A nova ciência da moralidade e a “ciência” do direito (Parte 3)

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A nova ciência da moralidade e a "ciência" do direito
(Parte 3)


Atahualpa Fernandez(

"Después de Darwin ya no hay
fundamento «ahí fuera» más allá de la
naturaleza humana." Michael Ruse




Em um sentido mais geral, é provável que as ideias comumente admitidas
sobre a racionalidade, o livre-arbítrio, o self, a consciência, a
percepção, a responsabilidade pessoal, a conduta moral, etc...etc., não
conservem tanta identidade como as ideias pré-científicas sobre a
substância, o fogo, o movimento, a vida, o espaço e o tempo. Mas, ainda que
nos falte muito caminho que percorrer, essa nova convergência
investigativa com seus modelos experimentais oferece a promessa de que, ao
menos, se compreenderão alguns de seus princípios básicos (P. Churchland).
Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou
teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer
encerrada ou isolada em uma torre de marfim fingindo ignorar os resultados
dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica
que trabalham para estender uma conexão entre a natureza e a sociedade, a
biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da natureza
humana.
Não sobra dizer, neste particular, que o direito é um belo exemplo de
cultura que emerge quando as pessoas reúnem e acumulam seus conhecimentos e
quando instituem convenções para coordenar seus esforços, julgar e resolver
seus conflitos: um fundo comum de inovações normativas e sociais que os
indivíduos acumulam para ajudá-los na vida, e não uma coleção de símbolos
arbitrários que por acaso surgem para eles ou se lhes impõem ilimitadamente
sem qualquer tipo de constrição cognitiva inata.
O modo como o direito pode ser compreendido em uma infinidade de
níveis de análises associadas, do cérebro e da evolução aos processos
cognitivos dos indivíduos e aos vastos sistemas culturais, mostra como a
cultura e a natureza humana podem relacionar-se, posto que aquela depende
sobremaneira de um conjunto de circuitos neuronais responsável pela proeza
que denominamos de condição humana.
De fato, as possibilidades de conexões do direito com outras áreas do
conhecimento humano são abundantes: o sentido moral pode lançar luz sobre
códigos legais e éticos; a psicologia humana ajuda-nos a compreender nossas
motivações, nossas disposições normativas e sócio-políticas; a mentalidade
da agressão e a tendência à cooperação ajudam a entender a guerra, as
estratégias e os mecanismos de resolução de conflitos; as diferenças entre
sexos são importantes para as políticas de gênero; nossas intuições e
emoções morais podem delimitar as condições de possibilidade e o potencial
da capacidade de consenso dos discursos jurídicos; racionalidade e emoção
humanas podem lançar luz sobre nossa compreensão acerca do processo de
interpretação, justificação e aplicação do direito... E por aí poderíamos
seguir.
Em resumo, nossa compreensão de nós mesmos e de nossos artefatos
culturais somente pode ser enriquecida pela descoberta de que nossa mente
se compõe de intricados circuitos neuronais para perceber, pensar, sentir e
aprender, em vez de mentes vazias como «tabulas rasas» desenhadas e
modeladas exclusivamente pela cultura. Como explica Jesús Mosterín, "el
espejo roto de la investigación especializada ha de ser recompuesto en una
imagen global unitaria, si es que ha de servir como marco en el que
analizar y resolver nuestros problemas individuales y colectivos. La
búsqueda de una cosmovisión global, por muy provisional que sea, es el fin
último de toda investigación. Necesitamos un nuevo humanismo a la altura de
nuestro tiempo, que haga uso de los tesoros de la información que la
ciencia nos proporciona y encare sin prejuicios los problemas y retos
actuales".
Assim as coisas, parece haver chegado o momento de aceitar que o
direito não somente não teve consciência de sua autarquia intelectual,
senão que teve um êxito relativo como ciência e até mesmo enquanto "arte".
Sendo honestos, até hoje o direito segue à deriva, com sua enorme massa de
observações e construções mal digeridas, com um considerável corpo de
generalizações normativas e com um mais que considerável número de teorias
entrelaçadas, meramente especulativas e de duvidosa utilidade que se
expressam em léxicos (técnicos ou não) abstratos, esotéricos e
babélicos[1]. A desconexão com o resto da ciência deixou um (e continua
agravando o) imenso abismo no pensamento organizado sobre o mundo,
fomentando, ademais, teorias e concepções jurídicas construídas a partir
do mais displicente descaso pelos estímulos (cognitivos, neuronais,
morais e emocionais) que procedem da admirável e ainda desconhecida
natureza humana.
A concepção desagregadora da ciência é desatinada, já que os valores,
os princípios, as normas - enfim, as fontes e os materiais jurídicos - e os
acontecimentos do social – os vínculos sociais relacionais – descansam no,
ou são constringidos e condicionados pelo, natural. E em que pese o fato
de que a tendência para a separação entre a cultura e a natureza tem levado
a que se absolutizem alguns desses valores (desligando-os das suas origens
naturais e apresentando-os como de essência espiritual, como uma
transcendência que ultrapassa o próprio homem), a ética e o direito parecem
ter uma base mais segura quando relacionados a uma perspectiva
biologicamente vinculada à nossa arquitetura cognitiva altamente
diferenciada, plástica e especializada, quer dizer, à natureza humana
fundamentada na herança genética e desenvolvida "em" e "a partir de" um
entorno cultural. O sentido da moral e da justiça não é o oposto da
natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma.
Uma compreensão mais comprometida com as causas últimas, radicadas em
nossa natureza, do comportamento moral e jurídico humano, pode ser muito
importante para reconstruir os melhores e mais profundos pensamentos
humanos sobre o direito, potencialmente unificados a partir do lugar que
ocupamos na natureza. O que implica que a eleição da forma de abordar o
direito (e sua respectiva filosofia subjacente) supõe uma diferença
importante no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as
estratégias que adotamos para regular nossas instituições e práticas
sociais, e determina, em última instância, o repertório de ideias e teorias
acerca do sentido e da finalidade do razoamento prático ético-jurídico.
A aplicação da ciência ao direito não somente enriquece nosso acervo
de ideias, senão que proporciona também instrumentos para averiguar quais
têm maiores probabilidades de ser corretas. Estabelecer conceitos, valores
e normas que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que
condená-los ao fracasso. É possível, por que não dizer, que a maior parte
das propostas de fundamentação normativa, teórica e/ou metodológica do
direito que já se formularam ao longo da história pequem por sua
inviabilidade em função dessa desatenção com relação a realidade biológica
que nos constitui, isto é, pela falta de precisão de sua adesão à condição
"neuroplástica" do ser humano – e ainda que os fatos científicos não ditem
por si mesmos valores e normas, não cabe dúvida de que "limitan las
posibilidades de ellos". (S. Pinker)
Pois bem, chegado a esse ponto, parece possível inferir que os limites
entre "o direito que é" e "o direito que deve ser" – distinção de que se
alimentava (e se alimenta) a ciência e a filosofia jurídica – diluem-se,
pois que é em um "dever ser" assumido como resultado de uma estratégia
sócio-adaptativa e como produto de um processo material de mentes
funcionalmente integradas, que o direito acaba por ter o critério decisivo
da sua realização prático-concreta.
Resultado: quanto mais de ciência os juristas sejam capazes de
aprender, mais se darão conta do que ainda não sabem, e da natureza
defeituosa do que afirmam saber. De mais a mais, uma das características
distintivas em toda boa e genuína ciência - cujo ensino é inseparável do
ensino da dúvida (informada) - é a mutabilidade: a ciência se vai
modificando, é eminentemente mutável. Pelo contrário, um aglomerado de
teorias com viso de cientificidade e suas ideologias de fundo se acham
estancadas ou somente cambiam baixo a pressão de grupos de poder ou por
efeito de disputas entre facções. (M. Bunge)
O realmente lamentável é que a ciência e a filosofia jurídica se
caracterizem por um largo desfile de "teorias" que com o tempo foram
revelando-se como passageiras e caindo sucessivamente no olvido, dada sua
inutilidade para explicar a realidade. Longe de contribuir no esforçado
combate da ciência contra a ignorância e as falsas especulações, os
juristas, os "cientistas" e os filósofos do direito continuam a descarregar
- já que suas teorias insistem em não respeitar as restrições previstas
pela evidência empírica acumulada - mais e mais carradas de mitos e
falácias jurídicas.




