A noite das Taras - O ciclo da pornochanchada no Brasil

May 24, 2017 | Autor: Gustavo Alonso | Categoria: Censura, Ditadura Militar, Pornochanchada, Cinema Nacional
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A noite das Taras O ciclo da pornochanchada no Brasil Credito do autor: Gustavo Alonso Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense Autor do livro “Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga“. Rio de Janeiro: Record, 2011, fruto da dissertação de mestrado. Autor da tese: “Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira” (2011). História, UFF. Em 1981, o prefeito de Votorantim, pequena cidade industrial de 50 mil habitantes a 100 quilômetros de São Paulo decidiu tirar do ar o canal 7, TV Record de São Paulo, às sextas-feiras a partir das 23 horas. Pressionado pelos seus cidadãos, o prefeito agiu por conta própria e, tendo o controle do transmissor local, fez a vontade de seus habitantes. Os telespectadores estavam indignados com o programa Sala Especial, especializado em exibir “explícitas e freqüentemente nacionais”.

grosseiras

pornochanchadas

A gota d´água teria sido o filme A

Superfêmea, filme de 1973, estrelado por Vera Fischer. Parte da sociedade se sentia ofendida com a exibição desses filmes.

A pornochanchada e a repressão moralista: O cineasta David Cardoso, um dos principais galãs do ciclo da pornochanchada, lembra que a censura aos filmes não eram só feitas pelos órgãos institucionais, de cima para baixo, mas também baixo para cima, ou seja, parte da sociedade também repudiava essa produção. Em sua autobiografia, Cardoso recorda que em alguns estados houve apreensão de cartazes dos seus filmes por autoridades locais, apesar aprovação da Censura. Em outra ocasião, houve ameaça anônima de bomba no Cine Plaza, em Curitiba, devido à exibição de seu filme Noite das Taras, de 1980, quando a Censura começava a diminuir a repressão às artes.

Nos anos 70 artistas que apareciam em novelas tevisivas também eram vistos fazendo papéis eróticos no cinema. Dentre os atores que se destacaram nos dois segmentos houve Reginaldo Farias, Leila Diniz, Renata Sorrah, Flávio Migliaccio, Antônio Fagundes, Cecil Thiré, Vera Fischer, Xuxa, Consuelo Leandro, Jorge Dória, Zezé Macedo, Lady Francisco, José Lewgoy, Sandra Bréa, Stephan Nercessian, Ary Fontoura, Marco Nanini, Alexandre Frota, Andréa Beltrão, Carla Camurati, Paulo César Grande, Marcos Frota, Pedro Cardoso, John Herbert e vários outros. A pornochanchada e o mundo infantil: Xuxa não foi a única artista do ciclo da pornochanchada que mais tarde trabalhou com crianças. O escritor Marcos Rey, roteirista de filmes como As secretárias... que fazem de tudo (Alberto Pieralisi, 1975) e Cada um dá o que tem (Ivan Cardoso e John Herbert, 1975), tornou-se autor de livros infantis nos anos 80.

Alguns, no entanto, procuram se desvincular dessa memória inconveniente que se tornou a pornochanchada.

Depois

de

famosa

como

apresentadora de programas infantis, Xuxa teve problemas com o filme Amor estranho amor (Walter Hugo Khouri, 1982). A então modelo interpretava uma

prostituta que tem relações sexuais com uma criança de cerca de 10 anos. Também Zezé Motta procurou se esquecer dos filmes que fez: “Na época eu estava fazendo teatro, ganhando pouco, aí me ofereceram três vezes mais do que eu ganhava, então eu topei. (...) Quando me perguntam que filmes eu fiz, nem me lembro de citá-los”. A atriz Vera Fischer, que iniciou sua carreira fazendo Sinal vermelho - As fêmeas (1972), também mudou de opinião e renegou seu passado quando disse em 1977: “o cinema explorou minha nudez”. Cinco anos antes, em 1972, ela dizia: “Por que eu não posso aparecer [nua]? Só porque estou no Brasil e aqui existem muitos problemas de falsa moral?”. Mais importante do que a contradição das atrizes, deve-se pensar por que alguns atores renegam esse legado da pornochanchada. Penso que para além da questão moral, há outra questão importante. O moralismo e a crítica ao “vulgar” pareciam unir esquerdas e direitas contra o cinema popular. Hoje, a pornochanchada raramente é lembrada quando se fala do período ditadura dos anos 70 no Brasil, preferindo-se as imagens de guerrilheiros heroicos, da sociedade vitimizada e do governo algoz.

