A MÚSICA COMO CATALISADOR DO DESPERTAR SOCIAL NAS ÁFRICAS

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A MÚSICA COMO CATALISADOR DO DESPERTAR SOCIAL NAS ÁFRICAS Antom Fente Parada RESUMO Da mão da música em diversos estados da África surde a figura do artivista, quer dizer, do artista popular ligado a géneros da música moderna que, em grande medida, abandeira e lidera uma nova forma de fazer oposição ao poder estabelecido. Por outras palavras, o que estatalmente é periferia cultural, embora popularmente seja em grande parte sentido como centro, atingiu um apoio social que permite a conformação de novos espaços contrahegemónicos que disputam a primazia às corruptas elites tradicionais. Aliás, tanto a configuração quanto as demandas destes movimentos plurais, conformados fundamentalmente por novas gerações implicadas na questão Política, semelham-se em grande parte às expressões sociais e políticas líquidas que se deram no centro do sistemamundo capitalista com base em grupos humanos etariamente também análogos. Refletir sobre isto é necessário para os estudos culturais da Lusofonia e a para entendermos movimentos que talvez asinha sejam também importantes em Angola ou Moçambique.

1. INTRODUÇÃO Na atualidade vivemos um tempo de mudanças ou o que Giovanni Arrighi (2001) denominaria como etapa de caos sistémico, quando abala a hegemonia do centro político dos EUA e se discute com mais força do que nunca desde 1989 a ordem ultraliberal, embora esta saíra reforçada da crise sistémica de 2008. Ainda com salientáveis diferenças, as novas gerações voltam à conquista do espaço público e a (re)descoberta da ação política como alavanca para a transformação social. As fórmulas, as demandas e os agentes variam geograficamente, porém existem também concomitâncias. Se no Estado espanhol fenómenos como o 15-M e logo Podemos, representam esta tomada paulatina de consciência e de retorno ao político nas Áfricas dão-se movimentos igualmente semelhantes, em boa medida inspirados na fracassada experiência das denominadas como primaveras árabes, que por sua vez apresentam concomitâncias com as revoluções de cores que previamente tinham atingido a Europa do Leste. Nos EUA Occupy Wall Street representou também esta reação contra o atual estado de cousas. Porém, se em Podemos as elites do movimento são professores da universidade, quando o desemprego maciço impulsa a fuga de cérebros e o mal-estar duma classe média cada vez mais depauperada, nas Áfricas a cerna desses movimentos liga-se com o mundo da cultura underground e é chefiada em boa medida por músicos ligados aos géneros alternativos da música moderna. Do mesmo jeito que os sapatistas em Chiapas, Syriza na Grécia ou em América do Sul contam com fórmulas de luta próprias e o mesmo que os curdos desenvolvem a autogestão desde o local. Umas terão mais sucesso outras menos. Dumas gostaremos mais e doutras menos. Mas todas procuram melhorar as suas sociedades. Assim, da mão da música em diversos estados da África surde a figura do que eles denominam como artivista, ou seja, a figura do artista popular ligado a géneros da música moderna que lidera novas formulações políticas da mocidade desses estados e reativa politicamente a gerações que cresceram no apoliticismo e foram tomando consciência paulatinamente da necessidade de involucrar-se nos assuntos públicos..

