A MENTALIDADE DOS COLONIZADORES DO BRASIL: Um cotejo entre Gilberto Freire e Eduardo Hoonaert

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A MENTALIDADE DOS COLONIZADORES PORTUGUESES NO BRASIL

Um cotejo entre Gilberto Freire e Eduardo Hoonaert - Uma amostragem -

Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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Os portugueses que aqui se instalaram Tinham uma determinada compreensão de vida. Foi como portugueses, Numa extensão de sua vida em Portugal, Que agiram nas novas condições.

José Maria de Paiva

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Introdução Quando visitamos velhas ruínas, somos tentados a pensar que o que vemos e tocamos são restos do passado, objetos, talvez de alguma admiração. Temos um não disfarçado orgulho de vivermos tempos de progresso e modernidade neste século XXI. A onipresença da Internet com as infinitas possibilidades que nos oferece nos faz ver o passado como uma paisagem estática, que ficou para trás. Voltamo-nos para o presente e, sobretudo para o futuro. Se existe, porém, uma herança genética que nos predispõe biologicamente para uma melhor ou pior qualidade de vida, com maior ou menor resistência física, analogamente, podemos falar também de uma herança “genético-biológica cultural” que condiciona nossa cosmovisão e mentalidade. No ocidente temos uma estrutura mental alicerçada na lógica filosófica e estética dos gregos do período clássico, marcando nosso modo de pensar. Se não se pode falar dum determinismo “genético cultural” em sentido estrito, temos, porém que levar em conta que “algo” nos fez e nos faz diferentes, conferindo-nos uma identidade cultural denominada brasileira. Nossa complexa mentalidade, incrustrada no nosso “DNA cultual” vem de nossos antepassados, o que não impede que soframos “mutações genéticoculturais” em contato com novas culturas. De fato, nossa “genérica cultural” vai dinamicamente se conformando a cada dia e a cada nova experiência. Ao longo dos quinhentos anos de nossa História construiu-se a “mentalidade brasileira”, soma de experiências de portugueses, indígenas, africanos e migrantes de diversos países e culturas. Este patrimônio cultural nos confere uma singular identidade na nossa forma de viver, lutar, amar, sofrer e celebrar. Neste ensaio dois intérpretes de nossa origem colonial nos fornecem elementos históricoexegéticos, para compreendermos os fundamentos de nossa mentalidade. É uma “psicanálise cultural” procurando detectar no nosso “inconsciente coletivo” as pulsões e pulsações que nos levam a viver do jeito que vivemos. Entender a mentalidade dos nossos ancestrais significa compreendermos nossa alma, nossas ações e sentimentos que dificilmente somos capazes de perceber, enfim, aquilo que definimos como nossa mentalidade. Essa compreensão histórico-social nos permite visualizar o que temos de ótimo e o que nos faz menores enquanto povo. Para que possamos alcançar este escopo, faremos em cotejo entre Gilberto Freire e Eduardo Hoonaert que buscaram apreender as bases mais profundas de nossa mentalidade, construída em nossa história a partir da grande empreitada lusitana na conquista de novas terras. Afinal, entender nossa mentalidade nos permite sinalizar caminhos, como educadores, para as futuras gerações.

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1 – Mentalidade As armas e os barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

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1.1. O Que se entende por Mentalidade O movimento dos Annales1 representou uma revolução copernicana na historiografia. Se esta antes se voltava para os vencedores e detentores do poder, com os Annales, volta-se agora para as massas anônimas que até então eram o pano de fundo da narração do suceder histórico. Esta escola2 procurava desvendar o sentir e o pulsar dos anônimos, cujas vidas eram marcadas pela rotina do cotidiano, sem episódios gloriosos e épicos. Com os Annales começa o estudo da mentalidade dos povos que nasce do seu cotidiano, de suas ações comuns e rotineiras, mas que marcam e configuram toda uma sociedade e seu momento histórico. Capturar a Mentalidade de uma época, de um povo ou de uma comunidade é algo bastante fugidio e volátil. Mentalidade é feita, antes de tudo, de pulsões e palpitações, não sendo tangível em si. Ela pulsa em cada coisa, em cada objeto, em cada pensamento, estando na vida das pessoas, no seu modo de falar, pensar, viver, alimentar-se e relacionar-se com o Absoluto. Nenhuma cultura atual pode ser verdadeiramente compreendida sem um mergulho do pesquisador no seu dia a dia. É preciso consentir que o “sangue cultural” circule na veia do pesquisador e, mesmo que ele chegue a apreender de forma profunda a mentalidade de uma comunidade, mesmo assim, não a terá apreendido em sua totalidade pelo simples fato de ser, antes de tudo, um estranho, um enxerto, alguém de fora. As palpitações mais profundas de uma mentalidade só podem ser esgotadas pelo nativo. Essa dificuldade se amplia quando se tenta desvendar a mentalidade de uma cultura do passado. As ruínas de Pompéia e Herculano são um dos maiores tesouros arqueológicos da humanidade, sobretudo porque foram “congeladas” no ano 70 quando da erupção do Vesúvio. Um dia rotineiro destas cidades com suas casas, comércios, atividades domésticas ficou subterrado para deleite de arqueólogos e historiadores. Apesar, porém, de todo este 1

- Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilha contra a história tradicional, a história política e a história de eventos. Depois da Segunda Guerra Mundial, os rebeldes apoderam-se dos establishement histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se aproxima verdadeiramente de uma “escola”, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (especialmente a “história serial” das mudanças de longa duração) foi dominada pela presença de Fernand Braudel. Na história do movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera muito das “especificidades” anteriores. Era uma “escola” unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos e seus críticos domésticos, que preservaram em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à\ política e a história de eventos. Peter BURKE. A Escola dos Annales (1929-1989) A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo. Editora da Unesp. 1997. p. 12 2 - Os estudos históricos renasceram de outra fonte, sob a influência da evolução da chamada École des Annales, nome que lhe advém da ação polemizadora exercida por Marc Bloch e Lucien Febvre, através da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, fundada em 1929, na Universidade de Estrasburgo, na França. Naquele momento tratava-se de combater a história essencialmente política e diplomática, calcada exclusivamente nos acontecimentos e voltada para reis, presidentes e guerras. Mas tratava-se também de caminhar em um sentido multidisciplinar, nutrindo-se e nutrindo outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia, a geografia e a psicologia. Estes dois grandes historiadores lançaram também as bases do que, num primeiro momento, chamou-se de psico-história e, mais tarde, de historia das mentalidades Cf. Ibdem pp. 10 - 27.

