A obsessão histórica da alteridade luso-brasileira

Share Embed


Descrição do Produto

FRONTEIRAS CULTURAIS E ESCALAS IDENTITÁRIAS: A OBSESSÃO HISTÓRICA DA ALTERIDADE LUSO-BRASILEIRA Marçal de Menezes Paredes Doutor em História, Univ. de Coimbra, Portugal Professor do PPG em História, UFRGS E-mail: [email protected] Resumo: Como se delimitam as fronteiras culturais? Como se justificam as identidades nacionais? De que forma a história é mobilizada nesse processo? A partir destes questionamentos, o artigo discute o processo de negociação identitária no contexto lusobrasileiro do final do século XIX. Focaliza a centralidade da história no repertório teórico dezenovista e demonstra de que forma sua mobilização foi trabalhada como elemento demarcatório da alteridade entre Portugal e Brasil. Discute a formação de diferentes matrizes históricas para a assunção de ambas as culturas nacionais através da análise de alguns textos de intelectuais da chamada Geração de 1870, como Antero de Quental, Teófilo Braga ou Oliveira Martins, para o caso português, e Sílvio Romero, Manoel Bomfim ou José Veríssimo, para o caso brasileiro. Assim, o debate identitário observado no âmbito dialógico, enaltecendo o caráter histórico das fronteiras mnemônico-culturais. Palavras-chave: identidade nacional; historicidade; relações culturais luso-brasileiras. *** Se a “recordação é um ato de alteridade”, como afirma Paul Ricoeur (1997), importante será constatar também que há mais de uma maneira de mobilizar esta recordação. Esta assertiva conduz, forçosamente, que se considere a existência de mais de uma maneira de mobilizar a alteridade, posto existir mais de uma forma de perceber o outro a ser contrastado. E de fundamentá-lo historicamente. Bem vistas as coisas, atentaremos que a relação de alteridade que consubstancia, por contraste, a formulação, a definição e a demarcação (GIL, 1998: 397) das identidades, se submetida ao estudo de casos concretos de dialogia cultural, não pode ser tratada tão-só in abstrato. Afinal, se concordarmos que há mais de uma

maneira de convocar a historicidade na demarcação das identidades, isto é, que há mais de uma maneira de construir historicamente a alteridade a ser contrastada pela definição do “eu nacional”, chegamos à conclusão de que há também mais de uma relação de alteridade. Tendo isto presente, lógica será a constatação de que a cada maneira de mobilizar a história, corresponderá uma forma de demarcação identitária, bem como esta implicará também a eleição de um padrão de relacionamento cultural projetado. E será a combinação deste puzzle memorial e identitário o complexo responsável pela abertura de algumas portas de relacionamento cultural (e pelo fechamento de outras), pela lembrança de alguns fatos (e pelo esquecimento de outros). Em todos os casos, a leitura e a mobilização da história funciona como elemento central de fundamentação identitária. Ela é o móbil mnemônico que enseja o nascimento das evidências – os fatos históricos – sob as quais se projetará o futuro nacional (e sua realização identitária, portanto). Bem vistas as coisas, percebemos existir neste “elo” temporal a confluência do que Reinhardt Koselleck (1990) chama de “campo de experiência” e “horizonte de expectativa” com o processo que Fernando Gil (1998) considera existir (na produção da crença) entre os processos de “fundação” e “fundamentação”. Explica-se. É que a fundação de uma “cultura nacional” – tarefa tão cara aos movimentos românticos, por exemplo – recorre a diferentes critérios de mobilização da historicidade no sentido de operar sua fundamentação, demarcando, deste modo, um “campo de experiência” sob o qual se projetam “horizontes de expectativa” que contém, implicitamente, padrões de relacionamento a serem estabelecidos. Chega-se, com isso, ao ponto de afirmar que a leitura da história fundamenta tanto a definição dos “entes” coletivos quanto a manifestação da “relação de alteridade” estabelecida entre eles. A estas questões, agreguem-se as considerações sinalizadas por Hayden White, nomeadamente quando ele chama atenção para o fato de que o historical process is marked by a distinctive kind of temporality different from that found in nature. This temporality is multileveled, is subject to differential rates of acceleration and deceleration, and functions not only as a matrix within which historical events happen but also as a causal force in the determination of social reality in its own right” (WHITE, 2002:xiii).

