A nova forma do romanceiro

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A nova forma do romanceiro Estudo comparativo entre literatura tradicional e novos media digitais

DANIELE FRANCO Crossways in Cultural Narratives

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Problemas de Literatura Tradicional Prof. Doutora Teresa Araújo Departamento de Estudos Portugueses Ano letivo 2014/2015

A nova forma do romanceiro Estudo comparativo entre literatura tradicional e novos media digitais

Keywords

Estudo comparativo, literatura tradicional, novos media digitais, romanceiro, Facebook

Abstract

Este trabalho pretende introduzir o estudo comparativo entre literatura tradicional – com atenção particular ao género do romanceiro – e novos media digitais, tentando encontrar pontos comuns entre dois mundos aparentemente inconciliáveis. De facto, ao aparecer os novos media digitais, parece que a literatura tradicional acabou por desaparecer. Porém, – assim afirma a lei de Lavoisier – “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Nesta lógica, pretende-se analisar o romanceiro – género hoje em desuso – nos aspetos constitutivos, para demonstrar que as suas características essenciais se encontram surpreendentemente nas dinâmicas funcionais de Facebook, medium em qual parece ter-se transformado.

Introdução

A literatura tradicional está a morrer. Ou se calhar já morreu. Depois de quase mil anos, este antigo género literário parece estar a viver os seus últimos dias. Objetarse-ia que a dita literatura nunca foi tanto estudada e analisada, e que nunca se recolheram tantas histórias populares como agora. Cada vez há uma maior quantidade de material tradicional bem guardado nos arquivos e nas bases de dados dos numerosos institutos de todo o mundo. Provavelmente a literatura tradicional nunca esteve tão conhecida e apreciada. Mas é um facto que mais ninguém conta histórias; ou melhor, as histórias tradicionais. De facto, com o aparecer dos novos media digitais, a literatura tradicional acabou por desaparecer. As suas narrativas não podem competir com a eficácia narrativa do mundo digital: o imaginário do homem contemporâneo está estimulado e tão alargado que acaba por substituir a literatura tradicional nas suas funções, cortando drasticamente os laços com o passado. Os cantos doutros tempos morrem nas bocas duma antiga geração que está a desaparecer. A mutação antropológica introduz um novo estilo de vida: mais rápido, multitasking, sempre conectado, quase completamente virtual. Estamos imersos numa modernidade liquida incerta e fluida, em que toda a fixidez e todos os referenciais morais da época anterior – a modernidade sólida – são retiradas de palco para dar espaço à lógica do agora.

«Tendo sempre piú a supporre che quello che stiamo vivendo è un periodo di interregno, uno di quei momenti in cui gli antichi modi di agire non funzionano piú, gli stili di vita appresi/ereditati dal passato non sono piú adeguati all’attuale conditio umana» (Bauman,

2002)

Numa época sem passado e sem futuro, caracterizada por um presente dilatadíssimo, as tradições acompanham os homens só como meras lembranças e não como presenças orientadoras. Com a “explosão” das literaturas contemporâneas – televisão, filmes, videojogos, web –, a literatura tradicional vive nas camaras congeladoras dos arquivos, relegada num mundo paralelo.

A literatura é uma criação. O ato de criação – assim explica Deleuze – expressa sempre uma necessidade e nunca é fútil ou meramente ocioso (estamos bem longe da ideia artística de ócio dos latinos): «La philosophie est une discipline qui consiste à créer ou à inventer des concepts. Et les concepts, ça n’existe pas tout fait, et les concepts ca n’existe pas dans une espèce de ciel où ils attendraient qu’un philosophe les saisissent. Les concepts, il faut les fabriquer. Alors, bien sur, ca ne se fabrique pas comme ça, on ne se dit pas un jour “Tiens, je vais faire tel concept, je vais inventer tel concept“. Pas plus qu’un peintre ne se dit un jour “ tiens, je vais faire un tableau comme ça“. Il faut qu’il y ait une nécessité. Mais autant en philosophie qu’ailleurs, tout comme un cinéaste ne se dit pas “tiens, je vais faire tel film“, il faut qu’il y ait une nécessité, sinon il n’y a rien du tout.» (Deleuze,

1987)

O ato de criação, segundo Deleuze, é um ato de resistência. «Malraux dit une chose très simple sur l’art, il dit “c’est la seule chose qui résiste à la mort“» (Deleuze, 1987): mais precisamente, é um ato de resistência à morte. «Alors on pourrait dire, alors moins bien, du point de vue qui nous occupe, ben oui, l’art c’est ce qui résiste, c’est ce qui résiste et c’est être non pas la seule chose qui résiste, mais c’est ce qui résiste. D’où ; d’où le rapport, le rapport si étroit entre l’acte de résistance et l’art, et l’œuvre d’art. Tout acte de résistance n’est pas une œuvre d’art bien que, d’une certaine manière elle en soit. Toute œuvre d’art n’est pas un acte de résistance et pourtant, d’une certaine manière, elle l’est.» (Deleuze,

1987)

Reparamos que há sempre uma necessidade antes de um ato de criação. Portanto a necessidade resiste à morte no ato de resistência que é o ato criativo. Se a literatura – no nosso caso tradicional – é um ato de criação, ao morrer a dita literatura morre também a necessidade que a cria? Podem as necessidades humanas morrer enquanto o homem viver? Ou será que as necessidades humanas da tradição confluíram noutra forma, noutra criação? Para responder a estas perguntas temos de nos inteirar de quais eram as necessidades exclusivas em função das quais a literatura tradicional existia: mais em particular, analisaremos o género do romanceiro – que pertence à grande família da literatura tradicional – que será o objeto específico do nosso estudo. “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, adverte a lei física de Lavoisier. É nesta lógica

que, neste trabalho, investigaremos na matéria constitutiva do romanceiro tradicional, para tentarmos colher o que o criou – a sua função – e a sua possível metamorfose. Teremos de ter uma visão de 360 graus do espaço da nossa época, sem preconceitos literários ou de género: a matéria do romanceiro pode ter-se mimetizado em qualquer parede da nossa quotidianidade. O que é tão essencial no romanceiro? Qual é a sua necessidade? Desmontaremos as peças que constituem a engrenagem da máquina romancística para identificar a necessidade toda humana que a moveu e que, talvez, a fez resistir. No fim, tentaremos remonta-la – certamente de uma maneira diferente e mais contemporânea – e a máquina, talvez, voltará a funcionar.

