A montagem de correspondências em obras de Kieslowski e Tarkovsky

June 1, 2017 | Autor: Aline Lisboa | Categoria: Andrei Tarkovsky, Krzysztof Kieslowski, Montagem Cinematográfica
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A montagem de correspondências em obras de Kieslowski e Tarkovsky The editing of correspondences in works of Kieslowski and Tarkovsky Aline Lisboa

Resumo A montagem de correspondências apresenta, dentre seus principais aspectos, a supervalorização do estilo e da forma em detrimento do conteúdo. O objetivo do trabalho é compreender como se dá o processo de construção aberta desse tipo de montagem, traçando um paralelo entre suas características e A dupla vida de Veronique (1990) de Kieslowski e O espelho (1975) de Tarkovsky, examinando como se opera a relação entre os planos, o princípio de transmissão e a composição poética destas películas. Palavras-chave: Estética; Kieslowski; Montagem; Tarkovsky. Abstract The editing of correspondences presents, among its main aspects, the overvaluation of style and form over content. The objective of this work is to comprehend how the process of open construction of this kind of editing takes place, making a parallel between its characteristics and The Double Life Of Veronique (1990) by Kieslowski and The Mirror (1975) by Tarkovsky, examining the relation among the plans, the principle of transmission and the poetic composition of these films. Keywords: Aesthetics; Kieslowski; Editing; Tarkovsky.

A Montagem de Correspondências: Implicações Estéticas O sistema de montagem por correspondências apresenta, dentre seus principais aspectos, a supervalorização do estilo e da forma em detrimento do conteúdo. Neste tipo de montagem a narração e a demonstração dão lugar à sensorialidade, ocorrendo transformações de ordem formal, rítmica e temporal. É uma espécie de montagem que utiliza muito pouco do recurso narrativo, de modo a não possuir, de fato, um fio condutor que apresente linearidade exata. Aqui a sensação é preponderante em relação ao ser representado. Percebe-se a colagem e não a planificação, como procedimento estético dominante da montagem por correspondências, baseando-se em um princípio de fragmentação e restauração, longe de conduzir o olhar e estabelecer uma continuidade. A colagem provoca a

construção de hipóteses do espectador e suscita reaproximações entre unidades esparsas no 1

filme, tornando-se imprevisível, constituindo a relação entre os planos através de ecos . A relação entre os planos aqui se dá através desses ecos, construindo repetições, semelhanças, reposições em consequência da formação de rimas, estas como similaridades aproximativas, que, por vezes, tornam-se distantes e causam sensações que afloram os sentidos do espectador (XAVIER, 2012). Como exemplo, podemos citar um dos nossos objetos de análise A dupla vida de Veronique (1990), filme do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, que se utiliza de recorrências e situações de equivalência, projetando sensações que tendem a se manifestar em momentos esparsos; como o fato de Veronika e Veronique possuírem aptidão de canto; ou ainda sobre a semelhança física entre as duas mulheres. Utilizando um princípio de transmissão, que mais sugere do que significa ou conta uma história, a montagem por correspondências funciona como experiência estética sensível e associa elementos longínquos que intencionam expressar a mesma sensação, organizando-se diante de um sistema ambíguo de rimas e correspondências. Ainda em A dupla vida de Veronique (1990) podemos perceber a montagem funcionando como efeito estético sensível, a partir do momento em que são dispostas duas trajetórias aparentemente díspares, mas que na verdade convergem diante de uma ligação misteriosa entre as duas personagens, Veronique e Veronika, interpretadas por Irene Jacob, existindo uma separação de até mais de uma hora entre as duas partes do filme. A estética da montagem por correspondências apresenta o ritmo e a rima como elementos característicos em sua estrutura relacionada à forma e ao tempo, como afirma Amiel (2007, p. 114), “as escansões transformam a duração, e os ecos modelam-na de outra forma”. Os cortes não proporcionam saltos temporais, ao invés disso desagregam os fragmentos, possibilitando situações de contradição ou repetições, ir e vir, sem, no entanto, seguir cronologicamente uma linearidade. Percebemos isso de forma latente em O espelho (1975), filme do diretor russo Andrei Tarkovsky, nosso segundo objeto desta pesquisa, que traz uma análise existencial do ser humano, mesclando ficção científica, poesia e filosofia. Através do uso de flashbacks e forte ambiguidade, esta última considerada uma característica marcante

