“A Misericórdia de Pombal durante o período da Monarquia Constitucional”, A Intemporalidade da Misericórdia. As Santas Casas Portuguesas: Espaços e Tempos, coordenação de Maria Marta Lobo de Araújo, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2016, pp. 311-333.

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Descrição do Produto

? A intemporalidade da M isericórdia As Santas Casas portuguesas : espaços e tempos Coordenação

Maria Marta Lobo de Araújo

Braga  .  2016

Título a intemporalidade da misericórdia as santas casas portuguesas: espaços e tempos

Autor Vários

Coordenação Maria Marta Lobo de Araújo

Edição Santa Casa da Misericórdia de Braga

Tiragem

500 exemplares

Data de saída Novembro 2016 Capa Pormenor do Conjunto da Visitação (“As Abraçadas”), em terracota, 1660. Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga (CIMMB)

Impressão e acabamento Graficamares, Lda. R. Parque Industrial Monte Rabadas, 10 4720-608 Prozelo - Amares

Depósito legal 415054/16 ISBN 978-972-96038-7-7

9 789729 603877

O conteúdo dos artigos e a norma ortográfica usada são da responsabilidade dos autores.

A Misericórdia de Pombal durante o período da Monarquia Constitucional The Misericórdia of Pombal during the period of Constitutional Monarchy

Ricardo Pessa de Oliveira*

Resumo Tendo em consideração a falta de estudos sobre as Misericórdias dos séculos XIX e XX, este trabalho procura analisar a atuação da Santa Casa de Pombal, entre 1834 e 1910. A  partir de documentação inédita e variada, será conferindo particular relevo aos textos normativos seguidos, aos indivíduos que a integraram e administraram, à conflituosidade interna, às receita e despesas e às práticas assistências levadas a efeito, procurando percecionar transformações ocorridas e as estratégias seguidas pela irmandade nesse que foi, para a generalidade dessas instituições, um período difícil. Palavras-chave :  Misericórdia, Monarquia Constitucional, Pombal, Portugal, séculos XIX e XX. Abstract Given the lack of studies about the Misericórdias of the 19th and 20th centuries, this paper analyzes the performance of the Santa Casa of Pombal, between 1834 and 1910. From unpublished and varied documentation, will be giving particular emphasis to the normative texts following, to individuals that integrated and managed it, to internal conflicts, to revenues and expenses and poor relief, looking to perceive occurred transformations and the strategies followed by Misericórdia in a time that was, for most of these institutions, a difficult period. Keywords :  19th and 20th century, Constitutional Monarchy, Misericórdia, Pombal, Portugal.

* Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal. Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto UID/ELT/00077/2013.  E-mail: [email protected]

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Introdução Nas  últimas décadas, a historiografia portuguesa tem dedicado uma atenção crescente e sistemática às Misericórdias da Época Moderna. Entre os autores desses estudos destaquem-se Isabel dos Guimarães Sá1, Laurinda Abreu2, Maria Antónia Lopes3 e Maria Marta Lobo de Araújo4. A obra Portugaliae Monumenta Misericordiarum, coordenada por José Pedro Paiva, é igualmente muito relevante5. Os  estudos publicados permitiram já um trabalho de síntese da autoria de Isabel dos Guimarães Sá e de Maria Antónia Lopes6. Pese o interesse que as Santas Casas têm suscitado junto dos investigadores, continuam a faltar estudos sobre a história destas instituições dos séculos XIX e XX7. Tendo em consideração essa lacuna, é nosso propósito  1

Sá, Isabel dos Guimarães, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; Sá, Isabel dos Guimarães, As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel I a Pombal, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.  2 Abreu, Laurinda, A  Santa Casa da Misericórdia de Setúbal de 1500 a 1755: Aspectos de sociabilidade de poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, 1990; Abreu, Laurinda, Memórias da Alma e do Corpo. A Misericórdia de Setúbal na Modernidade, Viseu, Palimage, 1999.  3 Lopes, Maria Antónia, Pobreza, Assistência e Controlo Social em Coimbra (1750-1850), 2 vols., Viseu, Palimage, 2000.  4 Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (Séculos XVI-XVIII), Barcelos, Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, 2000; Araújo, Maria Marta Lobo de, Pobres, Honradas e Virtuosas: os Dotes de D. Francisco e a Misericórdia de Ponte de Lima (1650-1850), Ponte de Lima, Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, 2000; Araújo, Maria Marta Lobo de, Rituais de Caridade na Misericórdia de Ponte de Lima (Séculos XVII-XIX), Ponte de Lima, Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima, 2003; Araújo, Maria Marta Lobo de, A  Misericórdia de Monção: Fronteira, Guerras e Caridade (1561-1810), Monção, Santa Casa da Misericórdia de Monção, 2008.  5 Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, 10 vols., Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002-2011.  6 Sá, Isabel dos Guimarães, Lopes, Maria Antónia, História Breve das Misericórdias Portuguesas 1498-2000, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008.  7 Os  trabalhos de Maria Antónia Lopes e de Maria Marta Lobo de Araújo constituem a exceção, cf. Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in  Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 7, Sob o signo da mudança:

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estudar a Misericórdia de Pombal no período da monarquia constitucional, isto é, entre 1834, data em que foi definitivamente instituída, e 1910, ano da implantação da República8. Com existência documentada em 1628, a instituição em análise conheceu diferentes fases, ao longo da sua história. Apesar da escassez de documentação para os séculos XVII e XVIII, resultado da destruição do seu arquivo aquando da terceira Invasão Francesa (1810-1811), esse parece ter sido um período de consolidação e de crescimento. No início de Setecentos, o padre António Carvalho da Costa afirmou que a Santa Casa possuía bastante renda, proventos que aumentaram no decurso dessa centúria, resultado da receção de vários legados, quase todos encapelados, com destaque para os bens de raiz deixados em testamento pelos pombalenses Manuel Teixeira de Carvalho, fidalgo da Casa Real, familiar do Santo Ofício e secretário da Mesa da Consciência e Ordens; e frei Valentim Alexandre da Cunha, beneficiado na colegiada de São Martinho, da vila de Pombal9. Na  década de 70, dessa centúria, a irmandade acentuou a sua relação com o poder, elegendo como provedor Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, aliando ao

de D. José a 1834, direção científica de Maria Antónia Lopes e José Pedro Paiva, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, União das Misericórdias Portuguesas, 2008, pp. 7-36; Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 8, Tradição e modernidade: o período da monarquia constitucional (1834-1910), direção científica de Maria Antónia Lopes e José Pedro Paiva, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, União das Misericórdias Portuguesas, 2010, pp.  7-30; Araújo, Maria Marta Lobo de, A  Misericórdia de Vila Viçosa: de finais do Antigo Regime à República, Vila Viçosa, Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, 2010.  8 Sobre a Misericórdia de Pombal, cf. Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (1628-1910), Pombal, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 2016. No  presente artigo, retomamos e sintetizamos alguma da investigação publicada nessa obra. Veja-se ainda Mora, Amadeu Cunha, Esboço Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, Pombal, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 2010 (reimpressão da edição de 1953).  9 Costa, António Carvalho da, Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal, tomo III, Lisboa, Oficial Real Deslandesiana, 1712, p. 105; Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (doravante ASCMP), Livro de títulos da Santa Casa de Pombal. 1821, fls. 81-84; Breves para redução de missas e encargos pios, fls. 22-29v.