O romanceiro: em síntese

«El romanceiro es un género narrativo em verso, com rasgos líricos más o menos marcados. En su formación influyeron la poesía épica julgaresca y la poesía lírica, en un contexto de producción y consumo artístico de la mayoría, enlazado con tradiciones de la literatura popular europea. Sus orígenes se colocan, por conjetura, entre los ss. XIII y XIV {…}» (Di Stefano, 2010, p. 7). Antes de mais, o romanceiro faz parte da grande família da literatura popular europeia que, como sugere a expressão, indica a literatura do povo. Mas o povo que se serve do romanceiro não pode ser considerado só como o «conjunto de las capas de la población que se encuentran excluidas del ejercicio efetivo del poder y que desarrollan una actividad subordinada, al servicio o dirigida por las élites dominantes» (Di Stefano, 2010, p. 34) – ou seja não se considera o termo povo simplesmente na sua aceção de plebe que alude à classe inferior dominada. O romanceiro, embora seja «una literatura menos valorada que la cortesana en sentido estricto por mantenerse al margen del amor cortés e por su menor rigor formal y estilístico» (Beltran, 2004, p. 73), é um género que chega a toda a sociedade. Como confirma Vicenç Beltran falando de tradição vulgar em geral, «no me cabe la menor duda de que tanto la lírica tradicional vulgar como la cortesana podía ser compartida por el conjunto de la sociedad, desde la aristocracia y las clases ilustradas» (Beltran, 2004, p. 73). Na verdade a literatura popular da qual o romanceiro faz parte é um património comum assimilado por todos, independentemente da classe social: não se trata de

material narrativo exclusivo do povo entendido como classe subalterna. Nem se trata de Naturpoesie1 – poesia ingénua das origens popular, portanto livre da contaminação cultural – em oposição a Kunstpoesie – poesia moderna autoral, filha da cultura e da arte – teorizada pela cultura romântica, sendo impossível a distinção e a fixação definitiva do conceito de poesia popular e, confirma Pedrosa, «así seguirá sucedendo, por más que los filólogos nos empeñemos en establecer etiquetas, nomenclaturas y clasificaciones presunta y presuntuosamente mais concretas e adecuadas» (Pedrosa, 2010, p. 37). Mas se não existem nem existirão etiquetas completamente adequadas, individualizaram-se todavia alguns traços distintivos e essenciais da literatura popular; neste aspeto, o professor espanhol Ramón Menéndez Pidal aportou uma contribuição ineludível, pondo as bases para todas as recentes teorias. Menéndez Pidal introduz pela primeira vez o conceito de literatura tradicional em lugar de popular, considerado demasiado equivocável. Como explica Pedrosa, referindo-se às teses de Pidal, a literatura tradicional é o «que incluye el conjunto de obras literárias cuya transmision, por lo general oral, es aceptada de tal forma por una comunidad que, al ser memorizada y transmitida de boca en boca entre sus gentes, comienza a adquirir variantes distintivas en cada ejecución y a atomizarse en versiones sempre diferentes de su prototipo» (Pedrosa, 2010, p. 33). A literatura tradicional, então, vive em variantes: vive em cada boca que a transmite. Claro que, desta forma, «las variantes en una canción popular son innumerables {…} porque el recuerdo popular no se procupa de la fidelidad en el pormenor» resultando impossivel de «fijar el texto primitivo de una canción popular, oral, tradicional, {…} porque una obra, desde el primer momento en que alcanza popularidad tradicional, nos ofrece ya vários textos coetáneos» (Pidal, 1968, p. 39). Mas o que se mantem e que permite a criação das variantes é o núcleo de base da história, o protótipo que se atomiza em versões sempre diferentes. Há portanto um instinto de conservação da narração que determina a sobrevivência de uma história não obstante a ação das variantes de valor negativo – olvidos, equívocos, etc. Para além dos agentes corrosivos, «esa multiplicidad de variantes nos lleva a sentar que el recuerdo popular, suele ir acompañando de alguna inventiva o refundición» (Pidal, 1968, p. 41), ou seja há aqui um valor positivo das 1

«Así, el poeta no es outra cosa sino el órgano por el que se expressa la vida nacional en su sentimiento lírico y en su manera de concebir la existencia. Esta primordial naturalidad da a la canción popular una frescura ingenua, una densa concisión, una sorprendente verdade que suele ser de máxima eficiencia», escreveu Hegel no último capítulo do seu Vorlesungen über die Aesthetik

variantes segundo as quais quem canta «siente como propria la canción anónima y, al recrearse en ella, la re-crea» (Pidal, 1968, p. 41), chegando a ser o coautor do canto repetido, que em fim se caracteriza por ser algo fluido que «se adapta a la sensibilidade y gusto de cada recitante» (Pidal, 1968, p. 41). A máquina da literatura tradicional funciona com o movimento provocado da constante tensão poética entre variantes de valor negativo – uma memoria que quer recordar mas, sendo humana, esquece – e variantes de valor positivo – a coparticipação à criação poética. Trata-se portanto duma logica conflitual que o filósofo alemão Heidegger definiria com o termo Zusammengehörigkeit, para entender a relação entre dois opostos interdependentes que se necessitam: intercambio dialético e conflitual que determina movimento e, sobretudo, evolução. «Las continuas iniciativas individuales {…} son muy fugaces, porque hallan fuerte resistencia en los oyentes, que protestan crédito y adhesión al texto consabido de todos, al cual procura sempre retornar la memoria de todos» (Pidal, 1968, p. 44): mas então, como sobrevive uma variante? Neste processo de seleção duma ou doutra variante identifica-se a distinção entre a divulgação popular e tradicional. Um canto popular é recebido pelo público como moda recente, difunde-se com pouca intensidade, sem alcançar grande extensão; não existe por muito tempo e tende a ser deixada ao lado. «A menudo vemos propagarse en el canto de las gentes alguna composición poética de autor contemporaneo, conocido o anónimo» (Pidal, 1968, p. 44): o ser contemporâneo é um aspeto fundamental do canto popular. Um canto tradicional, ao contrário, é considerado património comum e o seu mérito – uma vez esquecida a “moda” – é de ser antigo, de facto é considerado como a herança que os pais transmitem aos filhos, tendo assim duração memorial secular; não se trata mais da simples aceitação de uma canção – como no caso da canção popular – mas sim de uma completa assimilação por parte do povo: «el pueblo {…} lo repite como suyo, com autoridad de coautor; al repetirlo, lo ajusta y amolda espontáneamente a su más natural manera de expresión» (Pidal, 1968, p. 45). Este mecanismo de conservação e recriação que carateriza a literatura tradicional determina um grande efeito de coesão social; na verdade a dita literatura é a expressão duma certa coletividade que através dos versos constrói a própria identidade. Estas narrativas «são primordialmente condicionadas pelas crenças, pelos padrões éticos, pelos usos e costumes desses mesmos grupos sociais» (Silva, 2005, p. 143). Os contos, herança da tradição oral, para além de conterem funções de preservação do património

