A Nação Mãe e Deusa: retratos da Índia

August 13, 2017 | Autor: L. Tonon da Silva | Categoria: Nationalism And State Building, Indian nationalism, India, Indian Independence, Goddess Cultures In India
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Graduanda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e bolsista do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF/UDESC). E-mail: [email protected]
Asuras, equivalentes a "demônios".
ADHERENTS, 2012.
HINDUISM, 2012.
Termo usado pela geopolítica para designar a área do atual Paquistão, Índia, Bangladesh, Butão, Nepal e Sri Lanka.
DUTT, 2006.
Coleção de hinos em sânscrito, datado do segundo milênio a.C. e ainda usado em cerimônias hindus.
Literalmente, Mãe Índia.
"Venero-te, Mãe", tradução livre.
Tradicional vestimenta feminina indiana, que consiste em um tecido de 5 a 9 metros drapeados ao longo do corpo.
"Terra própria", tradução livre.
"Governo próprio", tradução livre.
Amigo e seguidor de Gandhi, filiado ao partido "Congress" e posteriormente Primeiro-Ministro da Índia.
Escritor indiano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e autor do poema que se torna o Hino Nacional Indiano.
Tradução livre.
"Geographical Fun: Humorous outlines of various countries", publicado em Londres em 1868.
ANDERSON, 1991.
Do hindi "darshan", que significa uma experiência de cunho sagrado, de "ver o divino".
Tradução livre. CHAKRABARTY, 1999, p. 204.
"Father of the nation", título usualmente atribuído a Gandhi, além de "Mahatma", grande alma.
Tradução livre. RAMASWAMY, 2010. p. 38.
A Nação Mãe e Deusa: retratos da Índia
Luiza Tonon da Silva

Resumo: Em terras onde por milênios, por grande parte da população, inúmeras deusas e deuses foram cultuados, ao fim do século XIX, uma deusa maior emerge como a personificação do território indiano em luta por um "país próprio" (swadesh): a "Mãe Índia" (Bharat Mata). Sua representação antropomórfica, como o próprio corpo de um território que tenta se unificar sob um Estado soberano é utilizada em templos, calendários e diversas publicações de cunho nacionalista a partir de 1905. A "Mãe Índia", ao trazer elementos de divindades do Hinduísmo, é apresentada símbolo do fim da dominação estrangeira no subcontinente, no qual se tenta consolidar um Estado-nação independente. Como Britannia, Marianne ou Germania, a Bharat Mata é também um retrato feminino do nacional, mas com sua particularidade de mesclar o sentimento de amor à pátria com a integridade do território, num mapa que é seu próprio corpo e a elementos religiosos, como templos feitos a essa nação deificada. Este trabalho pretende mostrar de modo breve um dos muitos aspectos da construção do sentimento nacional indiano, principalmente através das imagens do século XX da "Mãe Índia".

Palavras-chave: Independência; Índia; nacionalismo; deusa; Hinduísmo.


Conta-se que quando o mundo estava para ser destruído por entidades malignas, os deuses se uniram e originaram Durga, uma bela deusa de dez braços, portando em todos eles armas ou objetos de proteção, afim de destruir o perigoso Mahishasur. Ao se encontrarem, o demônio, encantado pela radiância da deusa, pediu-a em casamento. Ela aceitaria, com uma condição: deveria derrotá-la em uma batalha. Como se verifica na estátua de um templo abaixo, por fim a deusa com uma lança matou Mahishasur; desde então foi imensamente adorada.