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capital simbólico novas mercês10. Porém, na última década do século XVIII, principiou uma fase distinta, caracterizada por decadência, desordem e delapidação dos bens, consequência da incúria de determinados mesários e tesoureiros das capelas. A esses aspetos somaram-se as fraudes eleitorais que obrigaram, inclusivamente, à intervenção da Coroa. No início de Oitocentos, uma auditoria realizada, pelo juiz de fora, deu conta da desordem reinante na instituição, tendo os tesoureiros das diferentes capelas sido obrigados a indemnizar a irmandade em várias centenas de  réis. Foi o caso de Luís José da Costa e Sousa, provedor entre 1792 e 1802, e tesoureiro de três capelas, que tendo ficado alcançado em 352.138 réis, não quis pagar, tendo sido executado11. A  terceira Invasão Francesa agravou a situação da confraria. Entre  os danos materiais causados pelo conflito, o extravio do cartório originou confusão sobre o património da Casa e dificuldade em reconhecer os devedores de foros, juros e rendas. Para solucionar o problema, em 1813, os mesários alcançaram uma provisão régia para que o juiz de fora da vila elaborasse novo tombo dos bens da irmandade. No  entanto, em março de 1827, o mesmo, por dispendioso, ainda não fora iniciado, o que resultava em claro prejuízo para a Santa Casa, tanto mais que alguns dos antigos administradores, que poderiam elucidar sobre a matéria, haviam, entretanto, falecido12. A  essas contrariedades, acresceu o estrago causado na igreja da instituição e nas propriedades aforadas, o que obrigou inclusive ao abatimento de alguns foros. Saliente-se ainda a redução drástica no número de irmãos. Se em julho de 1802, a corporação afirmou contar com mais de 40  irmãos de primeira condição e mais de 100 de qualidade inferior13; em 1823, foram apenas arrolados 53 membros: 32 nobres e 21 oficiais14. Nos anos seguintes, persistiram indícios de gestão ruinosa15. Em 1827, o juiz de fora de Pombal acusou a irmandade de administrar muito mal as

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Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 92-93. Instituto dos Arquivos Nacionais, Torre do Tombo (doravante IAN / TT), Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, mç. 647, doc. 31. 12 IAN / TT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, mç. 802, doc. 1; mç 1560, doc. 9. 13 IAN / TT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, mç. 647, doc. 31. 14 ASCMP, Livro primeiro das entradas dos irmãos, fls. 2-6v. 15 Cf. Mora, Amadeu Cunha, Esboço Histórico..., pp. 54-56. 11

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suas rendas; e em 1831, no seguimento de uma eleição controversa, em que fora eleito para a provedoria um indivíduo que não era irmão, o provedor da comarca referiu-se à irmandade utilizando os vocábulos abandono, desarranjo e desmazelo16. Com a criação dos governos civis, em 1834, acentuou-se a intervenção do poder central nas Misericórdias, que passaram a estar sujeitas à fiscalização dos governadores civis de distrito e dos administradores de concelho. Compromissos, contas, eleições, mapas de doentes e orçamentos, tudo tinha de ser comunicado e aprovado pelo governo civil do distrito17. O Estado pretendia colocar termo a excessos e a administrações ruinosas, pelo que concedeu poderes aos seus representantes para poderem intervir na gestão destas instituições18. Não obstante, a situação da Misericórdia manterse-ia muito difícil, até final do período em estudo. 1. As normas, os irmãos e os corpos gerentes Com o desaparecimento do compromisso, em março de 1811, a irmandade passou a reger-se pelas normas da Misericórdia de Lisboa, de 1618. De resto, o alvará régio de 18 de outubro de 1806 havia determinado que todas as Misericórdias do reino, que não possuíssem regulamento próprio, seguissem aquele compromisso19. Ainda assim, só em 1822 é que a Santa Casa de Pombal, querendo observar o referido decreto, “mandou vir um compromisso impreço da Mizericordia de Lisboa e por elle se regulava no que era acommodado ao estado das suas rendas, á natureza da applicação de seos bens e mais circunstancias dignas de attenção”20. Pese o desígnio 16

A propósito da eleição para o ano económico de 1831-32, cf. Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 69-70. 17 Arquivo Distrital de Leiria (doravante ADL), Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 01-III-74-D-4. 18 Araújo, Maria Marta Lobo de, “A  difícil luta pela sobrevivência: a Misericórdia de Vila Viçosa durante a Monarquia Constitucional”, in  Revista de História da Sociedade e da Cultura, vol. 10, tomo II, Coimbra, 2010, p. 416. 19 Collecção da Legislação Portugueza, desde a ultima compilação das Ordenações, oferecida a ElRei Nosso Senhor pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1802 a 1810, Lisboa, Tipografia Maigrense, 1826, pp. 414-418. 20 ADL, Governo Civil, Correspondência de Administradores do Concelho, cx. 2, 1838-1839, III‑47-D-2, doc. não numerado.

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expresso no referido diploma, em Pombal, como de resto o excerto anterior antevê, parte das normas estabelecidas no texto de Lisboa não era cumprida, sendo paradigmático o facto de, desde 1834, ao contrário do estipulado naquele texto normativo, as eleições dos corpos gerentes serem diretas21. Ao longo do século XIX, tal como em muitas outras Misericórdias, os membros da instituição sentiram necessidade de elaborar um novo texto, acomodado quer à realidade dos novos tempos quer à da própria localidade. Se tal desejo já era evidente na década de 20, as normas da congénere olisiponense só seriam substituídas em abril de 1873, data em que o governo civil de Leiria aprovou um novo texto, que iria vigorar até 1913. Abolição do numerus clausus e da distinção entre irmãos nobres e oficiais, diminuição do número de mesários, alteração da sua nomenclatura e eleições diretas foram algumas das alterações introduzidas ou confirmadas pelo novo compromisso. Já a possibilidade do ingresso de mulheres, instituída pela portaria de 6 de dezembro de 1872, não foi contemplada. A  escassez de determinações atinentes ao hospital administrado pela Misericórdia, considerado a sua principal obrigação, explicou-se pelo desígnio de prover aquele espaço de um regulamento interno. Intento que, pese ter sido nomeada uma comissão para o efeito, não chegou a ser concluído. Relativamente ao número de irmãos, entre 1823 e Julho de 1910, ingressam na irmandade 321 pessoas distintas, com destaque para as entradas registadas nas décadas de 70 do século  XIX e na primeira da centúria seguinte, ingressos que atestam que, nesse período, a irmandade recuperou alguma capacidade em atrair novos membros. Residente na vila, casado, proprietário ou artesão, com idade compreendida entre os 25 e os 44 anos, eis o perfil do irmão admitido nesse período. Como sucedido em confrarias congéneres, a escolha dos corpos gerentes foi, não raras vezes, momento conturbado, tendo sucedido todo o tipo de irregularidades. Em determinados anos não ocorreu sequer eleição, quer por boicote dos irmãos quer por manobras da administração. Noutras ocasiões foram eleitos indivíduos estranhos à irmandade ou ainda designados irmãos 21

ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fls.  48-50. A  única exceção parece ter sido a eleição realizada a 2 de julho de 1851, na qual foram de facto eleitos dez eleitores que posteriormente elegeram a Mesa administrativa para o ano económico 1851/52, cf. ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fls. 56v.-57.