do povo e de alimentação do imaginário dos ouvintes, refletem as caraterísticas da determinada realidade social que os utiliza. Cada comunidade, com o longo e involuntário processo de assimilação, “escolhe” a versão que mais a caracteriza. Conhecer um determinado conto quer dizer ter as chaves de acesso – a password – para fazer parte dum dado grupo cultural, ser aí incluído e reconhecido, aceitando assim as “condições” de convivência: os versos servem como medium de reunião e ligação entre os diferentes membros – crianças, rapazes, adultos, idosos – de uma comunidade.

«A possibilidade de a literatura oral ser também considerada como instituição literária é que merece especial reflexão. Sendo a literatura tradicional originária das sociedades onde o trabalho quotidiano não se encontra separado das criações artísticas, não deverá ser considerada uma instituição social. É que a literatura oral não se encontra dependente de pessoas especializadas, ela surge no ambiente comunitário, quer nos momentos de trabalho, quer nos momentos de descanso. Ao contrário da literatura escrita, não assegura a socialização do sujeito por meio de leis, normas ou valores, o que quer dizer que não assume o papel de instituição, mas é potenciadora de uma função social» (Lopes,

1983)

Não há conceito de autor génio e criador, mas sim de coautoria – pois um canto popular vive nas suas variantes. Desta maneira, abundam os pontos de vista que confluem num canto, assim que «con una narración filtrada a través de los puntos de vista, se afirma un relativismo indirecto» (Di Stefano, 2010, p. 27). Claramente, todas as mudanças ou alterações introduzidas oralmente são criações individuais e, portanto, autorais; de toda maneira, «as que no hallan acogida en la colectividad, se exstinguen sin efecto ninguno» (Pidal, 1968, p. 47). Pode-se afirmar que num canto popular não há autor, «sino muchos que en él pusieron algo de su sensibilidad, de su imaginación, de su gusto» (Pidal, 1968, p. 49). Trata-se duma obra coletiva que, por constituição, se prolonga através do tempo no seu estado líquido e fluido: na verdade «no es obra conclusa» (Pidal, 1968, p. 42). Voltando ao romanceiro, objetivo específico do nosso estudo, relevamos que nos seus versos “liquidos” a ação começa sempre em media res ou ex abrupto, como se este género instável e dinâmico – sujeito as regras da literatura tradicional mal mencionadas – estivesse constantemente em update. Pois as narrativas tradicionais são articulações

entre existência e literatura, que se modificam devagar, segundo o ritmo lento da história antígua. Na citação que abre o parágrafo, Giuseppe Di Stefano define o romanceiro como um género narrativo; de facto, a sua grande força relataria faz dele «un género fundamentalmente narrativo» onde «el yo lírico es el exordio de una voz que relata; y relata un evento que marca la vida» (Di Stefano, 2010, p. 24). Quer dizer que o romanceiro conta histórias e narra pelo prazer de narrar, sem preocupações pedagógicas ou fins moralizantes. Não transmite nenhuma ideologia ou conceito ético, ou melhor «en general, el romanceiro tiende hacia el novelesco, incluso en sus textos históricos» (Di Stefano, 2010, p. 36). Não obstante «el origen y la naturaleza de los temas llevan a distinguir entre romanceros novelescos, históricos y épicos» (Di Stefano, 2010, p. 35), é o canto do aqui e do agora, da quotidianidade: é o exemplo da representação e exemplificação do que existe e do que se vive. Não há grandeza épica nos seus versos, aliás «el romanceiro com la exhibición del yo y de sus angustias y derrotas, suena más bien a dolorida antiepopeya» (Di Stefano, 2010, p. 24). Os heróis são desmistificados e desconstruídos, o extraordinário é reconfigurado no quotidiano: os reis e as rainhas do romanceiro acabam por transformar-se em pessoas comuns. De facto, nos versos implementa-se uma ordem horizontal que substitui a ordem hierárquica vertical do mundo. Eis as palavras agudas de Mijail Bajtin sobre o povo e o seu poder desmistificador:

«El pueblo jamás comparte hasta el final el énfasis de una verdade dominante. Si a una nación le amenaza algún peligro, cumple com su deber y salva a la nacion, pero jamás toma em serio las consignas patrióticas de un Estado de clases, y su heroísmo conserva una sóbria socarronería com respecto a todo el énfasis del poder dominante. Es por eso que un ideólogo de clase nunca puede penetrar, mediante su patetismo y su seriedade, hasta el núcleo del alma popular; en este núcleo enfrenta la barrera, insalvable para su seriedade, de una alegría burlona y cínica (denigradora); con la chispa carnevalesca (la llama) de una imprecación alegre que derrite toda seriedade limitada.» (Pedrosa,

2010, p. 35)

Com a sua linguagem intensa e essencial, o romanceiro não deixa espaço a pathos ou lirismo de classe: violência e amor são representados com o mesmo tom límpido e preciso.

