A \"nação refém\": reconstituições políticas da memória em \"Dawson Isla 10\" (Miguel Littín, 2009), 2016

June 4, 2017 | Autor: Alexsandro Silva | Categoria: History, Latin American Studies, Latin American and Caribbean History, Cinema, Chilean History
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A “NAÇÃO REFÉM”: RECONSTITUIÇÕES POLÍTICAS DA MEMÓRIA EM DAWSON ISLA 10 (MIGUEL LITTÍN, 2009)*

Alexsandro de Sousa e Silva Universidade de São Paulo [email protected]

Resumo: O objetivo do texto é analisar o filme Dawson Isla 10 (Miguel Littín, 2009) para conferir como é construída uma memória sobre as vítimas do regime militar no Chile (1973-1990). O filme, inspirado no livro homônimo de Sergio Bitar, exibe os sofrimentos e momentos de humanismo neste “campo de concentração”, que teve como prisioneiros políticos ex-ministros e diplomatas do governo de Salvador Allende (19701973). Acreditamos que a película traz uma visão reconciliadora da Unidade Popular, minimizando as tensões políticas entre os presos para colocá-los frente a um inimigo comum, a ditadura; a partir daí, constrói-se a ideia de uma “nação refém”, que ainda não se libertou dos problemas do passado. Buscaremos discutir algumas estratégias narrativas e estéticas voltadas à construção desse argumento audiovisual.

Palavras-chave: Chile, ditadura, memória, política, cinema.

Duas críticas de cinema, uma escrita por Vera Meiggs (s/d-a) e outra por Álvaro García (s/d), discutem o filme Dawson Ilha 10 – A verdade sobre a ilha de Pinochet (Dawson Isla 10, Miguel Littín, 2009).1 A primeira, elogiosa à película, faz referência às cenas em que Salvador Allende é representado, afirmando que Poco añaden los episodios referidos al bombardeo de La Moneda y la voz del narrador, pero son inserciones esmeradas y prudentes, ajenas a todo énfasis y a todo intento por conducir a un terreno preconcebido las conclusiones del relato (VERA-MEIGGS, s/d-a).

A crítica de Álvaro García, menos elogiosa, levanta os vários “problemas” do filme de Miguel Littín. Comentando as mesmas cenas, diz:

* Texto publicado em AGUILERA, Yanet; CAMPOS, Marina da Costa (orgs.). Imagem, memória e resistência. São Paulo: Discurso Editorial, 2016, p. 239-252. Na publicação, não foi possível reproduzir as Figuras 1 e 2 que nesta versão estão disponíveis, p. 09-10. 1 De acordo com os letreiros que aparecem no filme, o título completo é: Dawson Isla 10 – Diario de un prisionero de guerra.

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La imagen de un Allende solitario y final evidencia la metáfora propuesta por Littin. (...) El presidente tuvo que sacrificarse (de ahí su sentido cristico) para que el bando derrotado tuviera que conformarse y reconciliarse con el mundo militar. (...) Dawson, Isla 10 no es la película sin perdón ni olvido que pudo haber sido, sino que representa un punto más del cine concertacionista de talante Boeninger-Aylwin que busca “en la medida de lo posible” dar cuenta de la reconciliación sin entrar en complejidades respecto al pasado (GARCÍA, s/d.).