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inscritos há menos de um mês. Ocorreram ameaças, pressões e subornos. Em  véspera de eleição, foram admitidas fornadas de irmãos e expulsos confrades desafetos. Chegou-se mesmo a tentar impedir alguns membros de votar e a intimar outros para escolher determinada lista. Tudo isso aconteceu ainda que, na maioria das ocasiões, os registos da irmandade manifestem normalidade eleitoral. Na  segunda metade de Oitocentos e na primeira década do século XX, a luta partidária estendeu-se à Misericórdia, combate visível quer no ato eleitoral quer na destituição de Mesas e na nomeação de comissões administrativas, pelo governador civil de distrito. A  irmandade permaneceu nas mãos da elite local22. Ainda assim, ocorreram transformações que importa salientar. Com o avançar da centúria, as ligações familiares, ainda que visíveis, perderam importância. O principal canal de acesso ao poder passou a ser os partidos políticos. Dois  dos provedores eleitos, entre 1850 e 1910, já haviam sido administradores do concelho, um viria a sê-lo, enquanto outro foi secretário da referida administração. Os  fidalgos desapareceram, tal como desapareceram os indivíduos da família que havia dominado a instituição nos séculos anteriores: os Mancelos. Surgiram os proprietários e os negociantes abastados, ausentando-se do principal cargo indivíduos ligados ao sector militar e à Igreja. A  formação académica tornou-se bastante relevante, com a provedoria a ser entregue quase sempre a bacharéis, em Direito. Em todo o caso, registaram-se continuidades. Os provedores e os escrivães continuaram a gravitar em torno da câmara e da Misericórdia, e a controlar as restantes confrarias paroquiais e a ordem terceira, até à extinção daquelas. A  propósito refira-se que, entre os provedores desse período, dois já haviam sido presidentes da câmara municipal, cargo que outros três viriam 22

Sobre as chefias da Misericórdia de Pombal cf. Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 74-126. Para outros locais, cf. Lopes, Maria Antónia, “Provedores e escrivães da Misericórdia de Coimbra de 1700 a 1910. Elites e fontes de poder”, in Revista Portuguesa de História, tomo 36, vol. 2, 2002-2003, pp. 203-274. Uma versão sintética em Lopes, Maria Antónia, “A Identificação dos Dirigentes das Misericórdias como Método para a História das Elites. O caso de Coimbra nos Séculos XVIII e XIX”, in Actas do Congresso Internacional de História. Território, Culturas e Poderes, vol. II, Braga, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, 2007, pp. 323-334; Formigo, Filipa, “Provedores da Santa Casa da Misericórdia de Arganil do século XIX. Metamorfoses, elos e poderes”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 10, tomo II, Coimbra, 2010, pp. 433-455.

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a ocupar, chegando dois a presidir as duas instituições em simultâneo. Houve ainda quem estivesse ligado à imprensa periódica local, instrumento de mobilização, de combate político e de promoção dos seus proprietários23. Como já referimos, as Misericórdias passaram a estar sujeitas à fiscalização dos governadores civis de distrito e dos administradores de concelho24. Tal ingerência não constituiu propriamente uma novidade, já que a inspeção anual das administrações das Santas Casas fora imposta em 1806, sendo então da competência dos provedores de comarca25. Contudo, o representante distrital do Estado passou a ter, entre outros mandos, capacidade legal de dissolver os corpos gerentes e de nomear comissões administrativas26, cenário a que poucas Misericórdias escaparam, por vezes, durante longos períodos27. Segundo Maria Antónia Lopes, a destituição das Mesas eleitas e a nomeação de comissões vulgarizou-se na década de 1840. Essa realidade, menos intensa nos anos 60, viria a aumentar de novo em finais de 1870, registando maior ênfase na década seguinte. Diminuindo na década de 90, voltaria a crescer no final da Monarquia28. Em  Pombal, a década de 50 foi o período em que as comissões adquiriram maior relevo, gerindo a Santa Casa em 7,3 anos. Sucedeu inclusive dissolver-se uma comissão e nomear-se outra, ainda que presidida pelo mesmo indivíduo29. Isso significou que durante vários anos (6,7) não ocorreu sufrágio. Entre 1865 e 1871, as comissões indicadas pelo poder central voltaram a adquirir ênfase, o mesmo 23

Para isto tudo, cf. Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 100-113. Sá, Isabel dos Guimarães; Lopes, Maria Antónia, História Breve das Misericórdias..., p. 85. Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 8..., p. 8. 25 Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 7..., p. 12. 26 Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. cient.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 8.., p.  8. Sobre o assunto cf.  Lopes, Maria Antónia, “As  Misericórdias como palcos de luta partidária e instrumentos de domínio político (1834-1945)”, in  Congresso Internacional 500 anos de História das Misericórdias. Atas, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2014, pp. 239-258. 27 Veja-se, por exemplo, o caso de Vila Viçosa gerida por uma comissão durante 15 anos (1850-1865), cf. Araújo, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa..., pp. 54-55. 28 Lopes, Maria Antónia, “As Misericórdias como palcos de luta...”, p. 243. 29 ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fl. 104. 24

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sucedendo no final do período monárquico. Se em teoria, o provimento de uma comissão apenas deveria suceder em caso de má gestão dos mesários, na prática, não foi isso que sucedeu. Tomemos por exemplo a dissolução imposta por alvará de 21 de junho de 1879, a escassos dias da eleição anual. Por essa altura, as sessões eram quinzenais, pelo que a comissão apenas teria oportunidade de reunir uma vez, ou seja, no dia da posse. A  dissolução, longe de pretender regular os negócios da Casa, procurou antes facilitar o acesso ao poder por parte de uma fação, empreendimento que acabou por obter sucesso. Mais tarde, em janeiro de 1905, a dissolução imposta revelou claramente a luta entre regeneradores e progressistas pelo controlo da instituição. Retomando as palavras de Maria Antónia Lopes, “o controlo político das Misericórdias foi uma arma da luta partidária. Ao poder central não interessava diretamente o domínio das Misericórdias, mas a conquista de votos, sendo as Santas Casas um dos meios de pagamento aos influentes locais”30. 2. A administração da irmandade Os  problemas na gestão dos rendimentos, resultantes, sobremaneira, da dificuldade em cobrar juros e foros, foram sentidos pelos sucessivos corpos gerentes31. Os livros de atas dão conta dessa realidade e evidenciam as contrariedades daí resultantes. Ainda que a necessidade de demandar os devedores tenha sido constantemente relembrada32, alguns terão gozado de condescendência por parte dos administradores. Em  1879, o periódico O  Progresso Pombalense noticiou que os mesários haviam decidido avisar todos os devedores que “ha annos não pagam; e em que parece ter havido favoritismo”33. A situação financeira da irmandade levou mesmo os irmãos a restringir, por diversas ocasiões, o número de doentes admitidos, como

