A metodologia interdisciplinar e transdisciplinar em musicologia: a exemplo do objeto de pesquisa Candinho Trombone.

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A metodologia interdisciplinar e transdisciplinar em musicologia: a exemplo do objeto de pesquisa Candinho Trombone.

III Simpósio Científico da Associação Brasileira de Trombonistas (ABT/2014). Autor: Osmário Estevam Júnior (Mestre em Musicologia) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / Aluno do programa de Pós Graduação em Música (PPGM). Área Temática: Musicologia / etnomusicologia. Resumo: Este artigo trata do uso das metodologias transdisciplinares e interdisciplinares para a pesquisa musicológica, tendo como exemplo o compositor e trombonista Cândido Pereira da Silva. A ruptura com o paradigma positivista, sem o seu abandono total, assim como a insersão da crítica na etnomusicologia, mostram-se como fatores interdisciplinares essenciais para a compreensão dos personagens biografados e de seus contextos sócio culturais. Palavras chave: Biografia, Interdisciplinaridade, transdisciplionaridade, Musicologia e Etnomusicologia.

Abstract: This article examines the use of disciplinary and interdisciplinary methodologies in musicological research, taking as example the composer and trombonist Cândido Pereira da Silva. The break with the positivist paradigm, without his total abandonment, and the insertion of criticism in ethnomusicology, show themselves as essential to the comprehension of biographees and their sociocultural contexts. Keywords: biography, interdisciplinarity, transdisciplinarity, musicology and ethnomusicology.

As ideias de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, embora polissêmicas, tem

sua

origem

no

reconhecimento

da

contextualidade,

globalidade,

multidimensionalidade e complexidade do conhecimento humano, contrapondo-se à fragmentação, não-articulação e superespecialização do conhecimento, características da ciência positivista moderna (MORIN, 2000). A grande busca da interdisciplinaridade é realizar a reconstrução da unicidade ou totalidade do conhecimendo do homem sobre o mundo, uma vez que este conhecimento se desintegrou nos processos de especialização cada vez maiores que a ciência moderna (positivista) promoveu e que reduziram sua complexidade à parcelas menores tidas como disciplinas científicas, que progrediram de forma compartimentalizada e não contextualizada e hoje se mostram incapazes de responder aos grandes problemas e desafios que a humanidade encontra já no início do

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Século XXI. Note-se o que diz Morin (2000, p.45) a esse respeito: [...] o século XX viveu sob o domínio da pseudo-racionalidade que presumia ser a única racionalidade, mas atrofiou a compreensão, a reflexão e a visão em longo prazo. Sua insuficiência para lidar com os problemas mais graves constituiu um dos mais graves problemas para a humanidade. [...] Daí decorre o paradoxo: o século XX produziu avanços gigantescos em todas as áreas do conhecimento científico, assim como em todos os campos da técnica. Ao mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos, e esta cegueira gerou inúmeros erros e ilusões, a começar por parte dos cientistas, técnicos e especialistas. [...] Por quê? Porque se desconhecem os princípios maiores do conhecimento pertinente. O parcelamento e a compartimentalização dos saberes impedem apreender “o que está tecido junto”.

Este autor chama de “complexo” aquilo que “foi tecido junto” (MORIN, 2000, p.38). Ele entende a complexidade, quando diferentes elementos são inseparáveis e constitutivos de um todo, mostrando a necessidade de resgatá-la para se alcançar um conhecimento pertinente. Para ele, a cultura disciplinar é técnica herdada da ciência moderna, que ainda é dominante, impede de apreender o que está tecido junto e reduz o complexo, simplificando-o. Um autor que é importante no desenvolvimento da ideia de interdisciplinaridade e que também contempla a sua importância para o resgate da unicidade do conhecimento é o filósofo Hilton Japiassú (1976), para o qual o conhecimento científico esfacelou-se devido a multiplicação crescente das ciências, que se desenvolveram mediante os processos de especialização. Para ele, a especialização não deve mais significar isolamento e “o remédio para a desintegração do saber consiste em trazer à dinâmica da especialização uma dinâmica compensadora de não especialização” (JAPIASSU, 1976, p. 24). Ele ainda afirma que “devemos conceber a démarche interdisciplinar, antes de tudo, como o esforço de reconstituição da unidade do objeto que a fragmentação dos métodos inevitavelmente pulveriza” (JAPIASSU, 1976, p. 67).

