A multiplicidade da vida - as suas questões e fragilidades: reflexão sobre dois casos reais

July 19, 2017 | Autor: Joana Cabo | Categoria: Bullying, School Bullying, Psicología, Drogas, Homossexualidade, Homossexuality and Education
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A multiplicidade da vida - as suas questões e fragilidades: reflexão sobre dois casos reais

2014
Reflexão escrita para uma unidade curricular de Gestão de Conflitos do Mestrado em Ensino de Inglês e de Espanhol na Universidade do Minho

Nuno, o primeiro caso

"O senhor nos livre dos pensamentos bons, eles arrastam os outros. Em geral somos livres para pensar bem, mas não cuidamos que o diabo ama os que se julgam fora de toda a tentação porque se armaram de caridade e integridade e de piedosos conselhos. Mas ninguém é bom; e tudo o que sai do coração humano é turbulência da razão e conspirações do corpo."
Agustina Bessa-Luís, in Eugénia e Silvina

Estive hoje a dar longos passeios pela sumptuosa cidade do Porto, cujo centro se desenha com os mendigos a dormir no chão, totalmente entregues à vida e desarmados, outrora senhores (talvez), mas hoje arrastados e entregues ao vício, seja ele qual for. O cheiro da cidade traz-me à memória tudo aquilo que eu tenho feito de bem e de mal; tudo aquilo que eu conheço e desejei nunca ter conhecido; tudo aquilo que eu faço e o que desejei nunca ter feito. Faz-me pensar em mim e não só.
No caminho para Braga, cidade onde nasci e cresci, abri um livro que tinha acabado de comprar numa feira do livro na Trindade; o livro da Agustina Bessa-Luís que serve de abertura a este caso. Na realidade, as breves frases do livro que eu já li fizeram com que decidisse o tema deste meu trabalho.
Desta vez, optei por falar de um caso muito especial, próximo e, ao mesmo tempo, relutante. É um daqueles casos que todos conhecemos, mal ou bem, e que nos faz sentir tão impotentes que nos tornam até inúteis. É o caso de um aluno do 9º ano, da escola onde me encontro a estagiar. O seu nome é Nuno, tem 15 anos e consome drogas.
De acordo com PLANT & PLANT (1992), o consumo de drogas provoca um efeito imediatamente agradável e dá a sensação de recompensa, de alguma maneira e uma das suas possíveis causas terá a ver com a privação social. Ninguém é bom e eu não sou ninguém para julgar ou questionar as decisões do Nuno. Não lhe sou próxima, não sou amiga dele, mas ele não imagina como conheço bem os problemas que o consumo das drogas traz para uma família. Certamente sei melhor que ele, provavelmente porque estou numa situação muito mais consciente do que a dele. A minha visão das coisas é nítida, transparente e carinhosa; a dele é turva, inconsciente e escura.
Nunca ninguém precisou de me dizer qual era o verdadeiro problema do Nuno. Eu via-o. No fundo da sala, uns dias de cabeça deitada, outros completamente diferente e revigorado. Mas as marcas no seu rosto e o total alheio à realidade desvendavam o seu real problema. A 'bipolaridade' que apresentava nas aulas de espanhol, faziam-no destacar-se dos demais e todos os dias eu vinha para casa com a certeza de que aquele era/é mais um jovem entregue a um vício fácil e do qual muito dificilmente se livrará.