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Efeito visual ou sonoro que lembra outro, criando efeitos sensíveis que desembocam em rimas (AMIEL, 2007).

da estética por correspondências. O filme exige do espectador a formulação de hipóteses acerca do que se apresenta na tela, antes do desfecho final. Em linhas formais, reside uma não proposição de significações, muito menos de continuidade narrativa. Através das correspondências são feitas sugestões, que estimulam a percepção do espectador diante dos fluxos de imagens: Porque é sensível e inteligente, esta montagem transporta, na sua forma, o mundo que reorganiza. E poder-se-ia dizer que ao solicitar ao espectador a possibilidade de retrocessos, de recordações ou de sensações deslocadas, ordena, imobiliza, uma construção, no entanto, recebida a priori como móvel. (AMIEL, 2007, p.116-117). A relação espaço-temporal na montagem por correspondências se pronuncia de forma subjetiva, já que remete à percepção do instante e não à duração, de acordo com a ruptura ou o comprimento. Há uma espécie de percepção acronológica, não permitindoao espectador fazer distinção do tempo, da época, provocando um mergulho no fluxo visual da unidade fílmica. Como acontece em O espelho (1975), em que presente e passado se fundem em instantes próximos, durante a montagem, sem que haja uma diferenciação temporal. Neste sentido, as articulações visuais e sonoras, coexistem de forma diferenciada, sem no entanto estabelecer a qual momento pertence aquela situação. A partir dessa breve enunciação dos principais aspectos da montagem em questão, é possível agora observar como os elementos discutidos se apresentam em nossos objetos de análise: A dupla vida de Veronique (1990) e O espelho (1975), demonstrando como se dá o processo de construção aberta desse tipo de montagem, traçando um paralelo entre suas características e as obras indicadas.

O duplo em A dupla vida de Veronique Em A dupla vida de Veronique, Kieslowski nos remete ao tema da duplicidade, aqui tratado como antagônico e semelhante, concomitantemente. Em um dado momento, não fica claro se estamos observando Veronika ou Veronique, afinal o diretor, de forma proposital, nos causa certa confusão entre uma e outra, nos primeiros minutos da película, até que alguns fatos vão se desenrolando e começamos a perceber quem é uma e quem é a outra. Isso demonstra certa descontinuidade na articulação entre os planos, pois não segue precisamente uma relação lógica e contextual, como os outros dois sistemas de montagem,

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narrativa e discursiva . Esta é uma característica própria da montagem de correspondências, onde é possível questionar até que ponto as diferenças são maiores que as semelhanças e vice-versa. O filme de Kieslowski apresenta ainda uma composição aberta da montagem, que sugere, provoca sensações e evita, necessariamente, a condução do olhar pela diegese fílmica, ou ainda produz significados através do conflito entre as imagens. Trata-se, neste caso, de ir além da soma de conteúdos entre os planos, já que a intenção é justamente investir nos fluxos transversais, fragmentar o tempo e a ação das personagens e permitir que a sensibilidade ocupe os espaços, fazendo com que o espectador possa fruir diante de composições poéticas da linguagem audiovisual. A cena de Veronika encontrando Veronique apresenta a intenção de Kieslowski em ir revelando aos poucos elementos característicos de cada personagem para que possamos começar a identificar quem é quem na construção fílmica. Aqui, apenas uma se dá conta da existência da outra. Somente no desfecho da película é revelada a Veronique a existência de Veronika, algum tempo após sua morte.

Figura 01 – Frames da passagem de Veronika encontrando Veronique

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=EecLJK4eI4Y

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A estética da montagem narrativa tem como premissa estabelecer articulações entre os planos, a fim de narrar uma história. Configura-se como dominante na perspectiva cinematográfica da atualidade. 3 Método de montagem que tem como característica dominante criar um dialogismo entre elementos discursivos e visuais, a fim de produzir o sentido do filme.

