A obra filipina do Mosteiro de N.ª Senhora do Desterro: processo construtivo e concepção arquitectónica

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SEPARATA

Mosteiros Cistercienses História, Arte, Espiritualidade e Património

TOMO II DIRECÇÃO José Albuquerque Carreiras

Actas do Congresso realizado em Alcobaça nos dias 14 a 17 de Junho de 2012

ALCOBAÇA 2013

A OBRA FILIPINA DO MOSTEIRO DE N.ª SENHORA DO DESTERRO: PROCESSO CONSTRUTIVO E CONCEPÇÃO ARQUITECTÓNICA RICARDO LUCAS BRANCO*

O antigo mosteiro cisterciense de N.ª Senhora do Desterro, apesar das vicissitudes que sofreu e da obscuridade em que permaneceu a história da sua construção, constitui, ainda hoje, um marco arquitectónico fundamental na imagem da cidade de Lisboa. Em boa parte poupado pelo Terramoto, o seu actual estado de conservação deve-se sobretudo à acção humana e aos estragos a que foi sujeito desde o final do séc. XIX ao início do XX (Fig. 1).

Fig. 1. Primeiro nível dos três que outrora compunham o frontispício da desaparecida igreja do Mosteiro cisterciense de N.ª Senhora do Desterro – actual entrada do Hospital – hoje sem os nichos laterais e com a galeria tripla do pórtico parcialmente fechada

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Investigador do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL) e Bolseiro de Doutoramento. A presente comunicação insere-se no projecto de Doutoramento em História da Arte Moderna da (FCSH/UNL), intitulado O tardo-clássico na arquitectura eclesial portuguesa no tempo dos Filipes: agentes, influências e modelos, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/64622/2009). Mosteiros Cistercienses, Vários Autores, José Albuquerque Carreiras (dir.), Alcobaça, 2013, Tomo II, pp. 107-116.

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Décadas de incúria e delapidações sucessivas resultaram numa descaracterização progressiva do imóvel a que não foi também alheia a própria transformação em hospital. A complexidade que esta utilização implicou traduziu-se em alterações profundas de adaptação, pouco adequadas ao edifício, que contribuíram igualmente para o menosprezo do seu inequívoco valor patrimonial. Contudo, apesar do estado fragmentário a que chegou aos nossos dias, o Mosteiro do Desterro constitui um raro testemunho da nossa mais qualificada arquitectura tardo-clássica, fazendo parte dos grandes complexos monástico-conventuais construídos em Lisboa no período filipino (1580-1640). Resultado da política de apoio à renovação empreendida pelas ordens religiosas e aos seus programas construtivos, a arquitectura conventual portuguesa conheceu sob o domínio dos Áustrias um notável impulso. A acção militante das ordens, que mesmo antes do Concílio de Trento se vinham criando de novo ou renovando no seu espírito1, encontrou reflexo na administração filipina, acabando esta por conferir a expressão material adequada à reforma eclesiástica iniciada no primeiro terço do século XVI. A vontade de afirmação imperial da dinastia e dos seus monarcas como defensores da fé católica, deu então origem a um surto edificador sem precedentes, que se concretizou em obras de escala monumental como o Mosteiro de S. Vicente de Fora, o Mosteiro do Desterro, o Colégio jesuíta de S.to Antão-o-Novo, em Lisboa (hoje Hospital de S. José), o Colégio de Jesus em Coimbra, o Mosteiro de Santos-o-Novo ou o antigo Convento de S. Bento da Saúde (transformado no actual Parlamento). A pouca atenção que mereceu a história da construção do Mosteiro do Desterro até à actualidade, não tem que ver com a falta de visibilidade ou relevância do mesmo, que permanece ainda como um dos mais imponentes da capital (Fig. 2). A ausência de estudos deve-se, sim, à escassez de informação das fontes, que se limitam praticamente aos testemunhos tardios de Fr. Agostinho de S.ta Maria (1707), do autor anónimo da História dos Mosteiros (1706) e de Gonzaga Pereira (1833). Por conseguinte, o essencial da análise historiográfica sobre este edifício encontra-se nas escassas linhas que a ele dedicaram Albrecht Haupt2, a quem devemos os valiosos desenhos da igreja levantados antes da sua destruição e George Kubler, que acertadamente o enquadrou no classicismo tardio que pautou a renovação arquitectónica filipina do final do séc. XVI3.