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No que diz respeito ao processo de produção de pesquisa, isto traz como exigência o desenvolvimento de uma atitude que possibilite o aporte de diferentes disciplinas fundamentais, que subsidiarão a atuação especializada. Como metodologia de pesquisa, a interdisciplinaridade se coloca no processo de produção do conhecimento compreendendo como necessária e significativa “a apreensão mais ampla da complexidade do saber, o qual não pode desvincular-se e descontextualizar-se do mundo.” (PEREIRA, 2000, p.188). Assim, a metodologia interdisciplinar tenta romper com a cisão disciplinar, passando a valorizar os pontos de convergência, encontro e cooperação entre disciplinas diferenciadas que compõem o conhecimento atual. Daí porque a interdisciplinaridade perpassa os elementos que compõem o conhecimento, buscando integrá-los por meio de um movimento contínuo de discussão e reciprocidade que leva ao enriquecimento na construção e produção de novos conhecimentos. No caso das pesquisas em Musicologia, a interdisciplinaridade representa tal processo de ligação e cooperação entre disciplinas tanto de natureza positivista, como a análise musical, como outras de natureza crítica, como a etnomusicologia. A musicologia positivista sofreu alguns ataques na década de 60. O primeiro deles foi através da obra A profile for American Musicology de Joseph Kerman1, mostrando-se descontente com a obra de Palisca, Humanistic Scholarship in America. Kerman fala sobre a musicologia como uma ‘escada com degraus’, significando cada um deles a paleografia, a organologia, a transcrição, os estudos de repertório, o trabalho de arquivo, as biografias, bibliografias, a sociologia, a prática de apresentações, as escolas e influências, as teorias, a análise de estilo e a análise individual. De certa forma, isso

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Kerman, Joseph (Wilfred) (Londres, 03/04/1924) Erudito e crítco norte americano. Estudou na Universidade de Nova York e em Princeton, tendo começado a ensinar em 1951, na Universidade da Califórnia, em Berkeley (SADIE, 1994, p. 493).

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mostra uma oposição entre uma obra analisada isoladamente e uma obra analisada dentro de um contexto. Kerman, na obra Emendemus Inmelius, sobre Willian Byrd, destaca a importância do senso de estilo, reconstituição peça por peça, detalhe por detalhe e influência por influência. Outro ataque veio numa série de ensaios sobre filosofia da história por parte de Leo Treitler2, mostrando insatisfação com a obra Evidence and Explanation, de Mendel3. Treitler, aluno do próprio Mendel em Princeton, apontou para os diversos erros da historiografia evolucionista vindas do Renascimento, em suas generalizações deterministas sobre a música do período medieval. Sendo assim, ele defende o modelo de historiador baseado na história sincrônica e “densa”, que indaga o quê, não o porquê, furtando-se à narrativa cronológica com seus pressupostos de causalidade e desenvolvimento, sendo mais fenomenológica do que evolucionista, mais crítica e hermenêutica (KERMAN, 1985). No campo da etnomusicolgia, a área da disciplina que mais se desenvolveu após o criticismo, chegando quase a se tornar uma disciplina independente da musicologia, encontrou como seu principal precursor Charles Louis Seeger4. Este, por não querer ser um promotor da música de “elite”, renunciou à composição e uniu-se aos círculos de música contemporânea. Através do Conselho Internacional de Música da UNESCO, Seeger se empenhou em promover a música que “vem de baixo”. A partir de suas formulações dialéticas, ficou muito nítida a confrontação da “Avaliação e Crítica” versus “Ciência e Descrição”. Isso deu origem à geração 2

Leo Treitler (26/01/1931) é um musicólogo americano, porém nascido em Dortmund , Alemanha , sendo professor da Universidade de Nova Iorque. Seus principais trabalhos são sobre Música Medieval e Renascentista, particularmente em canto gregoriano e os primórdios da polifonia. Ele também publicou uma série de ensaios explorando historiografia da história da música (http://www.oxfordmusiconline.com/). 3 Mendel, Arthur (Boston, 06/06/1905; Newark, NJ, 14/10/1979) Musicólogo norte americano. Estudou em Harvard e em Paris com Nadia Boulanger (1925-7), trabalhando depois como crítico, na ediçãode música e como regente de música barroca. [...] Foi o mais notável estudioso de Bach da sua geração (SADIE, 1994, p. 593). 4