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patrimônio para estudo, o palpitar das vidas com suas paixões e com sua linguagem não falada, se perderam para sempre no tempo. Pode-se apreender muito das vidas aí vividas, mas nunca em sua totalidade e pulsações. Para o estudioso cabe analisar os documentos históricos e por analogia intuir fragmentos da mentalidade das pessoas que encheram de vida essas cidades. Nenhum estudioso poderá se apropriar da mentalidade de uma época, recolherá, porém indícios mais ou menos densos que permitam vislumbrar as palpitações sócio-culturais e existenciais desta comunidade. Estas apreensões são importantes enquanto nos fazem saber sobre que bases do passado estão edificadas nossas vidas, dando-nos uma chave explicativa de nossa existência, de nossos valores, de nossa mentalidade, enfim. Quando assentamos tijolos numa construção aproveitamos de uma meia parede já construída. “Nossos tijolos culturais” não flutuam no ar, mas se apoiam sobre algo já construído. Nossas atitudes, posturas e mentalidade de hoje se fundamentam na experiência vivenciada por nossos antepassados. Nós somos nosso passado3. Não existimos socialmente a partir do nascimento, pois, nossas vidas estão construídas sobre o patrimônio cultural do passado onde começou a ser configurada nossa mentalidade, mesmo antes de nossa concepção. Para nos entendermos é preciso que retornemos ao nosso passado cultural apreendendo motivações e o modus vivendi dos nossos antepassados. Este retorno é feito por intérpretes4 do passado que o tentam decodificar. A História não se dá sem o historiador. Este não é um ente abstrato, mas um ser vivo, membro de um grupo social. Como lugar tenente do seu grupo, assumindo as organizações do universo feitas por seu grupo segundo os próprios interesses práticos, isto é, em resumo, partindo do seu presente é que o historiador faz a História. Ele reorganiza as experiências do passado em função da organização presente da experiência. O historiador trabalha, pois, com estruturas que seu tempo põe. Podemos situar o tempo do historiador como ultrapassando um pouco os limites de sua própria existência, ou, à medida que estabelecemos critérios adequados entendemos esses limites. [...] a História no sentido de transcurso no tempo, é indizível, dada a singularidade dos fatos; não se resume: reassume-se, vive-se de outra forma. À História-ciência cumpre fazer a recomposição, primeiro como ação organizativa presente; segundo, por comparação, o máximo de fidelidade ao sentido original5.

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- Professor José Maria – aula do dia 19 de junho de 2008. UNIMEP. - Os “Intérpretes” neste nosso serão Gilberto Freire e Eduardo Honaert sobre os quais falaremos mais adiante. 5 - José Maria de PAIVA. Colonização e Catequese. São Paulo, Arké, 2006. p. 14 4

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1.2 Como reconstruir a mentalidade de um povo? A cosmovisão é uma visão unitária do mundo, representando uma grande síntese pessoal e comunitária da realidade. O universo é apreendido numa equação mental repleto de sentido e significado. Esta chave explicativa da realidade é fruto de um longo processo pessoal e social que dá sentido e significado a todas as coisas que nos rodeiam. Nos primitivos essa explicação da totalidade foi ensaiada através dos mitos. A filosofia buscou apreender nos seus primórdios a essência como explicação e o sentido do universo e do destino do próprio homem. Também as religiões procuraram no aparente caos do universo dar sentido para a vida humana. E, paradoxalmente, mesmo quando esta busca falhava levando o homem ao niilismo, mesmo este, em sua negação, não deixava de ser uma chave explicativa do universo e da vida que permitia a este homem situar-se, mesmo que provisoriamente, com reflexos práticos para sua vida pessoal e em sociedade. Os Princípios que regem a vida humana nada mais são que explicitações de sua cosmovisão. A atividade humana estará alinhada com sua visão de mundo. Com esses princípios elaborados e organizados mentalmente a vida das pessoas e da sociedade se organiza e tem sentido. Um terceiro desdobramento acontece a partir da cosmovisão e dos princípios: são os valores que, possuem aqui um sentido subjetivo, mas não relativista. O valor está intimamente ligado aos meus princípios e cosmovisão. Para alguém que fez do materialismo sua visão de mundo, terá princípios materialistas e atribuirá valor a tudo que represente a aquisição ou acúmulo da matéria. Para quem possui uma visão onde o homem ocupa a centralidade do universo, seus princípios serão humanistas e seus valores serão referente a tudo o que promova o homem pelo qual vale sacrificar os mais variados bens. Temos no final desta cadeia6 as ações. Entenderemos por “ações” toda e qualquer atividade humana em casa, na rua, nos poemas, nas canecas guardadas nos armários, nos bordados, nas catedrais, nos monumentos, nas canções, afinal, em tudo que nasce do engenho humano. Nas suas produções, quaisquer que elas sejam, o homem projetará seus valores, princípios e cosmovisão. Como ilustração, olhemos a pequena cidade de Tiradentes7. Ela nasceu na busca do ouro das Minas Gerais, sendo parte Integrante da Estrada Real8. Poderíamos analisá-la sob vários 6

- Cosmovisão gera princípios, que geram valores, que geram ações. O erro moral é, ao menos subjetivamente, ações que contradigam valores e princípios gerados a partir de uma cosmovisão construída e pelo indivíduo. 7 - a Escolha de Tiradentes foi feita apenas por ser uma cidade bem conservada e pequena o que permite uma observação menos exaustiva. Mas ela é a amostragem de todas as cidades da Estrada Real que ainda que distanciadas por muitas léguas, foram, todas elas sem exceção, engendradas pelo mesmo aventureiro português na busca do metal precioso. 8