Quase sempre prefere-se a imagem da ditadura como um

período “negro”, época do “terror”, das torturas e da repressão. De fato, os anos 70 foram tudo isso. Mas ao se analisar o ciclo da pornochanchada outro Brasil parece abrir-se diante dos olhos. Um Brasil que vivia menos a polarização política hoje demarcada em livros e filmes, uma sociedade pouco marcada pelas batalhas de 68. Quase sempre as análises sobre a pornochanchada demarcam a pobreza estética e o caráter “comercial” dessas produções.

Este tipo de argumento reproduz uma memória que

prioriza as inovações da década anterior, quando surgiram vanguardas estéticas e políticas na produção cinematográfica brasileira, sobretudo o Cinema Novo e o cinema marginal, muito Cinema Novo: Concebendo a sétima arte como veículo de reflexão sobre a realidade brasileira, o chamado Cinema Novo desenvolveu-se a partir de fins dos anos 50 numa convergência entre a defesa do cinema de autor, dos filmes de baixo orçamento, a renovação da linguagem, a busca do povo brasileiro e de traços do processo histórico nacional, em sintonia com experiências e debates trazidos por realizadores em diferentes regiões do mundo. Entre os artistas ligados a esta estética estiveram Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros

mais contemplados pelas discussões sobre o período. A

pornochanchada

atingiu

um

enorme

público, apesar das restrições da Censura. Foi através dessa

produção

que

se

criou

uma

indústria

cinematográfica auto-suficiente no país, garantindo trabalho a cineastas, diretores, roteiristas, atores, iluminadores,

câmeras

etc.

A

indústria

da

pornochanchada funcionava em dois polos distintos. Em São Paulo, a base ficava na chamada Boca do Lixo, quarteirão no centro da cidade (entre as ruas

São João e Triunfo), onde funcionavam os escritórios das produtoras, distribuidoras e

exibidores. O equivalente no Rio de Janeiro era a Cinelândia, também no Centro. Algumas produções se tornaram marcos na época, como: Emmanuelle tropical (J. Marreco, 1977), A noite das taras (David Cardoso e John Doo, 1980), Me deixa de quatro (Fauzi Mansur, 1981) e Mulher objeto (Silvio de Abreu, 1981), Com as calças na mão (Carlo Mossy, 1975), Anjo loiro (Alfredo Stehnheim, 1973), Vítimas do prazer (Cláudio Cunha, 1977) A Superfêmea (Anibal Massaini Neto, 1973), O Bem dotado, o homem de Itu (José Miziara, 1979), entre outros. São ícones de uma época em que o cinema nacional arrebanhava multidões para as salas, abocanhando até 45% do mercado. Junto com os filmes dos Trapalhões e os de Mazaroppi, as pornochanchadas marcaram a década de 1970. Diferentemente dos Trapalhões, seus produtores não estavam vinculados a uma grande rede de televisão, e sua produtividade era muito maior do que a dos quatro palhaços globais. David Cardoso, ator e produtor de diversos filmes, e conhecido como o “rei da pornochanchada” tem saudades do período: “na época do regime militar chegou-se a fazer mais de 100 filmes por ano. (...) A produção artesanal, do povão, hoje, acabou; o filme com o intuito de divertir desapareceu.

Poucas pessoas foram tão

incomodados pela censura. Mas, paradoxalmente, tenho saudades do regime militar, com censura e tudo. Não desejo a volta de um regime militar nem tenho saudades de nenhum tipo de arbítrio, mas com relação ao cinema tenho minhas saudades”. Nos idos dos anos 1970 e 80, as mulheres da pornochanchada eram mitos. Com suas curvas convidativas e seus olhares lânguidos Helena Ramos, Vera Fischer, Matilde Mastrangi, Aldine Müller, Rose Di Primo e outras estrelas povoaram o imaginário masculino em filmes de alto teor erótico e humor desbragado. A temática sexual era de fato um tema caloroso nos anos 1970. Depois da invenção da Garganta Profunda: havia nos primeiros filmes pornôs a busca do auto-conhecimento típica dos anos 70 e as cenas de “Garganta profunda”, embora explícitas, não eram “gratuitas”. O mote do filme era a história da protagonista que sofria muito por não sentir prazer sexual, até descobrir que tinha o clitóris na garganta. O enredo se enquadrava na estética da libertação sexual, da descoberta do corpo enquanto lugar de prazer, do autoconhecimento e da luta contra os poderes repressivos. Ver: Garganta profunda (1972), de Gerard Damiano; Para uma análise, da repercussão do filme, ver o ótimo documentário: Inside Deep Throat (2005), de Fenton Bailey & Randy Barbato

pílula e da libertação sexual, falar de sexo tornou-se atraente, desejável, demandado, quase exigido.