Seeger, Charles (Louis) (Cidade do México, 14/12/1886; Bridgewater, CT, 07/02/1979) Musicólogo norte americano, nascido no México. Seu interesse inicial foi pela composição e regência e, após formar-se em Harvard, estudou na Europa. Ensinou em Berkeley (1912-19), onde deu os primeiros cursos de musicologia dos EUA, em 1916, no Institute of Musical Art, Nova York (1921-33), e na Nova Escola de Pesquisa Social (1931-5), onde, com Henry Cowell, ministrou os primeiros cursos de etnomusicologia dos EUA (1932) (SADIE, 1994, p. 850).

5 dos “jovens furiosos”, oriundos da Conferência de Gans, de característica “anti-establishment” dos partidos de esquerda do final da década de 50, muito impulsionados por John Blacking5 e sua obra How music is Man?. Contudo, Seeger não tinha interesse pela música não ocidental, mas em etnomunsicologia, pois se interessava naquilo que ela pode contribuir para o estudo da música erudita ocidental, ou seja, a crítica da musicologia pelo etnomusicólogo. Na obra Studies in Musicology, 1935-1975, Seeger censura os musicólogos por atitudes etnocêntricas e classecêntricas, e os etnomusicólogos por desprezarem a mudança cultural e a análise musical. Por outro lado, foi caminhando do som para a sociedade que Blacking estudou a orientação cultural contextualizada, através das músicas praticadas por crianças do povo Venda Transfal, da África do Sul. Esse caminho também foi aceito por Mantle Hood6, que acreditava que a etnomusicolgia deveria se dirigir para uma compreensão da música estudada em termos dela própria e também para a compreensão da música em sociedade (KERMAN, 1985).

Aos poucos a musicologia veio se pluralizando através das técnicas inseridas pelo pensamento positivista, das análises acompanhadas de críticas e das inúmeras descobertas sonoras e seus variados significados descobertos pela etnomusicologia. Sendo assim, o caminho para a transdisciplinaridade se mostra inevitável e essencial para o musicólogo contemporâneo. Inicialmente, a metodologia interdisciplinar cria um elo de ligação entre estas diferentes áreas de conhecimento, verificando pontos em comum entre as mesmas, integrando-as e estabelecendo diálogos entre elas. A investigação sobre personagens envolvidos em fenômenos musicais como o do “choro”, a exemplo de Cândido Pereira da Silva, o “Candinho Trombone”, trazem a marca da interdisciplinaridade, necessária e significativa diante da necessidade de

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John Anthony Randoll Blacking (1928 - 1990) foi um etnomusicólogo e antropólogo britânico. Estudou a música e a cultura do povo ‘Venda’, da África do Sul, nas décadas de 1950 e 1960. É autor da definição de música como ‘sons humanamente organizados’ e defensor do envolvimento da antropologia no estuo das músicas (http://www.oxfordmusiconline.com/). 6

Mantle Hood (24/06/1918 – 31/07/2005, Maryland) foi um etnomusicologista estadunidense. Sua área de estudo foi a música da Indonésia, principalmente o gamelão. Hood foi um dos pioneiros, na década de 1950, da etnomusicologia na Universidade da Califórnia - Los Angeles (http://www.oxfordmusiconline.com/).