Ora, se concordarmos que a percepção temporalidade é, ao mesmo tempo, múltipla e variada, e se aceitarmos também que a escolha da forma de mobilização temporal representa uma força de causalidade – na medida em que produz significados de realidade –, perceberemos que será na demarcação das identidades nacionais – escopo referencial da realidade – que se combinarão estes elementos todos. Trata-se, como atrás se disse, de um fenômeno onde a escrita da história manifesta-se menos como um “mapa” e mais como uma “arena”. Uma “arena da história”, portanto, na expressão de Rui Cunha Martins (2001). Nesta arena, dizemo-lo nós, serão estabelecidos também os padrões de relacionamento cultural, pois o bisturi da crítica – no momento das “turbulências do limite” (MARTINS, 2001) – e o efeito anestésico das “políticas da memória” (HACKING, 2000:229) dirão qual é a coletividade identitária que está aí. Dirão qual a “cultura nacional” que se evidencia e qual a relação de alteridade se estabelecerá. Das muitas possíveis. Por isso, quando se trata de vasculhar o aspecto relacional das identidades nacionais, importa ressaltar que a identidade é um campo conceitual forjado por um processo de demarcação de evidências. Neste processo, a mobilização factual da história assume papel de avalista simbólico, desempenhando papel importante na obstetrícia da nação: o nascimento das evidências (históricas) que sustentam a instauração da escala nacional de discussão. Legitima-se, com isto, a fundação dos cânones de cultura nacional. *** Toda esta conjunção de elementos teóricos aparece de maneira bastante nítida no contexto do final do século XIX. Tratava-se de um momento onde co-habitavam padrões de entendimento da história tanto como “ciência concreta” quanto como “força abstrata”, tanto como consumação de leis universais quanto como manifestação do espírito do povo. Esta avaliação não escapou a Joaquim .Pedro de Oliveira Martins, ao considerar, em Os Filhos de D. João I, que “a arte de escrever a história está atravessando um período de transformações” (1891:33). Veja-se outro exemplo. Em 1871, Antero de Quental inicia as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos com o seguinte quadro:

A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizerse que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como podermos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar” (1990:95, grifos meus).

Neste trecho, merece atenção a palavra “peninsular” – a escala de referência identitária – e sua implicância numa estética de relacionamento cultural hispanoportuguês sob a óptica da unidade peninsular. Outro elemento a destacar é o olhar que ao passado comum – o ápice evolucionário ibérico dos descobrimentos – é convocado em instância crítica, sob a égide de uma forte evidência, aos olhos anterianos: a decadência (PIRES, 1991), fato que transformava o olhar crítico ao passado (ibérico) em pura negatividade, moldando, por assim dizer, uma estética da perda. Estética da decadência. Não por acaso, Portugal será entendido como o “enfermo do Ocidente”, na forte expressão de Oliveira Martins, título de um capítulo de sua História de Portugal, publicada em 1881. É que tal mobilização da história e da identidade entra na seara bipolar manifesta dos conceitos de progresso e decadência, conceitos, aliás, que não se perceberá o alcance sem que sejam pensados relacionalmente (SERRÃO, 1963). Percebamos, ainda, outro elemento importante do discurso de Antero: a referencialidade aos “pecados históricos”, entendidos como os responsáveis pela “decadência” dos povos ibéricos. Atente-se, porém, que a contrição não era mais perante um Deus todo-poderoso, mas diante da História da Humanidade. Das lições do passado surgiriam respostas para a regeneração futura. Eis o bordão comum. O “campo de experiência” demarcado. Que razões explicariam as glórias dos descobrimentos? Que motivos revelariam o porquê tudo se perdeu? Estes eram os questionamentos que

