A moral mínima de Rubem Fonseca

Share Embed


Descrição do Produto

A moral mínima de Rubem Fonseca por João Gabriel Lima1 ([email protected]) Conferência apresentada no I Seminário de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense (2012).

Poucos escritores na literatura brasileira abordaram o problema da violência quanto Rubem Fonseca. Críticos importantes legaram-lhe o adjetivo de “brutalista” ou “realista feroz”, entre eles Antônio Cândido e Alfredo Bosi2. É indiscutível que as histórias de Fonseca – em especial em seu livro Feliz ano novo – apresentam a violência através das ações de seus personagens. Não obstante, antes de acusar com igual violência o autor de tais histórias, é preciso ter em conta o que alcançam esses escritos naquele que lê. Esse artigo deseja demonstrar que, longe de escrever histórias para incitar um leitor cruel, Rubem Fonseca é, na verdade, um escritor ético, cuja obra tem o propósito de interromper os impulsos destrutivos através da literatura. O valor de sua obra não está apenas na re-encenação literária da violência urbana, tal como parece apontar o consenso crítico sobre sua obra, mas em uma ambição – tão modesta quanto verdadeira – de impedir que o mal se apresente em forma de violência. Nosso percurso aqui será partir do livro Feliz ano novo de Rubem Fonseca, localizando a resposta da crítica literária à violência fonsequiana; depois, para considerar se há um propósito maior para essa violência, iremos até os escritos de Jean-Jacques Rousseau; ao fim, então, retornaremos à análise de Rubem Fonseca para considerar essa hipótese à luz das contribuições psicanalíticas. I Rubem Fonseca não escreveu pouco ao longo de sua carreira, ainda em curso. Proibido pela ditadura militar, escrito em 1975, Feliz ano novo talvez seja seu livro mais impactante. Chama a atenção do leitor a prosa direta, que narra acontecimentos brutais, extremamente violentos, sem qualquer indício de reprovação das ações. O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta a história de três homens miseráveis que, esperando o tempo para roubar um banco, decidem invadir uma festa de ano novo em uma mansão das redondezas. Fonseca começa o conto Feliz ano novo da 1 Mestre em “Estudos da subjetividade” pela Universidade Federal Fluminense. Conferencista na Human Rights, Literature, the Arts and Social Sciences Conference (Central Michigan University) e na Rousseau Tercentenary Conference (Colorado College). Publicou o artigo Désir: de la pornographie à l'art. para o dossiê da Révue Artéfact. 2 Cf. CANDIDO, Antônio. A educação pela noite. São Paulo: Editora Ática, 1989; BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

1

seguinte maneira: Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque. Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros (FONSECA, 1975, p. 9)

Ao longo da história, os três conseguem invadir uma mansão onde uma festa acontecia. Lá, eles comem as comidas finas e bebem champanhe, estupram as mulheres e atiram nos homens com uma arma calibre doze (apenas para checar se, com o impacto do tiro, eles grudariam em uma porta de madeira): Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira (FONSECA, 1975, p. 14).

Ao terminar, o trio retorna para seu prédio, onde, com os restos de comida e bebida que trouxeram, brindam o ano novo. Outro conto chamado Passeio noturno, não menos violento, conta a história de um alto executivo – com uma família quase caricatural, uma esposa e um casal de filhos – que atropela pessoas desconhecidas como uma atividade de lazer após o jantar. Com seu Jaguar reforçado com aço na dianteira e na lateral para um melhor desempenho da função, o executivo sai em busca de vítimas em ruas desertas: Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente, não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso […]. Então vi a mulher [...] Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões […]. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio (FONSECA, 1975, p. 50)

Após o ato, o homem retorna para casa. Lá, encontra sua mulher no sofá, vendo televisão. “Vou dormir”, ele diz, “boa noite para todos, amanhã vou ter um dia terrível na companhia”. O conto termina sem qualquer indício de condenação dos atos pelo narrador e tampouco um destino exemplar para o executivo. Não espanta que os primeiros críticos tenham chamado Rubem Fonseca de imoral, pervertido e toda sorte de adjetivos equivocados.

