa (Colégio Dom Bosco, Universidade de Pernambuco – UPE, Universidade do Estado da Bahia – Uneb e Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – Facape) e no Museu do Sertão, além de consultas a arquivos de particulares. Durante esse percurso, pudemos constatar não apenas a escassez de documentos e registros históricos mantidos pela memória oficial, como também notamos certa indiferença do poder público local no sentido de garantir a sua preservação. Restavanos, portanto, a tarefa de resgatar as memórias subterrâneas que por tanto tempo estiveram silenciadas, trazendo à superfície as lembranças que o esquecimento não conseguiu apagar. Afinal, como reflete Bosi (2003, p. 18), “cabe-nos interpretar tanto a lembrança quanto o esquecimento”. Desse modo, prosseguimos em busca das reminiscências guardadas pelas pessoas que conviveram com o poeta, conversando principalmente com familiares e amigos. Embora um roteiro prévio tivesse sido elaborado, a nossa maior preocupação durante as entrevistas era garantir a fluência do diálogo, como sugere Medina (2004). Segundo a autora, esse diálogo pode ser alcançado se o entrevistador estabelecer uma relação de confiança e empatia com o entrevistado.

O desafiador dessa aventura é a inquietude, mantida viva, de ir-aoencontro-do-outro, não tomando o outro como ISTO, objeto em que imprimirei, a ferro e fogo, o meu EU. Como diz Martin Buber, o TU está pleno de mistérios a serem sondados. À medida que EU busco a TI, me projeto por inteiro, me perco e me acho, me revelo no ENTRE o EU e o TU. O processo é de aprendizado [...]: eu, entrevistador, lanço esses desafios para que o outro se revele no plano mais imediato [...] mais matizado, pelo estímulo à abertura, por claros-escuros de sua subjetividade, que não estariam na pauta, mas a enriquecem (MEDINA, 2004, p. 44).

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Nesse sentido, muito mais que um jogo pré-definido de perguntas e respostas, a entrevista é um autêntico encontro de subjetividades. De acordo com Lage (2005), ela pode acontecer sob as mais diversas circunstâncias, sendo a entrevista dialogal o método por excelência. Neste caso, “entrevistador e entrevistado constroem o tom de sua conversa, que evolui a partir de questões propostas pelo primeiro, mas não se limitam a esses tópicos: permite-se o aprofundamento e detalhamento dos pontos abordados” (LAGE, 2005, p. 77). Em sintonia com essa perspectiva proposta por Medina (2004) e retomada por Lage (2005), procuramos reunir o máximo de condições favoráveis para a ocorrência do diálogo com as fontes. Para isso, agendamos as entrevistas de acordo com a disponibilidade dos participantes e sempre nos locais sugeridos por eles. Ao todo, foram entrevistadas 23 pessoas, entre familiares e amigos de José Raulino Sampaio. Durante os encontros, tivemos o cuidado de registrar as falas por meio de gravadores digitais e fazer anotações dos tópicos mais relevantes, de maneira a facilitar o processo de transcrição.

Juntando as pedras do caminho Logo após a realização das primeiras leituras e entrevistas, procuramos traçar um roteiro que nortearia o processo de escrita do livro-reportagem perfil. Inicialmente, idealizamos um livro composto por sete capítulos, de maneira que cada um deles abordasse um aspecto singular do personagem retratado. Longe de apresentar uma sequência linear de fatos ou mesmo descrever a totalidade dos acontecimentos, nosso objetivo era captar as diversas facetas de José Raulino Sampaio através das nossas próprias impressões. Desde o princípio, a nossa intenção não era produzir um relato biográfico exaustivo e ancorado em esquemas cronológicos rígidos, com começo, meio e fim definidos. Ao contrário, procuramos nos afastar ao máximo daquilo que Bourdieu (2006, p. 185) chama de “ilusão biográfica”, na qual a história de uma vida é tratada como “o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção”. Segundo ele, o que as biografias tradicionais oferecem é nada mais que uma reconstrução do real, sendo o biógrafo o responsável por essa ilusão referencial. Este, ao

