A ondulação plástica no projeto gráfico de Moby Dick

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A ondulação plástica no projeto gráfico de Moby Dick Marc Barreto Bogo INTRODUÇÃO

Logo no início de sua obra Imagem também se lê, através de uma escrita clara e pedagógica, Sandra Ramalho e Oliveira nos apresenta alguns dos significados que são atribuídos à palavra Semiótica: “Ciência geral dos signos”, “Ciência da significação”, “teoria capaz de possibilitar o estudo do conjunto dos processos de produção de sentidos” (OLIVEIRA, 2005). Para muitos estudantes, esse livro é o contato inicial com o campo de estudos que se organiza ao redor do fenômeno da significação.1 O objeto de estudo dessa obra importante da professora Sandra é o acesso à significação das imagens, tendo como objetivo principal o desenvolvimento de um modelo de leitura de imagens, o qual é apresentado e exercitado ao longo do livro em diversas leituras de imagens artísticas e estéticas. Ainda na mesma obra, sempre preocupada com a clareza de suas ideias e com a formação de pesquisadores, Sandra nos ensina que a as bases teóricas da Semiótica são múltiplas, assim como são múltiplas as ideias dos semioticistas em atividade ao redor do globo. De acordo com a autora: “a Semiótica contemporânea apresenta escolas ou linhas teóricas distintas”, sendo as três mais conhecidas no Brasil: Semiótica da Cultura (ou Semiótica Russa), Semiótica Peirceana (ou Semiótica Americana) e Semiótica Greimasiana (ou Semiótica Francesa) (OLIVEIRA, 2005, p. 39-40). O trabalho apresentado a seguir é resultado de uma pesquisa2 que teve por base teórica a terceira dessas “Semióticas” elencadas, a Semiótica Discursiva (também chamada de Greimasiana, Escola de Paris, etc., e mais recentemente desdobrada em uma Sociossemiótica), não por acaso a mesma linha teórica com a qual Sandra Ramalho e Oliveira, até hoje, mais se identifica. Trata-se de um estudo da produção de sentido no projeto gráfico do livro Moby Dick, de Herman Melville, editado pela Cosac Naify no ano de 2008. OS PROJETOS GRÁFICOS DE LIVROS E MOBY DICK

O sentido de um livro não advém somente do seu sistema verbal escrito, mas sim de uma pluralidade de substâncias (verbais, visuais, espaciais, táteis) que 1 Tive também meu primeiro contato com a Semiótica ao cursar, ainda no início da graduação, uma disciplina com a profa. Sandra. 2 Refiro-me ao trabalho de conclusão de curso da graduação em Design Gráfico na UDESC chamado A significação no projeto gráfico de livros: uma caçada aos sentidos imersos em Moby Dick, do fronstispício ao colofão, de 2010, orientado pelo prof. Murilo Scoz e que contou com a presença de Sandra Ramalho na banca examinadora.

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constituem um “todo” de significação. A leitura de um livro já se inicia logo que o vemos pela primeira vez. Inicialmente fechado, o que o livro nos mostra é apenas uma promessa (de experiência e de sentido), manifestada na forma da capa ou invólucro do volume e associada ao nome do autor, da obra, da editora. Desde seu exterior até seu interior, pode-se dizer que todos os elementos de um livro constroem significados: a textura do papel, sua cor, a tipografia escolhida, os acabamentos realizados, seu formato, a diagramação das páginas, etc. Todos esses elementos listados, que constituem o projeto gráfico de um livro, são potencialmente repletos de sentido. Quando se fala em projeto gráfico de livro entende-se, portanto, não somente o desenvolvimento de uma imagem de capa, mas sim todas as escolhas relativas à concretização material do livro. Essas escolhas são, preferencialmente, realizadas por um profissional competente – na atualidade, por um designer gráfico. Na pesquisa a que nos referimos anteriormente, levando em conta o critério de que todos os elementos do projeto gráfico são importantes e participam de uma mesma construção de sentido, chegamos a um problema principal de trabalho: o que, e de que maneira, o projeto gráfico de um livro significa? Quais são os recursos dos quais o designer gráfico dispõe para construir sentido e contribuir na estruturação de um objeto coeso, uniforme e que mantém sua forma articulada a seu conteúdo? O objetivo principal da pesquisa era investigar de que forma o projeto gráfico do livro participa na construção de seu sentido e de sua relação com o leitor. Para tentar dar conta das possibilidades e potencialidades de produção de sentido de um projeto gráfico de livro tomou-se como objeto de análise a edição de Moby Dick, de Herman Melville, publicada pela editora Cosac Naify. Trata-se de uma edição com projeto gráfico premiado, realizada por uma editora que apresenta um histórico de forte investimento em design. A proposta era “dissecar” o livro, explorar seus atributos formais, de modo a expôr os procedimentos sintáticos empregados em sua concepção, buscando desvelar como se dá seu processo de significação. O livro Moby Dick foi escolhido tanto por pertencer ao catálogo de uma editora absolutamente inovadora em sua utilização do design – a Cosac Naify – quanto pelos prêmios recebidos pelo seu projeto gráfico (o de maior relevância entre eles é o Prêmio Jabuti 2009, na categoria capa), que denotam sua importância e sua visibilidade midiática. É visível a atenção aos detalhes que a editora destina a todas as suas publicações, o que vem lhe rendendo premiações diversas. Elaine Ramos, designer da equipe da Cosac Naify, expõe os valores da editora ao produzir livros impressos: “Não faz sentido um livro que não se justifica como objeto, um livro que [não] tira partido do livro-obra, do livrode-artista, que fazem uma afirmação da materialidade do livro” (RAMOS apud MACHADO, 2012). A editora, desse modo, se configura por explorar os traços plásticos do livro na construção de novas experiências de leitura. A obra Moby Dick foi escrita por Herman Melville (1819-1891), autor que nasceu e morreu na cidade de Nova York, e publicada originalmente em 1851. A 88