“A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

2

O primeiro modo que a crítica responde à violência literária nas obras de Fonseca é dizer que se trata de uma violência gratuita e sem sentido. Na melhor das acepções, está a crença que a violência gratuita questionaria a desigualdade da sociedade: Na estrutura do conto [Feliz ano novo], a concisão textual, composta por períodos curtos e verbos no passado, assemelha-se à linguagem do jornal e, ao mesmo tempo, resgata esse homem alienado, a mercê da sociedade e que contesta sua situação por meio da violência gratuita (RODRIGUES, 2010, p. 38).

Há, todavia, um segundo modo que a crítica responde à violência de seus contos. Nas narrativas de Fonseca a violência seria então lícita, pois seus personagens: “têm seus crimes justificados [...] Matam sempre em legitima defesa, em nome de continuar a viver, melhor dizendo, de sobreviver. Suas necessidades são, no mais das vezes, necessidades básicas” (SILVA, 1983, p. 64).

Como se vê, uma parte da crítica não compreende o brutalismo senão como uma estreiteza da obra, que só concebe a realidade a partir da violência extrema, jamais longe dela. A outra, se não chega a apoiar as ações dos personagens, ao menos acredita em uma explicação supostamente racional para os atos brutais (“sobrevivência”, “necessidades básicas”, etc.). Esses dois eixos de resposta crítica à violência na obra de Fonseca simplesmente ignoram a possibilidade de um propósito maior para essa violência literária, um propósito, por assim dizer, ético, que extrapole o âmbito dos personagens e atinja em cheio o leitor. Mais além, portanto, da inutilidade e da justificação como prerrogativas para essa violência, há talvez um outro caminho para avaliar o impacto da brutalidade na arte fonsequiana. Para isto, carece lembrar da bem pouco estudada função que a arte exerce na filosofia de Jean-Jacques Rousseau. II O grande escrito de Rousseau sobre a arte foi sem dúvida o chamado Primeiro Discurso ou Discurso sobre as ciências e as artes. A Academia de Dijon propôs a seguinte pergunta como tema para uma breve dissertação: “O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aperfeiçoar os costumes?”. Sabemos o quanto o ideário Iluminista insistia na importância da ciência – especialmente contra a religião – e não menos no valor da arte leiga: quase todos os grandes espíritos das luzes foram fervorosos defensores da ciência e das artes (Diderot, Voltaire, D'Alembert). A própria questão originou-se em uma Academia, instituição iluminista que “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

3

incentivava, produzia e divulgava os saberes científicos. Ora, a resposta de Rousseau à enquete foi espantosamente uma negativa radical: Nossas almas foram se corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição […] Viu-se a virtude desaparecer enquanto a luz das duas ia se elevando em nosso horizonte” (ROUSSEAU, 2005, p. 15).

Sem reconhecer qualquer bem na arte ou na ciência nelas mesmas, Rousseau estava convicto de que a arte contribuiu para a deturpação moral da sociedade. Rousseau

presencia a alta

sociedade parisiense comovida com as mais fúteis e imorais histórias, especialmente no grande divertimento francês do século XVIII, o teatro. Não era, no entanto, apenas um desvio atual: o filósofo analisa culturas antigas e constata uma inequívoca coincidência entre a ascensão das artes e o declínio da moralidade. No entendimento de Rousseau, seria um equívoco julgar a contribuição da arte para a sociedade através da quantidade de prazer ou emoção que ela traria aos sentidos, e menos ainda através de benefícios financeiros ou comentários elogiosos. A moralidade deveria ter primazia sobre todos os objetivos artísticos. No entanto, a arte estava apenas servindo – e sendo cada vez mais estimulada a servir – a propósitos imorais: Há milhares de prêmios para os belos discursos, nenhum para as belas ações. […] Eis o que, com o tempo, deve produzir em toda a parte a preferência dos talentos agradáveis aos talentos úteis (ROUSSEAU, 2005, p. 35).