Há a predominância da montagem por correspondências, mas o traço narrativo também está presente em A dupla vida de Veronique; onde encontramos, muitas vezes, articulações entre os planos ao invés de ecos formais. Além disso, a planificação se faz presente enquanto procedimento estético, mas é através da colagem que são estabelecidas as relações de continuidade e descontinuidade entre os planos. A escansão entre as cenas – ruptura e reposição – dita o ritmo do filme, que neste caso se mostra um pouco mais lento, aflorando sensações diante da composição imagética apresentada por elementos de ordem técnica, como a fotografia e direção de arte. No entanto, apesar de certa lentidão no ritmo, o filme cria associações utilizando rimas que ora afasta, ora aproxima as personagens e situações vividas por elas. É uma forma de nos fazer sentir a obra de outra maneira, como se a evidência de algo que estava já certo, aos poucos desvanecesse e trouxesse outro sentido à narrativa. E essas rimas, de acordo com Amiel (2007, p. 110): “Se os cortes podem dar o ritmo, já os ecos entre os planos podem produzir rimas. Repetições de longe em longe, similaridades aproximativas, sensações que abrem à memória um espaço diferente, e projetam noutros lugares sentimentos que voltam a palpitar”. Desta forma, acreditamos em um prolongamento através do ritmo mais lento aplicado à película e o uso de rimas para trabalhar a sensorialidade, ora aproximando, ora afastando o destino das personagens. Se em A dupla vida de Veronique encontramos traços narrativos ainda marcantes, na obra de Tarkovsky a predominância é basicamente da montagem de correspondências, tanto que em O espelho podemos observar uma não definição da temporalidade de forma proposital, a fim de “jogar” com o tempo. Em ambos, as fragmentações provocam sensações, entretanto na obra de Kieslowski a questão da temporalidade não é o eixo central trabalhado na montagem, diferente de O espelho que evoca a sensorialidade através de artifícios como o uso de flashbacks. Para além da construção da história, os dois filmes apresentam paradoxos, o primeiro diante da duplicidade em relação às personagens; o segundo utilizando como ponto central o tempo e as relações de ambiguidade estabelecidas pelo mesmo.

O paradoxo do tempo em O espelho

Tarkovsky (1989) defende uma postura, acerca da montagem, que difere em muitas instâncias do cinema soviético de 1920 ou do modelo baziniano de cinema. Ele ressalta a função da montagem como “colagem de pedaços”, em que cada um apresenta por si só uma particularidade temporal, ainda sobre isso ele diz, “a montagem perturba o curso do tempo, interrompe-o e, simultaneamente, devolve-lhe uma qualidade nova. A sua distorção pode ser um meio de expressão rítmica”. A postura do cineasta reflete nada mais que a defesa das correspondências como artifício de ruptura da visão, como forma de criar novas percepções e, sobretudo, sensações. Em O espelho podemos perceber a intenção do diretor em utilizar o tempo como artifício para criar paradoxos, ambiguidades e até mesmo sinestesias através das imagens e do som. Existe uma influência existencialista muito forte em Tarkovsky e em O espelho isso é notado diante da mescla que ele faz entre poesia, ficção científica e filosofia. Outro recurso bastante utilizado pelo diretor russo é o uso de flashback para constituir passagens do tempo, exigindo do espectador a formulação de hipóteses acerca do que se apresenta na tela, antes do desfecho final. Em cenas que apresentam sonhos, o inconsciente da personagem e temas oníricos encontramos o uso do flashback, acompanhado aqui de elementos diferenciadores na fotografia, como tons de sépia e preto e branco. O uso de longos planos sequenciais também são caraterísticas marcantes de Tarkovsky, que juntamente com os demais elementos já citados incorpora a estética da montagem de correspondências criando assim uma abertura da montagem, aspecto peculiar do estilo de correspondências.

Figura 02 – Uso do flashback em O espelho, a indicação do tempo através da fotografia