- Estrada Real abrange dezenas de municípios fluminenses, mineiros e paulistas e está dividida em três setores principais: Caminho Velho - Liga Parati a Ouro Preto; Caminho Novo - Liga o Rio de Janeiro a Ouro Preto e Rota dos Diamantes - Liga Ouro Preto a Diamantina. Nesta perspectiva, a designação "Estrada Real" reflete o fato de que era esse o caminho oficial, único autorizado para a circulação de pessoas e mercadorias. Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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ângulos. Façamos esta análise a partir dos lugares urbanos desta antiga cidade colonial, fazendo um exercício mental, imaginando como seus habitantes que a construíram viam a vida. Iniciemos pela matriz de Santo Antônio. De inicio ela impressiona por sua grandeza. No ponto mais alto preside a vida de todos, sendo vista de todos os pontos da cidade. A fachada, obra do Aleijadinho, acolhe o fiel nesta igreja considerada a segunda mais rica do Brasil, reunindo em seu interior cerca de meia tonelada de ouro. Começou a ser construída em 1710 tendo sido terminada em 1752. Suas torres projetam-se para o céu com seus campanários. Essa Igreja materializa a cosmovisão dos habitantes do antigo Arraial9 de Santo Antonio do Rio das Mortes. Fica explicito pela análise do traçado urbano que Deus é o centro e a o sentido da realidade. A pesada construção desprende-se da terra a afunila-se até a cruz, sinal do cristianismo e, através da qual, na mentalidade dos antigos moradores, Deus redimiu a humanidade. Esse sinal estará nas casas, encruzilhadas, outeiros, estábulos e pastos a tornar sagrado e de Cristo a realidade deste mundo. É da Igreja-templo que nascem os caminhos da cidade terrena como é dela que brotam os princípios da vida terrena e da salvação eterna. A Igreja e a religião são os valores desta sociedade. No templo a arte barroca falará da beleza das coisas transcendentes. O ouro, valor humano e material, será subjugado como adereço do valor maior, o divino. Ao redor do vestuto templo os corpos dos antigos moradores aguardarão a prometida ressurreição. Já não moram na “cidade dos homens”, mas, junto do templo, aguardam a “cidade de Deus”. A configuração desta cidade materializa no seu traçado urbano uma absoluta integração entre a Cosmovisão e os princípios, os valores e ações desta sociedade. E, se descermos as ruas, constataremos nas esquinas, nos antigos comércios a luta pela sobrevivência e, mesmo assim o enriquecimento material, o poder, a autoridade e tudo mais do cotidiano está sob a égide do Divino. Se adentrarmos em antigas casas, o oratório terá local de destaque, integrado numa vida familiar eivada de valores cristãos. E, mesmos os pecados do cotidiano serão sempre remidos pela prática religiosa e pelas boas obras. Deus é o começo, o meio e o fim desta sociedade colonial. No estudo da mentalidade de uma época, o pesquisador-cientista, definido aqui como interprete, deverá realizar o caminho inverso ao apresentado aqui didaticamente. Partindo da análise das Ações do cotidiano terá elementos para intuir os Valores e Princípios que nascem da Cosmovisão da sociedade em pesquisa. O primeiro passo, portanto, é a análise detalhada desta sociedade colocada como objeto da pesquisa: arquitetura, prédios públicos e religiosos, a vida doméstica, as tralhas da cozinha, os bordados, a mobília, a coisas da casa a literatura erudita e popular, os folguedos, as diversões, as festas, as cantigas, as crenças e superstições, os “causos”, as tradições, enfim, tudo o que for produção humana permitirá apreender os valores que direcionam esta sociedade pesquisada no investimento de suas energias espirituais e materiais. A partir dos valores serão percebidos os princípios religiosos, morais, cívicos, familiares e pessoais que regem as vidas de seus habitantes. Estes elementos analisados e apreendidos permitirão então compreender a visão de mundo A abertura ou utilização de outras vias constituía crime de lesa-majestade, encontrando-se aí a origem da expressão descaminho com o significado de contrabando. 9

- Esta cidade foi fundada em 1702 quando os paulistas descobriram ouro nas encostas da serra São José, dando origem ao arraial batizado com no nome de Santo Antonio do Rio das Mortes. Posteriormente passou a ser conhecido como Arraial Velho para diferenciá-lo do Arraial Novo do rio das Mortes, atual São João Del Rei. Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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que regia ou rege o viver desta sociedade. Ter-se-á capturado, de forma orgânica, a mentalidade do todo social desta comunidade e das comunidades a elas coligadas pelo tempo e pela cultura. Apreende-se, então, a mentalidade desta sociedade, no presente caso, a colonial, interligada por atividades comerciais e pela Estrada Real 10 que permitia que os metais preciosos das Minas Gerais chegassem até o litoral e daí ao Reino de Portugal.

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- A estrada foi o caminho no período colonial que dava acesso às minas de Ouro Preto e Diamantina, inicialmente, saído de Paraty e posteriormente passando por Petrópolis num novo traçado mais rápido. Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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2 - Interprete Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu11.

2.1. A questão dos interpretes O passado a ser reconstituído passa pela releitura das realidades vividas e, em se tratando do estudo da mentalidade, algo de per se pouco tangível, haveria crédito maior para os pesquisadores que melhor realizassem o caminho de análise das ações culturais, apreendendo à cosmovisão de uma cultura. Suas conclusões devem passar pelo crivo da Academia quando a convergência de pareceres de autores dará maior credibilidade aos resultados. Há estudiosos que defendem que somente o autóctone teria melhores condições de aprofundar a mentalidade de sua proporia cultura. Esta tese, porém, é contestada por Zygmunt Bauman no seu livro Modernidade e Ambivalência12 para quem, é exatamente o estranho por não estar envolvido na mentalidade da cultura, que teria condições de ver de fora com objetividade e sem parcialidades. Deve-se reconhecer que no Brasil coube a estrangeiros bons trabalhos sobre antropologia e etnologia. Para Bauman o autóctone nunca conseguirá ter um olhar objetivo sobre sua proporia cultura. Será o estranho que terá objetividade como intérprete de nossa realidade.