Ainda no Primeiro Discurso, Rousseau considera idealmente uma sociedade que seria anterior à emergência das artes. Nessa sociedade, o homem não era certamente perfeito ou moral 3, mas havia uma integração entre os participantes da comunidade que não os permitia esconderem seus vícios. Com o surgimento da sociedade urbana, toda a espécie de artifícios de encobrimento da virtude foram lançados: a polidez, a beleza estética, o luxo. As artes e as ciências, para Rousseau, serviram não apenas aos encobrimentos morais de uma sociedade – no íntimo, desregrada e imoral –, mas igualmente à exposição, banalização e incentivo de ações imorais. A impaciência do filósofo também se destinava ao ilimitado desejo dos artistas por júbilo 4. Ambicionando a glória pública (e não menos o dinheiro), os artistas não mediam esforços para agradar mesmo às mais sofisticadas e perversas vontades do público. A valorização da produção artística e científica – especialmente 3 “No fundo, a natureza humana não era melhor [...]”' (ROUSSEAU, 2005, p. 13) 4 “Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios de seus contemporâneos são a parte mais preciosa de sua recompensa. O que não fará ele então para obtê-los, se teve a infelicidade de ter nascido entre um povo e numa época em que os sábios da moda preparam uma juventude frívola para dar o tom […] O que fará ele, senhores? Rebaixará sua gênio ao nível do seu século, e preferirá compor obras comuns, que serão admiradas durante sua vida, a maravilhas que só seriam admiradas depois de sua morte”. (ROUSSEAU, 2005, p. 29) “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

4

aquelas produzidas por homens cujo objetivo era ganhar o júbilo público – consiste, portanto, em um grave equívoco social segundo Rousseau, uma vez que incita ainda mais os vícios dos homens. Talvez já se tenha esclarecido que a função da arte, no Primeiro Discurso, deveria ser primordialmente moral, de levar os homens ao bem. Esse deveria ser seu princípio. Por muito tempo se interpretou a crítica rousseaniana à arte da forma mais banal: a intenção do filósofo seria aniquilar a ciência e as artes com a ambição de levar a sociedade civilizada de volta ao homem natural. Nada mais assustador ao Iluminismo, nada menos condizente com a proposta de Rousseau. Boa parte da vida passou o filósofo tentando explicar o equívoco dos seus críticos quanto à sua obra. Em uma das passagens de seu escrito autobiográfico Rousseau, juiz de Jean-Jacques, o filósofo expõe suas ambições para a arte: Nos seus primeiros escritos [de Rousseau] tratava-se de destruir a ilusão que nos enche de uma admiração tão tola pelos instrumentos de nosso infortúnio; tratava-se de corrigir aquela avaliação ilusória que nos faz cumular de honras talentos perniciosos e desprezar virtudes benéficas. Em toda parte, ele nos mostra que a espécie humana em seu estado original era melhor [mais sábia] e foi mais feliz – e que se tornou cega, infeliz e má à medida que se afastou dele […] Mas a natureza humana não caminha para trás – e jamais pode retornar novamente à época da inocência e da igualdade quando já se afastou dela uma vez. Foi justamente nesse princípio que ele insistiu reiteradamente. Acusaram-no obstinadamente de querer destruir a ciência, aniquilar as artes […] e mergulhar a humanidade novamente em sua primeira barbárie; muito pelo contrário, ele sempre insistiu na conservação das instituições existentes explicando que a destruição delas manteria vivos os vícios e eliminaria somente os meios para sua atenuação e abrandamento, e que apenas substituiria a corrupção pela violência desenfreada” (ROUSSEAU apud CASSIRER, 1999, p. 54-55).