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experiência do autor como tripulante pelos mares do sul, quando jovem, serviu de base para que se tornasse um cronista da vida marítima. Os primeiros livros por ele publicados, sobre o seu convívio com os nativos das Ilhas Marquesas, renderam-lhe uma pequena popularidade inicial. Moby Dick, considerado sua obra prima, foi o sexto livro publicado por Melville. Em vida, porém, o autor nunca foi considerado um grande literato; somente a partir da década de 1920, quando seus textos foram revisitados por estudiosos, é que Herman Melville foi alçado ao patamar de um dos grandes escritores norte-americanos (COSAC NAIFY, 2010). A história do livro é narrada por Ishmael, um marinheiro letrado que embarca num navio baleeiro da costa leste dos Estados Unidos, o Pequod. O recluso capitão dessa embarcação, porém, revela-se uma figura problemática: tratase de Ahab, um sujeito atormentado, com uma cicatriz que percorre verticalmente todo o seu corpo. Ahab possui uma perna de marfim, já que sua perna biológica foi arrancada em sua última viagem por uma baleia branca gigantesca de face enrugada conhecida como Moby Dick. Esta cachalote é lendária entre os baleeiros, havendo diversos depoimentos de navios que cruzaram seu caminho, nenhum deles sendo capaz de capturá-la, e muitos sofrendo grandes avarias no encontro – a baleia destrói botes, afunda navios e extermina marinheiros. O capitão Ahab parte então numa longa e desenfreada caçada à grande baleia branca, levando consigo em seu ímpeto furioso todos os tripulantes do navio, entre os quais o narrador Ishmael, que se vê cada vez mais imerso naquele mundo náutico – na vida do mar, nas caçadas, na perseguição à Moby Dick. Em uma primeira tomada em mãos do livro publicado pela Cosac Naify podemos sentir, no peso do objeto, a densidade da história. A edição aqui analisada de Moby Dick é volumosa, pesada, características que permitem antever o tamanho da narrativa (Fig. 1). Na capa, lombada e quarta capa, vê-se que não há espaços livres nos limites do livro, ou seja, não há margens, já que as ondas englobam toda a extensão das capas. O título é bastante grande em relação ao tamanho total da capa, é pesado e imponente – tal qual a baleia branca, na trama.

Figura 1: Capa, lombada e quarta capa de Moby Dick, publicado pela editora Cosac Naify.