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apresentá-lo à comunidade acadêmica. De um lado, destaca-se que, para resgatar a trajetória pessoal, musical e composicional do objeto de pesquisa, é necessário levantar aspectos gerais, mais contextuais, relativos ao Brasil da referida época, à vida na cidade do Rio de Janeiro, à condições sociais, sendo Candinho filho de escrava nascido no final do período da escravatura no Brasil, à sua condição de negro, entre outros, como também, outros aspectos mais particulares, mais individuais e singulares de sua vida, como o início de sua formação musical, ainda no Asilo do Meninos Desvalidos, seu progresso na música tocando em bandas, sua fama de “derrubador” nos choros, seus casamentos, etc. Tudo isso, seria impossível de se conhecer sem a postura interdisciplinar, que naturalmente implica a cooperação de outras disciplinas (História, Sociologia, Teoria Musical, Análise Musical, entre outras), trazendo suas contribuições e sendo fundamentais para traçar o cenário, explorar e delinear os rumos de sua obra, justificando a pesquisa e tornando-a útil para quem quizer adentrar ao universo da história da música brasileira. Por outro lado, a prática da interdisciplinaridade leva a uma unidade que, por si só, é a própria Musicologia. Esta unidade é uma característica transdisciplinar, logo, de grande complexidade. A Transdisciplinaridade, segundo Mattos (2009), designa um modo de trabalhar o conhecimento, para além dos formalismos, a fim de compreendê-lo de maneira mais global, admitindo múltiplas visões e resignificações na compreensão de algo ou do sujeito, de si mesmo e do outro. Para a autora, a transdisciplinaridade estimula a pensar nos opostos, a conviver com as diferenças, a oportunizar variadas situações reflexivas. Segundo explica, o termo transdisciplinaridade foi sedimentado num documento formulado através do projeto Carta da Transdisciplinaridade de autoria de Bassarab Nicolescu, Edgard Morin e Lima de Freitas, discutido no 1º Congresso Mundial sobre Transdisciplinaridade, realizado em 1994 no Convento das Arrábida, em Portugal,

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com o apoio da UNESCO. Esse documento explica que: A visão transdisciplinar é completamente aberta, pois ela ultrapassa o domínio das ciências pelo seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior. (CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE, art.5º apud MATOS, 2009, p. 3603).

Pode-se entender que a interdisciplinaridade leva a transdiciplinaridade. No caso desta pesquisa, as diversas disciplinas envolvidas na compreensão do personagem Candinho, diante de suas composições e sua trajetória musical, são os alicerces para a sua relevância musicológica. De acordo com a professora Maria Alice Volpe (2011, p. 78), a Musicologia moderna depende teórica-conceitualmente e metodologicamente da transdiciplinaridade, sendo a identidade da Teoria Musical objeto de um esforço de reconfiguração disciplinar. Sendo assim, esta pesquisa tenta suprir as necessidades das pesquisas em musicologia, pois se constituiu a partir de elos entre várias disciplinas de diversas áreas de conhecimento, afim de consituir um todo que, conforme se pretende, ajudará na compreensão sobre quem foi o músico Cândido Pereira da Silva, mas principalmente de como era o seu universo musical e qual a relevância de trazê-lo para o presente através do resgate de sua obra e sua história. Cria-se, então, a expectativa de que um trabalho interdisciplinar e transdisciplinar sobre biografias de músicos populares brasileiros possa servir de referência e estímulo a outras pesquisas a serem feitas, aprofundando os conhecimentos sobre um personagem, ou descobrindo novos nomes que sempre surgem como fundamentais entre os cânones. Por fim, para que uma pesquisa defina-se como transdiciplinar, será necessário colocar todo o repertório, resgatado e reeorganizado, de maneira viva e sonora nas rodas de choro, para serem tocados e ouvidos.

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro, Imago, 1976.

KERMAN, Joseph. Musicologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

LUDWIG, Antônio Carlos Will. Fundamentos e prática de Metodologia Científica. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

MATTOS, Maria de Fátima da S. C. G. de. Transdisciplinaridade: um exercício prático entre as artes visuais e a arquitetura. In: Anais do 18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Transversalidades nas Artes Visuais. Salvador, 21 a 26/09/2009, p. 36023611.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. São Paulo, Cortez; Brasília, UNESCO, 2000.

PEREIRA, Elisabete Monteiro de A. Pós-modernidade: desafios à universidade. In: Escola e universidade na pós-modernidade. SANTOS FILHO, José Camilo dos; MORAES, Silvia E. (Orgs.). Campinas, Mercado das Letras; São Paulo, FAPESP, 2000, p. 163-200. SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: edição concisa. Editado por Stanley Sadie; editora- assistente Alison Latham. Tradução Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

VOLPE, Maria Alice. Análise musical: intra e interdisciplinaridade. In: Anais do IV Encontro de Musicologia de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

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