A Ontologia da História de Martin Heidegger

July 24, 2017 | Autor: J. Mezzomo Flores | Categoria: History, Martin Heidegger, Historicity
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"A libertação ante a tradição é a apropriação sempre
renovada de suas forças uma vez mais reconhecidas".
- Martin Heidegger, em Os conceitos Fundamentais da
Metafísica: mundo, finitude, solidão


A Ontologia da História de Martin Heidegger

Acadêmica: Juliana Mezzomo Flores

Ao início de Ser e Tempo (SZ), no parágrafo 6, Heidegger enuncia a
seguinte formulação "O ser-aí é o seu passado no modo de seu ser, o que
quer dizer, grosso modo, que ele acontece a cada vez a partir de seu
futuro" (SZ, p.20). Como uma tese que precisará do aporte de parte
substancial da obra para avançar além do "grosso modo", tal afirmação soa,
além de uma antecipação imprudente, dado que pode ser uma fonte inaugural
de equívocos, também como uma afirmação de fato inusual. Uma definição que
nos diz que sermos nosso passado significa que acontecemos a partir de
nosso futuro evidentemente não será lida sem um "como assim??". Será que
Heidegger pretende ir de encontro ao são entendimento humano de que fala
Kant, ou mesmo mostrar simpatia (como o fez em Que é metafísica?[1]) à
frase de Hegel de que a filosofia, considerada do ponto de vista do senso
comum do homem, é o mundo às avessas? Mesmo que a pretensão heideggeriana
se revele ou não nas possibilidades que sugeri (sem mencionar um possível
intuito edificante de ativação de uma via ao thaumazein grego), o central é
que, além da estranheza que possa provocar, tal frase nos dá um ensejo
bastante claro: deve se tratar aqui de outra concepção sobre a relação
entre passado e futuro, na qual certamente estes não são concebidos como
distintos instantes do tempo colocados em ordem sucessiva. Caso contrário,
como se poderia falar de uma identidade entre ambos, de tal modo que aquilo
que aconteceu se determinou por algo que ainda não veio? A essa se une a
afirmação de que passado é algo que nós mesmos somos. E a desconsideração
explícita do outro componente da tríade, o presente.

Meu intuito ao fazer estas observações iniciais, antes de encetar uma
elucidação de cada detalhe supostamente necessário para se compreender a
frase do parágrafo 6, é o dar uma pequena mostra da complexidade do
problema. Se durante nosso curso tivemos dificuldade de encontrar em alguns
autores um pronunciamento mais direto sobre problemas relacionados à
história, com Heidegger é totalmente o oposto. Desde muito cedo em sua obra
as discussões com a história e sobre a história se multiplicam[2]. Se
Heidegger é o filósofo da retomada da ontologia (ou, como nos manuais, "o
filósofo do ser"), também é o pensador que busca um reposicionamento
radical na discussão sobre o tempo e a historicidade. A radicalidade se
traduz na magnitude do projeto, o qual contempla, entre outros momentos,
uma apropriação crítica do conceito de tempo em Kant e Aristóteles, a busca
de uma abordagem fenomenológica ao problema da historicidade, bem como a
tentativa de equacionar o problema ontológico com uma investigação da
temporalidade humana em sua obra mais famosa, Ser e Tempo de 1927.