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Sobre este assunto vejam-se, por exemplo, os trabalhos de DIAS, José da Silva, Correntes de sentimento religioso em Portugal (séculos XVI-XVIII), Universidade de Coimbra, Coimbra, 1960, I, CUNHA, Elvira, «A Igreja em Reforma», Nova História de Portugal, SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. Oliveira (dir.), DIAS, Joao Alves (coord.), Lisboa, Presença, 1998, vol. V, pp. 413-446, FERNANDES, Maria de Lurdes, «Da reforma da Igreja à reforma dos cristãos: reformas e espiritualidade», História Religiosa de Portugal, AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), MARQUES, João Francisco e GOUVEIA, António Camões, Círculo de Leitores, Lisboa, 2000, vol. II, pp. 15-47. HAUPT, Albrecht, A Arquitectura do Renascimento em Portugal [1895], Presença, Lisboa, 1986, p. 61. KUBLER, George, A Arquitectura Portuguesa Chã entre as Especiarias e os Diamantes 1521-1706, Vega, Lisboa, 1988, p. 139. 108

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Fig. 2. Corpo dos dormitórios do antigo Mosteiro de N.ª Senhora do Desterro. Fachada lateral nascente virada para a Av. Almirante Reis. A fenestração original, com vãos mais pequenos e de formato quadrado, foi redimensionada, pelas necessidades funcionais da adaptação do edifício a hospital

Além do que estes autores escreveram, destaca-se a descoberta, em 1970, da lápide de fundação nas instalações do antigo Hospital de S. Lázaro, noticiada num pequeno artigo da autoria de José Leone, publicado em 1981. Este importante achado veio, afinal, comprovar a informação fornecida por Fr. Agostinho de Santa Maria, curiosamente com origem na mesma placa que, segundo o cronista, se localizava no claustro do mosteiro4. A inscrição, traduzida do latim, versa o seguinte: “Esta casa da Ordem Cisterciense foi fundada em louvor da Virgem Maria Mãe de Deus do Desterro e também do bem-aventurado nosso pai Bernardo Doutor exímio. No ano da natividade do Senhor [de] 1591 oitavo dia de Abril”5. Trata-se, portanto, como se disse atrás, de uma obra iniciada no período de Filipe II e concordante, cronológica e formalmente, com a actividade do arquitecto Baltazar Álvares. A ausência de confirmação documental impedia, no entanto, uma atribuição

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“Fundata est domus ista Ordinis Cistertiensis in laudem Deiparae Virginis Mariae de Exilio, necnon Beatissimi Patris nostri Bernardi eximii Doctoris anno a Nativitate Domini 1591. octava die Aprilis”. S.ta MARIA, Fr. Agostinho de, Santuário Mariano e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora e das milagrosamente apparecidas em graça dos pregadores e dos devotos da mesma Senhora... Lisboa, officina de António Galvão, 1707, t. I, liv. II, p. 289. Este texto apresenta pequenas diferenças ortográficas em relação à lápide original. LEONE, José, «A propósito da fundação do Mosteiro do Desterro: encontrada a lápide que regista a efeméride», Separata Boletim Clínico dos Hospitais Civis de Lisboa (n.º 39), Lisboa, [s.n.], 1981 pp. 27980 e 288. No entanto, Fr. Manuel de Figueiredo esclarece, no documento que citamos à frente, que a data inscrita nesta lápide resulta de um equívoco gerado pela distância temporal em que foi mandada fazer, no triénio de Fr. Feliciano Coelho, em 1627. A data correcta seria, segundo o cronista, 15 de Abril e não dia 8. 109