marcaram a Geração de 1870 em Portugal. Certo é que tanto Antero quando Oliveira Martins partilhavam de uma mesma convicção, qual seja, de que o inquérito ao passado – ao “tribunal da história” – apontariam as respostas para o (re)erguimento nacional projetado. Este tribunal, organizado pela Razão Universal através do estudo do passado, será o locus privilegiado da “contrição” do autor das Odes Modernas – como demonstra a carta de Antero a Eça (QUENTAL,1880) –, bem como estará também vinculada à “lição moral” ensinada pela história, como considerava o autor dos Filhos de D. João I (CATROGA, 1981:138). A criticidade exacerbada pelo decadentismo anteriano e martiniano, nos remete às filosofias da história do século XIX (LÖWITH, 1990), no sentido em que estas representam uma “entificação da história da humanidade” (CATROGA, 2003:64). Trata-se de um fenômeno onde as idéias são classificadas por ordens abstratas, num contexto onde “les libertés deviennent la Liberté, les droits deviennent le Droit, les progrès deviennent le Progrès, et les révolutions plurielles deviennent «la Révolution»” (KOSELECK:1990:47). Bem vistas as coisas, o tratamento in abstrato dos conceitos é oriundo de uma temporalidade mobilizada, também ela, abstrata. Daí que a História – com “H” maiúsculo –, racionalmente entendida como trajeto de uma humanidade ascensional e unívoca, se tornará um importante sujeito da modernidade. Esta universalização do sentido da história, entretanto, acabava por manifestar-se num movimento de homogeneização iluminista – uniformização “à la Voltaire” que manifestava “o olhar de toupeira deste século iluminadíssimo”, como cedo apercebeu-se um irônico e incomodado Johan G. Herder (1995:8-10). Em Portugal, veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de um poema de Antero de Quental (1994:27) dedicado “À História”, inserido nas Odes Modernas de 1865: Fecha os olhos… que os passos da visão Não deixam mais vestígios do que o vento! Tu, que vais, se te sofre o coração Vira-te para trás… pára um momento… Dos desejos, das vidas, nesse chão Que resta? Que espantoso monumento? Um punhado de cinzas – toda a glória

Do sonho humano que se chama História

No caso de Antero de Quental – e também de Oliveira Martins –, a leitura da transitoriedade coletiva portuguesa foi entendida como degradação: a “lição da história” estaria no azedo gosto dos motivos que explicariam o fenecimento coletivo. Esta constatação conduz, uma vez mais, às relações entre a mobilização da história e as diferentes maneiras de demarcar das culturas nacionais, isto é, o nascimento de evidências factuais coletadas no passado e relidas pelos critérios do presente em causa, bem como das projeções que lhe são subjacentes. O que importa destacar é a forma imbricada assumida pela relação entre o conhecimento do passado, seu uso no presente e sua referencialidade com um futuro projetado é semelhante às intricadas relações entre construção da identidade, a mobilização da memória coletiva e a leitura da história nacional. O encadeamento destas questões resumiria o magistério da história (KOSELECK, 1990:39) em Portugal. Há, entretanto, uma consideração importante entre o entendimento das lições buscadas ao “baú de fatos da História” (lusitana) em relação à crítica dos “erros históricos” que explicariam a decadência portuguesa. Se na antiguidade a estruturação cíclica do tempo e do cosmos convidava a uma repetitividade exemplar do fato passado em sua importância e permanência no presente, o entendimento moderno das filosofias da história – da moderna Magistra Vitae – virar-se-á, não para o passado, nem para o presente. O conhecimento do “fato passado” é compreendido como a explicação da situação do presente, e este como meio entre a análise do passado no âmbito de projeção e construção do futuro. Trata-se de uma “previsão ao contrário”, na expressão de Schlegel. Como síntese, tome-se a explicação de Fernando Catroga: deste modo, o velho preceito ciceroniano historia magistra vitae, mesmo quando se afirmava o inverso, estava a ser objectivamente revisto, pois, se ele se adequava a mentalidades imbuídas de uma visão cíclica do tempo, ou crentes no cariz a-histórico da natureza humana, tal não ocorria com a aceitação da irreversibilidade. Se nada se repete, que utilidade poderiam ter as lições do passado? Ora, a resposta não foi negativa pelas razões apontadas: a perspectiva diacrónica continuou a ser invocada, porque as estratégias de convencimento das narrativas históricas, estruturadas segundo a lógica antecedente → consequente, não podiam explicar a sequência do

eixo temporal a partir do efeito, que elas mesmas procuravam demonstrar (2003:78).