Duma parte, estes movimentos mostram carências como a falha de experiência política, se bem onde atingiram um maior desenvolvimento paliaram isso em boa medida recorrendo à experiência dos ativistas sociais já experimentados em anos de militância política. Doutra parte, representam um excelente notícia já que sem uma repolitização das sociedades torna-se improvável qualquer mudança da ortodoxia ultraliberal e deter o retrocesso dos direitos civis e sociais. Embora sejam muitos destes movimentos líquidos e, se se quer, pós-modernos também é certo que, dado o ponto de partida, são imprescindíveis para a configuração duma nova cultura política com visos e vontade hegemónica para mudar o estado realmente existente da cousa pública. É, por isso, que se considera aqui um avance político, embora insuficiente ainda, e que, como fenómeno cultural e social, deve ser estudado também desde a Lusofonia, que não pode ficar apenas como uma casaca isolada das realidades sociais concretas que sustentam as expressões de língua portuguesa na Europa (a Galiza e Portugal), na América (Brasil), na Oceânia (Timor Leste), na Ásia (Goa e Macau) e, no caso que nos atinge, nas Áfricas (Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Casamança, Guiné-Bissau e Cabo Verde). 1.1.- Música moderna Entende-se por música moderna aquela música popular desenvolvida a partir da década de cinquenta do século XX e ligada ao consumo de massas e à difusão musical por novas canles como a rádio, a televisão ou, mais recentemente, a Internet. Esta música moderna serviu-se, aliás, de avanços técnicos e a irrupção de novos instrumentos e entre os seus géneros e subgéneros. A maioria associam-se com as culturas urbanas ou suburbanas e, por vezes, têm uma forte carga ideológica e política, por exemplo visível no punk, o ska, o rap ou o hip-hop. Esta música moderna, se atendemos a todos os seus géneros, não sempre é de massas e pode ser expressão cultural canonizada e das elites duma sociedade ou pode ser uma expressão periférica e dos grupos sociais subalternos. Por esta razão preferimos denominar a esta música como música moderna e não música de massas. Música moderna em contraposição à música popular ligada com o folclore e o tradicional ou à música culta ou clássica. Música moderna cujos estudos e crítica está totalmente subdesenvolvida na Galiza, mas que é importante focar e fazê-lo desde uma perspetiva que atenda à Lusofonia e explore novas vias e possibilidades para o (proto)sistema-musical galego. 2.- A MÚSICA COMO CATALISADOR DO DESPERTAR SOCIAL NAS ÁFRICAS Ano 2005. Senegal. O rapeiro Didier Awadi tira o seu segundo disco, intitulado Un autre monde est possible, com um tom decididamente político que bem poderia remeter para outros artistas comprometidos politicamente como Gabriel o Pensador em Portugal ou, especialmente, Valete no Brasil pela sua ligação com o panafricanismo presente em diversas manifestações culturais desde a irrupção da negritude no contexto dos processos de descolonização formal nas Áfricas. Na música galega são também numerosas as bandas de hip-hop (Dios k te krew), ska (Skarnio), rock (Zënzar) ou metal (Nao) ou punk (Ruxe-Ruxe) fundamente comprometidas com a realidade social e cultural da Galiza.

Em Un autre monde est possible (2005) temas como “Le patrimoine” atacam diretamente a corrupção e a avidez dos dirigentes dum jeito não tão distante do que fazem os rapeiros europeus; por exemplo no Estado espanhol Los chicos del maíz ligados politicamente ao novo partido político Podemos que pretende ser, em boa medida, o porta-voz político do 15-M ou Xune Elipe do histórico grupo Dixebra, criado na década de oitenta, que lidera esta formação política em Asturies. Didier Awadi é uma dessas pessoas que como artista é referente para grande parte da mocidade, nomeadamente a urbana, do Senegal e um dos inspiradores do artivismo. Mas, igualmente, é também representante do elo entre as gerações comprometidas e organizadas politicamente e as novas gerações –fundamentalmente nascidas na década de oitenta e noventa– que descobrem agora a sua dimensão de ativismo político. Me encaminé a la movilización política a finales de los años ochenta. Había revueltas en Senegal. La juventud quería de verdad otro sistema, ya que la política del país iba dirigida sólo a los políticos y era obtusa. La juventud no se reconocía en ellos, por lo que la música constituía para nosotros el único medio de expresión y discusión sobre los asuntos públicos. Fue entonces cuando creamos el grupo “Positive Black Soul” (PBS). Nuestro modo de abordar los problemas políticos y de rebelarnos en nuestras canciones sobresaltó a algunos, pero toda una generación se ha encontrado a sí misma. (Polack, 2008)