Seguindo diferentes caminhos, ambos os excertos buscam refletir o peso das cenas dentro da narrativa fílmica elaborada por Miguel Littín. Ainda que valorizasse o trabalho do cineasta, o primeiro excerto diz as menções ao golpe de Estado não têm relação orgânica com a narrativa, como se fossem descartáveis. A segunda crítica dá valor às cenas, argumentando nelas está a “mensagem” da obra: Allende morre para que as esquerdas chilenas se reconciliassem com os militares, uma “síntese” do que foi o governo da Concertación (1990-2010) para o autor. De acordo com Álvaro García, Dawson Isla 10 traz uma versão reconciliadora entre civis e militares, ratificando a linha concertacionista. Neste trabalho, propomos uma leitura distinta das críticas acima. Acreditamos que o filme constrói uma narrativa em que frações militares e as esquerdas estão em constante conflito, cujo ápice está nas cenas sobre o assassinato de Salvador Allende, versão contestada pela história oficial sustentada por setores do Partido Socialista (PS) e da Democracia Cristiana (DC), partidos de base da Concertación (atualmente, 2014, Nueva Maioría). A nosso ver, a proposta reconciliadora de Dawson Isla 10 não está na relação entre presos e soldados, mas entre os detidos, ex-ministros da Unidade Popular (UP) que seguiam linhas políticas distintas à época da prisão da Ilha Dawson. A narrativa busca evidenciar, portanto, que o Chile estaria refém de seu passado devido a dois problemas não resolvidos: as divisões políticas das esquerdas e a apuração da morte de Salvador Allende, assuntos controversos na história chilena. Assim sendo, analisaremos o filme Dawson Isla 10 para conferir a construção de uma memória sobre as vítimas da ditadura militar chilena (1973-1990). O longa-metragem tem o roteiro e a direção assinados por Miguel Littín, 2 e apresenta o período em que ex2

Destacado cineasta chileno, Miguel Littín manteve um engajamento artístico e político desde os anos 1960. Entre os principais trabalhos fílmicos e intelectuais, destacamos o filme El chacal de Nahueltoro (1969), a co-redação do Manifiesto de los cineastas de la Unidad Popular (1970), o engajamento no exílio (entre a América Latina e a Europa) com filmes selecionado em diversos festivais (como Actas de Marusia, 1976, e Alsino y el condor, 1982, que concorreram ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro por México e Nicarágua, respectivamente), as filmagens clandestinas no Chile que resultaram na série

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ministros e diplomatas do período da UP foram confinados em acampamentos construídos na Ilha Dawson, localizada no extremo sul do país e conhecida por ser extremamente gelada.3 Este “campo de concentração”, como era conhecida à época numa analogia ao nazismo, funcionou de setembro de 1973 até outubro de 1974. Ao longo da película, há alusões à tese de assassinato de Salvador Allende no Palacio de La Moneda, em contraposição à de suicídio, ratificada em uma autópsia realizada no corpo do mandatário em 2010. O filme tem como base o livro Isla 10, de Sergio Bitar (2009), um dos personagens da trama.4 A análise tem como objetivo discutir três aspectos do filme. O primeiro é conferir como a obra retrata a relação entre os personagens militares e os presos, tendo como referências o sargento Figueroa e o soldado Soto. O segundo aspecto é discutir a representação dos presos políticos, destacando a relevância que a obra oferece a alguns deles. Finalmente, veremos como os conflitos políticos aparecem na narrativa e de que forma o assassinato de Salvador Allende se entrelaça com a construção fílmica de uma “nação refém” de seu passado político.

A relação entre civis e militares: o soldado Soto e o sargento Figueroa

Desde as primeiras imagens de Dawson Isla 10, os militares apresentam-se autoritários. São constantes as agressões físicas e psicológicas contra os presos, concentradas em sua maioria na primeira metade do filme, antes de irem ao acampamento militar de Río Chico. A hierarquia é zelada pelos altos comandos, porém subvertida por dois

televisiva Acta general de Chile (1986), além da publicação de peças teatrais, livros e artigos sobre cinema e política. 3 As filmagens ocorreram em 2008 na mesma região das prisões. Dois acampamentos militares foram reconstruídos para o filme. O longa estreou no Chile em 10 de setembro de 2009, foi selecionado para o Festival de Roma no mesmo ano e representou o país para concorrer a uma vaga no prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 2010, não chegando ir ao evento. Esta seleção gerou um debate, pois a película de Miguel Littín disputou a vaga com o filme de Sebastián Lelio La nana (2009), tido como um reacionário por não questionar o tema das domésticas no Chile, enquanto que o Governo de Michelle Bachelet tentou abafar a representação da tese de assassinato de Salvador Allende em Dawson Isla 10 (VERA-MEIGGS, s/d.-b). Este filme recebeu o prêmio de Melhor Filme Hispanoamericano no Festival de Goya de 2010. 4 Sergio Bitar foi Ministro de Minería por alguns meses durante o governo de Salvador Allende. Militante da Izquierda Cristiana (IC), fração da DC que apoiou o governo da UP, Bitar foi convocado pelos militares chilenos a se entregar no início da ditadura. Junto a outros ex-ministros de Allende e alguns diplomatas, foi detido e transferido à prisão na Ilha Dawson entre 1973 e 1974, sendo transferido para outras prisões até ser solto. Exilado em Londres, militou intelectualmente contra o regime, publicando textos e livros. De volta ao Chile, Sergio Bitar lança a autobiografia Isla 10 pela editora Pehuén em 1987, sendo constantemente reeditado. Em 2009, o livro foi relançado tendo na capa o mesmo título do filme, Dawson Isla 10, como estratégia de marketing conjunta com o lançamento da película.