Não surpreende, assim, que Jeffrey Andrew Barash considere que a memória "dans une dimension historique, s'est montré moin comme une acquis que comme un fardeau" (BARASH, 1999:147). O peso do passado: fardo da memória que se relaciona a uma retrospecção baseada num ideal projetado no futuro da nação portuguesa; peso pelo ápice ascensional relembrado enquanto história, trazido à lembrança como cinza do passado. Conhecimento adquirido que se transforma em fardo posto que relativo, não apenas à res gestae (ao fato perdido nos tempos idos), mas a uma conjuntura de comparação com os países ícones de modernidade; desafio de superação pelo aprendizado dos erros cometidos, esperança na regeneração da coletividade nacional. Importa salientar que esta compreensão do tempo e da História, que busca nas cinzas do passado as causas da decadência (portuguesa) num sentido projetivo de sua regeneração como progresso não se coadunará com os critérios de compreensão do cientismo historicista, muito difundido pelas ciências da natureza e pujante nas nascentes Ciências Sociais. Deste movimento sociologizante pode-se coletar um exemplo significativo na poesia cientificista de José Isidro Martins Júnior. Diga-se que o intelectual brasileiro era bem conhecido em Portugal, onde teve uma recensão-crítica favorável nas páginas da revista O Positivismo e nas da Revista de Estudos Livres chegando mesmo a publicar um artigo nesta última (BASTOS, 1884:479-480). Em 1881, Isidro Martins Júnior publica Estilhaços, As visões de hoje, obra onde propagou a “poesia científica” (VERÍSSIMO, 1998:251). Neles, deixou-nos um excelente exemplo das diferenças existentes entre a concepção metafísica do tempo das filosofias da história em relação à compreensão cientista da história, de onde se sustenta a Ciência Social. Vejamos o trecho do seu poema Síntese Científica: Mas só Comte Pôde, estóico, escalar o alevantado monte No píncaro do qual via-se a neve branca Da Nova concepção do mundo reta e franca! Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot, Newton e Condorcet e Leibiniz, – voou

Ele para as alturas mágicas da glória. Após ter arrancado ao pélago da História A vasta concha azul da Ciência Social!

Atente-se às duas últimas estrofes: a Ciência Social teria sido “arrancado ao pélago da História”, emergida do oceano impreciso do passado em busca de maior concretude e de certezas diante do porvir. O projeto de uma sistematização da vida coletiva – manifesto no conceito de sociedade – buscava tecer uma colcha de certezas legitimadas por leis universais que tiravam de cena algo muito caro ao acento de imprevisibilidade das filosofias da história: o acaso, elemento que deixa de ser questionado em toda compreensão sistemática da existência humana. Lembre-se que na classificação e hierarquização das ciências feita por Augusto Comte, a Sociologia ocuparia o lugar cimeiro, posto que representaria, na perspectiva positivista, um movimento de cientifização da compreensão do homem (noção de que é tão tributário o conceito de sociedade), substituindo, assim, as filosofias da história, de característica assumidamente metafísica. Lembre-se, também, que as poesias de Teófilo Braga, Visão dos Tempos, de 1864, e de Sílvio Romero, Cantos do fim do século, de 1878, apontam também no mesmo sentido do poema cientificista de Martins Júnior (VERÍSSIMO, 1998: 215). Em todo caso, tratava-se de se alinhar ao bordão cientista: saber para prever e prever para saber. Eis aqui o solo-comum às tentativas de cientifização da história. Teófilo Braga, representante maior do cientismo histórico em Portugal, sabia disto muito bem, tanto que, dando eco à palavras suas, perceberemos que a Filosofia Positiva trabalha sobre o critério histórico. Como se poderia chegar a formar uma Ciência das Religiões, ou uma Ciência comparativa da linguagem, ou uma Ciência da Sociologia, sem o critério histórico? Assim a Filosofia Positiva só podia constituir-se em um século em que a inteligência humana, depois da actividade do sincretismo poético, ou sincretismo metafísico, chegasse a alcançar uma direcção científica. Quem diz Ciência, diz facto, método, resultado” (1879:415).