O romanceiro nasce para ser cantado ou recitado, portanto a estrutura métrica, composta por versos de oito silabas com rima assonante, favorece e ajuda bastante a memorização. O texto tem um ritmo premente e fácil de lembrar, e acompanha o ritmo do dia, escandindo o tempo do trabalho e do descanso. Existem as ditas fórmulas que também desenvolvem um papel muito importante no processo de memorização e transmissão duma canção: uma fórmula é de facto um epiteto, um sintagma, uma frase que forma uma unidade de sentido peculiar e fundamental: «es fondamental para componer y orientar motivos y episodios» (Di Stefano, 2010, p. 32), quer dizer «produce una enérgica actualización efectista del relato y encalza una recepción del texto» (Di Stefano, 2010, p. 33). As fórmulas são «muy semantizadas» (Di Stefano, 2010, p. 33). Para além disso, a natureza oral do romanceiro implica uma teatralização onde gestos, tom de voz, pausas de quem conta são aspetos fundamentais para o bom fim da narração. Há no cantor, profissional ou amador, a consciência de estar perante dum público de ouvintes os quais fazem parte duma comunidade afim. Quem recita ou canta exibe-se, diríamos hoje, enuma performance. Outro aspeto caraterizante e extremamente interessante do romanceiro é o de ser nostálgico. Como admite Pidal, «su mérito es la antigüedad» (Pidal, 1968, p. 45); o valor da tradição está mesmo na sua velhice que narra um tempo sempre passado, de forma melancólica e nostálgica. Apesar de o romanceiro ser utilizado por toda as classes sociais, temos de precisar que o poder, que na época estava nas cortes, transforma a lógica puramente narrativa do romanceiro em algo mais especulativo: de facto «influye el consolidarse de un romancerismo profesional cortesano entre noticiero y celebrativo» (Di Stefano, 2010, p. 38). O poder, enfim, serve-se do romanceiro também para veicular informações (sejam feitos reais, seja propaganda) através de versos que, como vimos, têm uma capacidade comunicadora que atinge a sociedade toda. Ainda mais, a partir duma certa altura o romanceiro começa a ser utilizado por autores e poetas que inserem alguns versos tradicionais nas obras deles; esta escolha estilística permite-lhes de ter mais participação por parte do público, que bem sabe reconhecer as citações romancísticas das criações do autor.

«Como mostrou a erudita D. Carolina Michaelis de Vasconcelos nos seus Estudos sobre o Romanceiro Peninsular. Romances Velhos em Portugal (1907 a

1909), as primeiras referências romancísticas em Portugal remontam ao século XV. Nuno Pereira e Jorge da Silveira aludem em 1483 à «mal maridada» como tema divulgado. Outros poetas do Cancioneiro Geral (1516), tais como Duarte de Brito, João Rodrigues de Sá ou Pedro de Almeida parodiam ou aludem a versos pertencentes a romances. No começo do século XVI, a crescente popularidade do Romanceiro reflecte-se nas abundantes alusões que o teatro vicentino faz ao mesmo. Dos poetas quinhentistas podemos ainda destacar nomes como Camões ou Jorge Ferreira de Vasconcelos dado a sua frequente utilização de reminiscências do romanceiro.» (Escarduça,

2010)

As ditas citações são os links que permitem de navegar em páginas (mais populares) virtuais onde reside parte do significado total da obra. De facto, para a compreensão global dum texto com citações romancísticas é necessário conhecer não só o que está escrito, mas também o que não está escrito – mas ao qual se alude –, sendo este um aspeto fundamental para orientar a interpretação final.

Em suma, o romanceiro conta histórias herdadas do passado que tendem a ser normalizadas (quotidianizadas), e funciona como una rede social que une e identifica as diferentes comunidades, agindo horizontalmente sem hierarquias. Trata-se duma obra sempre aberta que vive através da lógica conflitual conservação-recriação, a qual garante a impersonalidade da coautoria. Utiliza uma linguajem direta e essencial que narra por narrar e não pretende moralizar (com exceção dos romanceiros corteses que informam e celebram); as fórmulas e a métrica favorecem a memorização e, por ser oral, pressupõe a ideia de performance do cantor/recitador. «La forma de un poema tradicional es algo flúido que se adapta a la sensibilidad y gusto de cada recitante, al modo que un líquido toma la forma del vaso en que se echa» (Pidal, 1968, p. 41) . Posto que o romanceiro é um ato de criação e que um ato de criação, segundo Deleuze, expressa sempre uma necessidade, qual será a forma modierna que contém o líquido da criatividade/necessidade humana? Como se transformou o vaso romancístico?

O mundo digital: Facebook

Podemos considerar o romanceiro como um medium? Mazzarella, ao falar de literatura – entendida como literatura institucional – admite que «certo che lo è. Lo è sempre stato. Si è sempre dimostrato un medium dallo straordinario potere creativo» (Mazzarella, 2008, p. 20). Se considerarmos a metáfora do vaso de Pidal, temos de admitir que o vaso romancístico é o medium que serve para conter o líquido narrativocriativo popular que, de outra, se perderia. O romanceiro conta histórias que, nas suas reproduções, entrelaçam os fios que unem uma certa coletividade, determinando a sua própria identidade: é um medium para narrar e reunir. Eis a primeira necessidade humana: desde o seu aparecimento no mundo, o homem é um animal que conta e escuta histórias. Os desenhos rupestres dos nossos antepassados são a prova duma necessidade primordial de narrar. O Dasein, diria Heidegger, é o único ser vivo capaz de interrogar-se sobre o problema do ser-no-mundo e enunciá-lo, tendo em si os elementos necessários para evadir da wirklichkeit (realidade efetiva) e indagar a sua existência entendida como conjunto de possibilidades. O homem precisa de histórias para abrir-se a outras experiencias que não sejam só aquelas fornecidas pela limitada matéria quotidiana. Mas não fogem da dita matéria, mas sim a modificam e a reelaboram segundo a própria imaginação. «Quem conta um conto acrescenta um ponto», diz o antigo proverbio popular, que dessa maneira valoriza a «ricerca della leggerezza come reazione al peso di vivere» (Calvino, 2000, p. 33). Mc Luhan define o sistema nervoso humano não só como rede elétrica, mas como campo unificado de experiências. Que é a literatura se não um campo unificado de experiências possíveis articuladas pelo poder criativo da imaginação? A literatura é possibilidade, enquanto a vida é efetividade: a palavra, oral ou escrita, é desde sempre o maior medium para a articulação do imaginário, daqui deriva a grande importância que a literatura teve ao longo dos séculos, durante os quais acompanhou o caminho virtual do homem. «Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objeto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa entidade virtual atualiza-se em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias. Ao interpretar, ao dar sentido ao texto aqui e agora, o leitor leva adiante essa cascata de atualizações. Falo especificamente de atualização no que diz respeito à leitura, e não da realização, que seria uma seleção entre possibilidades preestabelecidas. Face à configuração de

estímulos, de coerções e de tensões que o texto propõe, a leitura resolve de maneira inventiva e sempre singular o problema do sentido. A inteligência do leitor levanta por cima das páginas vazias uma paisagem semântica móvel e acidentada.» (Lévy,