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personagens: o soldado raso Soto e o sargento Figueroa. Antes de falar deles, verificaremos a representação geral dos militares chilenos no filme. Capitão Salazar é o primeiro militar em cena e conversa com jornalistas e representantes da Cruz Vermelha diante dos presos, como se estes fossem troféus, apresentando uma versão dos fatos ratificada em partes por José Tohá, intimidado. A cena é representada pela narração através dos constantes deslocamentos de pontos de vista, alternando as imagens em preto e branco com o colorido, além de exibir outras câmeras que também filmam a cena, mostrando certo distanciamento com o diálogo apesar do claro interesse nos presos. Em seguida, o personagem Orlando Letelier, acompanhado por Sergio Bitar, intervém na conversa e desmente o militar no que se refere a direitos humanos. O conflito de versões da História é colocado em primeiro plano, evidenciando um confronto que faz parte da época de realização do filme e percorre a narrativa: a versão dos militares (os presos foram bem tratados, a repressão foi um “mal necessário”) e das vítimas do regime (houve violações dos direitos humanos, as consequências ainda são devastadoras). Este conflito será a chave de leitura do filme que entrelaçará a situação dos presos com as acusações contra os militares na morte de Allende. O tenente Labarca é o responsável pela apresentação aos presos (e ao espectador) da vida no acampamento e faz o “batismo” dos detidos. É ele quem dá o novo nome a Sergio Bitar, “Isla 10”, em referência ao nome da barraca (entre três: Sierra, Isla e Faro) e o número que o identifica neste espaço. O discurso é enfático em relação ao destino dos personagens: “A partir de este momento, ¡ustedes ya no tienen nombre! ¡No existen! [close no personagem] ¡No son nada! No tienen pasado, [close em um dos presos] ¡ni futuro!”. O discurso sela o destino dos personagens na perspectiva dos militares, porém será invertida pela narração, que privilegiará o ponto de vista dos presos. O ambiente inóspito, cercado de gelo, expressa a própria relação dura entre os lados antagônicos. Os primeiros planos aproximam os personagens do espectador e destacam a contraposição entre vítimas e algozes. Labarca comporta-se como um vigilante que, além de acossar os detidos, pune as aproximações do soldado Soto com os presos. A resposta do subordinado foi que os detidos também são chilenos, por isso não poderiam ser maltratados. O vínculo afetivo é punido na primeira oportunidade, quando Soto é obrigado a fazer cinquenta flexões, enquanto, em segundo plano, os ex-ministros da UP são conduzidos por outros militares. A relação entre o castigo ao soldado e a repressão aos detidos num mesmo