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Lopes, Maria Antónia, “As Misericórdias como palcos de luta...”, p. 245. O mesmo sucedeu noutros locais, caso da Santa Casa calipolense, cf. Araújo, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa..., pp. 68-95. 32 Cf., por exemplo, ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fl.  115; ASCMP, Livro de atas. 1862-1871, fl. 72v.; ASCMP, Livro de atas. 1871-1878, fl. 110; ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fls. 20v.-21. 33 O Progresso Pombalense, ano 3, n.º 82, de 4.02.1879. 31

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teremos oportunidade de verificar. Aliás, em 1883, o atraso na cobrança dos réditos levou o provedor a cogitar embargar a obra do hospital em reconstrução e a não internar mais doentes na casa onde temporariamente eram admitidos34. Em outubro de 1887, a cobrança de réditos estava de tal forma atrasada que era impossível satisfazer aos encargos obrigatórios. Por esse motivo, os mesários passaram uma procuração ao seu provedor para, na qualidade de advogado, promover execuções contra os devedores, incumbência que, atendendo às dificuldades financeiras da Casa, aceitou desempenhar de forma gratuita35. Para obrigar os devedores ao pagamento das dívidas, o recurso aos tribunais foi frequente. No  entanto, a justiça era cara e morosa. Refira-se a título exemplificativo que no orçamento suplementar para o ano económico de 1872/73, foi incluída uma verba de 50.000  réis, porquanto já haviam sido despendidos 370.500  réis para promover execuções contra os devedores36. Com o intuito de conseguir obter os réditos e os foros em atraso, a Santa Casa chegou a pedir o auxílio dos párocos para que, durante a missa, instassem os devedores a pagar. Assim, sucedeu em 1905 e em 190737. A  lei de 22 de junho de 1866, que ordenou a desamortização do património das Misericórdias não necessário às atividades pias e beneficentes; o processo de alienação adotado; e a lei de 26 de fevereiro de 1892, que reduziu em 30 por cento os juros dos títulos de dívida pública, representaram duros golpes para as Santas Casas38. Na irmandade pombalense, o impacto da lei de 1866 não foi sentido no imediato. Desde logo, não há notícia de ter sido elaborado inventário de todos os bens de raiz, foros e pensões, como fora ordenado. Só em novembro de 1873, é que a Mesa acordou a venda dos bens imóveis, estipulando que o seu produto fosse aplicado em inscrições39. Entretanto, em 1880, foram vendidos alguns foros, em virtude da lei da desamortização, tendo o seu produto sido aplicado em títulos de dívida 34

ASCMP, Livro de atas. 1878-1884, fl. 138. ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fl. 28. 36 ADL, Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 01-III-74-D-4, doc. não numerado. 37 ASCMP, Livro de atas. 1903-1910, fls. 17, 23v. e 62v.-63. 38 Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 8..., pp. 16-17. 39 ASCMP, Livro de atas, 1871-1878, fls. 51-51v. 35

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pública40. Todavia, o processo de alienação revelou-se contrário aos interesses da Casa. Em  setembro de 1881, o presidente da comissão administrativa afirmou que da venda dos bens havia resultado um considerável desfalque no rendimento da irmandade, que diminuíra de 1.100.000 réis para 800.000 réis, aproximadamente, porquanto parte dos bens fora vendida ao desbarato. Por esse motivo, os mesários solicitaram que o governador civil fizesse suster a venda dos bens ou que assegurasse que fossem vendidos “por um preço razoavel e não por qualquer quantia, como se tem feito, isto é, que a venda nunca se fizesse por quantia que produzisse um rendimento inferior a cinco por cento do seu valor”41. De  referir que a Misericórdia continuou, até final do período em estudo, na posse de foros, tendo solicitado por diversas ocasiões a sua venda. Em  dezembro de 1897, foi dirigida uma representação ao governo para determinar a venda de todos os bens imóveis, com exceção da casa que servia de hospital e da capela do Carmo42. Semelhantes representações foram feitas em 1900, 1901, 1903 e 190443. Nessa última data, pediu-se, porém, que a venda decorresse na vila, de forma a facilitar a “concorrencia á praça dos compradores de pequenos lotes, que noutra localidade as não iriam comprar fazendo assim depreciar o preço da venda accessivel só a quem pudesse por baixo preço comprar em globo para depois revender”44. Em  agosto de 1905, solicitou-se que o delegado do tesouro do distrito remetesse à Santa Casa as inscrições compradas com o produto da venda ultimamente feita de foros e oliveiras dispersas pertencentes à irmandade45. Finalmente, em 1907, a Mesa decidiu que a casa que servira de hospital, até março de 1889, fosse devidamente inventariada, para ser requerida a sua venda, juntamente com a de todos os foros ainda em posse da irmandade, devendo o produto ser investido em títulos de dívida pública46.

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ASCMP, Livro de atas. 1878-1884, fls. 61-61v., 76 e 86. Ibid., fls. 101-101v. 42 ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fl. 103v. 43 Ibid., fls. 128, 137 e 146v.; ASCMP, Livro de atas. 1903-1910, fls. 7v. e 12v.-13. 44 ASCMP, Registo da correspondência expedida. 1875-1935, fls. 122-123. 45 ASCMP, Livro de atas. 1903-1910, fls. 23v.-24. 46 Ibid., fls. 63v.-64. 41

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Como referido, a lei de 26 de fevereiro de 1892 reduziu em 30 por cento os juros das inscrições47. Tendo em vista minorar os encargos das Misericórdias e de outros estabelecimentos de beneficência o governo concedeu, aos que o requereram, um subsídio igual à dedução decretada, que no caso da Misericórdia de Pombal era de 31.950 réis. Acontece que o subsídio não era pago atempadamente. A 23 de março de 1911, a irmandade ainda não havia recebido o valor referente aos anos de 1905/06, 1906/07, 1907/08, 1908/09 e 1909/10. Tinha a receber um total de 159.750  réis, quantia que fazia toda a diferença numa instituição de reduzidas dimensões e a braços com constantes dificuldades financeiras48. A análise da receita e despesa revelou transformações importantes. Se os juros provenientes de capitais mutuados permaneceram como a principal fonte de receitas, nas últimas décadas de Oitocentos emergiram novos tipos de rendimentos tendo a Misericórdia engendrado diferentes formas de angariar fundos, destinados à reconstrução do seu hospital. Para esse desígnio, foram realizadas várias subscrições públicas. No Brasil, uma aberta, a pedido da Santa Casa, por um pombalense, residente no Pará, havia de render a avultada soma de 387.350 réis49. No jornal O Pombalense apelou-se igualmente à contribuição de particulares, sendo os donativos recebidos na redação do periódico e publicitados no número seguinte, o que possibilitava aos benfeitores capitalizar o apoio financeiro, ainda que alguns tenham preferido o anonimato50. Já a câmara municipal concorreu com o subsídio de 300.000 réis51. Além da abertura de subscrições, foram promovidos bazares, espetáculos e saraus. Em 1874, realizou-se um bazar que rendeu à irmandade