A arte, portanto, comportaria tanto a possibilidade do mal (que em grande parte já foi feito) quanto a possibilidade de impedir as más ações dos homens (sendo, entre elas, a pior, a “violência desenfreada”). Esse outro lado da prática artística, isto é, a interrupção do que é imoral, teve modesta exposição não exatamente no Primeiro Discurso, mas em um outro texto de Rousseau: no Prefácio à peça Narciso – ou o amante de si mesmo. É precisamente nesse momento que se localiza uma proposta – como se disse, ainda muito tímida – para a função ou o propósito da arte em uma sociedade urbana. Rousseau escreve Narciso com 18 anos de idade, embora tenha sido encenada pela Comédie Française só vinte anos mais tarde, em 1752, quando o filósofo já gozava de boa reputação em Paris. No ano seguinte à encenação, no momento de sua publicação, Rousseau resolve escrever um breve prefácio a fim de comentar alguns aspectos de sua obra juvenil, desculpando-se com o leitor pela baixa qualidade do texto original. Esse prefácio aborda, em sua parte final, o papel que arte tem desempenhado (um papel, é preciso dizer, secundário, mas nada irrelevante para os objetivos éticos).

“A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

5

Não se pode esperar que Rousseau tenha lá muita boa-fé aos propósitos dos artistas também no Prefácio. Segundo o filósofo, os artistas estão muito pouco preocupados com a ética: toda sua preocupação se reduz aos eventos públicos de consagração a sua imagem. Uma pequena parte dos artistas – apenas a “exceção à regra” – superaram essa demanda banal pela atenção da sociedade ao concentrarem seus esforços nos problemas da verdade, da moral e da virtude. Somente uns poucos espíritos teriam a capacidade – por sua condição moral – de se dedicarem à arte integralmente. É preciso, como é evidente, que o artista se preocupe com a ética na sociedade – e são raros, raríssimos os que cumprem com esse requisito. Do mesmo modo que é necessária uma longa reflexão ética para ser um governante na filosofia platônica, Rousseau, ao que parece, deseja estender essa exigência também aos artistas e homens da cultura. Esse é o primeiro ponto que devemos manter vivo: a exigência rousseaniana de que o artista – justamente por saber incitar sentimentos no público – tenha não apenas superado suas demandas narcisistas por glória, mas, sobretudo, que tenha refletido sobre os impactos morais de sua obra no público. Há ainda outra reflexão nesse Prefácio que sugere uma proposta para a arte de modo ainda mais amplo: a corrupção dos homens através da arte é um fato que não diminui sua potência para as tarefas da ética. Rousseau argumenta que: […] As mesmas causas que corromperam os povos servem de algum modo para prevenir uma corrupção ainda maior […] É assim que as artes e as ciências, após terem feito os vícios brotarem, são necessárias para impedir que eles se tornem crimes; elas ao menos os cobrem com um verniz que não permite ao veneno se espalhar tão livremente. Elas destroem a virtude, mas deixam o simulacro público que é sempre uma bela coisa (ROUSSEAU, 1964, p. 972)5.

Se a arte não pode ser mais verdadeira em sentido estrito, isto é, transmitir a ética através das histórias, a moral da história, ao menos ela pode manter o simulacro da verdade – que significa, nas palavras de Rousseau, “certa doçura de moral que suplanta às vezes sua pureza, [...] certa admiração das belas coisas que impede as boas de cair no esquecimento” (ROUSSEAU, 1964, p. 972). É possível que Rousseau se refira, nestes termos, a uma intenção talvez cínica dos artistas em convencer o espectador ou leitor que os atos de polidez e da educação burguesa são – de fato – os atos morais por excelência. A polidez, pensa Rousseau, é assim melhor do que a pura barbárie. Mas o que realmente nos importa é a sugestiva ideia de um verniz moral, um verniz, cabe enfatizar, que 5 Nossa tradução. Texto original: […] Les mêmes causes qui ont corrompu les peuples servent quelquefois à prévenir une plus grande corruption […] et c'est ainsi que les arts et les sciences après avoir fait éclore les vices, sont nécessaires pour les empêcher de se tourner en crimes ; elles les couvrent au moins d'un vernis qui ne permet pas au poison de s'exhaler aussi librement. Elles détruisent la vertu, mais elles en laissent le simulacre public qui est toujours une belle chose. “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