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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] Por certo que o direito intenta adotar o modus operandi científico da
produção de conhecimento. Mas não logra igualar o êxito cognitivo das
ciências nem tampouco alcançar o nível destas no sentido de gerar um
progresso na descrição do mundo. Uma incapacidade que, embora faça muito
ruído, recai em uma mera concorrência por provar que tão astuto se pode ser
para manipular palavras, criar ou destruir argumentos e inventar
sofisticadas teorias. Isso talvez explique todos os esforços dos juristas
por apresentar e manter o direito de modo imaculado. Pureza que implica não
somente estar imersos unicamente no âmbito do "jurídico", senão estar
separados e distantes de qualquer elemento contaminado, mesmo que seja
minimamente (como seriam,por exemplo, a moral e todas as demais ciências da
vida, da mente e da natureza humana como objeto de investigação empírico-
científica): qualquier vínculo com algo externo ou estranho deve ser
cortado e eliminado de raiz. Não está permitido intentar utilizar algo de
outras ciências existentes para reformar ou regenerar suas crenças e
teorias; é um imperativo começar de zero, reforçar a sensação de novidade
absoluta e enclausurar-se para manter a genuinidade: etéreo «adamismo». Um
«adamismo» e purismo demasiado peculiar de alguns juristas profissionais,
«esos especialistas en todo y en nada que, sin dominar ninguna técnica
científica, tienen la insolencia de atreverse a hablar de todo lo divino y
lo humano» (M. Sacristán). Apesar disso, os juristas, com sua própria
linguagem arcana, seus próprios standard de êxito e suas próprias
preocupações especializadas, também produzem discursos e artigos de
investigação, sistematizam a formação e a produção teórico-acadêmica e
desenvolvem subespecializações mais além da compreensão de qualquer pessoa
comum. Em todas estas formas - há que reconhecer - os juristas são
intensamente "cientistas".
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