O ativismo de Awadi não é nada novo. A começar pelo título do seu segundo disco, que remete para o lema do Foro Social Mundial (FSM) de Porto Alegre, no Brasil participando em todos os FSM desde aquele então. Pioneiro do rap na África Ocidental, em 2002 posicionou-se junto a outros rapeiros a prol da alternância política no Senegal e esta foi atingida após 30 anos de presidência de Léopold Sédar-Senghor, poeta e um dos pais da negritude dito seja de passagem, e logo Abdou Diouf. Destarte, se uma geração de poetas e escritores tiveram especial protagonismo político como Agostinho Neto na Angola ou o próprio Senghor no Senegal, vemos agora a emergência duma nova intelectualidade com vontade transformadora e ligada à poesia popular do século XXI, veiculada por médio de subgéneros da música moderna como o rap ou o hip-hop. O artivismo, como é denominado por muitos destes novos líderes opositores, espalha-se pelo continente com uma demografia nas antípodas da europeia. Os menores de 25 anos representam mais da metade da população numa África Ocidental cada vez mais urbanizada e submetida também ao crescimento da desigualdade, nomeadamente no rural e nas periferias urbanas. O papel desenvolvido por artivistas-ponte, como Awadi, tem sido fundamental para a difusão do pensamento de figuras da descolonização e do panafricanismo tomadas novamente como referentes: Amílcar Cabral, Thomas Sankara, Patrice Lumumba, Fratz Fanon... 2.1 Bater num mundo oco para fazer que ressoe Do 16 ao 18 de março 5 jovens senegaleses do movimento Y en a marre (Estamos Fartos) foram detidos em Kinsasa, onde se deslocaram para promover a democracia. Expulsos entraram em Dakar, onde o YEAM sacode a vida política desde 2011 e inspira movimentos análogos nos estados vizinhos, desde Burquina Faso até a Nigéria.

Estamos Fartos (Y en a mare, YEAM1) surdiu em 2011 nos círculos estudantis de Dakar para reclamar o pago das bolsas e a melhora das condições de estudo, mas asinha se converteu num movimento de massas com o logo impresso nas camisolas da mocidade e uma filosofia não violenta surdida dos médios hip-hop. Concretamente, nasceu o 15 de janeiro de 2011, o dia depois da queda do presidente Zine ElAbidine Ben Ali na Tunísia, no marco das primaveras árabes (Fente, 2011). O 23 de junho o movimento atinge a sua primeira vitória ao conseguir a retirada do projeto de revisão constitucional proposto pelo presidente Abdoulaye Wade após vários dias de demonstrações. Segundo Soro Diop, jornalista ligado com o movimento, «quando o mundo soa a oco, há que bater nele para que ressoe. Isso é o que fez o EH: acordar o nosso pensamento, aguçar as nossas tomadas de consciência» (Denis, 2015: 12). Em 2012 bandeirou uma campanha para promover a participação eleitoral da mocidade dos subúrbios nas presidenciais, ao tempo que defende «um novo tipo senegalês» como base para uma «República da cidadania». Este apelo cidadanista, com as suas limitações e vantagens, não é muito diferente do desenvolvido pelo BNG na Galiza na década de noventa ou ao que atualmente apela Podemos no Estado espanhol e que foi asinha resignificado pela extrema direita emergente (Ciudadanos). Porém as concomitâncias com o 15-M ou com o que pode representar Podemos não rematam aí. Por isso podemos falar da emergência duma esquerda líquida no sentido que lhe dá Bauman, ligando liquidez e pós-modernismo (Galán, 2014). YEAM fala de que «não somos liberais nem marxistas», embora tenham como um referente a Amilcar Cabral como símbolo da coragem, o compromisso revolucionário e como firme partidário da educação e a sanidade públicas (Denis, 2015: 12). No entanto, o resgate destas figuras faz-se porque representam uns valores que também as novas fornadas de artivistas aderem tentando superar os fracassos da esquerda no continente por estar desconexa da realidade local. Aliás, formulam o seu movimento como algo novo, já que ao seu ver nem se os identifica com as estruturas clássicas da sociedade civil nem com os partidos políticos. Esta reação contra o velho é lugar comum de toda revolta geracional, máxime quando o cultural e o político voltam dar-se a mão através da música. Em Senegal os seus alvos são sensibilizar a cidadania dos mecanismos de decisão, mas também mudar o existente, com um foco especial nos bairros da periferia. Para isso, YEAM conta já com 400 espíritos (assembleias) em todo o Estado senegalês e uma tendência ascendente num território onde 60% dos desempregados têm entre 15 e 34 anos, segundo a Agência Nacional de Estatística e Demografia, quem em 2013 cifrava a taxa de desemprego do Estado em 25%. O nascimento de YEAM não poderia entender-se sem o movimento dos rapeiros de Senegal e o tecido social que sustenta numerosos festivais, entre eles o Festa2H. De fato, por algo Dakar é a capital histórica do rap em África. Para Hamadou Fall Ba, associado a Matador que se encarrega da organização do Festa2H, o artivismo espalha-se por toda a parte com mais de 3.000 grupos de rap em Nigéria; em Costa de Marfim; em Togo, onde arraigou o movimento 1

Pode consultar-se a sua página no Facebook na seguinte ligação: https://www.facebook.com/pages/Y-en-amarre/173373102703740?fref=nf (última consulta 15/04/2015).