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Assim como a escrita de Melville, também o projeto gráfico do livro é denso, imponente e repleto de significados. De uma extensa análise que descreveu todos os formantes plásticos e os relacionou ao plano do conteúdo da obra, destacamos nesse artigo um único elemento, um recorte da análise, selecionado por sua problemática em inserir o leitor em um processo interacional com o livro e ajudar a construir o sentido da publicação. Trata-se da mancha de texto ao longo das páginas textuais, que assume um aspecto dinâmico, mudando sua forma e posição na passagem das folhas. O SOBE-E-DESCE MARÍTIMO NA MANCHA DE TEXTO

Para analisar esse aspecto específico do livro, ou seja, a configuração dinâmica que assume a mancha do texto na passagem das páginas do livro, retomamos a metodologia de leitura de imagens indicada por Oliveira (2005). Em suma, tal método consiste em: definir as linhas que determinam a estrutura da imagem; identificar seus elementos constitutivos, buscando-se as relações e articulações entre esses elementos; retornar a todos os pontos relevantes; perceber o plano da expressão tecendo a significação (plano do conteúdo). As páginas textuais de Moby Dick (Fig. 2), ao longo das quais estão distribuídos os capítulos da obra, são à primeira vista bastante simples. São compostas pela indicação numérica do capítulo seguida de seu título, pela mancha de texto e pela numeração das páginas; a informação é predominantemente verbal.

Figura 2: Sequência de páginas duplas de texto.

Na análise da estrutura que organiza a visualidade dessas páginas, no entanto, percebemos algumas particularidades que são relevantes na construção do 90

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sentido da experiência de leitura. Ao definir as linhas que determinam a estrutura principal dessas páginas-imagens e ao identificar os seus elementos constitutivos, conforme a estratégia proposta, vemos que a mancha de texto, principal elemento constitutivo dessas páginas, assume um tamanho e formato diferente a cada passada de páginas (Fig. 3). Em articulação ao plano da dupla página, esses blocos de texto estão sempre posicionados na porção inferior do espaço visível.

Figura 3: Estrutura da organização eidética e topológica das páginas.

Nas páginas de texto a direção predominante é horizontal e a organização é retilínea. A forma que a mancha de texto adquire varia de capítulo a capítulo, segundo a quantidade de palavras de cada um deles. Ao traçarmos essa estrutura da imagem, percebemos como a posição dos elementos tem um papel fundamental nas páginas textuais. O alinhamento da mancha de texto se dá sempre com a porção inferior da página, deixando um espaço em branco na parte superior. Há em cada página dupla um horizonte formado pelas manchas de texto, ou seja, um nivelamento. Sempre a página da direita está em uma relação de simetria com a página da esquerda no que se refere à altura da mancha. No passar de páginas, tem-se a percepção de um sobe e desce do espaço vazio, como uma “ondulação” desse vazio, que varia a cada passada de páginas – ora mais alto, ora mais baixo. O contexto náutico da obra é, portanto, visualmente presentificado no livro, tanto num nível figurativo facilmente reconhecível, quanto em outros elementos mais sutis. O espaço em branco no topo das páginas de texto cria um horizonte que varia sua altura a cada início de capítulo. Esse nivelamento sobe e desce, de modo que no passar de páginas tem-se a impressão do balanço de uma embarcação em alto-mar. É como se o leitor estivesse dentro do próprio navio Pequod, suavemente subindo e descendo a cada virada de páginas, acompanhando a ondulação marítima (correria o leitor também o risco de, na leitura, sentir-se enjoado?). Os títulos ao longo do livro são construídos com a família tipográfica Gotham, e 91