6

não permite o mal se apresentar senão através da arte. A função moral da arte consiste propriamente em impedir que o mal tome a forma de um ato, que se realize, em última instância, em uma ação violenta. Tendo sido responsável pela “destruição da virtude”, a arte é agora igualmente responsável pelo impedimento dos crimes (ainda que não seja a única). Deve-se fazer arte – repetimos – em benefício do verniz moral6. Ora, Rousseau não especifica com precisão do que se trata (talvez deixe isso aos artistas), mas, certamente, o verniz moral tem como objetivo a diminuição das torpezas no mundo dos homens. A arte tem agora uma ética secundária, ou se quisermos, uma moral mínima, que consiste precisamente no impedimento dos crimes mais hediondos. Se ela tiver conseguido, ainda que modestamente, contribuir para esse fim (seja no artista, seja no público), certamente seu uso terá sido ético, moral. Em suma, já que ela trouxe as desgraças morais à nossa sociedade, que, ao menos, ela nos ajude na tarefa de não avançarmos até a barbárie completa. Eis aqui uma ideia que parece ser digna de ser chamada atual. Se a concepção de uma arte moral exemplar não parece lá muito apta à experiência moderna, sendo, talvez, mais propícia às sociedades tradicionais (como atestam as fábulas medievais), essa outra moral, secundária, mínima, parece-nos muito viável na arte e – especialmente – na literatura moderna. Será realmente possível à literatura interromper os impulsos às ações ditas “imorais”? Que caminhos pode seguir a arte se tem como objetivo atingir essa minima moralia? Cabe agora retomar a literatura de Rubem Fonseca para tentar responder a algumas dessas questões. III A primeira vista, incluiríamos Feliz ano novo na categorias de obras que incitam atitudes nada morais. Afinal, suas narrativas violentas – onde ninguém é censurado – deveriam incentivar os leitores à cometer ações igualmente brutais e covardes. Não é impossível que isso aconteça em alguns casos, carece admitir; mas, se quisermos compreender a extensão da tarefa ética em Rubem Fonseca, será necessário ultrapassar essa alternativa tão simplória. Comecemos por considerar um notável fato: quase todos os contos desse livro tem o narrador em primeira pessoa. Antônio Cândido tinha já ressaltado que o escritor da chamada “nova narrativa urbana” tende a contar histórias na primeira pessoa a fim de não se distanciar das classes mais pobres. Os escritores da nossa literatura clássica, em geral, por sua verve aristocrática, contavam histórias dos pobres quase sempre em terceira pessoa, para que a voz do narrador (que é, 6 O filósofo menciona até mesmo o papel que a distração – por mais banal que fosse – teria para a moralidade: “ Não se trata de levar as pessoas a fazer o bem, deve-se somente distraí-las de fazer o mal, é preciso ocupá-las com bobagens para desviá-las das más ações, é preciso distraí-las ao invés de pregar” (ROUSSEAU, 1964, p. 972) “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