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plano de conjunto é colocada numa mesma chave interpretativa, sugerindo que os militares foram vítimas do próprio regime que eram obrigados a defender. Em outro momento, sabemos pela voz off do personagem Sergio Bitar que o pai de Soto é socialista e está preso. O soldado tenta pedir ajuda, porém Bitar se vê sem condições de atendê-lo. A conversa é acompanhada à distância pelo tenente Labarca, que tenta eliminar o soldado (“por traición”, afirma), falhando em seu intento. O conflito mostra que a relação entre os próprios militares é permeada por nuances, evidenciando um esforço por parte do filme em escapar de uma visão maniqueísta dos militares. O comandante de base da Armada chilena, Jorge Fellay, também se envolve numa contenda com outros militares sobre o destino dos presos. O responsável militar pela Ilha dá as ordens gerais para diminuir ou aumentar a repressão sobre os presos, porém não aceita executar detentos (sugerido pelo subordinado Barriga), preocupado com a opinião pública internacional. Quando chega o Coronel Valenzuela, em “missão especial” pelo exército em Dawson, ou seja, selecionar presos para eliminá-los, o oficial esbarra na autoridade de Fellay. O conflito expõe as divergências dentro das Fuerzas Armadas do país, no caso, a Armada (Marinha) de um lado e o Ejército, de onde vem o General Augusto Pinochet, de outro. O lado autoritário do comandante se faz presente nas intimações ou conversas com os detentos. Isoladamente e em diversos momentos, os presos Sergio Bitar, Osvaldo Puccio (filho), Orlando Letelier, José Tohá, Arturo Jirón e Edgardo Enríquez passam pelo escritório do militar para interrogatórios. No entanto, Jorge Fellay recusa-se aceitar as imagens de violação dos direitos humanos exibidas na televisão. Trata-se da cena em que, apesar de estarem divididos, civis e militares assistem atônitos ao bombardeio do La Moneda e cadáveres nas ruas. Mostrados como vítimas de uma mesma situação, ambos os lados demonstram uma mesma reação de impotência, até que o militar manda desligar o aparelho. Não há exaltação do golpe e da repressão por parte dos militares, apesar deles mesmos promoverem os castigos contra os presos no filme. A oposição entre civis e militares ganha novas matizes a partir da relação dos presos com o sargento Figueroa. Interpretado pelo experiente ator Luis Dubó, o personagem aparece em cena como um autoritário militar com origem humilde, situação confirmada pela forma popular, “à moda chilena”, de xingar e falar com os presos. É um dos primeiros militares identificados quando os presos desembarcam em Dawson no começo o filme, agredindo e insultando os detidos. Ao longo da trama, Figueroa

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percebe a frequente rudeza sofrida pelos detentos e começa a abrir espaço para uma nova relação. Há dois pontos de inflexão que transformam o autoritário sargento em um personagem humanizado. O primeiro ocorre na cena em que coordena o trabalho de um grupo de prisioneiros, quando manda e desmanda nos mesmos. Em certo instante, agarra o braço de José Tohá e diz para fingir que está trabalhando, sabendo da saúde do ex-ministro de Defensa. Em seguida, manda os presos cantarem em marcha o hino Canción de América, omitindo o nome de Cuba, criando um ambiente menos opressor e com margem à comicidade. O segundo ponto de inflexão vem com o choro do sargento ao ver as cartas dos presos sendo queimadas à ordem do tenente. “Malacueva no más”, diz o personagem na cena. Ao lado de certo humor, característico do ator (o que se torna um problema nas cenas de agressão que sargento promove), a “transformação” de Figueroa é fruto da proximidade com os presos, tal como fez Soto. A partir de então, o sargento se faz amigo do grupo reprimido. Oferece uma laranja a José Tohá em pleno frio, leva uma parte dos presos a pegarem o máximo possível de frutas secas enquanto fingem ser torturados, e, ponto de coroação da “conversão”, tira o capacete (em um lento gesto, colocado em primeiro plano) e come pão com geléia com o preso Miguel Lawner, em frente à igreja recém reconstruída. Ao contrário do que afirmou Álvaro García, de que a cena evidencia uma conciliação entre civis e militares, este momento seria, a nosso ver, um reconhecimento de um militar da “força” e da “dignidade” dos detidos, uma estratégia do filme para valorizar as vítimas da ditadura. Veremos como isso ocorre ao longo do filme.