Etiamé (Estamos Fartos na língua fon); os Sofás da República em Mali; Estamos fartos assim em Gabão, Não toques a minha nacionalidade em Mauritânia ou A Vasoira Cidadã, que contribui a depor ao presidente de Burquina Faso Blaise Bompaore do poder em outubro de 2014 (Denis, 2015: 13). 2.2 O artivismo em Nigéria Nigéria é um estado afetado fundamente pelas oscilações do preço do petróleo, com grandes desigualdades no seu seio e ainda conflitos armados, especialmente o que confronta a Boko Haram com o Estado. Porém, é também um estado emergente com 65 milhões de internautas e umas redes sociais, para muitos, muito vivas na difusão de alternativas e na tomada de consciência política. Em 2014 onze milhões contavam com Facebook e seis milhões com presença em Twitter (Alkor, 2012). Esta emergente classe média cresceu após o fim da ditadura e era alheia à política, nomeadamente as gerações da década de noventa. Porém em 2012 produz-se a maior onda de protestos desde a independência em 1960 a raiz da duplicação do preço do combustível como consequência da fim dos subsídios públicos aos hidrocarburos num Estado produtor e exportador de petróleo. Em janeiro desse 2012 Aduke, filha dum dentista e uma jurista e formada em História e Estudos estratégicos na capital económica do país –Lagos–, grava “Hear the Voice”2 tema dedicado «aos que não podem exprimir-se, aos invisíveis, a todos os aqueles que sobrevivem numa pobreza abjeta» (Vicky, 2015: 13). Asinha o tema converte-se no hino dos jovens manifestantes, ao coincidir o videoclipe com as manifestações desse ano. Em 2014 os cortes nas despesas petrolíferas e a devaluação da moeda, o naira, contribuem para a carestia dos produtos de primeira necessidade, especialmente os importados. Numa população de 170 milhões, 64 milhões de nigerianas e nigerianos têm entre 15 e 34 anos e dous terços não têm emprego (Akande, 2014). Aduke é uma das figuras que impulsaram o movimento Enough is enough 3 , que podemos traduzir como Nunca Mais!, tendo concomitâncias também com o movimento análogo na Galiza quando a crise do Prestige. De fato, o último concerto de Aduke, em 25 de fevereiro, realizou-se no Freedom Park de Lagos em benefício do movimento criado em 2010 e dirigido por Yemi Adamolekun (Vicky, 2015: 13). As bandeiras do movimento são a melhora das condições de vida e combater a corrupção estrutural do Estado nigeriano. A sua comunicação política centra-se nas redes sociais e não descartam concorrer eleitoralmente, a diferença de YEAM em Senegal. Também recebem achegas do exterior, entre elas a da Open Society Foundations do multimilionário George Soros, responsável duma das maiores especulações com a libra esterlina na década de noventa. O movimento também conhece a repressão policial que causou a morte de várias pessoas, entre Pode ver-se “Hear the voice” de Aduke na seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=ZHcYQCZZgM (última consulta 15/04/2015). 3 Na seguinte ligação pode consultar-se o site do movimento em inglês: http://eie.ng/ 2

elas do moço de 23 anos Mustapha Muyideen, convertido em símbolo duma mocidade maltratada que procura como transformar o seu país desde novas coordenadas políticas e que não partilhou que as duas principais centrais sindicais (Nigeria Labour Congress e Trade Union Congress) detiveram os protestos após a baixada dos carburantes por parte do presidente Jonathan em 2012 (Vicky, 2015: 13). Assim, a geração silenciosa da década de noventa da que fala Aduke, semelha que tomou consciência para não calar-se mais, aproveitando as novas ferramentas comunicativas e com um perfil em que destacam as classes médias e as pessoas com um nível formativo superior. Também os artistas, especialmente os músicos, mas não apenas, como demonstra o envolvimento de atores de Nollywood, a indústria cinematográfica local em arremedo a Bollywood na Índia e a Hollywood nos EUA.