2.2. - Escolha de interpretes Toda experiência histórica é única porque vivida num espaço físico e temporal. As experiências vitais podem ser narradas, escritas, filmadas. Mas as pulsões que as envolvem só pertencem àqueles que a vivenciaram, e, portanto, qualquer narração sempre será pálida 11

- Fernando Pessoa. - Cf. Zygmunt BAUMAN. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. pp. 85113 12

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porque jamais retratará a experiência vital vivida. O estudo da mentalidade do português que aqui chegou está descrita por alguns autores, registrada em livros, colocada em monumentos e vivenciada ainda no tempo por comunidades que guardam algo do passado. Apreender essas pulsões de vida cabe ao historiador-cientista. Ele é uma figura que se torna interprete destas experiências vitais. Anteriormente, verificamos que existem duas posições com relação aos interpretes de uma mentalidade. Retomemos a questão: de um lado temos uma corrente que entende que somente o nativo seria capaz de apreender a mentalidade. Há outro grupo que afirma ser o estrangeiro o que terá condições de apreender de forma objetiva e não comprometida a mentalidade cultural dos nativos. Fizemos uma opção de escolher dois interpretes, um autóctone e outro estrangeiro, para nos ajudarem a apreender a mentalidade do Português responsável pela nossa colonização. O cotejo destes dois autores nos fornecerá melhor material para nossas inquirições. O primeiro, Gilberto Freire, nasceu no Recife, tendo convivido com os remanescentes da antiga cultura canavieira, passando temporadas no Engenho São Severino do Norte pertencente a seus familiares, podendo assim “tocar” o passado português na típica arquitetura colonial e nas tradições e costumes ainda remanescentes. Freire possui ampla cultura, tendo estudado textos originais dos principais filósofos medievais e modernos, ao mesmo tempo que realizava trabalhos sociais nos mocambos de Recife. Na década de 1920 entra em contato com a ativa vida intelectual dos Estados Unidos e Europa. No Brasil tem contato com a intelectualidade do Nordeste e Rio de Janeiro, indo, em 1930, conhecer o Senegal e Dacar, iniciando neste mesmo ano as primeiras pesquisas para suas obras Casa Grandes e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936), referências mundiais para o entendimento da sociedade brasileira. A vida erudita deste autor e o circulo intelectual por eles frequentado garantem-lhe grande credibilidade. O segundo, o belga Eduardo Hoornaert, possui significativos estudos sobre as camadas populares do Brasil, tendo dividido seu tempo entre as atividades acadêmicas e as ações sociais, convivendo com as camadas mais pobres do Nordeste . Estabelecer diálogo com esse belga, misto de historiador, sociólogo e agente social é, no entender de Bauman, algo pertinente. As reflexões elaboradas por ele qualificam o estranho de uma cultura como alguém capaz de aborda-la sem os naturais ruídos do autóctone. É importante dar destaque a esta tese, pois, a estatura cultural e intelectual de Freire poderia desautorizar um estrangeiro e estranho como analista e intérprete de “nossas coisas”. Vejamos a argumentação de Bauman. Para ele a interpretação de uma determinada sociedade é apreendida de forma mais eficiente por quem está fora dela, conseguindo olhar com objetividade para a mesma. Quem está do lado de fora de uma casa pode perceber de forma objetiva e geral essa residência, exatamente, porque do lado de fora. É um ponto de vista que se torna desconfortável para os que estão na casa, porque se sentem observados. O estranho é, porém alguém livre de adentrar na casa, liberdade essa que não existe para os nativos que, naturalmente, já estão nela. Essa liberdade angustia os nativos porque questionam até que ponto pode-se confiar na lealdade do estranho. Efetivamente a capacidade da objetividade é uma ameaça para a Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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comunidade nativa que vê no estrangeiro um eterno nômade, sem lar, sem raízes e mesmo um intruso. Da parte do estranho há também desconforto, pois o ser estranho é uma maldição e não uma benção, sendo um estado no qual a pessoa não deseja viver permanentemente. A oferta de tornar-se um nativo pela adoção da cultura nativa, da assimilação, parece ao estranho uma proposta sedutora. Ela promete aquilo que mais carece ao estranho, uma localização inequívoca, um porto seguro, um lar13. A partir deste insight pode-se então verificar afirmações que garantem esta visão que valorizará o ser estranho:  O estranho pode encontrar a verdade que os nativos procuram em vão. Longe de ser um sinal de vergonha, a incurável estreangerice do estranho é agora um sinal de distinção.  (O nômade) não constrangido por qualquer compromisso formal, pode mover-se rapidamente pelas formulações tradicionais de causação, controle e previsão social.  É claramente impossível obter um discernimento abrangente dos problemas se o observador ou pensador está confinado a um dado lugar na sociedade.  O intelectual moderno é um errante perpétuo e um estranho universal.  Em todo lugar, ele (o estranho) está fora de lugar.  A rejeição pode também abrir os olhos do rejeitado para o significado e o valor da própria posição14... Feitas estas considerações e ressalvas é oportuno, agora, colocar lado a lado as percepções de Hoornaert com as de Gilberto Freire.

2.3. - Gilberto Freire15 – um interprete autóctone As obras de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos possuem um caráter eminentemente etnográfico, tendo como centro a Família Patriarcal na sua formação no campo e, posterior translado para a cidade. Procura definir como foi construída a mentalidade do português que, nos primeiros séculos da colônia, construiu as bases da sociedade brasileira, procurando investigar a origem do modo de pensar dele. A História de Portugal e de sua sociedade está marcada por tripla Influência: autóctones, espanhóis e mouros. A Península sofre invasões desde período romano que, ao impor o controle político e econômico de um lado, de outro trazem o progresso com muitas técnicas partilhadas com os vencidos. A Península viverá inúmeras incursões de outros povos, entre eles a dos mouros que por quase setecentos e cinqüenta anos estarão presentes na região. Essas invasões acabam por configurar um estilo de homem fruto de muitas miscigenações 13

Zygmunt BAUMAN. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1999. - Ibdem p. 92-95 15 - Utilizaremos neste estudo os capítulos I e III da obra Casa Grande e Senzala. O primeiro capítulo intitulase “Características Gerais da colonização portuguesa no Brasil: Formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida”. E o terceiro capitulo “O Colonizador Português” Antecedentes e predisposições. 14