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Sobre a crise financeira de 1891, cf. Santos, Luís Aguiar, “A crise financeira de 1891: uma tentativa de explicação”, in Análise Social, vol. 36, n.os 158-159, Lisboa, 2001, pp. 185-207; Lains, Pedro, “A  crise financeira de 1891 em seus aspectos políticos”, in  Matos, Sérgio Campos (coord.), Crises em Portugal nos séculos XIX e XX, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, pp. 57-79. 48 ADL, Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 01-III-74-D-4, doc. não numerado. 49 ASCMP, Diário da receita e despesa. 1878-1887, fl. 97v. 50 O Pombalense, ano 6, n.º 236, de 24.01.1882. 51 O Pombalense, ano 6, n.º 313, de 14.08.1883; ASCMP, Diário da receita e despesa. 1878-1887, fl. 149v.

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301.410 réis52. Em outubro de 1877, teve lugar um espetáculo de teatro, cujas receitas reverteram em benefício do hospital. Mais tarde, no ano económico de 1898/99, um espetáculo dado por uma companhia de cavalinhos, haveria de render à Misericórdia 1.260  réis53. Outra novidade teve que ver com a receita procedente de inscrições, adquiridas com o capital procedente da venda de bens imóveis não necessários às atividades pias e beneficentes, conforme referido. Quanto aos gastos da instituição, se no final da década de 30 a maior parte dos recursos era canalizada para o sector religioso (obras na igreja, festividades religiosas e pagamento do ordenado ao capelão), nas décadas seguintes o cenário modificou-se, passando a maior fatia da despesa a ser destinada ao sector da saúde. A situação financeira da Casa, o aumento das despesas com os doentes internados no hospital e as obras de reconstrução e melhoramento daquele espaço ajudam a explicar a diminuição dos valores despendidos com as festividades religiosas. Na  segunda metade de Oitocentos, sobremaneira nas duas últimas décadas, essas solenidades não constituíram, de modo algum, uma prioridade para a confraria, representando quase sempre percentagens pouco significativas54. 3. A ação assistencial À  semelhança de muitas congéneres, a irmandade pombalense veio a anexar e a administrar o único hospital existente na vila55. Localizado na rua do Espírito Santo, paredes-meias com a igreja da instituição e com a casa do

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ASCMP, Livro de atas. 1871-1878, fls. 68 e 71v.; Livro de receita e despesa. 1869-1905, fl. 13v. ASCMP, Livro de receita e despesa. 1869-1905, fl. 114v. 54 Cf. Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 158-163. Sobre as festividades religiosas organizadas pela Misericórdia pombalense, neste período, cf. Idem, ibid., pp. 176-196. Para outros locais, cf., por exemplo, Araújo, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Vila Viçosa..., pp. 240-250. 55 Embora desconheçamos o momento exato em que a instituição assumiu a responsabilidade pela assistência hospitalar já o fazia em 1670, cf. IAN / TT, Conselho Geral do Santo Ofício, Habilitações, António, mç. 8, doc. 326, fl. 21v.; IAN / TT, Conselho Geral do Santo Ofício, Habilitações, Manuel, mç. 26, doc. 600, fls.  15v.-17. A  propósito da administração de hospitais por parte das Misericórdias, cf.  Sá, Isabel dos Guimarães, “As  Misericórdias da 53

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despacho, era um espaço bastante reduzido com manifesta falta de condições, no qual eram recolhidos doentes e pobres em trânsito, ainda que em divisões distintas. Ao longo do século XIX, o edifício foi alvo de intervenções pontuais que passaram pelo assoalhamento do chão, conserto dos telhados, reboco e caiação das paredes e reparação de janelas e portas. Ainda que tenha surgido uma nova enfermaria, adaptando-se para tal a casa da tribuna, a capacidade permaneceu insuficiente. A esse aspecto acrescia a insalubridade do edifício, já que as casas destinadas para o efeito, além de térreas, eram pequenas, húmidas, sem ventilação e destituídas de todas as condições higiénicas56. As décadas de 70 e de 80 do século XIX ficaram marcadas pelo desejo de construir um novo hospital, tendo sido delineados distintos projetos. Como todos os planos gizados acabaram por fracassar, em 1879, os irmãos deliberaram proceder à reedificação completa do hospital57, tendo os trabalhos decorrido entre 1882 e 1884. Todavia, apenas funcionaria naquele local até 22 de março de 1889, data em que foi instalado num solar notável, doado para o efeito, um ano antes, por uma benfeitora58. Se as condições melhoraram substancialmente, a capacidade do espaço continuou a ser bastante limitada, como comprova a resposta a um ofício do administrador do concelho, datada de novembro de 1900, onde se fez saber que existiam apenas quatro camas59. Entre junho de 1867, mês em que principiaram os registos de entrada e saída de doentes do hospital, e dezembro de 1910, contabilizámos 1.622 registos de entradas de enfermos naquele espaço, tendo existido um ligeiro predomínio de indivíduos do sexo masculino. Os  doentes eram, na sua maioria, solteiros, com mais de 25 anos de idade, residentes no concelho

Fundação à União Dinástica”, in Paiva, José Pedro (coord. cient.) Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 1, Fazer a História das Misericórdias, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, pp. 24-27. 56 ADL, Governo Civil, Correspondência de Administradores do Concelho, cx. 6, 1864-1885, III‑47-E-2, doc. não numerado; Mora, Amadeu Cunha, Esboço Histórico..., p. 69. 57 ASCMP, Livro de atas. 1878-1884, fls. 10-10v. 58 ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fls. 32v.-33 e 38-40v. Sobre as questões relativas à doação, cf. Mora, Amadeu Cunha, Esboço Histórico..., pp. 76-79. 59 ASCMP, Registo de Correspondência Expedida. 1875-1935, fl. 117.