1996, p. 35)

O termo virtual, hoje em dia tão usado e abusado, indica uma articulação que funciona com imagens. Na nossa época, falando de imagens e media, não podemos não considerar os novos media digitais, os quais multiplicaram bastante a produção de narrações das imagens. Filmes, videoclips, videojogos, ecrãs, internet e os media digitais são próteses que aumentaram de maneira exponencial as capacidades da nossa língua e dos nossos ovidos. Ao nosso redor, há sempre alguém – ou melhor, algo – que nos conta uma história: não só objetos artísticos (como seria o romanceiro), mas até a publicidade comercial, escrita por verdadeiros criativos que, com o fim de vender um produto, constroem narrações eficazes e bem estudadas (emblemático o caso de Lorenzo De Rita, poeta italiano que deixou a poesia para o bem mais remunerado trabalho de publicitário, chegando a ser um dos melhores do mundo). Hoje em dia não se procuram mais poetas ou cantores de romance, mas sim copy writer capazes de criar constantemente conteúdos narrativos que satisfaçam a fome dos media digitais. «A produção de novas tecnologias expande a cartografia dos espaços conhecidos e suas possibilidades de experimentação, provocando um deslocamento nos modos de experiência e interiorização do homem» (Tucherman, 2002, p. 57). O campo unificado de experiências de Mc Luhan dilatou-se exponencialmente: é natural que num contexto tal, as novas gerações já não necessitem mais dos contos orais da literatura tradicional para estimular o próprio imaginário. Se o romanceiro é um medium para narrar (prazer de narrar por narrar), a sua função acabou no momento em que surgiram media bem mais eficazes. Quando o homem inventou o carro, o homem deixou de construir coches, mas nem por isso deixou de andar: aliás, começou a viajar mais rápido: assim o homem, com o desaparecimento do romanceiro – ou da literatura tradicional como nós a conhecemos e intendemos –, não deixou de narrar. Talvez narre demais. Mas, como vimos, há outro aspeto essencial do romanceiro que temos de considerar: os seus versos narram e reúnem. Se hoje os versos do romanceiro não são necessários para nos reunir, então deve haver outro medium que facilite esta função.

«Com a cibercultura exprime-se o desejo de construir um lugar social, que não seja baseado nem em posses territoriais, nem em relações institucionais, nem em relações de poder, mas na reunião em torno de centros de interesses comuns, no jogo, na partilha do saber, na aprendizagem cooperativa, em processos abertos de colaboração. O apetite pelas comunidades virtuais descobre um ideal de relação humana desterritorializada, transversal, livre.» (Lévy,

1997, p. 136)

As palavras de Lévy explicam que no “mundo online”, bem como no “mundo offline”, as pessoas querem criar ou manter relações. “O homem é uma animal social” dizia Aristóteles: eis a segunda necessidade humana à base do funcionamento tradicional do romanceiro: reunir-se, criar comunidade, fundar relações intersubjetivas. O filósofo Agamben pontua que “a pedra não tem mundo, o animal é pobre de mundo, o homem é formador de mundo”. Cria o mundo em função dos outros e com os outros. O ciberespaço, na verdade, tem um resultado eficaz porque permite criar comunidade para além do espaço físico. «Uma comunidade virtual constrói-se com base em afinidades de interesses, de conhecimentos, na partilha de projetos, num processo de cooperação ou de permuta, e isso independentemente das proximidades geográficas e pertenças institucionais» (Lévy, 1997, p. 137). Sempre segundo Lévy, a criação das comunidades virtuais é um dos três princípios fundamentais que orientam o crescimento inicial do ciberespaço (a interligação e a inteligência coletiva são os outros dois). O homem é um animal social. Hoje diríamos que o homem é um animal social. E reúne-se através dos social networks.

Consideramos agora o social network mais conhecido e mais influente do mundo: Facebook. O que é Facebook? É uma rede social. É um sítio onde os indivíduos interagem através de uma persona digital, normalmente coincidente com a identidade real. É uma plataforma digital onde, após ter criado um perfil pessoal (onde se inserem os próprios dados entre os quais nome, sexo, idade, formação, trabalho, familiares, lugares, etc.), é possível publicar textos, fotografias, vídeos… Os outros utilizadores podem interagir gostando ou partilhando. Portanto «o Facebook assume-se como um local read/write por excelência, com a agravante de ser eminentemente social» (Mendes, 2012, p. 44). Quem são e quantos são os seus utilizadores? Segundo as mais recentes estatísticas, conta-se «864 million daily active users on average for September 2014» ( newsroom.fb.com/company-info, s.d.): a sociedade ocidental – e não só –

considera o social network americano um medium fundamental dos nossos dias. Facebook tem um poder imenso. Atinge todas as pessoas, sem diferenças de idade ou género – adultos, rapazes, homens, mulheres – nem sociais. Exatamente como o romanceiro, Facebook é popular no sentido em que está nas mãos do povo que não é o só «conjunto de las capas de la población que se encuentran excluidas del ejercicio efetivo del poder» (Di Stefano, 2010, p. 34). Se Beltran não tem «la menor duda de que tanto la lírica tradicional vulgar como la cortesana podía ser compartida por el conjunto de la sociedad, desde la aristocracia y las clases ilustradas» (Beltran, 2004, p. 73), também não se pode duvidar que cada poder contemporâneo – politico, administrativo, económico – não esteja presente e ativo no Facebook. Os partidos políticos, por exemplo, desenvolvem várias atividades de divulgação a partir das redes sociais, necessárias para ganhar visibilidade. Facebook é um medium horizontal no sentido em que qualquer indivíduo que tenha ligação à net, pode fazer login. «Founded in 2004, Facebook’s mission is to give people the power to share and make the world more open and connected. People use Facebook to stay connected with friends and family, to discover what’s going on in the world, and to share and express what matters to them»

( newsroom.fb.com/company-info,

s.d.)