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segura, pois Filipe Terzi detivera o cargo de arquitecto-mor do reino desde 1590 até à sua morte em 1597, sendo essa a razão pela qual se lhe chegou a atribuir a paternidade da obra6. Ora, podemos hoje garantir sem qualquer dúvida, como já tivemos oportunidade de divulgar7, que foi Baltazar Álvares e não Terzi, o autor do Mosteiro do Desterro. Esta informação, absolutamente central para o estudo da sua obra, encontra-se num manuscrito do cronista cisterciense Fr. Manoel de Figueiredo, a Dissertação Historica e Critica, para apurar o Catalogo dos Coronistas Móres do Reino, e Ultra-Mar8. Obra tardia (1780), mas que inclui um capítulo inteiramente dedicado à construção do edifício, intitulado “Fundação, e progressos do Mosteiro de N. Sn.ra do Desterro da Corte de Lisboa e Catalogo Chronologico dos seus Abbades”, transcrito de documentos originais dos arquivos do Desterro e de Alcobaça, hoje dispersos. Aí se diz que a decisão de fundação do novo mosteiro foi tomada numa junta reunida para o efeito no Colégio de S. Bernardo em Coimbra, a 9 de Dezembro de 15819, cinco meses depois da entrada de Filipe II em Lisboa. Por conseguinte, a empresa terá certamente contado com o apoio do monarca que concedeu a licença de fundação por alvará régio emitido a 14 de Agosto de 158610. Foi esta depois confirmada através do beneplácito apostólico pedido ao papa Clemente VIII, que emitiu um Breve “concedendo ao Abade do novo Mosteiro toda a jurisdição, e privilégios, que gozavam os Abades Cistercienses”11. Em 1590 é então contratualizada a aquisição do terreno destinado ao mosteiro que é loteado entre a Rua dos Anjos, Travessa do Desterro, Calçadinha e Rua dos Açougues e Hortas de Santa Bárbara, reunindo algumas propriedades privadas e terrenos do Hospital de S. Lázaro e do Senado da Câmara12. A política de benefícios concedidos por Filipe II às ordens religiosas não pôde deixar de envolver a Ordem de Cister, então uma das mais poderosas em Portugal. Esta, por outro lado, não tendo ainda representação na capital (junto do centro decisório do poder), deve ter procurado materializá-la, com o apoio régio, à imagem da importância que detinha.

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RUÃO, Carlos, O Eupalinos Moderno: teoria e prática da arquitectura religiosa em Portugal 1550-1640 [policopiado], Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. BRANCO, Ricardo, Italianismo e Contra-Reforma: a obra do arquitecto Baltazar Álvares em Lisboa [policopiado], Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008. FIGUEIREDO, Fr. Manoel de, «Fundação, e progressos do Mosteiro de N.ª Sn.ra do Desterro da Corte de Lisboa e Catalogo Chronologico dos seus Abbades», Dissertação Historica e Critica, para apurar o Catalogo dos Coronistas Móres do Reino, e Ultra-Mar, Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) Reservados, Cod. 1490, 1780. Ibidem, f. 21. FIGUEIREDO, cit., f. 21vº. Ibidem. Ibidem. 110

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É nessa perspectiva que deve ser vista a intervenção do arquitecto do rei, que, sublinhe-se, tinha sido também o responsável pelos grandes projectos dos Agostinhos, Jesuítas e Beneditinos. Com efeito, tal como as fontes documentais esclarecem, “O risco para o novo Mosteiro fez Balthezar Alvares, Mestre das Obras Regias que foi aprovado pelo R.mo Geral Fr. Gerardo das Chagas, […] aos 12 de Maio de 1592, e todos escolheram para M.e da Obra o mesmo que formou a ideia, e Planta do Mosteiro com 40$000 reis de ordenado anualmente satisfeitos”13. Os cistercienses colocavam-se, assim, a par da renovação arquitectónica operada pelas outras ordens, contando com o concurso de um arquitecto de prestígio, que ao tempo detinha já os cargos de Arquitecto da Comarca do Alentejo (1575), dos Paços Reais de Almeirim e Salvaterra (1581), do Mosteiro da Batalha (1581) e das Obras de S. Vicente de Fora (1582)14. Cinco anos depois da aprovação do plano do Mosteiro do Desterro, Baltazar atingiria o topo da hierarquia profissional ao ser nomeado Arquitecto das Ordens Militares (1597), por morte de Filipe Terzi15. As obras foram entretanto prosseguindo, e quando o edifício atingiu “extensão, e disposições para a Regular observância” considerou-se a eleição do seu prelado. A decisão foi, uma vez mais, tomada em Coimbra, no Colégio de S. Bernardo, com representantes da congregação castelhana e, “por Comissão do Coleitor Apostólico e Ordem de Filipe 2º (III)”16, visitadores da congregação portuguesa. No entanto, a eleição ocorreu em Alcobaça, no capítulo geral que aqui se celebrou a 1 de Maio de 1615. A partir desta data as notícias são escassas, mas tudo indica que os trabalhos prosseguiram até 1640, quando, tendo-se já erguido grande parte do templo e das estruturas essenciais de apoio, as obras foram totalmente suspensas. Segundo algumas fontes, isso ficou a dever-se ao facto de D. João IV não ter permitido aos Cistercienses “Caza principal na Corte”17, ficando esta reduzida a hospício para acolher os frades bernardos quando se deslocavam a Lisboa. Não sabemos se foi essa a razão, embora tal notícia pareça confirmar a ligação régia do empreendimento. De facto, é fácil perceber que, além de o Mosteiro do Desterro ter nascido de uma conjuntura ancorada no poder filipino, depois radicalmente alterada após a Restauração da independência, a sua conclusão, pela vastidão do programa, constituía também um encargo substancial que a Congregação, e sobretudo Alcobaça, não estavam já na disposição de sustentar.