Era o

tempo de se libertar dos antigos modelos moralistas e a revolução sexual era uma das esferas de libertação. Acompanhando esta onda, em 1972 foi lançado nos EUA o primeiro filme pornográfico moderno, o clássico “Garganta profunda”, estrelado por Linda Lovelace. Embora a pornochanchada estivesse dentro deste referencial sexual dos anos 70, sua origem tem outras matrizes. Havia clara influência da chanchada, gênero de

comédia do cinema popular brasileiro que nos anos 40 e 50 notabilizou artistas como Oscarito e Grande Otelo. Somado a isso, havia a temática sexual. Diferentemente dos EUA, onde, apesar da repressão inicial, os filmes pornográficos puderam circular, no Brasil a Censura os impedia. As cenas e o textos mais “abusados” das pornochanchadas eram cortados pelos censores e havia “apenas” insinuações sexuais. Apesar do sucesso popular, a ditadura quase não favorecia a indústria da pornochanchada e a Embrafilme era vista, pelos Em 1976 foi extinguido o Instituto Nacional de Cinema e criado o Conselho Nacional de Cinema, responsável por normas e fiscalização. Neste enxugamento, ampliação e centralização de órgãos, caberia à Embrafilme o papel de financiadora, co-produtora e distribuidora de filmes brasileiros. Foi o passo definitivo do Estado em direção ao cinema, assumindo a direção da Embrafilme o cineasta Roberto Farias, apoiado por produtores culturais fortes como Luís Carlos Barreto e Nelson Pereira dos Santos.

próprios cineastas da pornochanchada como um bastião dos cineastas das “esquerdas”, especialmente dos artistas influenciados pelo Cinema Novo. Paradoxalemente, apesar do sucesso popular, a pornochanchada não usufruía dos benefícios da Embrafilme, que preferia conceder as benesses dos estatais a produções ditas “de bom gosto” e de “alto valor artístico”.

Os beneficiados foram os cineastas

críticos da relação cinema-mercado, influenciados pelas inovações estéticas e críticas do Cinema Novo, da década anterior.

Este fato paradoxal, ou seja, um governo de direita que

financiava artistas das esquerdas, vem sendo subestimado por grande parte dos historiadores.

Influências e fim da pornochanchada

Apesar das intensas disputas, o que permaneceu no imaginário coletivo é que os cineastas da pornochanchada não eram “verdadeiros” artistas, mas pessoas mais interessadas no lucro fácil, na grosseria e nudez explícitas. Paradoxalmente, o abuso de cenas sexuais, o apelo ao nu, especialmente feminino, as ironias e humor não ficaram restritos ao cinema da pornochanchada. Essa imagem chegou a ficar associada ao cinema nacional por um longo período.

Apesar da oposição ao gênero, a temática sexual foi largamente incorporado no

cinema nacional.

Cineastas influenciados pelas vanguardas dos anos 1960 também

incorporaram o sexo, o nu, a ironia e humor em suas obras. Filmes como Joanna Francesa e Xica da Silva (Cacá Diegues, 1973 e 1976), Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), Toda nudez será castigada (Arnaldo Jabour, 1972), Dona Flor e seus dois maridos (Luis Carlos Barreto, 1976), A dama do lotação (Neville de Almeida, 1978), Bonitinha mas ordinária (Braz Chediak, 1981), Rio Babilônia (Neville de Almeida, 1982), entre outros, são exemplos da influência da temática sexual.

O ciclo da pornochanchada acabou na década de 1980, quando a Censura diminuiu, gradualmente, a proibição

aos

filmes

pornográficos

estrangeiros.

Alguns diretores e artistas tentaram competir com o produto externo, sem sucesso. Foi o fim da união entre comédia e sexo no cinema nacional.

Saiba mais: Memórias e biografias: Cardoso, David. Autobiografia do rei da pornochanchada. Letra livre. Mato Grosso do Sul. 2006; Lyra, Marcelo. Carlos Reichenbach: o cinema como razão de viver. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo. 2004. Sternheim, Alfredo. David Cardoso: persistência e paixão. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta. São Paulo. 2004. Livros sobre a pornochanchada: Ramos, Fernão. (org.) História do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Art/SEC – SP, 1990. Sales Filho, Valter Vicente. Pornochanchada: doce sabor da transgressão. São Paulo: Unicamp, 1995; Sales Filho, Valter. Estudo de caso sobre a representação de preconceitos e exclusão social na pornochanchada. São Paulo: USP, 1994. Dissertação de Mestrado; Seligman, Flávia. O Brasil é feito de pornôs:o ciclo da pornochanchada no país dos governos militares. São Paulo: USP, 2000. Tese de Doutorado; Abreu, Nuno C. Boca-do-Lixo – cinema e classes populares. Campinas: Unicamp, 2000. Tese de Doutorado; Sugimoto, Luiz. “Boca dos sonhos: o cinema da Bocado-Lixo” . Jornal da Unicamp.16 a 22 de dezembro de 2002 - Edição 202.

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