Facebook permite estar conectados. Mas de que maneira estamos? Simplesmente na partilha de conteúdos, e este é um aspeto muito interessante para o nosso estudo. De facto uma das ferramentas mais utilizadas não é o chat, que permite um contacto direto e unívoco com a pessoa com a qual queremos conectar-nos. O termo “conectar”, do latim conectĕre, significa ligar, pôr em contacto, relacionar. O chat seria a transposição digital da maneira tradicional de relacionamento entre as pessoas. Falar e conversar são os modos diretos para ligar-se (conectar-se). Mas já o romanceiro ensinou que há outra maneira de estar em contacto: precisamente através do relativismo indireto, e assim o faz o Facebook através do “mural”. «Uma das ferramentas do Facebook mais utilizadas pelos seus usuários é o “status” popularmente conhecido como “mural”. Nele o usuário pode postar links, fotos, vídeos, notas, etc e partilha-los com os seus contactos» (Guimarães, 2011, p. 56). A partilha é o ato essencial do usuário digital, esta é a ação principal que o determina. Que tipo de conteúdo se partilha?

«O Facebook é uma espécie de narrativas do eu, pois é possível que o utilizador, através do seu perfil/sua página pessoal no site em questão, detalhe a sua vida: divulgue, através de mensagens verbais e não-verbais o que está a fazer, planos para o futuro, o que deseja, quais são as suas preferências, desde gastronômica até opção sexual» (Guimarães, 2011, p. 46). O Facebook é uma narrativa do dia-a-dia que conta histórias do quotidiano, do instante. É «un género fundamentalmente narrativo» (Di Stefano, 2010, p. 24) e, embora seja uma ferramenta digital, está constantemente ligado à realidade: como escreve Di Stefano em relação ao romanceiro, «tiende hacia el novelesco» (Di Stefano, 2010, p. 36). Parece ser o “canto do aqui e do agora”, só que mudou bastante o conceito de agora, sendo hoje vertiginoso e até intangível. O mural do Facebook é uma articulação entre vida real e conteúdo digital, é a representação “do que existe e do que se vive”. Diríamos que, em geral, se narra pelo o prazer de narrar: põe-se conteúdo (textos, fotos, etc.) pelo o prazer de mostra-lo, “sem preocupações pedagógicas ou fins moralizantes”. É o vaso que contém o líquido narrativo – ou melhor o conteúdo – de milhões de pessoas. É uma narração do “eu”, mas se no romanceiro «la exhibición del yo y de sus angustias y derrotas, suena más bien a dolorida antiepopeya (Di Stefano, 2010, p. 24)», no Facebook tende-se a idealizar e edificar o próprio “eu”. Não quer dizer que se tente recriar uma ordem hierárquica vertical: mantém-se sempre uma ordem horizontal em que os vários poderes contemporâneos – os antigos heróis, reis e rainhas – são desmistificados e desconstruídos à maneira carnavalesca e dessacralizante do povo2. A ironia subversiva que relativiza o estatuto da autoridade institucional é um dos elementos que mais frequentemente aparecem no conteúdo digital. O que menos aparece é a ironia dessacralizante do próprio “eu”. Se no romanceiro o “eu” poético universal resume em si todos os “eu” particulares, no Facebook cada “eu” vive a nível individual e não pode ser assimilado. Isto porquê? Depende da forma como o medium que acolhe o “eu”. “O meio é a mensagem”, dizia Mc Luhan: a sua forma determina a sua utilização. No romanceiro necessitava-se de um “eu” universal que “falasse por todos” também por razão fisiológica, ou seja para favorecer o trabalho da limitada memória orgânica com a qual os versos tradicionais se conservavam. A memória 2

Remeto às palavras de Bajtin antes referidas

inorgânica – a memória digital –, que pode guardar um número imenso de dados, permite a existência de todos os “eu” ao mesmo tempo: aliás, a condição de acesso é a criação dum perfil pessoal, enquanto no romanceiro nada que fosse pessoal podia ser assimilado e lembrado como tal. Mas se o medium faz a mensagem, também é verdade que a maneira como o medium vem sendo utilizado reflete as caraterísticas dos seus utilizadores: a narrativa do “eu” que o Facebook permite, acaba por ser uma narrativa híper narcisística do “eu”. O conceito do “eu” tem muita importância nesta rede social onde cada um tem a possibilidade de contar a sua própria história e cada história parece merecer de ser contada. Como declarou o fundador de Facebook Mark Zuckerberg: «um esquilo morrendo no seu jardim talvez seja mais relevante para os seus interesses neste momento do que pessoas morrendo na África» (www.ted.com/talks/, 2011) – não há distinções hierárquicas ou éticas se não o prazer de narrar por narrar. Está tudo focalizado no individual e cada “eu” entra em competição com os outros para obter mais visibilidade. «A admiração pública é consumida pela vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome.» (Arendt, 2007, p. 66); de facto a visibilidade é um dos seis valores que Calvino identifica nas suas Lições Americanas. A “vaidade individual” passa através do processo de embelezamento do self, determinando desta forma uma forte tendência em melhorar a imagem de si que se deseja mostrar ao mundo. “Efeito narciso”, chama-se em psicanálise, e faz com que uma pessoa esteja constantemente atraída pela própria representação e queira partilhar só a parte mais bonita ou enfeitada de propósito. O mural de Facebook permite ter grande visibilidade: quanto mais conteúdo partilhamos e mais estamos presentes, ou seja visíveis: mais existimos. «La stessa assenza di una parte così importante come la comunicazione non verbale — e del corpo stesso — sembra domandare un surplus di dati. Lungi dall'essere una semplice lista di elementi, il mio profilo è il modo in cui esprimo la mia identità intera attraverso quanto rendo pubblico: ogni video, meme, status e immagine concorre a definirmi: io sono ciò che condivido.» (Fontana, 2014)

A identidade passa através do que se partilha. Partilho, ego sum. O “eu” particular contemporâneo identifica-se com o conteúdo que partilha. Assim, o “eu” universal do romanceiro resumia em si todos os “eu” particulares que se identificavam com os versos que se partilhavam. Agora como antigamente, partilha-se, ego somos.