7

dentre todas, a que mais se identifica com a voz do escritor) não se confundisse com a voz do personagem pobre. Rubem Fonseca narra sempre em primeira pessoa, com o intuito – diz Cândido (1989, p. 212) – de “apagar as distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular”. Parecenos correto o julgamento de Cândido, mas cabe, todavia, extrair ainda outra consequência desse tipo de narrador (especialmente nas histórias brutais de Fonseca): não há voz que defina moralmente as ações dos personagens. Não há nada que as condene, aceite ou ignore – e os personagens não parecem inclinados, por eles mesmos, a censurar suas próprias ações. Deste modo, os contos se calam sobre a moralidade ou imoralidade dos atos praticados. Esse silêncio sobre a ação violenta dos personagens – essa “supressão do superego narrativo”, se quisermos pôr nesses termos um tanto zizekianos – bem poderia ser considerado uma imoralidade do escritor (uma vez que não denuncia a extrema violência representada nas histórias). Esse silêncio bem poderia ser considerado imoral, sem dúvida, mas somente se ignorássemos seu impacto no leitor. A “ausência de condenação sobre as ações dos personagens” deve ser considerada não imoral, mas, muito ao contrário, como o mais moral dos silêncios, haja vista que ele alcança o leitor inversamente, isto é, ele exige uma voz, exige uma resposta do leitor frente aquela realidade brutal que se apresenta. As mais terríveis ações são apresentadas tão somente para que o leitor seja obrigado a se posicionar eticamente diante delas. Com efeito, é impossível ler uma história de Fonseca e se manter indiferente. O leitor pode desprezar a leitura porque é “muito forte”, como também pode deliciar-se com as histórias e mostrar aos amigos; o leitor pode igualmente denunciar cinicamente a violência da sociedade representada nas histórias (sem olhar ao seu desejo). Todavia, através de todos os excessos da violência, sem qualquer posicionamento moral do narrador, a tarefa ética permanece inteira, intacta ao leitor desafortunado que se meteu a ler Feliz ano novo. O narrador se cala para que o leitor seja impelido a falar sobre tudo aquilo. Rubem Fonseca realiza no livro Feliz ano novo uma operação literária que bem pode ser chamada de “celebração da violência”. Em suas histórias, não há lugar de onde a violência não possa surgir, nem há lugar onde ela não possa alcançar. Essa “celebração da violência”, contudo, não é destinada à reprodução – no mundo dos homens – da violência literária. Ao contrário, ela afeta diretamente o leitor ao apresentar literariamente seus piores desejos e temores. A literatura brutal de Fonseca o afeta, na verdade, não tanto por representar seus desejos destrutivos na história, mas sobretudo porque essa irrefreada celebração o faz gozar através das histórias de pura humilhação e assassinatos. O sorriso irreconhecível, um estranho prazer (que só contraria a noção de bem-estar) são sentimentos indissociáveis da leitura dos contos de Fonseca. Mesmo a maior repugnância de um leitor não nos pode convencer inteiramente que não haja, por isso mesmo, um gozo ainda maior. É verdade que Fonseca talvez se esforce em incitar esse sorriso incômodo, mas o “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

8

faz apenas com o objetivo de insistir na divisão essencial que tem o leitor entre seu desejo (por violência, por humilhação do outro) e o reconhecimento do perigo ou da imoralidade desse desejo. Ainda que nosso tempo aqui seja insuficiente, convém lembrar do breve texto A divisão do eu no processo de defesa de Sigmund Freud, onde ele considera a reação de uma criança frente ao mal intolerável provocado por sua própria satisfação: Suponhamos, portanto, que o eu de uma criança se encontra sob uma poderosa exigência pulsional que está acostumado a satisfazer, e que é subitamente assustado por uma experiência que lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase intolerável. O eu deve então decidir reconhecer o perigo, ceder-lhe passagem, e renunciar à satisfação pulsional, ou rejeitar a realidade e convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder conservar a satisfação. […] Na verdade, porém, a criança não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente […] Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; pelo outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo […]. Ambas as partes na disputa obtém sua cota: permite-se que a pulsão conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. (FREUD, 1976, v. 23, p. 309).

O leitor de Fonseca deve também ser pego de surpresa, ele deve ser “assustado por uma [história] que lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase intolerável”7. Os contos de Fonseca, em seu máximo efeito, deveriam se instalar feito um trauma na experiência do leitor, como algo impossível de ser transmitido, a ponto tal que a ansiedade incitada pela história o obrigue a, pelo menos, elaborar seu desejo por outros meios que não a satisfação mortífera. Em termos mais simples, que a história o ponha em trabalho psíquico, muito mais que em deleite. O leitor, não obstante, faz de tudo para que o efeito dela seja mínimo – mas sempre resta algo do impacto. Seus escritos não são para o délicat plaisir de um leitor perverso, embora os cruéis e cínicos tenham divertidamente usufruído de sua literatura. Muito ao contrário, colocando em termos mais psicanalíticos, os contos de Rubem Fonseca procuram insistir na brecha entre a satisfação de uma pulsão destruidora e o reconhecimento do perigo (no caso da criança) ou da imoralidade (no caso do adulto) da insistência em satisfazer essa pulsão. O “reconhecimento da imoralidade de um desejo” não é mais que um aviso do perigo de que esse desejo possa tomar sua forma mais terrível (o ato contra um outro, o ato contra si) caso a satisfação nesses termos persista. O “reconhecimento da imoralidade”, dito ainda de outro modo, significa a assunção da urgência (nos moldes de uma tarefa) em se alterar o modo de satisfação da pulsão quando ele assume a direção de um gozo do corpo do outro sem interdições – direção essa insistente na obra de Fonseca. Se a violência parte de qualquer lugar, e alcança qualquer lugar, ela alcança o leitor, duplamente, na posição de objeto do gozo de alguém e de sujeito que goza de alguém: é essa contradição que se 7 FREUD, 1976, v. 23, p. 309. “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