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sexuais e culturais. Configura-se, assim, um modelo de homem aberto ao novo, ao diferente, pronto a adequar-se a novas realidades culturais e sociais. Entre tantas idas e vindas, porém, consolida-se e petrifica-se uma cultura eminentemente católica que, influenciada inicialmente pelo Direito Romano, encontra no Direito Canônico o substituto daquele primeiro Direito. A Igreja constrói na Península uma sólida presença doutrinal, política e econômica, sendo em torno da mesma que irá se configurar o Estado Português moderno após a Reconquista com a expulsão dos mouros. Em Portugal as ordens religiosas desempenharam importante função criadora não só na reorganização do território reconquistado aos mouros como na organização de populações heterogêneas. Deram-lhe nexo político através da disciplina canônica16. Os Bispos possuem poder maior que o civil, estabelecendo-se uma nobreza episcopal com gestos de quem, abençoa e pacifica, mas na verdade de quem manda e domina. Domínio efetivo, através da autoridade conferida aos bispos de decidirem em causas civis 17, sendo responsáveis por avaliar e julgar os juizes18. Os conventos e ordens religiosas são responsáveis por produção agrícola abundante, diferente na qualidade e quantidade dos outros produtores, dando a Portugal significativa estrutura econômica: Contra os interesses particulares se fez sentir muitas vezes não só o poder da coroa como o das grandes corporações religiosas, donas de algumas das melhores terras agrícolas. [...] à roda dos mosteiros desenvolvia-se o labor agrícola, [...] também bispos, monges e simples párocos foram grandes edificadores e reparadores de pontes, obras das mais meritórias naqueles tempos rudes. [...] a par de mansões de orações e de estudos se tornaram em focos e escolas de atividade industrial, em laboriosas colônias agrícolas, que arrotearam sertões, desdobraram campinas incultas. Que fecundaram vários territórios [...] um ponto nos surge evidente: a ação criadora, de modo nenhum parasitária, das grandes corporações religiosas – freis, cartuchos, alcobacenses, cistercienses de São Bernardo – na formação econômica de Portugal19. Esta efetiva presença da Igreja como núcleo da organização portuguesa tornou-se fortalecida com a Guerra da Reconquista20 na qual o alto clero não só se tornou detentor de extraordinários prestigio místico, moral e até jurídico sobre as populações21. A Península, e nela Portugal, não viveu as situações da Inglaterra, França e Itália que desde século XIII viviam conflitos explícitos ou implícitos com a igreja e o papado. Aqui se fortalece uma Igreja sólida, monolítica e papista.

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- Ibdem – p. 272 - Gilberto FREIRE. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Editora Record, 2001. p. 270 18 - Ibdem – p. 271 19 - Ibdem – p. 295 20 - “Das Guerras de Reconquista se aproveitou largamente a Igreja na península, através de suas ordens militares, para tornar-se proprietária de latifúndios enormes, não deixando exclusivamente aos cruzados a partilha das terras reavidas dos infiéis”. Ibdem – p. 271 21 - Ibdem – p. 271 17

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Freire destaca que a miscigenação física e cultural com outros povos, especialmente os mouros, criou de outro lado um perfil próprio do homem português, que, se no campo religioso jamais se integrou com o mulçumano, se confraternizou com ele, porém, em todos os outros aspectos da vida. Não poucas vezes Freire utiliza o termo “amolecimento” e “amaciamento” para indicar que a convivência no dia a dia foi moldando um tipo de homem plástico e maleável. Impregnou-se na cultura portuguesa a doçura no tratamento dos escravos, o ideal da mulher gorda, o gosto pelos banhos, o abuso do açúcar e dos condimentos fortes, da limpeza, da claridade, das casas caiadas e ajardinadas, do uso do azulejo. Este impacto, porém, foi significativo no campo moral onde a rígida moral cristã foi “adocicada” por uma sensualidade contrária ao ascetismo e a rígidas penitências. Nenhum cristianismo mais humano e lírico que o português22. Uma profunda sensualidade perpassa toda a vida cristã, sua arte e literatura. Alguns elementos pagãos também se revestem de elementos cristãos. Há uma marcante sensualidade na vida religiosa que reflete as pulsões da sexualidade ora camufladas num linguagem mística, ora explicitas como na devoção de São Gonçalo do Amarante cuja imagem é friccionada nas pernas das mulheres desejosas de marido e de homem. Os santos, misto de visão cristã e deuses pagãos, colocam-se a serviço dos amores e conquistas. Mesmo nos conventos realizam-se festas com danças e representações amorosas. Freiras nos conventos dão sensualidade aos seus doces com nomes ambíguos ou explícitos sobre o amor e as sensações de cupido. Frente à escassez de pessoas no reino a procriação e miscigenação tornam-se muito importante para ampliar o quadro da população. Apesar dos rígidos cânones morais do cristianismo, há na vida cotidiana tolerância com tudo o que gere procriação, mesmo se oriunda do clero. Nem se alegue o ascetismo dos frades e padre como obstáculo aos interesses nacionais e imperiais de povoamento e de geração. O concurso de grande parte, senão da maioria deles, à obra da procriação, foi tão generosamente aceito em Portugal que as Ordenações do Reino mandavam que as justiças não prendessem e nem mandassem prender clérigo algum, ou frade, por ter barregã23. Em Portugal instala-se uma permissividade sexual que espanta seus visitantes “que dizem horrores da pouca-vergonha24” vendo aí um erotismo grosso e plebeu, que domina em Portugal todas as classes25. Palavrões e gestos referentes à sexualidade são integrados de forma tranqüila no convívio social. No Brasil colonial adora-se “conversar e fazer safadeza” 26. Promiscuidade e doenças venéreas são elementos naturais da cultura portuguesa. Na visão de Freire duas tensões reinam em Portugal: o voltar-se para a agricultura ou dedicar-se a dimensão marítima e comercial. Assinala que a escravidão já é praticada na península o que justificaria um modo indolente de ser do português, já que escravidão corromperia sua alma enquanto elabora o conceito de que “trabalho é só para escravo27” e onde o termo “mourejar” passa a ser sinônimo de trabalho e que, o trabalhar muito, 22

- Ibdem – p. 287 - Ibdem – p. 307 24 -Ibdem - p. 313 25 - Ibdem – p. 312 26 -Ibdem – p. 312 27 - Ibdem – p. 302 23