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de Pombal e de baixo estatuto socioprofissional. De resto, só uma pequena percentagem tinha capacidade para pagar a despesa com o tratamento. A  década de 70 do século  XIX foi aquela que registou maior número de entradas (623), seguida da década de 80 (415). Destaque para o período compreendido entre 1873 e 1881, em que foram hospitalizados, em média, 73 doentes por ano, para o que muito contribuiu o problema da malária60. A  situação financeira da irmandade acabou por ter consequências ao nível das práticas assistências. Em diversas ocasiões, a instituição foi obrigada a limitar a admissão de doentes, tentando abreviar, ao máximo, a sua permanência e limitar os gastos com dietas. Em janeiro de 1879, os irmãos limitaram as entradas de enfermos, restringindo o internamento a dois doentes, em simultâneo61. Em outubro de 1881, a Santa Casa decidiu oficiar aos facultativos pedindo que “empregassem todos os meios para que não fosse muito duradoura a sua permanencia [doentes no hospital] e mesmo quanto a dietas fossem quanto possivel diminutas”62. Por sua vez, em maio de 1884, o número avultado de requerimentos para ingresso no hospital e a ausência de meios, isto após a dispendiosa reconstrução do hospital, fez com que a irmandade estabelecesse que até final do ano económico não fossem admitidos mais do que três doentes em simultâneo, salvo circunstâncias excecionais63. Já em novembro de 1886, a falta de dinheiro em cofre motivou que apenas fossem admitidos dois doentes, um de cada sexo64. Quanto às dietas, a instituição procurou guiar a sua atuação pelos regulamentos e tabelas de outros espaços de maior dimensão, caso do hospital de São José, em Lisboa, e dos hospitais da Universidade de Coimbra, na cidade do Mondego. Nesta matéria, como nas demais, a estratégia da irmandade visou conter gastos excessivos. Nesse sentido, apelou para que os 60

Sobre a doença, nesse período, veja-se Saavedra, Mónica Alexandra de Almeida Monteiro, “Uma  Questão Nacional”. Enredos da malária em Portugal, séculos XIX e XX, tese de Doutoramento em Ciências Sociais, especialidade de Antropologia Social e Cultural, apresentada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2010, exemplar mimeografado. 61 ASCMP, Livro de atas. 1878-1884, fls. 9v.-10. 62 Ibid., fl. 103. 63 Ibid., fls. 149v.-150. 64 ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fl. 22v.

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médicos fossem o mais parco possível na prescrição das dietas e procedeu à arrematação do fornecimento dos principais géneros consumidos. Intentou ainda dialogar com os facultativos e manter um controlo apertado sobre as despesas realizadas pelos enfermeiros, tanto mais que vários assalariados haviam evidenciado pouco zelo e honestidade, consumindo parte das dietas destinadas para os enfermos. Apesar das dificuldades, a irmandade não deixou de empreender esforços no sentido de melhorar o local onde as refeições eram confecionadas e a forma como as mesmas eram preparadas e conservadas, o que contribuiu para a elevada taxa de cura registada65. As esmolas a doentes pobres tratados no domicílio continuaram a ser atribuídas. Com o intuito de evitar fraudes, a Misericórdia chegou a ameaçar retirar as verbas concedidas, quando fossem desviadas para outros fins, o que implicava uma vigilância apertada sobre o universo dos esmolados, controlo que visava igualmente o comportamento e a conduta dos providos. Por outro lado, teve de lidar com constantes abusos relacionados com os medicamentos, porquanto vários indivíduos, não sendo considerados totalmente pobres, aviavam as suas receitas por conta da Casa. Para colocar 65

Sobre a alimentação ministrada aos doentes internados no hospital da Misericórdia de Pombal cf.  Oliveira, Ricardo Pessa de, “Saúde e Dieta Alimentar. Os  Doentes Assistidos pela Misericórdia de Pombal (1850-1910)”, in  Patrimónios Alimentares de Aquém e de Além Mar, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 417-437 (no prelo); Oliveira, Ricardo Pessa de, História da Santa Casa..., pp. 260-278. Para outros espaços, no século XIX, cf., entre outros, os trabalhos de Lopes, Maria Antónia, Pobreza, Assistência..., vol. 1, pp.  655-667; Lopes, Maria Antónia, “Os  hospitais de Coimbra a alimentação dos seus enfermos e funcionários (meados do séc. XVIII – meados do séc. XIX”, in Silva, Carlos Guardado (coord.) História da Saúde e das Doenças, Lisboa, Colibri / Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, Instituto Alexandre Herculano, 2012, pp.  147-164; Araújo, Maria Marta Lobo de, “Comer na cama: as refeições servidas aos doentes do hospital da Misericórdia de Vila Viçosa (século XIX)”, in Araújo, Maria Marta Lobo de et al. (coord.), O  Tempo dos Alimentos e os Alimentos no Tempo, Braga, CITCEM, 2012, pp.  113-131; Esteves, Alexandra, “Comer para sarar, sarar para comer: as dietas alimentares no hospital de Caminha no século  XIX”, in  O  Tempo dos Alimentos..., pp.  133-146. A  propósito das dietas praticadas noutros espaços da Península Ibérica, no mesmo período, veja-se, por exemplo, Gómez Rodriguez, María Soledad, El Hospital de la Misericordia de Toledo en el siglo XIX, tese de Doutoramento em História da Farmácia e Legislação Farmacêutica, apresentada à Faculdade de Farmácia da Universidade Complutense de Madrid, 1991, exemplar mimeografado, pp. 397-441

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termo a essa situação, a 26 de setembro de 1851, foi deliberado que o receituário, que houvesse de ser fornecido a pobres, fosse previamente assinado por um irmão, eleito mensalmente para o efeito66, estratégia que não obteve os resultados esperados67. Uma década mais tarde, continuavam a ser assinadas e aviadas muitas receitas em favor de pessoas que “pelas suas circunstancias e teres não estão no cazo de ser classificadas como pobres”68. Já em abril de 1903, foi estabelecido que as receitas fornecidas por caridade aos pobres tivessem o visto do mesário António Silvério da Cunha que só o concederia, depois de devidamente informado sobre a pobreza do doente, o que demonstra a persistência do problema69. Relativamente às esmolas em dinheiro, atribuídas aos doentes pobres, os montantes despendidos variaram, realidade que resultou do volume de suplicantes e, sobretudo, da capacidade financeira da instituição. Por  exemplo, em novembro de 1886, a falta de dinheiro motivou a suspensão do pagamento das esmolas70; e em março de 1908, a Misericórdia resolveu diminuir, de 200 para 100 réis, as esmolas semanais concedidas aos pobres, porquanto a verba orçada assim o exigia71. Auxiliando, com estas esmolas, um número bastante limitado de indivíduos, a Santa Casa, à semelhança das suas congéneres, demonstrou particular preocupação com o sexo feminino, sobremaneira tratando-se de solteiras e de viúvas, por razões facilmente percetíveis. Por outro lado, evidenciou prioridade para com os pobres residentes na freguesia de Pombal, o que também era comum nas demais confrarias de Misericórdia, e para com os membros da irmandade que, no ocaso da vida, necessitavam do apoio da instituição para subsistir. Também os servos da Casa não deixavam de ser atendidos, nalguns casos com esmolas avultadas. Se número considerável de pobres foi apoiado pontualmente, alguns foram-no durante vários anos, por vezes até à morte.