Do exposto, vale sintetizar com a explicação de Fernando Catroga (2003:122):

tanto as filosofias da história como as ciências eram suportadas pela crença comum na racionalidade do universo e na capacidade que a razão humana teria para a decifrar. Simultaneamente, ambas prometiam uma capacidade de previsão que iria aumentar o poder do homem sobre a natureza e sobre o seu próprio futuro: quer a razão científica, quer a razão filosófico-histórica constituíam duas expressões da mesma razão prognostica e instrumental moderna.

Para os propósitos desta pesquisa, importa ressaltar a centralidade do critério histórico no processo de demarcação identitária, seja a partir da expressão das “filosofias da história” – que buscavam no passado lições no sentido de orientar a construção de um futuro projetado –, seja através da aplicação das leis universais e invariáveis que emprestavam concretude e certeza à vida em sociedade – através dos conceitos de raça e meio, como no monismo materialista, por exemplo –, o certo é que foi através destes dois critérios de mobilização da história que foram demarcadas as estéticas identitárias. Deste complexo forjaram-se os limites que separam as culturas “brasileira” e “portuguesa”. Consoante o “campo de experiência” demarcado pelas matrizes de história, um distinto “horizonte de expectativa” era perpectivado e, assim, iam sendo renegociados os padrões de relacionamento cultural entre Brasil e Portugal. Este elemento pode ser compreendido se atentarmos para o fato de que, em grande parte das obras que se propunham determinar a identidade nacional “brasileira” e “portuguesa”, se percebe uma cadeia de explicações teóricas sobre a manifestação ou o funcionamento do tempo na formação das coletividades e das consciências. Tome-se, como exemplo, grande parte da obra de Sílvio Romero. Em um dos seus primeiros trabalhos, recém chegado ao Rio de Janeiro, publica um interessante opúsculo na revista Brasileira, em 1879. Em “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”, o ainda jovem autor manifesta intenções nitidamente demarcatórias, ao afirmar que “O Brasil, depois de quatro séculos de contacto com a civilização moderna, parece ter chegado ao momento de olhar para trás a ver o que tem produzido de mais ou menos apreciável no terreno das idéias” (ROMERO, 1879:273). Sílvio Romero preocupava-se amiúde com o processo de “diferenciação nacional”, projeto intelectual que ele encetou já nos anos de estudo na Escola do Recife. Com auxílio de Tobias Barreto, teve papel de divulgador do pensamento filosófico

alemão e pode-se dizer que foi desta fonte que lhe advieram os primeiros lampejos acerca das idiossincrasias nacionais, bem como a importância dos critérios naturais, geográfico e raciais para a crítica literária. Vale ressaltar que, já nas primeiras linhas escritas neste opúsculo de 1879, antevêem-se algumas idéias que iriam dar o tom da sua principal obra, publicada nove anos depois, A História da Literatura Brasileira. Um bom exemplo pode ser visto na sua consideração de que “a nação brasileira, se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português” (ROMERO, 1879:274). Embora o ensaio de 1879 mencione as três matrizes étnicas da formação brasileira, será especificamente em relação ao português que Sílvio Romero fará sua leitura da historia da cultura brasileira, chamando atenção para os exemplos de sua superioridade mestiça em relação aos representantes do “velho reino” (ROMERO, 1879:280): “No século XIX nós precedemos os portugueses na vida revolucionária e constitucional. Antes de seu insignificante movimento de 1820, nós havíamos tido os sucessos de 1817; antes de terem eles uma constituição, mais ou menos liberal, nós a tínhamos; antes de se verem livres de D. Miguel, tivemos a abdicação de D. Pedro. Em uma palavra, eles nada possuem que se possa equiparar aos nossos ímpetos revolucionários deste século”.