Imagem 1 – Deusa Durga

Fonte: OUTLOOK BUSSINESS INDIA, 2010.
Esta é apenas uma das histórias sobre Durga e suas batalhas que livraram tantos os deuses como os humanos de enormes males, contra quem sempre lutou corajosamente. O Hinduísmo, terceira maior religião em número de adeptos na atualidade, possui milhares de deuses, mitos e rituais, que variam de acordo com cada tradição local, e apesar de ser definido como mais um "caminho de vida" do que uma religião, é considerada a fé de 80% da população indiana. Fé, que não é apenas plural em divindades, inúmeros nomes e representações que um mesmo deus pode ter, é igualmente múltipla em seus praticantes. A Índia, país com mais de 800 milhões de hindus, é também diversa em seu falar - são 22 idiomas oficias na Constituição, além do inglês e mais de uma centena de outros idiomas não-oficiais -, em sua arte – por exemplo, as músicas clássicas, as danças, as comemorações são extremamente diferenciadas ao longo do território -, e em muitos processos históricos, como o da colonização britânica, que em 1947 – ano da independência indiana – já havia feito 17 províncias de governos distintos ao longo do subcontinente.
A dominação britânica – não a primeira europeia, uma vez que Dinamarca, França, Portugal e Holanda já o tinham feito, em alguns territórios litorâneos que vieram a ter sua independência após a retirada dos ingleses -, de quase dois séculos, foi inicialmente de cunho econômico, a partir do monopólio da Companhia das Índias Orientais, e mais tarde diretamente político, como no "British Raj" implantado em 1858. Não foi, no entanto, sem revoltas ou questionamentos: inúmeras guerras e motins, duramente reprimidos, ocorreram por todo o território, além de já nas últimas décadas do século XIX haver grupos políticos de nacionalistas. Uma de suas formas de trazer elementos para a gradual constituição de um possível sentimento nacional – que hipoteticamente, poderia não ter ocorrido, e teríamos hoje 20 Estados ao invés dos 4 que se formaram a partir da "British India" – estava nas artes, nas culturas populares e – por que não? - nas religiosidades.
Em textos das décadas de 1860 e 1870 a terra a qual habitavam – "Bharat", nome para a região que vem dos antigos textos em sânscrito, que por sua vez é dito derivado de um antigo rei Bharata, mencionado no Rigveda - aparece associada a alguma personagem feminina, como na peça "Bharat Mata", de Kiran Chandra Bandyopadhyay, em 1873. Alguns anos depois, é composto o hino "Vande Mataram", o qual compara a generosidade de uma Deusa-mãe à bondade da natureza e da terra. E em 1905 Abanindranath Tagore põe no papel esta "Mãe Índia", de deificantes quatro braços que paira sobre o planeta e flores de lótus, com vestimentas de uma asceta hindu, em frente a um horizonte e um halo, fazendo alusão à deusa hindu da fortuna e da beleza, Lakshmi. Ao trazer nas mãos um colar de rezas, um pedaço de tecido, folhas e um pedaço de um texto sagrado, traz aos filhos daquele solo espiritualidade, roupa, alimento e sabedoria.
Pouco a pouco esta corporificação ganhou novas formas: em diversas versões da Bharat Mata posteriores a de Tagore, a deusa e seu sári são o próprio mapa dos territórios então dominados pelos britânicos no subcontinente – os quais incluem não somente a atual Índia, mas também Nepal, Bangladesh, Paquistão e parte de Myanmar. Ganhou também novas características, variáveis a cada artista que a representou, como um tridente – similar ao que carrega o deus Shiva, grande divindade de destruição e de libertação espiritual, consorte de Durga – ou um estandarte, por vezes alaranjado – cor ligada ao Hinduísmo -, por vezes com possíveis bandeiras nacionais, a vestimenta verde, branca e alaranjada – cores escolhidas nacionais – dentre outros diversos aspectos únicos de cada ilustração.
A Mãe Índia passa a ser uma imagem patriótica tanto do ponto de vista geográfico e científico, a definir seu extenso território, quanto do antropomórfico e divino, ao conceder sua sacralidade à terra. É necessário destacar o contexto político de luta contra o colonialismo pelo qual passava a "Índia Britânica". O movimento pelo "swadesh" crescia, principalmente pelo aumento da popularidade das ações nacionalisas de Gandhi, como a do estímulo ao retorno de teares manuais para os indivíduos tecerem suas próprias roupas ao invés de comprarem da indústria inglesa. A ideia de "swaraj" foi por ele promovida como modo de por ações individuais de cada um atingir o governo independente dos britânicos, pretendendo manter a unidade territorial do Estado que viria a ser Índia - o que não ocorreu; no mesmo 15 de agosto de 1947 da Independência indiana, houve a criação do Paquistão, Estado destinado à maioria islâmica que se sentia oprimida numa Índia de maioria hindu. Nas imagens dessas décadas de luta, a pátria-mãe que inicialmente mais se assemelhou a Lakshmi assumiu formas de Durga, a deusa guerreira. Ela é assimilada a outros elementos que se consolidam nacionais, como cores e a bandeira – a qual no centro teve o tear da luta "swadeshi" de Gandhi, depois substituído pelo símbolo espiritual de um rei da Antiguidade indiana. Nesta imagem de 1937, o sári da Mãe Índia traz as cores da bandeira, e ao redor dela, unidos, uma grande quantidade de homens e mulheres – alguns com bandeiras-, uma totalidade da nação. Porém, na imagem, certas personagens se destacam dessa totalidade, como Mohandas K. Gandhi, sua esposa Kasturba Gandhi, Jawaharlal Nehru, Rabindranath Tagore e demais "heróis" da luta por independência.



Imagem 2 – A nação-mãe.

Fonte: RAMASWAMY, 2010, imagem 28.

Imagens 3 e 4 – Bharat Mata de Tagore, 1905; Deusa Lakshmi pintada por Ravi Varma em 1910.