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reconstituir a vida de uma pessoa como uma história linear, esforça-se por conduzir o leitor ao longo de um percurso estável e com sentido definido, como se a existência narrada fosse um todo coerente formado a partir de relações de causa e efeito. Em contraponto a esse modelo descrito por Bourdieu (2006), Pena (2004) propõe a Teoria da Biografia Sem Fim (Fractais Biográficos), defendendo a ideia de que uma biografia pode ser organizada em capítulos (fractais) que reflitam as múltiplas identidades do personagem, a exemplo do que procuramos fazer no livro Pedras ao Infinito. Deste modo, cada capítulo traz pequenas histórias contadas fora da ordem diacrônica, de maneira que o leitor pode iniciar a leitura por qualquer um deles, se assim o desejar. Partindo desse princípio, o livro Pedras ao Infinito é composto por sete capítulos identificados nominalmente e não numerados, justamente para ressaltar o seu caráter não linear e propiciar uma maior liberdade de leitura, sem que houvesse um suposto “caminho das pedras” a ser trilhado. A seguir, fazemos uma breve retrospectiva de cada um deles na ordem em que aparecem, ressaltando os seus elementos fundamentais. Capítulo “Cantos de saudade”

De maneira não convencional, optamos por abordar logo neste capítulo a morte de Raulino e os seus últimos momentos de vida, inspirados no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nesta obra célebre, considerada o marco inicial do Realismo brasileiro, Machado adota uma narrativa fragmentária e não linear, na qual o narrador-protagonista, Brás Cubas, assim justifica a escrita de suas memórias:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo (ASSIS, 2005, p. 13).

À semelhança do personagem machadiano, que já no primeiro capítulo traz o

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“óbito do autor”, decidimos iniciar a escrita do livro Pedras ao Infinito de trás para frente, narrando a morte de Raulino através do recurso do flashback. Com esse artifício, traçamos uma espécie de retrospectiva dos seus últimos momentos de vida, apresentando-os em ordem decrescente, por assim dizer. Certamente, tal procedimento exigiu especial atenção dos autores, no sentido de combinar a fluidez do estilo literário com a técnica jornalística de reconstrução da realidade. Nessa parte, descrevemos de maneira leve e poética a rotina do personagem, fornecendo ao leitor informações sutis sobre seus hábitos e personalidade, que seriam trabalhados com maior profundidade nos capítulos seguintes. Os diálogos, em sua maioria curtos, foram encadeados de maneira a transmitir a carga dramática inerente às situações retratadas. Para a abertura do capítulo, foi selecionado o poema “Perspectiva”, escrito por Raulino e presente na antologia poética Eu e o Cantar de Minha Gente, organizada por Oscar Arnaud Sampaio. Capítulo “Uma vida com poesia”

Como o próprio título sugere, este capítulo aborda a presença da poesia na vida de Raulino, destacando a sua relação com a literatura (metaforicamente chamada de “palavra”) e as suas criações em prosa e verso. A intenção, neste momento, é retratar uma de suas mais conhecidas facetas: a do poeta que percebe beleza até mesmo nas coisas mais banais do cotidiano. Além disso, procuramos não apenas apresentar sua obra poética ao leitor, mas principalmente dialogar com ela no decorrer de todo o livro, demonstrando que poesia e escrita jornalística podem muito bem se entrelaçar. O poema “A palavra”, publicado por Raulino na Coluna Drummoniana do jornal O Farol em 2 de fevereiro de 1984, está presente na abertura do capítulo.

Capítulo “Por amor e devoção”

A trajetória particular de José Raulino Sampaio, da infância à idade adulta, é reconstituída sob este título. Embora não seja o estilo predominante no livro, nesta passagem a narrativa prossegue de maneira mais linear e apresenta algumas 10

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informações enumeradas cronologicamente, pois de algum modo reflete a ideia de caminho percorrido. No texto, o leitor há de notar certo saudosismo nos depoimentos e falas dos personagens, por se tratarem essencialmente de confissões familiares. Extraído do seu livro de poesias Seixos Rolados, o poema “Velho Panorama” abre o capítulo. Capítulo “Petrolinense por convicção”

A relação de José Raulino Sampaio com a cidade que o acolheu no ano de 1923 e onde ele viveu até os últimos dias de vida é abordada com maior riqueza de detalhes neste capítulo. Baiano nascido em Barreiras, Raulino proclamou Petrolina como a sua “pátria de adoção”, testemunhando acontecimentos históricos que marcariam a memória da população local, como a construção da Catedral de Petrolina e a implantação dos projetos de irrigação. Como prelúdio a este capítulo, selecionamos o poema “Petrolina”, também presente no livro Seixos Rolados. Capítulo “Confabulações drummonianas”

