A mercantilização da força de trabalho: implicações políticas.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, História, Teoria Social, Teoría Sociológica, TEORIA MARXISTA
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A MERCANTILIZAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS



José Flávio Motta

Iraci del Nero da Costa [1]


Em uma série de artigos, temos nos ocupado com o exame de diversas
implicações da emergência da mercadoria força de trabalho. Assim, em MOTTA
& COSTA (1995a e 1995b) enfocamos o capitalismo enquanto forma superior e
derradeira da existência natural da sociabilidade humana; de outra parte,
em MOTTA & COSTA (1997), detivemo-nos na análise do movimento de
autonomização do âmbito econômico, o qual, aliado ao fenômeno de
"coisificação" -- desumanização -- do homem, teve por corolário, no plano
das idéias, o estabelecimento da economia como ciência autônoma, com objeto
próprio e claramente delimitado. Desta feita, preocupar-nos-emos com
algumas conseqüências de natureza política do surgimento da aludida
mercadoria. Mais especificamente, trataremos da universalização da
propriedade privada, da liberdade e da cidadania, universalização esta que
se acha integrada ao próprio funcionamento do Estado Moderno, instância
garantidora da dominação política da classe economicamente dominante.

A transformação do trabalhador livre em assalariado, ao passo que
conforma a relação de produção definidora da sociedade capitalista, imprime
nos indivíduos que integram tal sociedade uma igualdade fundamental, dada
pela propriedade privada. Essa universalização da propriedade está, de
fato, na origem do atributo de grande plasticidade do capitalismo. Em
outras palavras, dita plasticidade decorre do fato de, na sociedade em
questão, a transferência de renda -- exploração da mais-valia, para
alguns, obtenção de lucros, para outros -- dar-se no âmbito dos mercados
em virtude de contratos estabelecidos entre iguais, vale dizer, entre
proprietários de mercadorias, ainda que muitos o sejam, apenas, de sua
própria força de trabalho.

Sobre essa igualdade -- todos são proprietários -- funda-se o
Estado Moderno, que deixa de ser um mero instrumento de dominação política
a expressar imediatamente os interesses da classe economicamente dominante.
Como afirma Poulantzas: "o Estado capitalista apresenta o fato particular
de que a dominação propriamente política de classe não está nunca presente,
sob a forma de uma relação política: classes dominantes-classes dominadas,
nas suas próprias instituições. Tudo se passa nas suas instituições, como
se a 'luta' de classe não existisse. Esse Estado apresenta-se organizado
como unidade política de uma sociedade com interesses econômicos
divergentes, não interesses de classes, mas interesses de 'indivíduos
privados', sujeitos econômicos". Tal peculiaridade do Estado capitalista
"(...) permite distinguir radicalmente esse Estado (...) por exemplo dos
Estados escravagista ou feudal. Estes últimos limitavam a organização
política das classes dominadas, fixando institucionalmente as classes dos
escravos ou dos servos, nas suas próprias estruturas, através de estatutos
públicos, quer dizer, institucionalizando a subordinação política de classe
-- 'estados-castas'" (POULANTZAS, 1977, p. 181).

Evidencia-se, pois, para o autor em foco, a contradição principal do
Estado capitalista, em cuja descrição se faz presente, uma vez mais, a
aludida igualdade entre todos os indivíduos: "o Estado capitalista tem por
função desorganizar politicamente as classes dominadas, enquanto organiza
politicamente as classes dominantes; de excluir do seu seio a presença,
enquanto classes, das classes dominadas, enquanto nele introduz enquanto
classes, as classes dominantes; de fixar a sua relação com as classes
dominadas como representação da unidade do povo-nação, enquanto fixa a sua
relação com as classes dominantes como relação com classes politicamente
organizadas; em suma, esse Estado existe como Estado das classes
dominantes, ao mesmo tempo que exclui do seu seio a 'luta' de classes. A
contradição principal desse Estado não consiste no fato de se 'dizer' um
Estado de todo o povo quando é um Estado de classe, mas, precisamente, no
fato de se apresentar, nas suas próprias instituições, como um Estado de
'classe' (das classes dominantes que contribui para organizar
politicamente) de uma sociedade institucionalmente fixada como não-dividida-
em-classes; no fato de se apresentar como um Estado da classe burguesa,
subentendendo que todo o 'povo' faz parte dessa classe" (POULANTZAS, 1977,
p. 182).