O equacionamento de ser e tempo pretende exibir uma dependência
ontológica e explicativa. Não é possível ser sem tempo, e vice-versa. Não é
compreensível ser sem tempo, e o tempo não é compreensível sem ser. O que
querem dizer ser e tempo e a dependência que se estabelece entre eles e a
compreensão humana são as questões fundamentais e monumentais a que
Heidegger se lança nos anos iniciais de sua carreira (ou caminho de
pensamento). O que pode parecer a uma visão mais restrita como uma
ontologia sobre a história (ou uma temida filosofia da história), resulta,
a meu ver, no mínimo em uma suposição basilar: a ontologia nunca pode
prescindir da história. Isso corresponderia a uma historicização da
ontologia, ou uma relativização da disciplina? Sugiro pensarmos em outra
direção. Se a pergunta pelo ser é a pergunta fundamental da filosofia,
introduzir a pergunta novamente para Heidegger é mostrar em que sentido ela
é uma pergunta pelo tempo, e em que medida fazer ontologia da história é
constitutivo da própria ontologia e quiçá sua grande tarefa. Fazer
ontologia da história (e do tempo) é tanto perguntar-se em que medida a
história da ontologia pode dar acesso ao problema do ser (uma vez que
mostra sucessivas formulações e esquecimentos do problema), quanto
interpretar em que medida o homem é histórico. Ou seja, Heidegger vincula
ontologia e história articulando dois níveis de questionamento: tanto uma
pergunta propriamente ontológica, sobre como nosso ser é histórico, bem
como com uma pergunta que se volta para a própria ontologia, ou seja, que
busca conceituar em que medida a ontologia, ao ter sua própria história,
auxilia na determinação do que é ser.

Bem entendido, o que denominei e entendo por ontologia da história em
Heidegger é, portanto, uma concepção sobre a história da ontologia (ou uma
ontologia da história da ontologia) e uma concepção sobre o ente que
Heidegger entende como primordialmente histórico. Estas seriam duas tarefas
que visam estabelecer uma interpretação sobre o ser em geral. Para os que
tem apreço pela terminologia heideggeriana, a primeira tarefa se
articularia no procedimento de uma destruição da história da ontologia e a
segunda em uma analítica do ser-aí. A despeito da terminologia ou de minha
redução grosseira dos problemas envolvidos ou visados por Heidegger[3],
interessa-me ressaltar que estamos diante fundamentalmente da tentativa de
compreender como a filosofia é histórica. Porque ela tem uma história,
porque o seu campo de investigação deve ser a historicidade do ser-aí, bem
como porque o ser-aí histórico faz filosofia (aqui entendida não apenas
como uma atividade restrita aos círculos acadêmicos). O esforço
heideggeriano está tanto em estabelecer estas premissas com uma metodologia
apropriada, como em mostrar em que medida a condição de possibilidade[4] de
todos estes momentos é o ser em geral.

Considero que esses aspectos de uma ontologia história se mostram
muito claramente no trecho que escolhi, a última seção do texto O trabalho
de investigação de Wilhelm Dilthey e a luta atual por uma visão de mundo
histórica (Wilhelm Diltheys Forschungsarbeit und der gegenwärtige Kampf um
eine historische Weltanschauung). Meu intuito principal será, por
conseguinte, apresentar mais detalhadamente esta última parte, denominada
na sinopse da publicação de A essência do ser histórico – o regresso a
Dilthey. Por fim, ainda que superficialmente, voltarei ao parágrafo 6 e à
afirmação que nos introduziu nesta temática. Evidentemente, como deve ser
no caso de um estudo precavido de Heidegger, não há a pretensão de
esgotamento do tema nem de um mapeamento exaustivo de todas as conexões
conceituais nele envolvidas.

Sendo assim, gostaria de iniciar com breves notas acerca da redação e
das circunstâncias que envolveram o pronunciamento da conferência em
questão. Trata-se de uma conferência que foi pronunciada em 1925, ano que
muitos consideram como o ano do início da maturação plena de Ser e Tempo.
Contudo, esta não ficou restrita aos círculos acadêmicos, tendo uma
audiência que Theodore Kisiel em seu Genesis of Heisegger's Being and Time
qualificou como "semipopular" (Kisiel, p. 357). Heidegger atendeu ao pedido
de Johannes Boehklau, presidente da Sociedade Hessel para as Artes e as
Ciências da cidade alemã de Kassel, e falou durante cinco tardes (de 16 a
21 de abril) durante duas horas, com pausa de 15 minutos. As dez seções em
que consiste a conferência se conservaram graças à imediata transcrição ao
final do curso do material de Heidegger feita pelo, na época estudante,
filósofo Walter Bröcker. É conhecido também o ponto de partida do escrito:
Heidegger o escreveu como parte de um projeto de fazer um review do livro
de cartas publicado em 1923 entre Dilthey e o Conde Paul Yorck von
Wartenburg[5] na revista Deutsche Vierteljahrsschrifit für
Literaturwissenchaft und Geistesgeschichte. O escrito ficou grande demais
para as dimensões da revista, com mais de 60 páginas, – e, segundo Kisiel
(p.322), demasiado filosoficamente auto-referente e com uma linguagem
trabalhosa –, o que determinou sua não publicação. Entre os estudiosos da
obra heideggeriana estas falas são conhecidas como as Conferências de
Kassel.