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ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fls. 66v.-67 e 74v. Ibid., fl. 77v. 68 ASCMP, Livro de atas. 1862-1871, fls. 9v.-10. 69 ASCMP, Livro de atas. 1884-1903, fl. 147v. 70 Ibid., fl. 22v. 71 ASCMP, Livro de atas. 1903-1910, fl. 69v. 67

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A  existência de recursos limitados obrigou à adoção de critérios de seleção rigorosos, sendo apenas auxiliados aqueles que, estando doentes e impossibilitados de trabalhar, “nada tivessem absolutamente de seu”72. Com base nestes preceitos, semelhantes aos praticados pelas suas congéneres, vários pedidos de esmola acabaram por ser indeferidos. Os  livros de atas fornecem alguns dados a respeito. Em  dezembro de 1862, a Mesa negou conceder uma esmola a Joana da Conceição “por não estar a mesma nas circunstancias de absolutamente pobre”73. Da  mesma forma, em janeiro de 1864, rejeitou pagar os medicamentos consumidos, durante três meses, pelo pombalense Francisco Pinto por “o não conciderar indegente”74. Em  setembro de 1870, recusou socorrer Ana de Jesus, moradora na vila, porquanto, além da falta de meios da Casa, a requerente era casada com indivíduo válido, pelo que tinha possibilidades de pagar o seu tratamento75. Um  ano depois, foi indeferido o pedido de Damásia Cordeira, solteira, do lugar dos Barros da Paz, freguesia de Almagreira, que solicitara alimentos e remédios. Mais uma vez, a Mesa considerou não estar nas circunstâncias de ser atendida, ou seja, não ser completamente desprovida de bens ou desamparada76. A irmandade manteve igualmente a emissão de cartas de guia e o auxílio aos pobres transeuntes, cujo número era particularmente significativo entre agosto e novembro, período de maior afluência de doentes ao hospital termal das Caldas da Rainha. Por norma, era concedida uma esmola em dinheiro (em 1822, era de 20 réis) e assegurado o transporte (em carro ou em cavalgadura e, posteriormente, no comboio) até à Misericórdia seguinte. Sem prejuízo, quando a situação financeira piorava, optava-se por suprimir, de forma total ou parcial, o transporte de pobres. Foi o que sucedeu em 1852 e em 1853, quando a condução foi limitada aos que estivessem fisicamente impossibilitados de seguir a pé. Por essa altura, a Santa Casa adotou igualmente algumas medidas, prescritas pela congénere bracarense, para

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ASCMP, Livro de atas. 1862-1871, fl. 10. Ibid., fl. 10 74 Ibid., fl. 26v. 75 Ibid., fl. 82. 76 Ibid., fl. 97. 73

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colocar termo aos abusos cometidos com as cartas de guia e com as esmolas concedidas aos pobres em trânsito. De  forma a restringir a assistência a falsos pobres e até a criminosos, passou a ser exigido que as cartas de guia declarassem, além do nome, da morada e do destino do auxiliado, a sua altura, a idade e “mais signaes adoptados nos passaportes”77. No  que respeita à assistência aos presos pobres, ainda que, no período em análise, não fosse da sua competência, não deixou de auxiliar esporadicamente alguns dos detidos na cadeia da vila, quer por iniciativa própria, que por instância do administrador do concelho, ajuda que passou pela concessão de esmolas para aquisição de alimentos e de peças de vestuário, pela prestação de cuidados de saúde, pelo provimento de serviços fúnebres e pelo transporte de presos. Relativamente à alimentação, além das esmolas atribuídas para o efeito, há ainda a registar o jantar servido aos presos pela sexta-feira santa, assinalado na documentação entre 1837/38 e 1842/43, cujo montante oscilou entre 1.480 e 1.920 réis78. Por outro lado, continuou a assegurar o enterro dos irmãos e respetivas esposas, dos pobres falecidos no hospital e a disponibilizar a sua tumba, mediante pagamento, embora o rendimento daí proveniente fosse muito pouco significativo. Os  problemas relacionados com os enterros foram uma constante e resultaram, sobremaneira, da falta de comparência dos irmãos, adversidade que a elaboração de pautas, o estabelecimento de penas pecuniárias e a ameaça de expulsão não conseguiram resolver. A propósito dos pobres falecidos no hospital cabe referir que a Misericórdia, à semelhança do praticado por outras congéneres, optava por vender alguns dos bens dos indivíduos que morriam naquele espaço, minorando 77

As  medidas resultaram da circular de 18 de agosto de 1852, remetida pela Misericórdia de Braga a todas as congéneres do reino, cf. ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fls. 85-85v. Araújo, Maria Marta Lobo de, “Assistir os Pobres e Alcançar a Salvação”, in  Capela, José Viriato; Araújo, Maria Marta Lobo de, A Santa Casa da Misericórdia de Braga 1513-2013, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2013, p.  473. Sobre medidas para conter os abusos cometidos com as cartas de guia, cf.  Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra Patrícia Lopes, “Pasaportes de Caridad: Las ‘Cartas de Guía’ de las Misericordias Portuguesas (Siglos XVII-XIX)”, in  Estudos Humanísticos. Historia, n.º  6, León, 2007, pp. 221-223. 78 ASCMP, Livro de receita e despesa. 1828-1871, fls. 24v., 40v., 48, 62, 69 e 73.

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dessa forma as despesas realizadas com o tratamento e o enterro dos mesmos. Ainda assim, são escassas as referências a essa prática. A 16 de abril de 1871, foram carregados 2.640  réis em receita provenientes da venda de diversos itens, na sua maioria pertencentes a Joaquina Gracia, mulher de 40 anos de idade, natural do Barroco, jornaleira, que tendo dado entrada no hospital a 10 de janeiro de 1871, faleceu a 15 do mês seguinte. Os artigos foram adquiridos por três mulheres, residentes em lugares próximos da vila. Maria da Mota, moradora no Casal Velho, comprou quatro saias, um casaco de xadrez, um barrete e um chapéu os quais haviam pertencido a diversos indigentes, pelo preço de 1.400  réis79. Por sua vez, Bárbara da Conceição, do lugar de Vale de Cubas, adquiriu uma saia de baeta deixada pela referida Joaquina Gracia, pelo preço de 1.000  réis80. Pertença da mesma mulher haviam sido umas argolas de ouro, adquiridas por Maria de Jesus, viúva, do Casal Fernão João, por 240 réis81. Em 1874/75 foram carregados em receita 1.320  réis, resultantes da venda de roupas82. No  final do ano económico seguinte, a 30 de Junho de 1876, a enfermeira entregou ao tesoureiro 360 réis, resultantes da venda de indumentária de pobres falecidos no hospital. No  entanto, nestes casos os registos não especificam os bens vendidos83. Conforme supramencionado, os problemas relacionados com os enterros foram constantes84, residindo uma das principais dificuldades na falta de comparência dos irmãos aos funerais, a ponto de não existir quem 79