Estratégias de valorização: os lugares dos protagonistas

Ao longo do filme, os presos políticos são colocados como vítimas que tentam sobreviver às agressões perpetuadas pelos militares. Na cena de abertura, datada em outubro de 1974,5 Orlando Letelier e Sergio Bitar desmentem o sargento Salazar sobre a situação de saúde dos presos. A princípio apáticos e expostos como troféus dos militares, a vontade de denunciar a real situação reverte a imagem dos detidos, e fecha a 5

Há aqui uma inverossimilhança em relação à história de Dawson. Os ex-ministros de Salvador Allende foram transferidos para outras prisões em meados de 1974. O filme data a cena em outubro, mês de fechamento da prisão, e, além disso, inclui José Tohá como um dos primeiros a sair da Ilha. Acreditamos que tal datação busque afirmar que parte da vida dos detidos continua na Ilha mesmo após o fechamento do campo de prisioneiros, ratificando a necessidade de “libertar” a memória “presa” no local.

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cena com a voz de Sergio Bitar dizendo: “nos están matando”. Entendido como uma mensagem aos jornalistas e aos espectadores, a frase expõe a situação frágil das vítimas na memória nacional, no contexto da realização do filme. Após a cena de abertura, os detidos, encapuzados, são empurrados à Ilha Dawson, e a câmera adere ao olhar do grupo com um capuz na retina. O movimento da câmera reproduz a confusão de alguém que está sendo conduzido a um lugar desconhecido e numa situação constrangedora. A sonorização enfatiza a respiração ofegante e o coro desafinado de vozes e sons, procurando transmitir ao espectador a dramaticidade do momento, estratégia conhecida como “docudrama”. Assim que o grupo é fichado pelos militares ao som datilográfico e por uma voz em off que nomeia cada preso, o grupo mostra o rosto e é acossado pela câmera, em primeiro plano. O plano evidencia a condição de reféns dos personagens, intimados a prestar contas pelos seus “erros”, cometidos durante o governo da UP, diante dos militares e do espectador. O jogo entre a vitimização dos personagens e a valorização dos mesmos percorre a narrativa. Frequentemente, a câmera expõe-nos em closes e travellings, destacando suas fisionomias frágeis. Como meio de resistência, a solidariedade faz-se presente em diversos momentos. Na chegada de novos presos a Dawson, os demais os socorrem. Um raro momento de felicidade conjunta está na celebração do Natal de 1973, no palco improvisado e um violão ganho das Nações Unidas. O grupo mostra-se unido para enfrentar as dificuldades, porém há três diferentes níveis de destaque dos personagens. O primeiro nível é constituído por personagens que aparecem ocasionalmente, mas que tiveram sua presença destacada em algum momento. Trata-se dos jovens Aristóteles España, Julio Stuardo e Maximiliano Marholz. O primeiro é um intelectual que também fez seus registros sobre a experiência na Ilha Dawson, quando partiu ao exílio, tal como Sergio Bitar. No filme, o España aparece enfermo devido aos castigos sofridos e busca ser um poeta. Julio e Max tentam construir uma balsa para fugir, mas são ridicularizados pelos companheiros. São figuras de pouco relevo na narrativa, e ajudam a constituir o mosaico de situações particulares que Dawson Isla 10 tenta dar conta. O segundo grupo é formado por intelectuais e técnicos reconhecidos como autoridades dentro dos respectivos campos de especialização, ou personagens que demonstram algum nível de resistência ao regime. É o caso de Osvaldo Puccio pai e filho: o segundo cuida do fragilizado ex-secretário de Salvador Allende. Ambos representam a união familiar frequentemente rompida com as prisões arbitrárias e desaparecimentos. Da mesma forma, outra presença simbólica é de Edgardo Enríquez, ex-ministro de