Partilhar quer dizer exibir, mostrar, pôr a vista: indica a ideia de performance e pressupõe um público à frente. Cada cantor tradicional, no ato de recitar, criava uma performance para os ouvintes, onde gestos, pausas, tom de voz eram fatores fundamentais para o sucesso da exibição. Com o Facebook e com o mundo digital mantêm-se – ou aumenta – esta ideia de show, mas em vez dos aspetos físicos (gestos, etc.), surgiram emoticons (smiles, bonecos, etc.) para substituir a mímica corporal e expressar o que as palavras não conseguem. O mecanismo do show of the self funciona da mesma maneira, quem narra – seja a voz, seja com um teclado – quer ser escutado e quer interagir com quem está do outro lado. O social network conseguiu ampliar o show do “eu” de maneira exponencial e trouxe muito mais público ao redor. No romanceiro como no Facebook, quem narra têm consciência de fazê-lo, e exibe-se para os contactos – físicos ou não – da sua comunidade ou da sua rede. Nos versos tradicionais, a criação requeria sabedoria: quem criava conhecia as regras do jogo (métrica, contexto, linguagem, rima) e aceitava “termos e condições” (como quando criamos o perfil do Facebook) daquele medium. Cada nova criação devia permanecer dentro do contexto, caso contrário não era aceite. O autor tinha de propor algo que estivesse em linha com o conteúdo coletivo da comunidade de atribuição: só desta maneira o “eu” autoral particular, através da partilha, chegava a ser universal. Sendo o homem animal social, o “eu” humano é feito para ser partilhado: alias, é intersubjetivo e existe em relação aos outros. Como explica Massimo Recalcati, psicanalista lacaniano, «noi siamo fatti dall’Altro, proveniamo dall’Altro, respiriamo l’ossigeno dell’Altro, non potremmo esistere senza l’Altro» (Recalcati, 2013, p. 133). Mas se Facebook permite a existência e a expressão de todos os “eu” indiferentemente, sem precisar de assimilá-los – admite portanto todas as criações –, quem precisa duma seleção é a humana receção do utilizador. O mural é uma síntese das narrativas que circulam na web escolhidas indiretamente por nós: o que parece ser um fluxo contínuo de conteúdo desligado e desarrumado, de facto tem uma ordem precisa que se adapta ao gosto pessoal do utilizador. Há um mecanismo que seleciona o material que mais representa a nossa identidade pessoal, exatamente como no romanceiro os versos indiretamente escolhidos eram os que mais expressavam a identidade coletiva. O “algoritmo” tradicional pidalino – conservação, recriação – tem agora um nome: EdgeRank.

«EdgeRank is the name of the algorithm which Facebook uses to determine what appears in their users’ news feeds. The news feed is Facebook’s ‘Killer App’. There is a plethora of information available to Facebook users, and the newsfeed is the order in which it appears. It determines which of your connections is the most important to you and thus appears most frequently, and which kinds of content should appear higher than others.» (Newman,

2011)

EdgeRank é o algoritmo que o Facebook utiliza para selecionar o conteúdo que aparece no mural do utilizador. Baseia-se em três aspetos: afinidade (quantas vezes se visita um conteúdo e quanto se interage com este), peso das interações (comentários valem mais de um “gosto”), tempo (o conteúdo antigo, se não vem re-comentado e repartilhado, desaparece). Em síntese: quanto mais partilhamos e mais interagimos, mais recebemos conteúdos em linha com as nossas ações: assim cada utente tem uma própria versão do Facebook que será a mais fiel possível ao seu perfil. Se no romanceiro «con una narración filtrada a través de los puntos de vista, se afirma un relativismo indirecto» (Di Stefano, 2010, p. 27), no Facebook, através do algoritmo EdgeWeight, afirma-se igualmente um relativismo indireto, onde o individuo escolhe indiretamente as suas histórias interagindo e partilhando. Esta ação de seleção está constantemente in fieri: o Facebook vive “nas suas variantes” no sentido em que é uma obra sempre aberta que não tem inicio nem fim, e é sempre inédita. Esta Zusammengehörigkeit (diria Heidegger), esta lógica dialética entre conservação e criação gera movimento, atualização continua, update. Impossível procurar uma forma standard, a narração digital está sempre em media res ou ex abrupto, em constante conflito entre o que fica no mural e o que vai surgir.

Não há um autor, senão milões de coautores que contribuem, através das suas ações, a reescrever continuamente a obra do Facebook. Cada pessoa é autora do que escreve ou propõe – mais uma vez denota-se a grande importância do “eu” que fica “gravado” –, mas se não houvesse outros utilizadores à interagir com ele, o seu conteúdo individual não teria valor nem significado nenhum. Não existe o conceito de autor que cria a obra “perfeita”, ou seja acabada e certa: ele não tem a última palavra sobre o que partilha – a palavra definitiva, patriarcal; é o povo digital que, comentando

e atuando, determina a fisionomia de um conteúdo especifico. É uma obra coletiva e, sendo tal, imperfeita.

Referindo-se ao romanceiro, Pidal escrevia que «su mérito es la antigüedad» (Pidal, 1968, p. 45). Talvez seja o mérito do Facebook também. O social network, na verdade nasceu por nostalgia. O seu fundador queria encontrar uma maneira para ficar em contacto com amigos do college: Mark Zuckerberg queria estar ligado ao seu passado, assim como cada utilizador utiliza Facebook para interagir com as pessoas que já conhece. Dificilmente fazem-se novas amizades aqui, ou não é isto que se requer (há outras plataformas mais indicadas por isso). Geralmente, a contato no Facebook vem depois de um contato real: é a segunda relação, aquela que une e liga e não aquela que apresenta. O seu valor está em conseguir reunir as experiencia passadas e conserva-las no presente. Facebook é a herança do passado, os arquivos fotográficos e informativos de cada utilizador revelam muito da sua história. A síntese existencial de uma pessoa talvez exista mais no seu perfil (que nós vamos espreitar cada vez que se quer saber algo de alguém) que nas suas palavras ou na sua presença física. Assim o romanceiro, na sua presença virtual, conservava os traços distintivos do passado.