Como se vê, o processo de afastamento simbólico de Portugal é claro. Romero mobiliza a cronologia dos “sucessos de 1817, 24, 31, 35, 42, 48”, exemplos sintomáticos da superioridade da história brasileira do século dezenove. Suas lentes enaltecem as antecipações históricas brasileiras frente à ex-Metrópole. De certa forma, seu argumento monta um pêndulo progresso/decadência que pendia positivamente para Brasil e negativamente para Portugal, tal qual, no domínio da biologia, a vida sucede à morte. A metáfora naturalista estava, aliás, bem ao gosto das apetências intelectuais do crítico sergipano. Para ele, desde a Independência, “nossos moços” começaram a ler escritores “franceses e ingleses de preferência aos livros de Portugal”. Doravante o velho reino “perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos” (idem, ibidem: 280-281). A obra de Manoel Bomfim, estranhamente pouco estudada, representa um forte investimento reflexivo nas relações entre Portugal e Brasil. Escrito em Paris, enquanto

seu autor realizava estudos em psicologia, em 1903, o livro – América Latina: males de origem –, apresenta um acento fortemente emocionado e nacionalista. Suas ideias, conforme explica o próprio autor, estavam em gestação desde 1897, por ocasião de um parecer que o autor escrevera, na qualidade de Director Geral de Instrução Pública do estado do Rio de Janeiro, em função de um concurso sobre o melhor trabalho acerca da História da América Latina. Sua obra tem carácter de exemplaridade para os propósitos desta investigação, na medida em que exercita uma leitura da história colonial brasileira (e, forçosamente, da relação com Portugal), deixando exposto o caráter dialógico no âmbito da fundação indeitária brasileira. Para Bomfim, o passado ibérico de lutas contra os árabes teria caucionado duas vertentes de elementos condicionantes da formação dos povos que, depois, colonizaram a América Latina: a educação guerreira, exclusivamente guerreira, a cultura intensiva dos instintos belicosos de centenas de gerações sucessivas; o regime a que eles se afizeram durante esses longos séculos – de viver de saques e razias; o desenvolvimento sempre crescente das tendências depredadoras; a impossibilidade, quase, de se habituarem ao trabalho pacífico” (BOMFIM, 1993: 74).

Significa isto que a guerra e a cobiça, a depredação e a exploração, são componentes estruturais dos povos ibéricos. Características estas advindas de uma longa tradição que remete ao processo de reconquista da Península junto ao Sarraceno, tornado elemento fundante do carácter do português e do espanhol. Factores, todos eles, de onde teria provindo uma inexorável apetência para a reprodução, no Novo Mundo, das práticas “herdadas”: a depredação, a exploração, a rapina, a aversão ao trabalho, etc. Um flagrante esqueleto neo-lamarckiano – isto é, a transmissão dos caracteres adquiridos – logo coberto com os panos da moral do Iluminismo eurocêntrico. Será este figurino híbrido – um neolamarckismo moralista – que consubstanciará, no autor, sua teoria sobre o “parasitismo ibérico” e sua acção deletéria nos povos latino-americanos. Dois motivos, para Bonfim, teriam tido papel fundamental para que o parasitismo português conseguisse raízes no solo brasileiro: i) “o Brasil era, naquela época, a única e verdadeira colónia portuguesa, e para cá vinham quase todos os que, no

reino, não obtinham viver diretamente ou indiretamente do Tesouro real”; e ii) “emigrando para o Rio de Janeiro, a corte trouxera consigo uma sobrecarga desses elementos refratários – o que havia de melhor no gênero”. Neste ponto, convirá atentar, uma vez mais, para o fato de que a fonte deste “retrato” histórico dos elementos “refratários” que chegam ao Brasil, quando da transferência da Coroa, é o português Joaquim Pedro de Oliveira Martins, atrás mencionado. A pujança pictórica da narrativa martiniana salta aos olhos, citada explicitamente no livro do brasileiro Manoel Bomfim: «Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados. Os botes formigavam carregando, levando, vasando bocados da nação despedaçada… monges, desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo… Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o dirigir mais à vontade» (BOMFIM, 1993:227).