9

torna “insuportável” ao leitor, impulsionando-o à mudança. Os contos de Feliz ano novo certamente ambicionam um leitor que, como a criança freudiana, é capaz de reconhecer que o “prazer” que obtém dessas histórias provém de uma fonte intolerável, a saber, o desejo de destruição (que é, como Freud colocou com sua pulsão de morte, primordialmente um desejo de auto-aniquilação), e, ao mesmo tempo, rejeitar a realidade dessa violência, ou ainda melhor, rejeitar a possibilidade de realizar essa violência em ato, tornando-a disponível, quando muito, ao campo da literatura e da imaginação. A arte se torna aqui um destino ao mal, ao mesmo tempo que uma exigência de mudança na satisfação pulsional do leitor. Talvez não seja um equívoco ver nisso sua função ética, mesmo que mínima. “Não se trata de levar os homens ao bem, trata-se de desviá-los do mal”, diz-nos Rousseau. Para não avançar até a barbárie completa (que seria o livre destino da pulsão de morte, a “violência generalizada” rousseaniana), a literatura de Fonseca busca interromper o mal antes que ele tome a forma de uma ação violenta, brutal, covarde, que tome o corpo do outro como um playground perverso. Intenta-se, enfim, reduzir o mal a uma construção literária, “aparar o mal” (na famosa expressão de Alain Badiou 8). É precisamente aqui que a psicanálise e literatura encontram a filosofia do Justo de Genebra. Não é improvável que a literatura de Fonseca impeça a realização do mal ainda de outras maneiras. Ora, essa operação serviria a todos os leitores de Fonseca? E mesmo a esses poucos, há alguma garantia que a leitura impedirá a violência em nossas cidades? Devemos abolir as leis, a teoria do direito, portanto, e apelar para a literatura brutalista? Não sejamos nem ingênuos nem incrédulos. Nesse ponto, carece ser rousseaniano: não se pode exigir que a literatura se responsabilize sozinha por impedir o que não só ela construiu, mas apenas que realize a ética em sua justa medida, a mínima. Referências bibliográficas BADIOU, Alain. L'éthique: Essai sur la conscience du mal. Paris: Nous, 2003. BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. CANDIDO, Antônio. A educação pela noite. São Paulo: Editora Ática, 1989. CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: Editora Unesp, 1999. FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. Rio de Janeiro: Editora Arte Nova, 1975. FREUD, Sigmund. “A divisão do eu no processo de defesa” (1915). In: ______. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XXIII. RODRIGUES, Sergio Manoel. “A violência como Reflexo do pós-modernismo em Feliz Ano Novo”. Estação Literária. Londrina: vol. 6, p. 33-39, dez. 2010. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (precedido de Discurso sobre as ciências e as artes). São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. The discourses and other political writings. Cambridge: Cambridge university Press, 1997. 8 BADIOU, 2003, p. 118. “A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

10

______. Oeuvres complètes, vol. 1. Paris: Gallimard, 1959. ______. Oeuvres complètes, vol. 3. Paris: Gallimard, 1964. SILVA, Deonísio da. O caso Rubem Fonseca: violência e erotismo em Feliz Ano Novo. São Paulo: Alfa-Omega, 1983

“A moral mínima de Rubem Fonseca” por João Gabriel Lima

11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.