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algumas características lhe podem ser atribuídas: são tipos precisos, simples, sem ornamentos, rígidos, geométricos, pesados e racionais. Já a tipografia utilizada para o texto corrido é a Swift: trata-se de uma família de eixo humanista, que simula o movimento suave da escrita feita pela mão humana. É uma tipografia simples, leve, despretensiosa. Assim, percebe-se na escolha tipográfica do livro um contraste de orgânico versus geométrico, humanista versus racionalista. Dentro desse mar visualizado a cada página os títulos adquirem uma posição variável, flutuando ou afundando, mergulhando e perdendo-se de vista por um tempo, até que retornam à superfície em algum outro ponto do oceano. Os títulos são tão pesados que de fato afundam na mancha de texto, submergindo, sendo então englobados ou “engolidos” pelo bloco de texto. Esses títulos dos capítulos que são ora englobados pelo texto, ora flutuam à sua mercê, articulamse à mancha de texto do mesmo modo como o navio (objeto cultural, construído pelo homem) flutua à mercê da natureza no alto-mar. Se pensamos nesse livro como um texto sincrético, que utiliza diferentes sistemas de linguagem, então consideramos a existência de uma estratégia global de enunciação que dá um sentido coeso, de totalidade, para a publicação e que articula o projeto gráfico à semiose verbal. Essa enunciação é organizada pelo par pressuposto “enunciador” e “enunciatário”: o primeiro deles é o sujeito discursivo responsável pela concepção de uma dada manifestação (que nesse caso é o livro), enquanto o segundo deles é aquele a quem a manifestação se destina. Ou seja, se o projeto gráfico do livro institui um “eu” (enunciador), ele também estabelece a imagem de um “tu”, o enunciatário, aquele a quem a obra se destina. O narrador da história, a quem o enunciador delega a voz, é o marinheiro Ishmael. Ele opera como os olhos do leitor ao longo do livro, e é através dele que se tornam conhecidos os acontecimentos do navio Pequod. O narrador conversa e expõe suas idéias a uma imagem que ele próprio faz de quem escuta, o narratário. Ishmael funciona como uma porta ao leitor para adentrar aquele universo temático bárbaro do navio baleeiro. Na embarcação, Ishmael não exerce nenhum cargo de destaque: não é piloto, arpoador, imediato nem ferreiro. Está ali en passant, como se sua única função fosse observar o que sucede. Ele é um estranho entre aquela tripulação de selvagens, canibais, índios, malaios, perses e quacres. É nessa estranheza que o enunciador se faz cúmplice do enunciatário, já que ambos partilham as mesmas competências e conhecimentos culturais. Os dois são cultos e estão alheios àquele universo tempestuoso da caçada, das cabeças decepadas dos animais e da brutal extração do óleo das baleias. O narrador sofre porém uma mudança de estados ao longo da trama: se no início Ishmael pouco sabia a respeito da caça baleeira, ao longo do texto vai conhecendo, explorando e descrevendo a vida neste tipo de embarcação, os instrumentos, a anatomia, fisiologia e biologia da baleia. Ao final da narrativa, está completamente imerso naquele universo, e absolutamente convencido da grandiosidade e da dignidade das cachalotes e daqueles que 92

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ousam enfrentá-las. Ao longo de todo este trajeto, o enunciador leva consigo o enunciatário, expondo pouco a pouco o contexto da trama, até que estão ambos completamente envoltos por aquele mundo náutico. Nessa estratégia de imersão do sujeito é que o projeto gráfico apresenta-se fundamental. Pois, mais do que descrever verbalmente como é a vida no mar, o enunciador insere o enunciatário dentro do mar, ondulando junto com a ondulação marítima, subindo e descendo a cada virada de páginas conforme o sobe-e-desce do horizonte formado pela mancha de texto, balançando junto com a embarcação. A INTERAÇÃO ENTRE O ENUNCIADOR E O ENUNCIATÁRIO3

Ainda pensando acerca dessa relação que se constrói entre o enunciador e o enunciatário em nosso objeto – o projeto gráfico de Moby Dick –, e visando uma finalização das ideias até aqui levantadas, retomamos o pensamento de outra “Oliveira”, a professora Ana Claudia de Oliveira. Essa semioticista, em suas investigações acerca da enunciação, parte da hipótese de base de que “é a interação que faz ser o sentido” (OLIVEIRA, 2013, p. 235; glifo nosso). Oliveira (2013) argumenta que a enunciação é um ato instaurador do sentido na e pela interação entre os dois parceiros do discurso. Isso quer dizer que a interação entre esses dois parceiros – enunciador e enunciatário – é fundamental na produção de sentido de toda e qualquer manifestação. Enunciador e enunciatário não são, assim, figuras que atuam separadamente, como se não houvesse relação entre um e outro. O par da enunciação atua sempre conjuntamente e é dessa interação que surge o sentido. Segundo Oliveira (2013, p. 242): “Mais do que um processo comunicacional, é então um processo de interação criadora de sentido que se realiza pela presença mesma dos sujeitos fazendo o sentido”. A partir dos regimes de interação e de sentido formulados por Landowski (2009), Oliveira (2013) procura abordar as caracterizações que marcam as relações de transitividade ou de intransitividade entre os atores no processo de discursivização. Desde uma intransitividade total, passando aos níveis diversos de transitividade, os tipos de interação discursiva podem ser organizados num quadrado semiótico dinâmico (esquema 1), em que os tipos de posições e movimentações do sujeito da enunciação intervêm nos tipos de manifestações.

3 Retomo aqui algumas ideias desenvolvidas em minha dissertação de mestrado A Coleção Particular da Cosac Naify: explorações sensíveis do gosto do livro, orientada pela profa. Ana Claudia de Oliveira e defendida no programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP no ano de 2014.