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Educação na UP. Foi professor do comandante Fellay, e veste-se impecavelmente mesmo diante da precariedade nos acampamentos militares, procurando manter sua dignidade. Do mesmo grupo faz parte Fernando Flores, ex-ministro de Economia. É representado como um importante técnico por consertar rádios e televisão nas condições mais adversas, e serve como ponte entre os presos e o mundo exterior. É ele quem anuncia as mortes de Pablo Neruda (referenciado no filme) e José Tohá, este, assassinado pelos militares em Santiago. Clodomiro Almeyda, figura importante do PS e ex-ministro de Relaciones Exteriores, é a autoridade intelectual dos presos. Fechando o grupo, o médico Arturo Jirón, autoridade médica reconhecida até mesmo pelos militares. Sofrendo de úlcera, o personagem aparece gradativamente doente, sacrificando-se para manter a unidade do grupo. Vale ressaltar que o filme destaca seu lado profissional, porém o Arturo Jirón político é abafado. O médico estava ao lado de Salvador Allende nos instantes finais do golpe de Estado em 11 de setembro de 1973, e foi o primeiro a encontrar o cadáver do Presidente, confirmando a tese do suicídio. Voltaremos ao personagem mais adiante. O terceiro grupo é constituído de personagens que têm presença valorizada na narrativa: Orlando Letelier, José Tohá, Sergio Bitar e Miguel Lawner que, a nosso ver, é o grande destaque na narrativa fílmica. Orlando Letelier foi embaixador do Chile nos Estados Unidos da América e foi assassinado em 1976 neste país a mando da Diretoria de Inteligencia Nacional (DINA), o braço repressor da ditadura chilena. Sua presença no filme é revestida de importância através de algumas aparições, como a afirmação da nacionalidade frente à acusação de ser “agente del marxismo internacional”: “Soy chileno, nací chileno y moriré chileno”. Sempre com a cabeça erguida, o personagem contradiz os militares em algumas passagens. Letelier acusa o regime de receber apoio de Washington para realizar o golpe de Estado, o que irrita o comandante Fellay. Entre outras aparições, o personagem anima uma noite de Natal com os outros detidos. José Tohá, ex-ministro de Defensa da Unidade Popular, é o primeiro dos detidos a reconhecer Dawson, pois esteve na ilha em caráter oficial antes de ser preso pelos militares. Abalado com a morte de Salvador Allende, o personagem aparece sempre fragilizado. Negou-se a assinar um documento reconhecendo o suicídio do Presidente, tese reafirmada em distintos momentos ao longo do filme através de flashbacks. É transferido a Santiago, e sua despedida é uma das cenas mais longas do filme. Quando anunciada sua morte aos companheiros de prisão, imagens de arquivo de Salvador

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Allende ao lado de Tohá, além de outras do ex-ministro em Dawson em 1973, aparecem na tela como um momento de homenagem ao personagem. Apesar de ser o personagem que representa o autor do livro que deu origem ao filme, e das constantes aparições e comentários em off, Sergio Bitar, ex-ministro de Minería da UP, não aparece em cena como o protagonista do filme. Sua presença na película o destaca enquanto comentador dos eventos apresentados, levantando sínteses políticas que discutiremos adiante. Sua tentativa de fuga em meio ao matagal pontua o filme em diferentes passagens, como uma forma de expor sua angústia com a situação na Ilha. Por sua vez, Miguel Lawner, arquiteto e membro do Partido Comunista chileno (PCCh), tem presença destacada no filme. Enquanto os outros presos buscam estratégias para fugir ou lutam por cigarros e remédios, a obsessão do personagem é conseguir lápis para realizar seus desenhos. Várias imagens extraídas de seu livro sobre as prisões pelas quais passou no Chile (LAWNER, 2003) foram mostradas em primeiro plano. Uma delas chama a atenção: trata-se do retrato de Luis Corvalán, Secretário Geral do PCCh, um dos presos políticos mais “valiosos” em Dawson (ARRATE, ROJAS, 2003, p. 192193), no entanto ausente no filme de Miguel Littín. Discutiremos esta presencia rarefeita adiante.

Figura 1: Imagem do filme em que aparece o retrato de Luis Corvalán realizada por Miguel Lawner. Título: “Luis Corvalán graba”, em referência às pedras nas quais os presos deixaram marcas como recordação do período.

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Figura 2: A imagem original.