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significa “trabalhar como um mouro”. Esta tensão entre a vocação agrícola e comercial tem influência do judeu “cristão-novo” que por não possuir pátria e terras encontrava no comércio um meio de enriquecimento independente das atividades agrícolas. Muitos judeus são agregados aos negócios dos proprietários lusitanos por não estarem submetidos aos princípios morais do catolicismo e poderem agir livremente sem os escrúpulos cristãos sobre a usura. Outro elemento destacado por Freire é o gosto pela ostentação. O português gosta de se mostrar rico. Rodeia-se de todo o aparato de riqueza ainda que passe necessidade em casa. A carestia sofriam-na, entretanto os portugueses na sua vida intima, simulando fora de casa ar e fausto de fidalgos28”. Configura-se, assim, uma visão onde a aparência era mais importante que a realidade em si. Isto que se aplicava para a situação financeira, aplicava-se do mesmo modo para o cristianismo. Assim em Portugal todos deviam ser ou manter a aparência de bons cristãos. A partir destes levantamentos históricos delineia-se um perfil inusitado do português repleto de contradições ou, pelo menos, de elementos culturais que aqui ou ali afloram de forma mais visível. A mentalidade portuguesa representa o somatório de certa integração triangular entre Europa, África e Oriente gerando um “produto” hibrido com uma identidade ambígua. A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre de requinte à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana, quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando, mas, sem governar; governando antes a África29. Freire entende a sociedade portuguesa como movediça população indecisa entre o bicontinentalismo, com um frouxa flexibilidade, repleta de hesitações. À luz do pensamento de Ferraz de Macedo, Freire assume as afirmações de ser o português de genésica violenta, gosto pelas anedotas de fundo erótico, alternando brio, franqueza e lealdade, possuindo pouca iniciativa individual, dotado de patriotismo vibrante, tendo em sua alma marcas de imprevidência, inteligência, fatalismo, primorosa aptidão para imitar30-. No esforço de delinear perfil tão contraditório Freire cita Gonçalo Ramirez que informa ser o português cheio de fogachos e entusiasmos que acabam em fumo, persistente e duro em suas idéias, tendência de exagerar até à mentira, espírito pratico sempre atento à realidade útil, vaidoso, possuidor de escrúpulos e honra, gosto de luzir, simplicidade, melancólico e ao mesmo tempo palrador, sociável, generoso, desleixado, trapalhão nos

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- Ibdem – p. 301 - Ibdem – p. 80 30 - Ibdem – p. 81 29

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negócios, desconfiado de si mesmo, acovardado, encolhido até que um dia se decide e aparece um herói. 31 O caráter do português [...] é como um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água: daí passar do fatalismo, a rompante de esforço heroico; da apatia a explosões de energia na vida particular e à revolução na vida pública; da docilidade a ímpetos de arrogância e crueldade; da indiferença a fugitivos entusiasmos, amor ao progresso, dinamismo... é um caráter de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no laus perene. Místicos e poéticos [...] com intervalos de profundo utilitarismo caindo dos sonhos vãos numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo. Alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte32. No pensamento do Freire a mentalidade do homem português que ocupou as terras brasileiras é um meio caminho entre o europeu e o africano, entre o católico e o maometano, entre o fatalista e o empreendedor, entre o místico e o hedonista, tudo isto em paradoxal oposição e conciliação num torvelinho caótico de contradições que coabitam num mesmo homem e numa mesma cultura. Estas contradições terão seu ponto de equilíbrio numa opção fechada pelo catolicismo e pelas praticas mercantis. Estes dois elementos serão, no parecer de Freire, a argamassa que dará unidade a esta nação de pouca gente, mas que se fará presente de forma significativa em quatro continentes.

2.4 - Eduardo Hoornaert33 - um intérprete estrangeiro Hoornaert alinha-se à escola do Annalles quando identifica duas correntes de historiografia praticadas no Brasil, uma dos poderosos e opressores e outra dos oprimidos. Seu pensamento parte de uma visão marxista de uma sociedade de classes, mostrando forte influência da Teologia da Libertação. Suas reflexões, porém, não possuem tom planfetário, mas apóiam-se em orgânica base argumentativa. Há poucas referências a Gilberto Freire demonstrando que suas obras não são inspiradoras de suas abordagens34. Para analisar o Catolicismo no Brasil é preciso se considerar sua obrigatoriedade35. Em Portugal não existe outra possibilidade da realidade que não seja a cosmovisão cristã. Nossa colonização é feita por portugueses e para portugueses com sua organização social, política 31

- ibdem - 82 - Ibdem - 82 33 - Nasceu na Bélgica, mas é brasileiro por opção. Vive a 42 anos no Brasil e é membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Publicou mais de vinte livros sobre o cristianismo no Brasil e na América Latina. Seus escritos estão voltados para a vida do povo e dos movimentos populares 34 - É uma séria falha desta publicação o não ter a citação de bibliografia, salvo algumas menções no roda-pé da obra. Isso dificulta ao estudioso perceber quais foram as fontes inspiradoras do autor. 35 - Eduardo HOORNAET. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550 – 1800. Petrópolis, Vozes, 1974. p. 13 32