Diante de tal quadro (e de outros semelhantes), composto pela pena de um português, não há que estranhar o aproveitamento que dele faz Bomfim para sua teoria do parasitismo e apontar para o passado – para a herança portuguesa – na hora de definir o verdadeiro mal de origem brasileiro. Um passado colonial que ganha tonalidade de evidência histórica num sentido que extrapola, inclusive, o “facto passado” mobilizado a título de res gestae. Vai mais além, no sentido em que indica o quinhão sociológico a ser combatido; ou não fosse certo, para Bomfim, que o Estado brasileiro, pelos seus vícios e degradação completa, representa ainda o passado colonial português (BOMFIM, 1993:227). Esta será a bactéria a combater: o lastro da memória lusitana na sociedade brasileira, que o autor isola, qual “parasita”, como responsável pelo “mal de origem” do Brasil, entendido no escopo geral da América Latina. Sendo o progresso só alcançável no âmbito de uma “luta” contra o passado, , e entendendo-se este passado como o palco “natural” da herança ibérica, compreende-se que o ideário bomfiniano advogue no sentido da adoção de uma organização intelectual e moderna, tal qual o grandes países centro-europeus. Entendendo que somente a adoção da ciência mais avançada propiciaria a superação dos vícios naturais herdados da decadência ibérica e que tanto obstaculizavam o florescimento das sociedades novas,

o autor de América Latina: males de origem articulava de modo muito particular os preceitos do organicismo sociológico sob o fio condutor de uma temporalidade que se consumava tal qual um tribunal ilustrado. E é nesse ponto que, numa metáfora orgânica, entende a funesta herança que os colonizadores deixaram na América Latina: o mal de origem como expressão de parasitismo. Ao conhecimento, à ciência, à instrução popular, caberia a missão de “curar” esse mal e limpar o passado, atuando como um remédio para a doença da sociedade latino-americana, essa sobrevivência e essa herança do passado ibérico, chaga produzida pelos anos de parasitismo das “sanguessugas de além mar” (BOMFIM, 1993:175). Não resta dúvida de que o argumento histórico possui força de convencimento muito acentuado. Ele produz assentimento em relação a uma realidade construída textualmente, criada (entre outras coisas) pela mobilização seletiva dos fatos do passado. A historicidade, portanto, é o elemento fulcral da demarcação cultural. Por isso ela acompanha a própria lógica demarcatória, sobretudo quando iniciada pelo seu próprio centro de referência (a história nacional). Afirma Rui Cunha Martins que, em matéria de estratégias de transgressão e/ou reafirmação de fronteiras, bem como de definição e estabelecimento de limites “o que aqui se emancipa pode, ali, num outro contexto, manifestar propriedades de constrangimento, e que o contrário é também possível” (MARTINS, 2001:50-51). Asserção válida para o complexo processo de construção das identidades nacionais em escopo luso-brasileiro, quando se sabe que estas, ao trabalharem sobre fenômenos de demarcação cultural, trabalham, por inerência, sobre fenômenos de redefinição do limite histórico entre as nações. Trata-se, pois, de perceber o papel desempenhado pela temporalidade na junção entre “circuitos de crença” e a teoria da soberania cultural (MARTINS, 2003). Não por acaso, o século XIX foi considerado o século da história e também o século dos nacionalismos, truísmo do qual importa tirar consequências (sendo esta perspectiva tão-só uma das possibilidades). Com isto presente, não será difícil perceber o alcance hermenêutico (e político) portado pela concepção do tempo, pois a força do argumento coletado no tempo passado (res gestae) faz da história um dos elementoschave na afirmação da soberania cultural das nações. Não deixa de ser curioso que a maioria das teorias sobre a formação das nacionalidades e dos nacionalismos tenha desprezado a importância da mobilização da