Conforme já citamos anteriormente, a fundação do Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina foi um acontecimento bastante significativo para a história cultural da cidade. Idealizado inicialmente por José Olivá Apolinário, grande admirador de Carlos Drummond de Andrade, o movimento literário contou com a participação ativa de Raulino desde a sua criação até o seu encerramento. Evidentemente, esse episódio não poderia ser excluído do livro que pretendíamos escrever. Logo no início, quando nos propusemos a pesquisar sobre o Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina, havia o desejo de resgatar uma história que parecia esquecida pela memória dos petrolinenses. E à medida que nos aproximávamos dessa história, mais a figura de José Raulino Sampaio despertava a nossa atenção. Foi a partir dessa confluência de interesses que decidimos reservar um capítulo especial para o Clube, já que este foi um projeto abraçado por Raulino desde o princípio. Para compor a abertura, escolhemos o poema “Uma voz dizia...”, dedicado por ele a Carlos Drummond de Andrade e retirado da sua obra Seixos Rolados.

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Capítulo “Palavra amiga”

Os depoimentos saudosos feitos pelos amigos de Raulino foram a matéria-prima para a escrita deste capítulo. Já durante as entrevistas, percebemos a importância desses relatos para enriquecer o livro com diferentes impressões sobre o perfilado. Nesse sentido, cada entrevistado contribuiu à sua maneira, revelando aspectos bastante interessantes da personalidade retratada. Diferentemente dos demais, que sempre trazem no início um poema do próprio Raulino, este capítulo teve uma contribuição especial do poeta e amigo Carlos Laerte Agra de Sá, que gentilmente nos cedeu o seu poema “Raios lindos” para ser incluído no livro. Capítulo “Lição de coisas”

Neste capítulo, os autores praticamente saem de cena para que o protagonista possa assumir a tarefa de dar continuidade ao livro. Após uma rápida introdução nossa, Raulino é convidado a se manifestar sobre assuntos que ocuparam lugar de destaque na sua obra. Temas como “o homem”, “gratidão” e “arrependimento” preenchem as páginas finais do livro com reflexões poéticas e existencialistas, à semelhança de um “divã de analista”. A proposta era oferecer um retrato intimista do personagem e aproximá-lo ainda mais do leitor. Para a abertura, foi selecionado o poema “Tornada de passos”, extraído do livro Seixos Rolados.

Considerações finais O jornalismo contemporâneo tem, aos poucos, enveredado pelos caminhos da literatura na tentativa de se tornar mais atraente, mais expressivo. A utilização de uma linguagem mais elaborada e expansiva revela o interesse do público por um jornalismo de aprofundamento. Por conseguinte, o livro-reportagem representa uma oportunidade de apresentar um trabalho jornalístico abrangente e de recuperação da memória. A liberdade de escrita proporcionada por ele oferece ao narrador melhor desempenho, que se manifesta em dois sentidos: no plano horizontal, relaciona-se à própria extensão do relato; no plano

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vertical, corresponde a uma maior riqueza de detalhes. Conjugados, esses elementos assumem a forma de um “T”: linhas que se unem no ponto de encontro das duas tendências. Não por acaso, escolhemos esse gênero para externar o nosso desejo de ir além dos limites da produção jornalística diária. Deixando para trás os manuais de redação e recusando as amarras de uma pretensa objetividade jornalística, fomos ao encontro de um personagem que nos encantou pelo seu jeito de ser e perceber o mundo. Um homem que, infelizmente, não tivemos o prazer de conhecer em vida, mas que permanece através da sua obra legada à Petrolina. Ao seguir os caminhos aqui descritos, que resultaram no livro-reportagem perfil Pedras ao Infinito, procuramos destacar as contribuições dele no campo literário e cultural da cidade. Como jornalista, poeta e cofundador do Clube Drummoniano de Poesia de Petrolina, Raulino nos inspirou não apenas a contar sua história, mas principalmente a buscar novas possibilidades de expressão. Isso sem falar nas pesquisas/ações futuras que esse trabalho espera desencadear. Pedras ao Infinito é um livro repleto de poesia do início ao fim. Dispersos no texto e sempre presentes na abertura dos capítulos, os poemas de José Raulino Sampaio e de outros autores promovem uma aproximação constante entre jornalismo e literatura. Desse modo, procuramos atenuar a aparente sisudez do relato jornalístico, recorrendo às possibilidades expressivas da linguagem poética.

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