2.3 Burquina Faso também tem indignados Serge Bambara, sob a alcunha de Smockey, é uma das principais figuras do rap burquinês ao longo dos seus mais de quinze anos de carreira musical. Smockey emprega a sátira para denunciar os males do seu país e como ele mesmo confessa «é muito doado fazer-se o rebelde nos videoclipes e não envolver-se quando se apresenta uma ocasião concreta de melhorar a situação do país» (Commeillas, 2015: 12). Segundo Smockey foi o próprio público quem demandou que falassem no seu nome e deram um passo à frente. Esse passo teve como resultado a criação, junto ao cantante de reggae Sam's K Le Jah, da associação Le Balai Citoyen (A escova cidadã) em 2013 e que desenvolveu um papel importante na renúncia forçada do presidente Blaise Compaoré em 31 de outubro de 2014, após vinte e cinco anos de mandato (Frintz, 2014: 8). Le Balai Citoyen conta com sessenta clubes na capital, Ugandugú, e outros quarenta distribuídos ao longo do território do Estado burquinês. Cada um desses clubes deve contar ao menos com dez inscritos para denominar-se cibal, a contração de citoyens balayeurs (cidadãos varredores). A Coordenadora Nacional, máximo órgão do movimento, escolhe-se numa assembleia geral cada ano e conta com treze membros, na atualidade três músicos, estudantes universitários, comerciantes, dous jornalistas e um advogado. Após a queda de Compaoré desenvolvera um papel de mediação entre os partidos políticos da oposição, o exército e a população. O exército aproveitou as demonstrações da oposição, que se negou a negociar após mais de duas décadas de ignomínia, para gerar distúrbios e forçar chegar a um acordo pondo a Michel Kafando como presidente interino e apresentando-o como um civil, embora tinha sido ministro do Interior; e a um militar, o general Zida, como primeiro ministro. Portanto, visto desde muitos quilómetros o papel da Escova Cidadá serviu para legitimar uma transição política onde ficassem no poder, em boa medida, os mesmos que já estavam na etapa de Compaoré, mas também pode ver-se como facilitar a abertura duma nova etapa na política de Burquina. O tempo dirá.

Segundo o movimento a sua posição evitou um confronto civil permitindo à sociedade civil e aos partidos políticos preparar as eleições num clima de tranquilidade. No entanto, desde fevereiro de 2015 um conflito entre o exército e a antiga guarda de Compaoré (o Regimento de Segurança Presidencial, RSP) abala esta suposta estabilidade e pode aproveitar-se até para pospo-las, como no caso de Nigéria onde se pospuseram as eleições de 22 de fevereiro pelo confronto com Boko Haram. Porém, seja como for, o movimento representa uma esperança e a confiança nos seus impulsores fica incólume. Tanto é assim que La Balai Citoyen está tendo problemas pelo seu rápido crescimento. Desde Níger e Gabão chegam petições de apadrinhamento encaminhadas a Sams'K e Smockey para constituir movimentos semelhantes ao seu. Em Togo criou-se uma entidade homónima sem sequer contactar com a sua homóloga burquinesa, embora Smockey matiza que, ainda que não podam abalá-la sem saberem de que se trata, alentam todas as iniciativas que organizem às pessoas espontaneamente (Commeillas, 2015: 12). Ao tempo, La Balai Citoyen inspirou-se no movimento Y En A Marre (YEAM) e participa da plataforma continental Tournons la Page (Passemos página), que luta pela alternância política e qualidade democrática em África4. Porém também há debilidades salientáveis. Pois, embora seja um movimento conhecido em toda África, no plano estatal é ainda muito frágil e a sua diversidade interclassista explica em boa medida as diferenças de opinião sobre os métodos organizativos e a praxe política. Estas contradições, no entanto, são fundamentais para que emerja uma síntese e para que a praxe parte duma deliberação profunda, embora podam também fazer explodir o movimento. Por exemplo, na segunda cidade de Burquina Faso, Bobo Dioulasso, o responsável do clube local de A escova cidadã foi expulso por apresentar-se como candidato ao Conselho Nacional da Transição (CNT) sem o aval do movimento. Para Guy Hervé Kam, o advogado de 43 anos que redatou os estatutos do movimento e que já era uma figura da oposição notória como responsável do Centro para a Ética Judicial (CEJ), seria um erro participar no jogo eleitoral já que «passariamos o nosso tempo justificando-nos para conservar o nosso “capital simpatia”». Precisamente uma das máximas do movimento é “Boca cheia não fala” (Commeillas, 2015: 12) . Contudo, o movimento sim anima à participação eleitoral e ajudam à cidadania a superar as travas administrativas que impedem que votem a maioria dos 16 milhões de habitantes do país, entre os quais apenas 28% está alfabetizado segundo a UNICEF. Outro repto é limitar a influência dos caciques locais, chefes religiosos ou tradicionais, especialmente notória entre os mossis (49% da população) da planície central onde as autoridades condicionam o voto de toda a aldeia. 3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS (E PESSOAIS) É difícil valorar a tantos quilómetros a pertinência ou não destes movimentos e das suas medidas. É mais doado celebrar a sua emergência e o despertar da mocidade africana na luta 4