história enquanto agente demarcador da escala cultural de referência – a nação. Parece que o motivo desta desatenção está na consideração tácita de uma evidencia – a existência das coletividades enquanto nação – ao invés de surpreendê-la em seu momento de fundação simbólica, de renegociação identitária, de fundamentação histórica (HOBSBAWN, 1991, GELNER, 1998; SMITH, 2000; ANDERSON, 2005) . Daí que a averiguação das concepções de História, presentes nas diferentes interpretações culturais de “Portugal” e do “Brasil”, tenham sido sujeitas à reconfigurações interpretativas e formais. Afinal, seguindo o caminho aberto por Rui Cunha Martins (2003), será uma determinada leitura da história o garantidor epistêmico que transfigura o momento (político) de “fundação” da soberania cultural em “fundamento” cultural. Será esta passagem de nível (epistêmico) que sustentará a primazia da escala nacional na compreensão das coletividades. Representará sua assunção. Bibliografia BARASH, Jeffrey Andrew. "Les sources de la mémoire". In: Revue de Métaphisique et de Morale, janviers-mars, 1999, n.º 1. BASTOS, Teixeira, Secção Bibliographia – “A poesia cientifica (Escorço de um livro futuro), por Izidoro Martins Junior. Recife, 1883, 73 pag.”, Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884), 1884, pp.479-480. BORGES, Paulo E. A. O Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento lusobrasileiro. Lisboa: INCM, 2002. BRAGA, Teófilo. “Constituição da Estética Positiva”, In: O Positivismo, primeiro anno, n.6, agosto-setembro, 1879, p.415. CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II Lisboa: Universidade Aberta, 1996; CATROGA, Fernando, O Problema Político em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981. CATROGA, Fernando, TORGAL, Luis Reis e MENDES, José Amado. História da História em Portugal, volume 1 – A História através da História. Lisboa: Temas e Debates, 1998;

CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003. GIL, Fernando. Modos de Evidencia. Lisboa: INCM, 1998. HACKING, Ian. Múltipla personalidade e as ciências da memória. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. HERDER, Johan Gottfried. Também uma filosofia da história para a humanidade. Lisboa: Antigona, [1774], 1995. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé. Contribuition à la sémantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, 1990. LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999; LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Lisboa: Edições 70, [1948] 1990. MARTINS Rui Cunha. “Da Arena da História ao Labirinto do Estado? Delimitações intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56. MARTINS, Rui Cunha. “O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era da sua reprodutibilidade icónica”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º59. Fevereiro 2001. MARTINS, Rui Cunha. “Soberania política e condição de assentimento”. In: GIL, Fernando; LIVET, Jean-Pierre. The Processo of believe/O processo da crença. Lisboa: Gradiva, 2003. MARTINS, J. P. de Oliveira Martins. Portugal Contemporâneo. Vol. I. Porto : Lello & Irmão Editores, [1881] 1981. MARTINS, J. P. de Oliveira. “Advertência”. In: Os Filhos de D. João I. Lisboa: Editora Ulisseia [1891], 1998. NUNES, Maria Tétis. Silvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia nacional. Aracaju: Cadernos da UFS, n.º 4, [s.d.]. PIRES, António Machado. A ideia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Vega, 2ª edição, 1991. PONTE, Carmo Salazar, Oliveira Martins. História como tragédia. Lisboa: INCM, 1998.

QUENTAL, Antero de. Carta a Eça de Queiroz In: QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Cenas de uma vida devota. Edição de 1880, revista pelo autor, precedida de uma carta inédita de Antero de Quental. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1880. QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares. In: Carlos Reis. As Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990. QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Vega, 1994, p.27. RICOEUR, Paul. "Dever de memória, dever de Justiça". In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção. Conversas com François Azouvi e Marc De Launay. Lisboa: Edições 70, 1997. RICOEUR, Paul. “Entre mémoire et historire”. In : Projet, n.º248, 1996-1997. SARAIVA, António José. A Tertúlia Ocidental: estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins e outros. Lisboa: Gradiva, 2ª edição, 1995; SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas editoriais, 1963. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998. WHITE, Hayden. “Forword” In: KOSELLECK, Reinhardt. The Practical of Conceptual History. Timing History, Spacing Concepts. California: Stanford University Press, 2002.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.