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Esquema 1: Tipologia das interações discusivas. Adaptado de Oliveira, 2013.

Assim, no esquema dinâmico (OLIVEIRA, 2013), as passagens se dão entre as posições com maior ou menor transitividade. No “sentido codificado”, a interação é unidirecional: o enunciador é quem comanda, e ao enunciatário cabe apenas seguir as pistas deixadas pelo primeiro no discurso para reconstruir o sentido, que já está posto de antemão. No “sentido conquistado” surge a transitividade, pois há uma negociação entre um e outro sujeitos: o sujeito enunciador, munido de sua intencionalidade, precisa conhecer o enunciatário e convencê-lo a atuar como seu par, para que se faça o sentido. No “sentido sentido”, a transitividade é mais forte, pois os sujeitos atuam unidos em reciprocidade: enunciador e enunciatário são dotados das mesmas competências cognitivas. As sensibilidades atuam juntas e o sentido emerge na interação, à medida que ambos ajustam-se em uma apreensão estésica4. Por fim, no “sentido aleatório”, há umatransitividade total das posições, imprevisível, em que enunciador e enunciatário trocam seus papéis no ato de enunciar. Embora exista efetivamente um trânsito entre as posições da interação discursiva na leitura de Moby Dick, interessa-nos aqui, especialmente, a caracterização de um “sentido sentido”. No livro analisado existe também, é claro, um “sentido codificado” dado de antemão que precisa ser reoperado pelo enunciátario (o desenvolvimento da trama, a leitura strictu senso), e também um “sentido conquistado”, na medida em que o enunciatário é convencido a empreender uma jornada pessoal de aquisição de competências para poder decifrar o projeto gráfico da publicação, mas na ondulação da mancha de texto que é foco da presente análise é o “sentido sentido” que mais se faz presente. Pois para que se possa sentir o altomar, para estar imerso no mesmo universo que Ishmael, Ahab e que a baleia Moby Dick, é necessário que a sensibilidade do leitor esteja atuando junto às qualidades 4 Estesia pode ser entendida como a condição de sentir as qualidades sensíveis emanadas das mais distintas manifestações, as quais exalam a sua configuração para essa ser capturada, sentida e processada fazendo sentido para o outro (OLIVEIRA, 2010).

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sensíveis do objeto. É no próprio gesto do leitor de virar as páginas que a plasticidade do livro se modifica, que a mancha de texto sobe ou desce, ondulando conforme essa interação que se dá entre enunciador e enunciatário. Moby Dick então constrói o seu sentido a partir de uma exploração de seus formantes plásticos, em que as substâncias verbais, visuais, táteis e espaciais, organizadas em uma plástica da expressão, figurativizam conteúdos da dimensão verbal sincreticamente. O leitor adentra o universo do livro de forma imediata pela sensibilidade da ponta dos dedos que toca a página, dos olhos invadidos pela luz que é refletida no livro, do modo como o corpo se projeta para experimentar a imediaticidade do outro corpo (aquele do livro). Conforme nos lembra Ana Claudia de Oliveira, o corpo é fundamental na apreensão sensível do mundo: “no seu atuar de distintos modos, o corpo opera apreendendo e sentindo o sentido que é sentido graças à condição estésica” (OLIVEIRA, 2010, p. 5). Enfim, na interação corpo a corpo entre leitor e livro, constrói-se um sentido sentido, que é sentido pelo sujeito que ondula junto ao passar as páginas de Moby Dick. O modo “estático” do corpo do leitor é posto em relação a outro corpo iniciamente também estático, o do livro, e é por meio dessa mesma interação que se inicia um movimento, uma cinese, que constrói o sentido de alto-mar na e pela própria interação. REFERÊNCIAS

COSAC NAIFY. Cosac Naify | Herman Melville. [2010]. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2010. LANDOWSKI, Eric. Interacciones arriesgadas. Tradução Desiderio Blanco. Lima: Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009. MACHADO, Samir. Sobrecapas: Avenida Niévski. 09 de agosto de 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2013. MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: Cosac Naify, 2008. OLIVEIRA, Ana Claudia de. Estesia e experiência do sentido. Revista CASA Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 8. n. 2, dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2012. ______. As interações discursivas. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de (Ed.). As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013, p. 235-249. OLIVEIRA, Sandra Ramalho e. Imagem também se lê. São Paulo: Edições Rosari, 2005. 95

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