O site do movimento, em francês, pode consultar-se na seguinte ligação: http://tournonslapage.com/ (última consulta 15/04/2015).

por resgatar os seus estados das mãos duma burguesia local colaboracionista com o espólio imperialista do que se aproveitam. Também é conveniente tentar prestar atenção nestes tempos de caos sistémico a todos os movimentos, que com maior ou menor acerto, achegam propostas e métodos para a esquerda que, a nível mundial e muito mais ainda na Europa, precisa de novas ferramentas de ação e interação políticas e que terão que padecer as frustrações, os avanços e retrocesso do ensaioerro. Igualmente, cumpre atender também as novas expressões artísticas que acompanham a sua dimensão criativa com uma dimensão político-social igualmente importante e notória, tanto para o estudo dos elementos repertoriais empregues, quanto à sua relação com o público e a receção dessas obras. Burquina Faso é mais uma mostra duma de tantas constatações históricas omnipresentes: um regime que se mantém no poder durante décadas não pode apagar-se da noite para a manhã e cumpre reflexionar –e muito– sobre como evitar que sobrevivam boa parte das suas principais estruturas mais perniciosas que sigam ao serviço das classes dominantes. Em Nigéria um movimento da gente também moça luta pela qualidade democrática e a melhora das condições de vida num contexto do mais complexo: desigualdades extremas, rapina protegida pelo Estado dos recursos naturais, o fascismo religioso dos Boko Haram... Em Senegal, como nos anteriores casos, a música e, concretamente, os representantes dos seus subgéneros mais comprometidos (reggae, rap, hip-hop...) foram a alavanca para facilitar e promover a repolitização da mocidade. Uma repolitização sem a que não será possível ter a massa social suficiente para afrontar as profundas transformações que requerem essas sociedades. Já que logo, talvez seja melhor por vezes equivocar-se, sabendo emendar os erros, ou perder tempo discutindo métodos e estratégias que podem ir desde a participação eleitoral direta até a atuação como associações que apostam por ser uma ferramenta de luta complementar a outras já existentes. As conquistas e os avances sociais nunca sao linhais. Igualmente é interessante ver o papel jogando pela cultura e especialmente pelos subgéneros musicais mais ligados com o compromisso político e a transformação social. Todos estes movimentos africanos partiram ou têm como porta-vozes principais a músicos que com a sua denúncia durante décadas criaram um repertório de denúncia e chamada à subversão que partilham cada vez mais membros das suas sociedades. Cultura e ativismo social e político voltam dar-se a mão em movimentos de massas como não se conhecia desde há décadas e mesmo criaram uma etiqueta para denominar a esses músicos que impulsaram os novos movimentos da África Ocidental: artivistas. O cidadanismo como centro do discurso redescobre o republicanismo democrático e os eixos da liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas também não deixa de enxergar as limitações analíticas e programáticas que segue gerando: o não questionamento do sistema capitalista e da dominação da classe trabalhadora através da propriedade dos meios de produção por parte da burguesia, o esquecimento na Europa da necessidade de afrontar já a necessidade do

decrecimento, etc. Porém, estes novos espaços de participação política abrem uma janela para serem aproveitados para caminhar e avançar, para isso servia a utopia segundo Eduardo Galeano. Finalmente, a esquerda tem que assumir a derrota sofrida pelo ultraliberalismo e reverter a austeridade e a transferência de recursos das classes baixas e médias para as classes altas. Tem que assumir que para atingir uma maioria social devem dar-se passos adatados a cada realidade nacional e cultural, com conhecimento das necessidades das pessoas e fazendo pedagogia política para repolitizar a sociedade e deter o desprazamento do centro político para a extrema dereita. Pois isso é o ultraliberalismo, um projeto da classe capitalista, onde desde a crise de 2008 os maiores beneficiados das intervenções estatais foi 1% da população, quando não 0'1% (Harvey, 2015), como tem demonstrado recentemente Thomas Pikketty (2014).