Tomara eu, um dia, poder sentar-me ao pé do Nuno e explicar-lhe os malefícios da droga, mas isto são coisas que os jovens estão já fartos de ouvir. Ele, certamente, sabe onde está e o que está a fazer, só não julgou ainda os seus atos, não se tornou dono nem senhor de razão alguma e deixa-se levar pelo vício que o vai destruindo aos bocados. Pudera eu, um dia, colocá-lo no meio do Universo e mostrar-lhe que não existe maior razão para viver do que os 4.54 biliões de anos de vida da Terra, esta esfera preenchida de História, e do que foi feito para nós, talvez por mão divina ou então qualquer outra coisa que a Ciência encarregar-se-á de explicar.
A irmã, a Ana, também estuda com ele na mesma turma. Nunca ninguém diria que são irmãos. O rosto de infelicidade desta menina corta até os corações mais preconceituosos, mais mesquinhos, mais pequenos. Também gostaria de dizer à Ana que a vida é este campo de batalha diário e que nós, ora um pouco abandonados, ora um pouco amparados, somos soldadinhos de chumbo entregues à nossa sorte e à espera que ela venha de algum sítio. Nada faria sentido se não tivéssemos questões a resolver, problemas a tratar, pessoas por quem olhar e amar. Eu sei que ela tenta trazer o irmão à razão e à verdade das coisas, à essência do que é certo. Ela deve sentir os seus esforços a serem esmagados pela teimosia do irmão que decidiu abdicar do que é moralmente correto.
Recuso-me a acreditar que possa também existir paixão pela vida. Tal coisa é absurda e completamente inexistente. A vida põe-nos à prova e faz-nos revelar o melhor e o pior de nós; obriga-nos a lutar todos os dias, desalmadamente. Isto não é paixão; é a sobrevivência, qualidade inerente ao ser humano desde os tempos mais primórdios da sua existência.
Não sei o que passará na cabeça do Nuno, apenas o acompanhamento psicológico o poderá saber. Eu ponho-me de parte e faço o meu trabalho, mas não deixo de observar e de me questionar: porquê? A mais simples das perguntas, provavelmente será aquela que nós até mais usamos. Porquê, Nuno? Que prazer te traz a droga? Faz-te fugir da tua realidade; aquela que não gostas? Mas isso traz-te outra vida quando acordas?
Acredito que o Nuno consome para fugir da realidade, porque é mais fácil assim. Tanto quanto eu sei, a sua vida é também desprovida de facilidades económicas; vive na casa dos avós com os pais e com a irmã. Quando perdemos tempo a querer resolver as nossas questiúnculas, tudo se torna mais pesado, mais problemático e a vida, naturalmente, menos atrativa. É precisamente quando nos queremos esconder daqui, deste lado mais sério da nossa existência, que perdemos identidade por preferirmos ser fracos, menos bons, menos capazes. Sei que disse no início deste caso que não sou ninguém para julgar os atos dos outros, mas tudo o que me sai do coração e da alma é turbulência da razão.
Para terminar esta história do Nuno, gostaria também de fazer referência a um outro livro que li recentemente, Cadernos do Subterrâneo (de Fiódor Dostoiévski). Um livro muito curto, mas grandioso e estranhamente inspirador. Num determinado capítulo, o autor russo debruça-se sobre a questão da 'consciência' e do que é isso na verdade. A sua definição, crua e nua, leva-me a ponderar se não será esse o verdadeiro problema do Nuno:
"Já nos bastava a consciência que move os homens assim chamados naturais, ou os homens de ação (...) Mesmo assim continuo firmemente convicto de que não só uma consciência ampliada, mas todo o género de consciência é uma doença."