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FIGUEIREDO, cit., f. 21vº. Ver documentação relativa à nomeação dos respectivos cargos: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Chancellarias de D. Sebastião e D. Henrique – Doações, liv. 44, f. 378, VITERBO, F. Sousa, Dicionário histórico e documental dos arquitectos, engenheiros e construtores portugueses, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1988, v. I, p. 16; ANTT, D. Filippe I – Doações, liv. 2, f. 46vº e 47; Ibidem, v. I, pp. 16-17; ANTT, D. Filipe III – Doações, liv. 30, f. 64vº; Ibidem, v. III, pp. 120-121. ANTT, Chancellaria da Ordem de S. Thiago, liv. 6, f. 256vº; Ibidem, v. I, p. 493. FIGUEIREDO, cit., f. 22vº. PEREIRA, Luís Gonzaga, Monumentos Sacros de Lisboa em 1833, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927, p. 53. 111

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A avaliar até por fontes exteriores à Ordem, os seus rendimentos, que advinham dos foros cedidos por Alcobaça na Quinta de Barcarena, Casal de S. Marcos e Quinta dos Olivais, não eram suficientes. O sustento da casa era, em grande medida, assegurado pelo contributo de Alcobaça e de outros mosteiros cistercienses sufragâneos que como é referido, “teriam mais gosto de [o] empregar em obras dos mesmos do que na casa de Lisboa”18. Note-se que a própria cabeça da Ordem se encontrava agora envolvida num programa de renovação, justamente apoiado pela nova dinastia brigantina, não convindo pois divergir fundos para uma obra custosa – originada na dinastia anterior (derrotada) –, cuja conclusão e mesmo a própria existência deixara de se justificar. Só mais tarde, em face da degradação que certamente ameaçava as estruturas já erguidas, a construção do mosteiro recebeu um novo impulso. Primeiro de “D. Afonso VI, [que] ofereceu uma esmola [para] continuar a obra da igreja” e depois de D. Pedro II que, “por Alvará datado em 17 de Maio de 1674, aplicou para as obras 600$000 reis anualmente pagos”19. Pelo autor da História dos Mosteiros, sabemos que, em 1707, o templo se encontrava adiantado, com a fachada erguida até à última cornija e se começavam a levantar as duas torres: “tem esta igreja muito adiantada já a sua frontaria, que sem dúvida será uma das mais nobres que terá Lisboa” e “se tem principiado nos extremos de cada parte uma torre que promete uma nobre obra que o tempo nos irá mostrando”20. Por seu turno, a nave estava também terminada até ao cruzeiro, embora a capela provisória localizada na portaria (onde ainda hoje se encontra), continuasse a servir o culto, pois faltava ainda construir a capela-mor. Terá sido por esta altura que o complexo se completou na forma que hoje apresenta, com os três dormitórios abobadados e os dois claustros e respectivas dependências à direita do templo. O imenso volume desta estrutura está, mesmo assim, longe de ter atingido a extensão inicialmente pensada, pois, conforme esclarece a Historia dos Mosteiros, “a sua traça havia de ter outros dois claustros e outras obras da outra parte [esquerda] da igreja”21. O seu plano geral repetia, portanto, o esquema de S. Bento da Saúde, com dois claustros menores flanqueando a igreja axial e outros dois maiores atrás em redor dos quais se distribuíam as principais dependências, como o amplo refeitório que ainda hoje existe intacto entre os dois claustros existentes (Figs. 3 e 4).