ANEXO a.- “Le patromoine” de Didier Awadi Mais uma vez a minha pena chora; ao igual que a tinta, uma indústria morre, duma morte violenta, súbita, gerida pelos nossos dirigentes ladrões, malvados e vilões malfeitores, que querem as nossas últimas pingas de suor. Este é o rosto sombrio e lúgubre de África hoje, segundo após segundo, minuto após minuto, hora após hora. África morre assassinada, assassinada, esgotada pelos nossos dirigentes colaboracionistas. É a única palavra que pode descrever a esses adoradores de Satã. Porque nos tiram o nosso sangue, porque se comporta com essa avidez? Confundir interesse pessoal e nacional está mal. É uma baixeza, estou baixo a sinistra linha da pobreza, é indecente, vendem-lhe o petróleo de Congo aos neocolonos que organizam as nossas guerras para administrar melhor o filão. Em Senegal, vendem a auga, a telefonia, a corrente, estás ao corrente. É algo corrente. Podes comparar a nossa economia com um ancião que morre, assassinado a mãos dos seus herdeiros que se matarão uns a outros pela herança. E que che fazem acreditar que é pelo bem da família, do clã.

b.- “Votez pour moi” (Votem por mim) de Serge Bambara Senhoras e senhores rogo-lhes que se acheguem. Embora estejamos em época de vacas fracas, não os vou comer. Um, dous, três, votem-me, pela cruz, serei honesto. Quatro, cinco, seis, justiça farei, aos meus cúmplices castigarei. Sete, oito, nove, prometo começar de cero, embora não seja certo. Dez, onze, doze, antes de afundir-nos, fundo-vos a todos na merda. […] Vocês acreditam em Deus, eu também. Vocês são cristãos ou musulmanos, eu também. Lembro-lhes que todos buscamos o paraíso, assim que todos pertencemos ao mesmo clã. Votem-me, não se vão arrepender. Não me verão, não notarão que estou. Serei discreto quando desangre o Estado. Farei mais num ano que Mobutu em dez mandatos. Bibliografia Akande, Tunji (2014), “Youth unemployement in Nigeria: A situation analysis”, Brookings, 23 de setembro de 2014, disponível em http://www.brookings.edu/blogs/africa-in-focus/posts/2014/09/23-youth-unemploymentnigeria-akande (última consulta 15/04/2015). Alkor, Christopher (2013), “From subalterns to independent actors? Youth, social media and the fuel subsidy protest of January 2012” em Nigeria, disponível em http://codesria.org/MG/pdf/chris_akor_nigeria.pdf (última consulta 15/04/2015). Arrighi, Giovanni e Beverly J. Silver (2001), Caos y orden en el sisema-mundo moderno, Madrid: Akal. Commeillas, David (2015) “Los indignados de Burkina Faso” em Le Monde diplomatique en español, nº 234, abril 2015, pp. 12-13. Denis, Jacques (2015), “Golpear sobre un mundo hueco para hacer que resuene” em Le Monde diplomatique en español, nº 234, abril 2015, pp. 12-13. Fente Parada, Antom (2011), “A primavera dos povos” em Portal Galego da Língua, disponível em http://pglingua.org/opiniom/artigos-por-data/3374-a-primavera-dos-povos (última consulta 15/04/2015). Frintz, Anne (2014), “La juventud burkinesa exige cambios” em Le Monde diplomatique en español, dezembro 2014, p. 8. Galán, Lola (2014), “Zygmunt Bauman y los tiempos de liquidación” em El País (18/01/2014) disponível em http://cultura.elpais.com/cultura/2014/01/16/actualidad/1389876142_361606.html (última consulta 15/04/2015).

Harvey, David (2015), “David Harvey opina sobre a renovação da esquerda” em Outras Palavras, disponível em http://outraspalavras.net/capa/harvey-opina-renovacao-da-esquerda/ (última consulta 15/04/2015). Piketty, Thomas (2014), El capital en el siglo XXI, Madrid: Fondo de Cultura Económico. Polack, Alexander (2008), “Awadi, otro África es posible” em CafeBabel español, disponível em http://www.cafebabel.es/lifestyle/articulo/awadi-otro-africa-es-posible.html (última consulta 15/04/2015). Vicky, Alain (2015), “Se acabó la «generación silenciosa» en Nigeria” em Le Monde diplomatique en español, nº 234, abril 2015, p. 13.

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