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e religiosa. A configuração de um povo, dito “brasileiro” acontecerá só depois de alguns séculos de ocupação quando novas gerações vão tendo aqui o seu referencial de pátria. Para este autor o grande eixo explicativo da mentalidade portuguesa se configura a partir da invasão moura à península. Por mais de setecentos anos os reinos do norte pelejaram para expulsar os invasores. Na Península a catolicidade é a identidade fundamental na configuração do povo. A luta de Reconquista possui, assim, uma tripla finalidade: no campo religioso a expulsão dos infiéis, na ótica dos proprietários de terra e comerciantes a autonomia econômica e na ótica do rei a independência política. Esses séculos de luta foram moldando o espírito português36 que fundiu numa só idéia a fé e o conceito de nação; essa fusão entre fé e nação entranhou-se de forma tão orgânica no lusitano que, terminada a Guerra de Reconquista com a expulsão dos invasores, havia se consolidado na alma portuguesa a fusão de forma substancial dos conceitos de fé e nação. Defender a fé é defender a nação e defender a nação é defender a Fé. Toda ação comercial é também uma missão religiosa e a tomada política e comercial de uma terra é marcada pela cruz como sinal de posse. Tudo é ação religiosa e a expansão comercial é marcada por um espírito que Hoornaert define como catolicismo guerreiro que vê a tomada de terra dos infiéis como uma guerra santa. Desenvolve-se na mentalidade portuguesa uma visão messiânica e missionária da sua existência. Escreveu Dom João III ao primeiro governador geral do Brasil: A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa Santa fé Católica37. A ocupação territorial é marcada por sinais religiosos: ermidas, capelas, cruzes, sendo o Batismo não só sinal de conversão, mas de integração no Reino de Portugal que “toma posse” do convertido. Acolher a fé é integrar-se no Reino. Padre Antônio Viera bem configura esta mentalidade ao afirmar: Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos homens: o rei de Portugal é de Deus feito por Deus e por isso mais propriamente seu. [...] os outros homens por instituição divina tem a obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé. O português de obrigação de a crer e a mais de a propagar38. A expansão da religião é um ato guerreiro que impõe aos infiéis a fé e, por conseguinte, a hegemonia portuguesa. Nos altares muitos santos são transformados em guerreiros porque pugnam pela causa de Deus e, por conseguinte, de Portugal, seu reino. Chega-se a dar patente militar com o respectivo soldo para muitos santos protetores da guerra.

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- Hoornaert utiliza o termo “espírito português” que representa a mentalidade que moldara a alma deste povo. 37 - Ibdem. p. 32 38 - Antonio VIEIRA. In.Eduardo Hoornaert. Formação do Catolicismo Brasileiro – 1550 – 1800, Petrópolis, Vozes, 1974. p. 35

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O Brasil, nos seus primeiros momentos de colonização esta mentalidade portuguesa estava integrada na vida das primeiras populações. A religião organizava e mantinha toda a vida social. Existia um único modo de pensar: o católico. O poder do Estado era o poder da Igreja que sustentava e justificava o poder político. Hoornaert cita, como exemplo, o Triunfo Eucarístico celebrado em 1733 em Ouro Preto quando o governo português identificando-se com a própria religião, justificava a forte repressão aos moradores da Vila de Ouro Preto. Nenhuma comunidade colonial brasileira sofreu repressão tão rigorosa como a comunidade mineira [...]. a hóstia sagrada carregada entre as mãos do sacerdote e cercada de perto pelas autoridades repressivas significou simbolicamente o triunfo da ordem colonial. Após ter mostrado o braço forte em violências e castigos, o governo mostrou sua piedade e união com Deus. O povo tinha que saber guardar o seu devido lugar na sociedade e respeitar a força consagrada por Deus, através de ordens e hierarquias tão manifestadamente apresentadas no caminhar da procissão em confrarias, irmandades, ordens terceiras divididas segundo as posições sociais e raciais, pois “nas procissões as cores não se confundiam”. A procissão toda ensinava: cada qual no seu devido lugar, respeitando as leis impostas pelos fortes e poderosos, pois o “triunfo” é deles39. Na mentalidade portuguesa a sociedade se divide em ordens sociais por vontade de Deus que preside as ações humanas. Bispos e clérigos nomeados para funções a serviço do Estado eram benévolos para si e exigentes para o povo. Criava-se na mentalidade dos habitantes do Brasil uma postura subserviente frente aos representantes do poder temporal e espiritual, pois, afinal, eram representantes diretos de Deus. Toda esta subserviência ao divino, porém, não impediu que se vivesse no Brasil uma dupla moral rígida e exigente nos discursos, permissiva, porém, no cotidiano.

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3 – Interpretando os intérpretes Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à Lusitana Terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e dino da memória, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera e mesquinha Que despois de ser morta foi Rainha40. As experiências vividas por pessoas no passado supõem interpretes. Elas, como já foi afirmado, jamais serão reconstituídas em seu frescor original. O que teremos serão interpretes que procurarão sinalizar o que representaram essa experiência no passado. Na busca do entendimento da mentalidade do colonizador de nossas terras estabelecemos interlocução com dois autores que procuraram desvendar a alma portuguesa. Um “nativo” e outro “estrangeiro”. Freire é nativo do Brasil, mas, estabeleceu contato com outras culturas e outros saberes. Foi estrangeiro nos Estados Unidos, Europa e África, fazendo a leitura destas sociedades a partir do modo de ver brasileiro. Hoornaert é nativo da Europa do norte, distante da África. Mas tem sido estrangeiro aqui nas nossas terras brasileiras onde, além de conhecer nossa cultura e nosso modo de ver a vida. Se integrou nela. Também andou pelos Estados Unidos e pela África. São dois interlocutores cultos que tentam capturar o modo de ser, a mentalidade dos portugueses colonizadores. Freire é rico em detalhes, pois, o universo que analisa lhe foi legado pelos antigos colonizadores. Viveu numa época em que os meios de comunicação ainda não se vivia a globalização, o que permitia que as culturas fossem menos diluídas pelo impacto dos meios de comunicação social de massa. Muitos costumes do passado e tradições ele os conheceu em sua infância. Hoornaert, mais tardiamente e com o olhar arguto de estrangeiro elabora uma leitura da mentalidade colonial a partir de um duplo filtro: teologia da libertação e marxismo. Um detalhe não nos pode escapar: a religiosidade de ambos. Freire foi, no inicio e no final de sua vida, católico, morrendo com os sacramentos. Conviveu com a religiosidade popular, típica do nordeste, que se organizava sob o poder de coronéis e padres na República velha. Fez parte de sua vida as crenças, procissões, dias santos do catolicismo remanescente do período colonial. O ter-se feito evangélico na juventude, quando passa a residir nos Estados Unidos, pode ter sido um sinal de ruptura com aquilo que considerava arcaico e ultrapassado frente à cultura americana moderna e protestante. Efetivamente, porém, conheceu a religiosidade tradicional, popular, distante do catolicismo iluminista que estivera, sobretudo, na região sudeste do Brasil. 40