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=a-2oUxYHdu8

Essa relação proposital entre tempo e espaço é utilizada por Tarkovsky para provocar estranheza no espectador, diante da correspondência entre os planos. Justamente, neste momento, é que vai se dar a pressão do tempo, onde “articulações visuais e sonoras permitem exprimir uma alteridade cronológica” (AMIEL, 2007, p. 117), ou seja, o importante em O espelho não é distinguir as épocas e situá-las de acordo com a relação entre os planos, mas sim criar as associações necessárias entre as cenas, a fim de estimular no espectador impressões, percepções e o reconhecimento da construção fílmica. A montagem para Tarkovsky é muito mais que uma operação técnica, sobretudo é um procedimento que envolve a proposta estética do filme e isso pode ser ratificado através de seu relato acerca do trabalho de montagem em relaçao ao filme O espelho, especialmente quando diz que houve mais de vinte versões diferentes até chegar ao resultado esperado. Para ele, faltava coesão, coerência e lógica entre as articulações dos planos e isso afetava fortemente a percepção da existência do tempo no filme. Para Tarkovsky: “A montagem perturba o curso do tempo, interrompe-o e, simultaneamente, devolve-lhe uma qualidade nova. A sua distorção pode ser um meio da sua expressão rítmica.” (AMIEL, 2007, p. 120). Essa interpretação sobre a montagem faz com que possamos perceber as relações de correspondências como um procedimento que corta, retalha, rompe com a continuidade do tempo para assim provocar a abertura da montagem e criar percepções diferenciadas do que costumamos ver na montagem narrativa e discursiva. Encontramos a estética de correspondências de forma muito visível em cenas de O espelho que mostram a vida da protagonista, Marússia, de trás para frente, criando ainda conexões aleatórias entre a família espanhola que vivia naquela casa e quando uma das personagens dialoga com Ignat, confundindo assim o espectador. O uso de metáforas também é recorrente nesta obra de Tarkovsky, que utiliza a morte do galo como algo simbólico diante de um país entre guerras.

O final em aberto nos deixa em dúvida sobre a idosa ser Marússia ou não. A subjetividade toma conta do desfecho de O espelho e traz à tona mais uma vez o recurso da pressão do tempo, causando percepções díspares entre os espectadores. Desta forma podemos inferir que essa película é, de fato, um belo trabalho sobre o estímulo ao uso do incosciente, através das correspondências entre os planos. A montagem aqui tem papel fundamental nesse processo de constituição da proposta estética do filme.

Considerações finais Uma montagem aberta, sem evidências de significações. Assim se configura a estética por correspondências, que diferentemente da narrativa e discursiva permite ao filme uma ampliação, extensão do horizonte a ser captado pelo espectador. Há nitidamente nesta categoria a presença de desarticulações, afastando-se de uma linha narrativa e expressiva, manifestando, por vezes, uma ausência causada pela ruptura brusca sem explicações, sem enredamentos. Filmes como A dupla vida de Veronique e O espelho ilustram bem a construção desse tipo de montagem que trabalha a impressão e não a narração ou confrontação, como meio de expressar os fluxos das imagens. Para

além

do

formalismo

do cinema

soviético

clássico,

encontramos

aqui

possibilidades diferenciadas em Tarkovsky, que legitima a articulação entre os planos através de relações sensíveis que estes podem estabelecer uns com os outros, inferindo assim novos modos de ver e pensar sobre a estrutura fílmica criada. Já em A dupla vida de Veronique, Kieslowski aponta a montagem como possibilidade de revelação e não de apresentação, como encontramos de forma mais latente na discursiva e narrativa. A montagem para este diretor equivale a um fragmento do real, que acaba oferecendo meios à designação do sentido a ser criado, estabelecido. Em suma, devemos aqui ficar atentos a duas particularidades da montagem por correspondências, a fim de compreender sua construção de modo mais contundente. A primeira no que concerne aos fluxos transversais que estão para além da sucessão ou do encadeamento das ações cronológicas de A dupla vida de Veronique (1990) e O espelho

(1975); a segunda em relação à estrutura aberta, impregnada de subjetividade através dos elementos que compõem visualmente as obras de Kieslowski e Tarkovsky.

Referências

AMIEL, Vincent. Estética da montagem. 1ª edição. São Paulo: Texto & Grafia, 2007. AUMONT, Jacques. (Org.) A estética do filme. 8ª ed.Campinas, SP: Papirus, 1995. BORDWELL, D.; THOMPSON, K. A arte do cinema: uma introdução. 1ª edição. São Paulo: Edusp, 2013. CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. Tradução: Tina Montenegro. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976. EINSENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. ______. A forma do filme. Rio de janeiro: Zahar, 2002. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. 14. ed. Campinas, SP: Papirus, 2010. TARKOVSKY, Andrei. Le Temps Scellè. In: Cahiers du Cinéma. France, 1989. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

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