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História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa, na qual se dá notícia da fundação e fundadores das instituições religiosas, igrejas, capelas e irmandades desta cidade [1707], transcr. Durval Pires de Lima, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1950-72, t. II, p. 3. Nesta obra, que se deve a um anónimo jesuíta, é ainda referido que o peso dessa contribuição para os restantes mosteiros era ainda agravado por “haver ela de ter duração o tempo que continuarem as obras, que conforme estão traçadas há-de ser espaço muy largo”. FIGUEIREDO, cit., f. 22vº. História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa, t. II, pp. 5-6. Ibidem, t. II, p. 5. 112

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Fig. 3 e 4. Claustro pequeno e claustro grande do Mosteiro do Desterro. As galerias de ambos encontram-se actualmente fechadas e divididas por um piso intermédio. Construído no esconso do telhado, o segundo andar do claustro principal é também uma alteração posterior ao projecto primitivo, que terminaria em terraço com remate de aparato ao nível das actuais pedras-chave das arcadas e com pináculos na prumada das pilastras

O alçado do claustro maior, reconstituível pelo que resta da sua fábrica, caracteriza-se pela repetição de um módulo largo em cinco grandes arcos de volta perfeita de proporção sesquilátera (3:2), ladeados por pilastras duplas. Ao contrário do que se supõe, não teria um segundo andar, como se prova pela relação entre a cota de nível das arcadas e a dos pisos inferiores do edifício imposta pela acentuada pendente do terreno. Construído no esconso da cobertura o segundo andar do claustro é, na verdade, uma adição do séc. XIX-XX que o projecto original não previa, devendo o alçado terminar no entablamento interrompido pelas enormes chaves dos arcos, num desvio normativo maneirista que contribuiria, sem dúvida, para a originalidade do seu desenho. A dimensão destas chaves, que inviabilizariam qualquer balaustrada, aponta, aliás, para um remate de aparato de uma cobertura em terraço, sendo porventura ladeadas de outros ornatos e com pináculos na prumada das pilastras. Pelo exterior, a monumentalidade da construção impõe-se ainda sobre o traçado urbano, com a sua fachada lateral de dezanove vãos, de métrica larga, divididos em quatro pisos. Tal como em S. Bento, os dos extremos são também enobrecidos pela sugestão de torreões, cingidos por pilastras toscanas gigantes suportando o respectivo entablamento, ausente do restante alçado. Esta marcação é ainda acentuada pelas possantes bases onde as pilastras assentam: primeiro em silharia lisa e, no nível térreo, em silharia almofadada de recorte italianizante. O eixo central do corpo conventual é, por seu turno, resolvido de forma bem portuguesa, por uma articulação eficaz de três vãos de sacada sobrepostos com balcões assentes em mísulas triglifadas, de referência tratadística. Para sempre interrompido pelas razões já expostas, os danos provocados pelo Terramoto vieram também contribuir para o inacabamento do edifício que, logo em 1755, 113