De outra parte, o Estado Moderno ganha relativa autonomia com
respeito à esfera econômica, podendo, portanto, assimilar, ainda que
parcialmente, interesses das classes subalternas. Torna-se, pois, o locus
social no qual as classes antagônicas lutarão pela hegemonia política e
ideológica. Sirvamo-nos, neste ponto, uma vez mais de Poulantzas: "O Estado
capitalista, com direção hegemônica de classe, representa, não diretamente
os interesses econômicos das classes dominantes, mas os seus interesses
políticos: ele é o centro do poder político das classes dominantes na
medida em que é o fator de organização da sua luta política. (...) o Estado
capitalista comporta, inscrito nas suas próprias estruturas, uma certa
garantia de interesses econômicos de certas classes dominadas. Isto faz
parte da sua própria função, na medida em que essa garantia é conforme à
dominação hegemônica das classes dominantes, na relação com esse Estado,
como representativas de um interesse geral do povo. (...) A noção de
interesse geral do 'povo', noção ideológica mas que recobre um jogo
institucional do Estado capitalista, denota um fato real: esse Estado
permite, pela sua própria estrutura, as garantias de interesses econômicos
de certas classes dominadas, eventualmente contrárias aos interesses
econômicos a curto prazo das classes dominantes, mas compatíveis com os
seus interesses políticos, com a sua dominação hegemônica" (POULANTZAS,
1977, p. 185).

A igualdade fundamental por nós salientada, assentada sobre a base
dada pela propriedade privada, manifesta-se, outrossim, na sociedade
capitalista, na igualdade de todos em face da lei e no gozo dos direitos
que são iguais para todos e universais, dentre os quais se destacam a
liberdade de pensamento e de organização, a cidadania. Claro está que a
universalização de direitos e da cidadania não deve ser entendida como algo
propiciado imediata e automaticamente pelo capitalismo, pois, como sabemos,
tal universalização decorreu das lutas sociais desenvolvidas, sobretudo,
por classes e segmentos sociais subalternos. Afirmamos, sim, e isto é
crucial para o entendimento de nossas postulações, que a transformação da
força de trabalho em mercadoria e a ampla generalização desta forma -- com
a correlata emergência do capitalismo -- permitiram que a referida
universalização e as lutas das quais ela decorreu pudessem dar-se no âmbito
da sociedade capitalista nascente sem necessidade, portanto, de que tal
sociedade e sua base econômica fossem destruídas; pelo contrário, na medida
em que tais lutas e suas conquistas atuaram e continuam a atuar no sentido
de integrar econômica, política e ideologicamente as camadas subalternas ao
seio social, verifica-se a afirmação e consolidação do modo de produção
capitalista, o qual se vê legitimado aos olhos daquelas camadas. [2]

Tenha-se presente, por outro lado, que "essa garantia de interesses
econômicos de certas classes dominadas, da parte do Estado capitalista [e
esse espaço de universalização de direitos e da cidadania, acrescentaríamos
nós -- JFM/IDNC], não pode ser concebida, apressadamente, como limitação do
poder político das classes dominantes. É certo que ela é imposta ao Estado
pela luta, política e econômica das classes dominadas: isto apenas
significa, contudo, que o Estado não é um utensílio de classe, que ele é o
Estado de uma sociedade dividida em classes. A luta de classes nas
formações capitalistas implica que essa garantia, por parte do Estado, de
interesses econômicos de certas classes dominadas está inscrita, como
possibilidade, nos próprios limites que ele impõe à luta com direção
hegemônica de classe. Essa garantia visa precisamente à desorganização
política das classes dominadas, e é o meio por vezes indispensável para a
hegemonia das classes dominantes em uma formação em que a luta propriamente
política das classes dominadas é possível" (POULANTZAS, 1977, p. 185-186).

Em suma, o Estado capitalista move-se no contexto da plasticidade
característica da sociedade à qual corresponde. Este atributo, de um lado,
surge como decorrência da emergência da mercadoria força de trabalho, na
medida em que se refere a um espaço criado em meio a relações que se
estabelecem entre iguais, igualdade dada pela propriedade de mercadorias.
De outro lado, a aludida plasticidade coloca-se como o campo em que se
exercita a possibilidade da universalização da liberdade e da cidadania.
Uma última referência a Poulantzas é aqui oportuna: "por outras palavras, é
sempre possível traçar, de acordo com a conjuntura concreta, uma linha de
demarcação, abaixo da qual essa garantia de interesses econômicos de
classes dominadas por parte do Estado capitalista não só não põe
diretamente em questão a relação política de dominação de classe, mas
constitui mesmo um elemento dessa relação" (POULANTZAS, 1977, p. 186). Dita
linha, a nosso ver, pode estar a demarcar, também, o limite entre o fim da
história natural e o início da história posta conscientemente pelo homem.






Referências Bibliográficas


MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 172, p. 20-23,
janeiro/1995a.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história: um adendo. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 174, p. 21-
23, março/1995b.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A emergência da mercadoria
força de trabalho: algumas implicações. Informações Fipe. São Paulo: FIPE,
n. 198, p. 21-23, março/1997.

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins
Fontes, 1977.

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[1] Professores da FEA/USP.
[2] Cabe frisar que a consideração das aludidas lutas sociais, as quais
compõem todo um capítulo da história da humanidade, foge ao escopo deste
breve artigo.
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