Esta tomada de consciência das coisas poderá ter cansado o Nuno, o menino de rosto apagado, porque a consciência dói e pesa; custa carregá-la nos ombros, desde que acordamos até à hora em que nos deitamos. A consciência é, assim, o sentimento mais complexo do homem e da mulher e eu só preciso que o Nuno faça uma tomada da sua própria consciência.


Filipe, o segundo caso

"A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo o que ela contém. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não estávamos destinados a chegar longe."
H. P. Lovecraft, in O chamado de Cthullu

O segundo caso que escrevo para este trabalho tem a ver com um aluno de uma turma do 4º ano de escolaridade a que estou a dar aulas de inglês três vezes por semana. Antes de decidir escrever sobre este aluno em particular, tive de ponderar bem sobre como o iria fazer porque não pretendo, de todo, afundar-me em pressupostos errados ou preconceituosos. Esta parte do trabalho servirá então como reflexão do que eu vejo e escuto; não será o julgamento final (no sentido literal da expressão) sobre a vida de outrem. Conheci este menino de nove anos em dezembro passado e o seu problema visual (não é cego, mas vê muito mal e usa óculos com lentes bastante grossas) obrigatoriamente o destaca dos restantes meninos. Para além disso, estamos perante um caso bem peculiar e até sensível. De acordo com os mais variados testemunhos, este menino de corpo franzino e estatura baixa para a idade, tem tendência a mostrar uma atitude agressiva com os colegas e professores. Poderia dizer que é aquele típico aluno que "ferve em pouca água". Colocando de parte estas caraterísticas, há uma outra coisa muito interessante acerca do Diogo: aparentemente é vítima de bullying entre os colegas por causa dos seus trejeitos efeminados. A isto poderemos dar o nome de "preconceito", algo que FERREIRA (1995) define como "o conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos". Não tardou até eu perceber que o Filipe era assim verdadeiramente. Hoje, conforme escrevo para este trabalho, apercebo-me que essa postura menos pacífica dele nada mais é do que um escudo de proteção. É um menino totalmente indefeso, constantemente criticado e gozado e, por isso mesmo, desenvolveu uma forma primata de se proteger dos ataques dos outros meninos que ainda carecem de compreensão acerca da realidade do Filipe, talvez porque o contexto da sociedade ainda não facilita o entendimento destas questões (homossexualidade, transsexualidade ou hermafroditismo), ou porque os pais/encarregados de educação não se abrem acerca destes factos da vida. Não nego que o Filipe seja um menino com todos esses gestos e movimentos femininos e que queira dançar como as meninas, falar com e como elas. Mas a citação que serve de abertura a este caso, faz-me colocar uma questão: Afinal, o problema é do Filipe? Ou será dos demais? Em pleno século XXI ainda dói ver que esta sociedade nasça tão preconceituosa e é por isso que vivemos numa plácida ilha de ignorância e ainda não percebi como, na verdade, chegámos tão longe, longe demais.
Este menino deve viver num mundo só dele, completamente só, onde apenas ele se compreende. A solidão deverá ser o seu maior refúgio e a falta de entendimento por parte dos outros é algo que até ele próprio ainda não deverá saber questionar.

"A solidão não gosta de ser surpreendida e semeia à sua volta todo o género de obstáculos." Théophile Gautier, in O Capitão Fracasse

No século XIX, Gautier já sabia mais sobre a solidão do que muitos de nós hoje poderemos saber. Quando digo "saber", digo "conhecer", "entender" e "definir". É preciso tempo, compreensão e compaixão por aqueles que vivem num mundo refugiado da realidade; mas também todas essas qualidades são necessárias quando os outros veem as nossas fraquezas e nos querem espezinhar. Também esses precisam de tratamento.
Como podemos hoje continuar a ser tão julgadores das vidas alheias? Porque não damos ouvidos aos poetas que há séculos atrás escreveram para nós, muitas vezes a quererem chamar-nos à razão? Shakespeare, século XVI/XVII também sabia mais sobre o homem do que poderemos algum dia compreender: "o homem, esse mestre da devassidão, responsabiliza as estrelas pela sua natureza de bode" (Shakespeare, in O Rei Lear). Não são as estrelas que estão no céu, mas as que estão connosco, presentes na Terra, aquelas que tão carinhosamente gostamos de considerar como especiais. Pudera eu explicar ao Filipe que a vida não é "pera doce" e que os outros irão estar sempre lá para nos apontar o dedo; pudera eu também dizer ao Filipe para não se tornar diferente do que é e para seguir o caminho que quer seguir, independentemente daquilo que os outros pensam. Não quero que ele caia no erro de se transformar naquilo que não é por puro medo. Quero que ele seja aquilo que ele é, em toda a sua essência.
A sociedade é complexa e nós somos muitos neste mundo. É impossível chegarmos a um consenso; pedir paz e tê-la; pedir compreensão e recebê-la; pedir perdão e saber guardá-lo.
Custa-me saber que o Filipe irá para sempre viver com este trauma, por ser mais um entre centenas de milhares de meninos incompreendidos mas que são tão normais quanto os outros. Na verdade, é a primeira vez que me deparo com um caso deste género e admito que não sei o que fazer. A minha formação e experiência de vida não me dão liberdade para me meter na vida de um menino de, agora, dez anos. Tal como o caso do Nuno, este é outro onde me sinto totalmente impotente, incapaz de reagir.


Apenas os nomes usados neste artigo são fictícios.
Apenas os nomes usados neste artigo são fictícios.

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