ASCMP, Diário da receita e despesa. 1871-1874, fl. 5v. Ibid., fl. 5v. 81 Ibid., fl. 5v. 82 ASCMP, Livro de receita e despesa. 1869-1905, fl. 13v. 83 ASCMP, Diário da receita e despesa. 1874-1878, fl. 88v. 84 Para a Época Moderna, a ausência de documentação não permite atestar a existência de semelhantes atritos. No  entanto, à semelhança do sucedido noutros locais, é bastante plausível que já se verificassem. Este foi de resto um problema transversal a todas as Misericórdias. Sobre este assunto cf., entre outros, Sá, Isabel dos Guimarães, Quando o rico..., p.  194; Costa, Américo Fernando da Silva, A  Santa Casa da Misericórdia de Guimarães 1650-1800 (Caridade e Assistência no meio Vimaranense dos Séculos XVII e XVIII), Guimarães, Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, 1999, p. 57; Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres..., pp.  310-312 e 565-567, Araújo, Maria Marta Lobo de, “Assistir os Pobres e Alcançar a Salvação”, in Capela, José Viriato; Araújo, Maria Marta Lobo de, A Santa Casa da Misericórdia de Braga..., pp. 494-496. 80

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conduzisse o esquife. Tenhamos presente que, sobretudo para os irmãos de estatuto mais elevado, carregar objetos em público, no caso a tumba, representava um ato desprestigiante, pelo que as faltas tendiam a suceder-se. Por esse motivo, em 1827, entre várias deliberações relativas a enterros, foi instituído um livro de ponto, para tentar colocar termo a semelhante abuso85. Mais tarde, em Agosto de 1846, o provedor propôs a elaboração de uma pauta, a partir da qual fossem nomeados, mensalmente, nove irmãos para acompanhamento de todos os defuntos que a irmandade fosse obrigada a conduzir à sepultura, proposta aprovada por unanimidade86. Todavia, mais uma vez, a deliberação não surtiu efeito pelo que, a 28 de novembro de 1851, a Mesa obrigou os irmãos a nomear um substituto quando, por algum motivo, não pudessem comparecer pessoalmente aos enterros, sob pena de que faltando a este “religiozo dever por tres vezes consequtivas será riscado do quadro desta irmandade”87. Nos anos imediatos, a ausência de referências a semelhantes faltas poderia indiciar o sucesso do ameaço. No  entanto, o compromisso de 1873, que dedicou particular atenção ao assunto, insistiu na necessidade de “evitar inconvenientes, já por muitas vezes ocorridos”88, o que sugere precisamente o contrário. Além de estabelecer minuciosamente a disposição dos cortejos fúnebres, o texto normativo estipulou diversas outras minudências, além de penas pecuniárias para os que faltando aos enterros, não apresentassem motivo válido ou não providenciassem substituto. Semelhantes faltas obrigavam ao pagamento de 120 réis, quantia que seria entregue a um irmão pobre, que substituiria o faltoso na cerimónia fúnebre. Quem recusasse pagar arriscava a expulsão. Pese o estipulado, os problemas persistiram. Os diários de receita e despesa demonstram que alguns irmãos pagaram a multa consignada no compromisso, inclusivamente a figura máxima da instituição89. Em  junho 85

Mora, Amadeu Cunha, Esboço Histórico..., pp. 33-34. ASCMP, Livro de atas. 1844-1862, fls. 21,-21v. 87 Ibid., fls. 73-73v. 88 ADL, Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 01-III-74-D-4, Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, cap. 7, art. 60. 89 ASCMP, Diário da receita e despesa. 1871-1874, fls. 126v., 127v. e 136v.; ASCMP, Diário da receita e despesa. 1874-1878, fls. 57v. e 83v. 86

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Ricardo Pessa de Oliveira

de 1873, ou seja, pouco depois do compromisso ter sido aprovado, cinco dos irmãos nomeados não compareceram, nem apresentaram substituto, ao enterro de uma mulher falecida no hospital90. Além desses indivíduos, Joaquim Romão de Araújo Pereira, provedor, e Manuel Gomes de Oliveira, secretário, também faltaram ao cortejo fúnebre. Se as principais figuras da irmandade pagaram prontamente a multa, os restantes irmãos, pese terem recebido uma “carta atenciosa” para o efeito, não o fizeram91. Ora,  nestes casos, como relembrou o mesário padre João Miguel de Figueiredo, os incumpridores deviam ser riscados do livro, penalização que não parece ter sido aplicada. Ou seja, quando confrontada com semelhantes faltas, a Misericórdia optou por não empregar todas as sanções previstas, manifestando inoperância e até condescendência com os faltosos. Conclusão Ao longo do período em análise, a instituição em apreço lidou com constantes dificuldades financeiras, para o que muito contribuiu a difícil cobrança de juros e de foros, problema crónico, a que nenhuma Mesa ou comissão administrativa escapou e que obrigou ao recurso sistemático à justiça. O  processo da venda do património não necessário às atividades pias e beneficentes, ordenado em 1866, acabou por constituir um golpe para a Misericórdia, ainda que os seus efeitos não tenham sido sentidos no imediato. A alienação desse património, realizada na capital de distrito, sem intervenção da irmandade, conduziu à arrematação de bens por preços irrisórios, nalguns casos inferiores a cinco por cento do seu real valor, realidade que provocou uma diminuição considerável no rendimento da Casa. A  redução em 30 por cento dos juros dos títulos de dívida pública, decretados em 1892, representou outro revés para a irmandade pois ainda que tenha conseguido obter do governo o subsídio igual ao valor da dedução decretada, o mesmo não era pago em tempo oportuno. 90

ASCMP, Livro de atas. 1871-1878, fl. 41. ASCMP, Livro de atas. 1871-1878, fl.  41; Diário da receita e despesa. 1871-1874, fls. 126v. e  127v.

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A Misericórdia de Pombal durante o período da Monarquia Constitucional

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Malgrado as fragilidades e as limitações sentidas, a Santa Casa da Misericórdia de Pombal continuou a deter um papel essencial, permanecendo, em muitos casos, a única instituição capaz de prestar algum auxílio aos necessitados residentes no concelho e aos pobres transeuntes. Os problemas financeiros não impediram a irmandade de empreender esforços no sentido de melhorar o local onde os doentes pobres eram recebidos, num período em que a assistência hospitalar passou a constituir a modalidade assistencial mais relevante da instituição. À escassez de rendimentos e às dificuldades em cobrar juros e foros, os irmãos responderam com novas formas de angariar fundos. Bazares, espetáculos, saraus e, sobretudo, subscrições possibilitaram reconstruir o hospital na década de 80, do século  XIX, empreendimento maior dessa centúria, em que reconhecidamente se empenharam todos os confrades.

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