Que tipo de linguagem se utiliza no Facebook? Com certeza uma linguagem acessível, rápida, facilmente interpretável e compreensível por todos: a linguagem do dia-a-dia. Ao contrário de Twitter, não há limite de palavras que se podem publicar, assim cada texto pode variar. «Na prática, todavia, a grande maioria dos utilizadores mostra preferência, no Facebook, pelos textos breves face às longas dissertações, mesmo tendo esta escolha» (Mendes, 2012, p. 46); mais uma vez, como no romanceiro, prefere-se adotar uma linguagem intensa e essencial, longe dos lirismos altos das instituições literárias. O prazer de narrar por narrar, necessita de um dizer claro e transparente que relate com veemência. Um aspeto peculiar da linguagem social é usufruir de hashtags. Citando a definição de Wikipédia, o termo hastag define-se como: palavra ou frase após uma cardinal, usado para identificar mensagens relacionadas com um tópico específico. Trata-se de fórmulas «muy semantizadas» (Di Stefano, 2010, p. 33) com o objetivo de veicular sentido num ponto preciso. Assim como as formulas romancísticas, os hastags formam uma unidade de sentido peculiar que orienta a narração: «produce{n} una

enérgica actualización efectista del relato y encalza una recepción del texto» (Di Stefano, 2010, p. 33).

Como referimos, a dimensão horizontal do Facebook dá a oportunidade a qualquer pessoa de criar um perfil e começar a socializar através dos conteúdos. Permite a todos expressar-se e dá voz a quem não poderia falar. Se no romanceiro surpreende a larguíssima presença das mulheres – género que antigamente não podia falar nem expressar-se, sendo à margem da sociedade –, surpreende também denotar que, a nível estatístico, quem mais utilizam o Facebook são mesmo as mulheres. De facto, «the surveyed women spend an average of 81 minutes per day on Facebook, whereas men spend 64 minutes» (University of Gothenburg. School of business, economy and law, 2012).

Ainda mais interessantes são as dinâmicas atemporais que o poder utiliza para o próprio ofício. Sabemos que na antiga vida do romanceiro «influye el consolidarse de un romancerismo profesional cortesano entre noticiero y celebrativo» (Di Stefano, 2010, p. 38). O mesmo processo se passa no Facebook. Reparamos que cada poder – económico, político, institucional – tem um perfil social: mas se os utilizadores comuns narram pelo prazer de narrar, o poder narra pelo prazer de informar ou celebrar. A informação, hoje em dia, não pode não considerar os social networks. Se antiguamente as notícias eram divulgadas exclusivamente através dos canais informativos, agora as pessoas aprendem sobre um acontecimento específico através dos social networks: só depois é que pretendem consultar os media de informação. Atualmente, todos os jornais ou revistas estão bem ativos nas redes sociais; o trabalho de divulgação da informação começa propriamente ali. De mesma maneira, a auto-celebração do poder encontrou na rede social um valioso aliado para a multiplicação da própria visibilidade. Já vimos que todos os partidos políticos têm um perfil no Facebook: este meio permite-lhes não só apresentarem-se e divulgar as próprias propostas, mas também de obter importantes dados estatísticos que mostrem o grau de aderência popular – como um grande termómetro político. Também o poder literário serve-se do Facebook para a criação de obras artísticas. Cada vez mais são os autores contemporâneos que, de várias formas, utilizam o potencial social. Os autores antigos inseriam versos romancísticos nas obras deles com o objetivo de obter mais participação por parte do público: com o mesmo

propósito, os autores contemporâneos até chegam a escrever romances no Facebook. Se a criação proposta ao público virtual consegue obter sucesso – ou seja, muitas partilhas –, acaba-se por editar um livro “real”. Um exemplo concreto é o livro A mulher que venceu Don Juan de Teresa Martins Marques, o primeiro romance português criado no Facebook.

Conclusão

O romanceiro era a lenta articulação entre existência e imaginário que acompanhava os longos dias dos homens. Assim o é o Facebook, só que age de maneira instantânea, e acompanha-nos nas nossas horas frenéticas e ansiosas.

«Qualquer conteúdo colocado no Facebook pode, assim, tornar-se viral, disseminar-se indefinidamente pelos utilizadores, fazendo assemelhar a plataforma a um imenso boca a boca virtual; na realidade, em muitos dos seus aspectos o Facebook é uma espécie de sucedâneo da oralidade» (Mendes,

2012, p. 49)

Com a nossa dissertação, tentamos por em evidência os vários pontos comuns que unem o romanceiro e o Facebook. Parece-nos que as afinidades substanciais entre estes dois media sejam concretas e relevantes, justificando assim a arriscada comparação. Desta maneira, se durante todo o trabalho tentamos captar as semelhanças, queremos agora concluir acentuando as diferenças. O Facebook não é o romanceiro. Dizemos isto por uma razão muito simples: o homem não é o mesmo homem. As necessidades continuam a ser as mesmas – no nosso caso, narrar e reunir-se – mas difere na maneira de as expressar. Claro, mais uma vez “o medium faz a mensagem”, mas também o medium é feito pelo criador e reflete a sua essência. Para fugir à morte – o ato de criação é um ato de resistência à morte – hoje em dia focaliza-se tudo no conceito individual do “eu”. O “eu” antes do “outro”, o “outro” existe só para confirmar a existência inassimilável do próprio “eu”. Estamos na sociedade do selfie, do self-branding, do self-publish, do self-made, tudo está constantemente referido ao “eu-sujeito” que, pela sua construção e idealização, transforma-se em objeto. Como já teorizou Cristopher Lash no seu The Culture of

Narcissism, estamos na cultura do narcisismo, determinada pela atração (fatal?) que cada sujeito tem por si. A atração é tanta que se perde o conceito humanizante de vergonha, sendo o antigo sentimento do pudor um obstáculo à visibilidade. Ser visíveis é o valor, seja qual for o custo que isto tem. O Facebook reflete a sociedade atual e transforma-se num grande vaso a forma do “eu” que contém o líquido duma sociedade – diria Marco Belpoliti – sem vergonha.

Mas o mundo ocidental, desde as suas origens, focaliza-se e bate-se pelo valor do indivíduo. “Conhece a ti mesmo”, dizia Sócrates já na antiga Grécia. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, declara-se no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cada indivíduo tem direito à existência; dessa forma, cada indivíduo tem o direito de se expressar. O romanceiro representava os sujeitos que não o podiam fazer. O Facebook permite a todos indistintamente de falar. O risco – que o social network aumenta – de ser narcisistas é uma imensa conquista humana. Estamos nos versos dum romanceiro tanto quanto num mural do Facebook.

Foucault escrevia que as suas indagações históricas sobre o passado são apenas a sombra projetada pela interrogação do presente. É neste lógica que olhamos para trás para o romanceiro tradicional, e parece-nos sensato dizer que as suas sombras estão projetadas no mural do Facebook, onde segue a longa e fascinante evolução do indivíduo humano.

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