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Hoornaert foi católico num país protestante. Conheceu in loco o catolicismo popular nordestino, capturado com a curiosidade de qualquer estrangeiro em nosso país. Na Teologia da Libertação obteve uma chave de leitura de reabilitação do popular que não mais deve se curvar frente ao “poder dos opressores”. Estas duas matrizes são importantes ao elaborar a descrição do catolicismo português. Ambos constatam o mesmo fenômeno dando, porém, um enquadramento diferenciado. Freire parece estar mais a vontade ao descrever as práticas que recebeu como cultura e que fez parte do cotidiano. Captamos nos seus escritos a morna rotina do Brasil colonial fazendo-nos, de certo modo, cúmplices de algo que é o nosso e está em nossas raízes. Não deixa de existir o olhar do erudito, mas há algo também do caboclo com uma linguagem do nosso jeito. Hoornaert distancia-se desta intimidade cheia de cumplicidade. Fala nossa língua cultural, mas com sotaque. É um modo europeu de ver e de tocar a realidade, mais objetivo. São idéias transvestidas de popular, mas com cara de academia. Falta-lhe certa intimidade e brejeirice. As diferenças entre os intérpretes longe de polarizar a questão, unifica-a. Ambos a partir de formas diferenciadas e de lugares de observação diferentes apreendem uma mesma realidade. E isso dá maior consistência a esta interpretação. Três elementos podem ser destacados. Guardadas as diferenças de percepção dos dois interpretes, é ponto de convergência afirmar que a mentalidade do português colonizador do Brasil está marcada por alguns traços bem definidos: O Cristianismo é a chave explicativa do mundo e do sentido da vida. A salvação eterna é a finalidade do homem e Deus o referencial de vida e sentido da existência. Três elementos são marcantes na vida do português: o catolicismo, o enriquecimento e o gozo da vida terrena. Sob esses três elementos, muitas vezes conflitantes, nossos colonizadores organizam seu universo mental e social, sua comsmovisão. A convergência destes interpretes, partindo de épocas de escolas diferentes, nos permitem nos apropriamos de alguns conteúdos da mentalidade portuguesa expressa na antiga cidade de Tiradentes e que materializa tantas cidades desta colônia e da metrópole. A arquitetura colonial deixou materializado os valores que nortearam nossos colonizadores. A Igreja como manifestação do catolicismo como única identidade de vida. As vendas, as hospedarias de tropas como o referencial da busca da riqueza, especialmente o ouro. E as casas com suas grandes cozinhas e senzalas com uma vida de gozo na mesa e nas alcovas. A mentalidade dos nossos colonizadores nasce da síntese entre religião, busca de riquezas e prazer. Esta herança fez parte do nosso passado e se integrou na “genética” de nossa sociedade colonial. Foi um modo de ver o mundo e a vida. E, de algum modo, somos este nosso passado...

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Conclusão Um Ensaio é apenas um ensaio. Pretende ser apenas um simples aquecimento. A visão do mar lembra nossa pobreza de percepção, pois, a imensidão do que vemos apenas nos denuncia a grandeza do todo. Estas poucas linhas nos mostram isto. Pretender reduzir o pensamento de Freire e Hoornaert em poucas linhas significa empobrecê-los de forma absoluta naquilo que contribuíram para o estudo da mentalidade. Mas esta é uma deficiência do estudo acadêmico. Esta percepção foi muito bem apreendida por Carlos Josaphat41 no seu livro Tomas de Aquino e a Nova Era do Espírito. Nada de puxar malquerenças com representantes de qualquer ortodoxia. Aliás, o assunto toca mais a história da cultura. Em veneráveis regiões da cristandade, não é raro se poder admirar uma ou mais colunas de velhos templos, submetidas a um curioso destino. São arrancadas e utilizadas, no volver dos séculos, por construtores, pouco escrupulosos em matéria de arte, e que só intentam sustentar estábulos ou escorar algum paredão. Buscam materiais sólidos e resistentes, sem qualquer escrúpulo no que tange a valores estéticos. Nenhuma razão nos leva a manter prevenção contra estábulos ou paredões Mas não é preciso desperdiçar tempo a analisar longamente essas construções hibridas, se queremos é apreciar as belezas do templo, pilhado pelos tais engenheiros utilitaristas. [...] A Desgraça dos grandes da Filosofia é cair nas mãos dos professores. O gênio que vira manual ou objeto curricular do ensino oficial está condenado a um processo, quase infalível, de enfadonha banalização. A obra prima [...] será, antes demais nada, achatada, para se acomodar aos programas didáticos. Será depois mutilada, senão esquartejada. Como na triste sorte infligida às colunas do templo, fragmentos são arrancados em encaixados em construções e sistemas ideológicos, fabricados em outras eras e para outras serventias42”. Frente a esta reflexão resta-nos apenas sinalizar que este nosso trabalho possui muito mais a função de despertar uma questão, do que oferecer um norte. A questão da mentalidade merece uma abordagem profunda porque existem muitos e qualificados interpretes daquilo que definimos como a Mentalidade do colonizador português. Nossa sociedade, porém, apesar de adentrada no século XXI e sendo hoje internacionalizada pela globalização e pela internet, continua tendo uma identidade que sobrevive por baixo de todos os aportes culturais: Como mentalidade e povo não abrimos mãos de nossa sensualidade, de nossa segurança na riquezas, sem deixarmos de ser religiosos, ainda que de alguma forma “esses amores” mostrem-se conflitantes, certamente que para intelectuais, mas não para a gente comum... Isto é ser brasileiro...

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- Carlos Josaphat é Dominicano ligado à Teologia da Libertação. Neste seu livro defende a tese que Tomás de Aquino foi um grande revolucionário para seu tempo e que foi aprisionado, e, portanto traído, pelos amplexos da ortodoxia. 42 - Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito. São Paulo. Edições Loyola. 1998. p.17 Prof. Dr. Dilson Passos Júnior – [email protected]

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BIBLIOGRAFIA FREIRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Editora Record, 2001. HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro – 1550-1800. Petrópolis, Vozes, 1978. PAIVA, José Maria de. Educação, História e Cultura no Brasil Colônia. São Paulo, Arké, 2007. JOSAPHAT, Carlos. Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito. São Paulo, Loyola, 1998. PAIVA, José Maria de. Colonização e Catequese. São Paulo, Arké, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999.

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