O projeto maior de Lawner é a reconstrução da igreja católica em Dawson. Para isso, mobilizou seus companheiros de prisão em um primeiro momento, mas teve que concluir a obra com militares chilenos. Insatisfeito com os rumos da empreitada, o padre consola-o com palavras que comentam a cena: “Es su obra, debe concluirla (...) Será la huella que dejará en Dawson. Cuando todo esto haya terminado, lo único que quedará en pie será su obra”. Ao final, comparte o presente ganho do sargento Figueroa, o pão com a geleia, sentados na entrada da igreja. O elogio a Lawner está na chave da resistência ao regime militar através da arte. Mostrar a igreja restaurada e os desenhos é a resposta do filme à afirmação do tenente Labarca, quando gritou aos presos que eles não teriam futuro. Além da luta de Lawner em manter sua obra artística, existe em Dawson Isla 10 um discurso que reitera a necessidade de manter-se vivo após todos os problemas. Quando Sergio Bitar é salvo após afundar em uma pequena lagoa, seu salvador, um suposto informante dos militares, diz: “¿Qué estáis haciendo, huevón, querí matar? ¿Ah? ¿No dai cuenta de que tenemos que salir vivos de acá? Ya me tienen cagado, pero todos ustedes tienen que salir vivos de acá”. Arturo Jirón a Osvaldo Puccio (pai): “Tenemos

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que salir vivos de aquí, Osvaldo, tenemos que salir vivos de aquí”. Este último diz ao filho, em tom de despedida: “Te tiene que salir de la isla. Yo me quedaré pero... pero tú te vas”. Estes apelos fazem parte da autopercepção por parte dos detidos da necessidade de manterem-se vivos para que os crimes não caiam no esquecimento. O próprio filme entra nesta “batalha das memórias”, ao ressaltar o protagonismo dos ex-ministros de Salvador Allende. No entanto, há algumas limitações neste elogio aos sobreviventes.

Uma reconstrução audiovisual da memória política chilena

Apesar do entendimento entre civis e militares (Miguel Lawner e sargento Figueroa), não há uma completa reconciliação entre ambas as partes. Após a referida cena dos personagens, os presos são obrigados a andar 30 km pelos militares, fragilizando a saúde do idoso Osvaldo Puccio. O filme também enfatiza a responsabilidade dos militares pela morte de Salvador Allende. No entanto, ao invés de encontrar a tônica conciliadora entre os lados inimigos, acreditamos que esta reside entre as próprias vítimas da ditadura, pois as diferenças políticas entre as esquerdas são minimizadas pela narrativa para privilegiar o discurso sobre a unidade. Em alguns momentos, Sergio Bitar aparece em voz off trazendo reflexões que fazem um balanço da experiência da Unidade Popular chilena: “Queríamos cambiar la Historia, pero el destino nos deparó esta extraña sensación: de incertidumbre y derrota. ¿Qué fue que hicimos mal? ¿En qué nos equivocamos?”. Em outro momento, pergunta: “¿Cuál fue nuestro error? ¿Por qué estamos aquí? ¿Qué fue que produjo tanto odio?”. Algumas respostas às questões apresentadas pelo personagem são esboçadas pela narrativa. Quando Stuardo e Max explicam o plano de fuga a um companheiro, inicia-se uma discussão generalizada com troca de acusações entre “extremistas” (em referência aos defensores da luta armada no Chile, principalmente o Movimiento de Izquierda Revolucionário - MIR) e “reformistas” (menção ao PCCh e allendistas, defensores da legalidade como meio de alcançar o socialismo). A briga chega a um ponto em que não é possível discernir os lados da contenda, e Sergio Bitar parece alheio ao debate. Sua fala expressa a visão do filme sobre a cena: “La discusión es interminable, sin sentido. La misma rencilla política que nos llevaron a la división y al fracaso”. No argumento diz-se que a “discussão é interminável”. No entanto, esta é a única cena em que tal enfrentamento aparece, gerando um desencontro entre a frase e a narrativa.