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receberia doentes do arruinado Hospital Real de Todos os Santos ao Rossio, iniciando uma utilização na área da assistência de saúde que se prolongaria até aos dias de hoje22. Da grande igreja, nunca acabada, subsiste apenas a metade inferior da fachada com o pórtico de arcaria tripla e o respectivo nartex, que constituiu durante anos a entrada do hospital em que foi transformado o mosteiro (Fig. 1). O segundo nível do frontispício e a nave que o Terramoto poupara, pois apenas lhe arruinou a abóbada, foram sendo sistematicamente demolidos desde finais do séc. XIX aos princípios do séc. XX, existindo ainda uma fotografia antiga tirada de longe na colina oposta, antes desse momento23. Felizmente, os desenhos que Haupt nos deixou permitem-nos ter uma ideia bastante definida do que seria o templo, pelo menos no que a estes sectores diz respeito, porque do transepto e da cabeceira, nada sabemos. Como tem sido apontado, a fachada da igreja do Mosteiro do Desterro aproximavase muito da de S. Vicente de Fora, apresentando, tal como esta, uma feição palaciana, caracterizada pela sucessão de vãos coroados por frontões alternadamente curvos e triangulares24. Contudo, muito mais do que uma metáfora, tal expressão, como noutra ocasião esclarecemos25, tem um fundamento concreto relacionado com fontes de inspiração específicas. No caso da fachada de S. Vicente de Fora, a Villa Cambiaso em Génova, construída por Galeazzo Alessi em 1548, e na do Desterro, uma gravura do tratado de Serlio, representando a fachada dos jardins de um projecto não realizado de Rafael para a Villa Madama26.

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O início da atribuição de funções assistenciais ao edifício remonta a 1750, altura em que o mosteiro viria a albergar, por ordem de D. José, doentes transferidos do Hospital Real de Todos-os-Santos, então devastado por um violento incêndio. FIGUEIREDO, Fundação, e progressos do Mosteiro de N.ª Sn.ra do Desterro da Corte de Lisboa e Catalogo Chronologico dos seus Abbades, f. 23vº. Aí se mantiveram durante um ano, findo o qual regressaram à enfermaria de S. Camilo do hospital do Rossio, que foi a única a escapar do fogo. MOITA, Irisalva, «Hospital Real de Todos-os-Santos: enfermarias-aposentadorias-serviços», Hospital Real de Todos-os-Santos 500 anos, PEREIRA, Paulo (dir.), CML, Lisboa, 1993, p. 43. A seguir ao Terramoto, os monges ainda voltaram ao mosteiro, tendo-o habitado até 1814, mas a partir daí deixou de o ser definitivamente, passando a anexo do Colégio dos Meninos Órfãos da Mouraria. Ainda no reinado de D. João VI foi transformado em asilo da Casa Pia e depois da extinção das Ordens Religiosas em Hospital da Marinha. Finalmente, em 1857, passou a anexo do Hospital Real de S. José (instalado em S.to Antão-o-Novo) para tratamento de doenças de pele e venéreas. Da autoria de Mário Novais (1875), mostra o mosteiro visto de N.a Senhora do Monte antes das demolições, vendo-se ainda a nave da igreja – já sem cobertura – mas com a fachada completa. KUBLER, A Arquitectura Portuguesa Chã, p. 139, SOROMENHO, Miguel, «Classicismo, italianismo e “estilo chão”. O ciclo filipino», História da Arte Portuguesa, PEREIRA, Paulo (dir.), Círculo de Leitores, 1995, Lisboa, vol. II, p. 380. BRANCO, Italianismo e Contra-Reforma: a obra do arquitecto Baltazar Álvares em Lisboa, v. I, pp.115 e 131-132. SERLIO, Sebastiano, On Architecture, trad. e notas, Vaughan Hart e Peter Hicks, New Haven & London, Yale University Press, 1996, vol. I, liv. III [1540] of «Tutte l’Opere d’Architettura et Prospetiva», p. 239 [fl. 120v]. 114

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Fig. 5 e 6. N.ª Senhora do Desterro, Lisboa (Baltazar Álvares, 1591), fachada da igreja desenhada por Albrecht Haupt em 1887. Gravura do tratado de Serlio (Livro III, 1540), representando um projecto não executado de Rafael Sanzio para a fachada dos jardins da Villa Madama. A correspondência formal entre ambas comprova a matriz italiana do desenho de Álvares, que adaptou um prospecto de palácio ao frontispício de um templo