Fontes: RAMASWAMY, 2010, imagem 6 e THE INFINITE MIND, 2012.
"Eu sou a Índia. A nação indiana é meu corpo. Kanyakumari é meu pé e o Himalaia é minha cabeça. O Ganges verte de minhas coxas. Minha perna esquerda é a Costa de Coromandal, minha direita é a Costa do Malabar. Eu sou toda esta terra. Leste e Oeste são meu braços. " Tais dizeres estão presentes em um calendário, produzido nos anos 1990 – e com semelhantes ainda produzidos em larga escala –, no qual a Bharat Mata, montada em um leão – não à toa, a mesma montaria da deusa Durga – tem na mão direita um gesto de "não tema" e na esquerda um estandarte da cor saffron associada ao Hinduísmo. Na cabeça – que atinge as áreas da Caxemira em disputa com o Paquistão – não mais um halo, e sim fogo – outro elemento sagrado aos hindus. Esta "encarnação" mais recente da Mãe Índia, mais ainda que versões nacionalistas anteriores, busca elementos religiosos para legitimar o Estado indiano, o que vem a realimentar tensões hindus e muçulmanos – tensões que a bandeira do alaranjado hindu com o verde muçulmano não conseguir apagar.
Imagem 5 – Bharat Mata contemporânea.

Fonte: RAMASWAMY, 2010, imagem 20.
A nação como uma imagem feminina não é exclusividade indiana: a célebre Marianne guia o povo francês para a liberdade na obra de Delacroix; Germania, pintada em 1848 por Philipp Veit, em trajes clássicos, porta numa mão uma espada e noutra a bandeira de sua nação; Britannia, representada na capa de um livro infantil com elementos também classicistas, da deusa grega Atena, com feições da Rainha Vitória (então Imperatriz da Índia), de olhos voltados ao Leste. Olhos intencionais que igualmente aparecem numa ilustração de 1537 da "Rainha Europa" (Europa Regina), na qual, uma soberana de nações europeias ao longo do corpo e da coroa paira sobre a Ásia e tem a visão voltada ao continente africano.
Imagens 6 e 7 – Europa Regina e Britannia.

Fontes: RAMASWAMY, 2010, p. imagens 45 e 49.
Estas duas últimas imagens são umas das raras encontradas com a "corporificação" dessas "pátrias-mães" combinadas às representações cartográficas. Britannia, Germania e Marianne são apenas alguns exemplos das muitas mulheres que personificam nações, no entanto, a Bharat Mata não se destaca apenas por ser o próprio pretendido território da nação, distingue-se por suas alusões à religião. A nação, conceituada por Benedict Anderson como uma "comunidade imaginária", para o historiador Dipesh Chakrabarty no processor de constituição do Estado-nação indiano tem suas particularidades. Para ele, na Índia – devido a sua imensa diversidade, como brevemente destacado no início deste artigo - teria sido "impossível combinar os modos heterogêneos de ver a nação no sentido da palavra "imaginação". A nação na Índia não foi apenas "imaginada", pode ter sido experimentada também ".
Imagens 8 e 9 – Germania e Marianne.

Fontes: BELJONDE, 2012 e FRANCE THIS WAY, 2012.
Experiência possível na atualidade indiana não só pelos populares calendários com imagens hindus nos quais a imagem da Bharat Mata com dizeres patrióticos é comum, mas também no espaço sagrado por excelência aos hindus: os templos. O primeiro templo dedicado à nação foi inaugurado por Mahatma Gandhi e importantes políticos da luta anticolonial em 1936 na mais venerável e antiga cidade no Hinduísmo, Varanasi. Nas palavras do "pai da nação", esse templo do nacionalismo simbolizava "um espaço cosmopolita para todas as religiões, castas e fés", que promoveria "unidade religiosa, paz e amor no país". sem distinção de casta ou cor, raça ou sexo". Dentro da construção, em vez de estátuas ou imagens da deusa-nação, há apenas o território do subcontinente incrustado em mármore. A historiadora Sumathi Ramaswamy cita em sua obra o caso de um jornalista, que ao visitar o templo, viu peregrinos de áreas rurais no templo, desolados pela inutilidade que ali teve sua água do Ganges, flores e outros objetos de rituais hindus. Entretanto, em 1983 a primeira-ministra Indira Gandhi inaugura outro local de culto à nação em outra cidade sagrada do Hinduísmo na beira do Ganges, Haridwar. Nele, além de estátuas de deuses hindus terem seu espaço, há estátuas dos célebres "lutadores pela liberdade" da Índia, de Gandhi a intelectuais do movimento anticolonial e guerreiros das primeiras batalhas contra os ingleses.
É visível a contradição principal de ter como a antropomorfização de uma nação uma figura de uma deusa hindu num país de cultura e religião plural, que na Constituição se intitula secularista. Um dilma de combinar a modernidade com a tradição, a diversidade com a igualdade, a ciência e a religiosidade. Desafios de uma Índia do presente, que talvez não mais possam contar com uma divindade para lutar contra seus males.
Imagem 10 – Templo da Mãe Índia: Varanasi

Fonte: RAMASWAMY, 2010, imagem 63.


Referências Bibliográficas
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ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Londres: Verso, 1991.
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ROSE, John Holland. The Cambridge History of the British Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
THE INFINITE MIND. Disponível em:. Acesso em 27 out. 2012.

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC





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