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Além disso, permanece ambígua esta briga em diegese, pois Bitar levanta em seu leito como se despertasse de um pesadelo. O sentimento de derrota referenciado no excerto acima gera outro incidente, sem enfrentamento: José Tohá olha de forma desconfiada para quem assobia a canção Venceremos, que animou a campanha presidencial de Allende e permaneceu na memória cultural e política do período. A cena é sobreposta a uma trilha musical de violino, abafando o hino em oposição a uma melodia que expressa menos entusiasmo.6 O fracasso imobiliza os personagens, e qualquer intento de debate é exposto como um “mal desnecessário” diante da derrota. Como contraponto à ausência de discussão política entre os presos, a narração privilegia a memória traumática sobre o 11 de setembro de 1973 como fator de coesão entre os eles. São diversas as referências, encenadas ou documentárias, que mostram Salvador Allende em seus últimos momentos, reforçando a iconografia clássica do Presidente com o capacete e o fuzil. A tese do assassinato é sugerida em diversos momentos. José Tohá negou a tese do suicídio. As representações no filme colocam os militares como responsáveis pelo crime. A própria morte de Allende se torna “refém” de uma dúvida que envolveu diferentes debates. O filme procura expor ao Chile que o país está refém de seu próprio passado, privado da versão dos que passaram pelas prisões clandestinas no país, de quem foram torturados. No entanto, a “solução” do filme para “libertar” esse passado foi construir um em que muitas vozes foram abafadas. Uma delas é a de Arturo Jirón, testemunha da morte de Allende. No documentário Salvador Allende (Patrício Guzmán, 2005), Jirón dá o depoimento em que detalha como encontrou o cadáver do Presidente.7 No mesmo documentário, outro preso de Dawson também dá depoimentos, Sergio Vuskovic, exalcalde de Valparaíso. Este não aparece como um personagem na película de Littín. É igualmente notável a ausência de Luis Corvalán. Capturado pelos militares em 27 de setembro de 1973, foi um dos presos de Ilha Dawson que mais chamaram a atenção da 6

Mais adiante, Osvaldo Puccio filho canta o refrão quando inicia a reconstrução da igreja, como expressão de alegria por ajudar Lawner em sua obra maior na Ilha, porém os presos são substituídos pelos militares posteriormente. 7 Neste ponto, o Miguel Littín fez um comentário sobre o médico, desqualificando seu relato: “como es posible que alguien que fue a buscar una mascarilla para dársela de recuerdo a sus hijos y que estuvo en tratamiento psicológico sea considerado como válido en la recopilación de pruebas”. Cf.: LITTÍN, Miguel. Destacado cineasta Miguel Littín insiste que Salvador Allende fue asesinado en septiembre de 1973 y sentencia: “Cuando se sepa la verdad, exigiré que se modifiquen los libros de historia”. Cambio 21, Santiago de Chile, 28.01.2011. Disponível em: http://home.cambio21.cl/cambio21/site/artic/20110128/pags/20110128173021.html. Acesso em: 29 junho 2014.

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opinião pública internacional (CORVALÁN, 1997, p. 185-192). A presença rarefeita do PCCh no filme, resumida à citação da Rádio Moscou e ao desenho de Miguel Lawner reproduzida acima, evidencia a dificuldade no país em realizar o debate público sobre as memórias dos sobreviventes das prisões na Ilha Dawson. Para finalizar, vale dizer que Dawson Isla 10 consegue apontar o dissenso entre os militares (evitando o maniqueísmo), mas não avança em relação às esquerdas (reforçando sua incompreensão). Os presos representados no filme são uma alegoria da nação, e a Ilha, a síntese de um lugar da memória marcada pelo traumatismo e sentimento de derrota. A proposta do filme é olhar para esse passado para tentar “libertar” certa memória sobre a ditadura militar chilena: a dos heróis derrotados, cujas contradições foram minimizadas pela narração para tentar criar uma coesão necessária, na lógica do filme, para superar o trauma.

Bibliografia

ARRATE, Jorge; ROJAS, Eduardo. Memoria de la izquierda chilena. Tomo II (19702000). Santiago de Chile: Ediciones B, 2003. BITAR, Sergio. Isla 10. 12ª edición. Santiago de Chile: Pehuén, 2009. CORVALÁN, Luis. De lo vivido y lo peleado. Memorias. Santiago de Chile: LOM Ediciones, 1997. GARCÍA, Álvaro. “Épicas de la reconciliacón”. La fuga, Santiago de Chile, s/d. Disponível em: http://www.lafuga.cl/dawson-isla-10/359. Acesso em: 29 junho 2014. LAWNER, Miguel. La vida a pesar de todo. Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2003. VERA-MEIGGS. “‘Dawson, Isla 10’, de Miguel Littin”. CineChile, Enciplopedia del Cine

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