A semelhança entre este modelo e a igreja do Desterro, aliada à equivalência das portas do seu nartex, com as de outra gravura do Livro IV do bolonhês27, vem igualmente reforçar a matriz serliana do alçado traçado por Baltazar Álvares, que como se sabe hoje estagiou em Itália entre 1575 e 157828. Apesar da definição mais complexa da fachada da igreja, nomeadamente ao nível dos ressaltos dos perfis verticais e na pormenorização decorativa (explicáveis pela datação mais avançada), não deixa de ser notável que tal programa viesse a concretizar-se em Portugal, curiosamente adaptado à frontaria de um templo (Figs. 5 e 6). Testemunho das ligações entre a nossa arquitectura e da sua actualização estética com o maneirismo e tratadística italianos, é sem dúvida um importantíssimo valor patrimonial a preservar, mau grado o estado de conservação a que chegou aos nossos dias. Foi esta arquitectura que Albrecht Haupt teve a possibilidade de ainda ver quase intacta, não só no exterior, mas também pelo interior que já antes impressionara o autor da História dos Mosteiros: “entrando das portas para dentro descobrem os olhos um grandioso templo todo de mármores brancos, o qual consta por cada lado de seu corpo de cinco capelas

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Que já influenciara o claustro grande do Convento de Cristo. Ibidem, liv. IV [1545], p. 311 [fl. 154r]. “un hombre criado de S.M. que reside aqui, [em Lisboa] que le tienen acá por grandísimo arquitecto y trazador, que el rey D. Sebastian le envió á Itália, donde estuvo algunos años deprendiendo estas artes” – carta do duque de Alba a Filipe II de 9 de Outubro de 1580. SALVÁ, D. Miguel et al., Colección de documentos inéditos para la Historia de España, Madrid, Imprenta de la Viuda de Calero, 1885, v. XXXIII, p. 122. A identificação com Baltazar Álvares, que é mencionado na resposta do rei à mesma carta, deve-se a Rafael Moreira – MOREIRA, Rafael, «A Arquitectura Militar», História da Arte em Portugal, Publicações Alfa, Lisboa, 1986, vol. 7, p. 150. 115

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Fig. 7 e 8. N.ª Senhora do Desterro, Lisboa (Baltazar Álvares, inic. 1591), desenho de Albrecht Haupt do alçado axial da nave da igreja do Mosteiro do Desterro antes da sua demolição. A sua configuração com cinco capelas e tribunas sobrepostas seria idêntica à da igreja do colégio jesuíta de S. Salvador da Baía (inic. 1652) que repete na íntegra o mesmo modelo (à direita)

fundas; […] e por cima dos arcos das capelas […] assentando sobre o meio de cada arco, uma formosa janela de tribuna pela qual participará a igreja de muita luz”29. Ou seja, uma ampla nave abobadada em caixotões de pedra com um alçado de cinco capelas sobrepostas por tribunas e separadas por pilastras (Figs. 7 e 8). Esta fórmula, inaugurada no Desterro por Baltazar Álvares e repetida em S.to Antão-o-Novo, será depois usada ao longo de grande parte do séc. XVII, embora progressivamente despida da componente estrutural e erudita conferida pelas ordens arquitectónicas clássicas, em detrimento de outra, decorativa e vernácula resultante dos revestimentos de talha e pintura. Estes revestimentos ganharão então preponderância sobre a arquitectura, e as próprias capelas – como aponta já o tratado de Mateus do Couto (tio) – vão perdendo progressivamente a circulação cripto-colateral, passando a abrir-se à face da nave, numa solução simplificada do modelo inicial, que encontrará ainda eco nas igrejas do período pombalino: “E poderá ser o que digo, fazendo-se os ditos Templos de uma só Nave e havendo Capelas pelo prolongo do corpo da Igreja, [é] fazê-las à face, e de modo que se vejam todos os Altares”30.

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História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa, t. II, p. 6. As escalas que Haupt usou nos desenhos da igreja do Desterro não estão, contudo, correctas fazendo o edifício maior do que era. De acordo com os nossos cálculos, o comprimento da nave, incluindo o coro-alto, seria de 36,75m e até ao arco triunfal de 50m, o mesmo da nave de S. Vicente. Com cerca de 20m de altura e 13m de largura era no entanto mais baixa e menos larga que esta última. BNP, Reservados, cod. 946, Tratado de Architectura que Leo o Mestre e Archit.o Matheus do Couto o Velho, no anno de 1631, cap. XI (sobre os templos), f. 39. 116

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