O escrito apresenta o retrato do envolvimento de Heidegger com dois
filósofos de grande influência em sua obra: Dilthey e Edmund Husserl. Em
linhas gerais, Heidegger coloca a necessidade de retomar a pergunta pela
historicidade colocada por Dilthey (e aparente nas reflexões do Conde
York), mas sob o ponto de vista do método fenomenológico criado por seu
mestre. Nesta época Heidegger tanto se dedica à preleção na qual interpreta
a fenomenologia husserliana (denominada Prolegômenos à história do conceito
de tempo, de 1925) quanto ao artigo sobre Dilthey, cujos resultados
aparecem publicamente na conferência para a Sociedade Teológica de Marburg,
O Conceito de Tempo, de 1924[6]. Entretanto, e Kisiel (p.358) bem atenta
para tal fato, a aproximação da fenomenologia com o questionamento
diltheyniano conduz Heidegger a propalar a necessidade de uma transformação
na própria fenomenologia. Ou seja, embora veja na fenomenologia o método
adequado para aprofundar a pergunta de Dilthey pelo ser histórico,
Heidegger não obstante critica a fenomenologia de Husserl de não ter
avançado no problema da determinação do ser da consciência e, neste
sentido, não conseguir demonstrar em que medida o ser do homem é tempo
(Heidegger, 2009, p.71)[7].

Neste ponto acredito ser pertinente fazer um breve excurso para trazer-
nos um panorama das Conferências, apresentando também alguns elementos que
reencontraremos na seção X. As nove seções anteriores ao nosso texto passam
pela identificação do tema, por uma apresentação da vida e obra de Dilthey,
pela qualificação da problemática desenvolvida na obra deste e sua relação
com seus contemporâneos, por um comentário sobre a fenomenologia e pela
descrição fenomenológica acerca da existência humana definida como ser-no-
mundo. Na primeira frase do texto, Heidegger não deixa dúvidas de qual é o
seu interesse em proferir uma conferência sobre o trabalho de um filósofo
em particular e tendo como tema a luta por uma visão de mundo histórica: "O
tema quiçá pode parecer-nos distantes e resultar algo desconhecido, mas
encerra um problema fundamental que permeia toda a filosofia ocidental: o
problema do sentido da vida humana" (Heidegger, 2009, p.41). A aproximação
do problema de uma visão de mundo com base na história com a pergunta pelo
sentido da vida humana é vista por Heidegger como decisivamente
desenvolvida por Dilthey. Neste sentido, Heidegger inicia fazendo breves
indicações sobre o significado da expressão e o surgimento do problema da
visão (ou concepção) de mundo. Ressalta-se que a noção de visão de mundo
seria um saber sobre a vida e a existência utilizado na tomada de posição
sobre algo. Heidegger enfatiza que não se trata de um saber estritamente
teórico[8]; pelo contrário, a visão de mundo informa as atitudes práticas
do homem perante a vida. Logo, uma concepção de mundo histórica seria
aquela na qual a compreensão do mundo e da existência teria como base a
história: "Luta significa luta para conquistar tal posição a partir do
saber acerca do caráter histórico do mundo e da existência" (Heidegger,
2009, p.43).

Nas seções sobre a vida de Dilthey e seus escritos, busca-se destacar
qual foi a pergunta fundamental a que este se dedicou. Para Heidegger,
compreender a vida e obra é identificar as perguntas que o filósofo se
colocou e quais foram suas influências[9]. A conclusão heideggeriana é a de
que para Dilthey o que estava em questão era compreender o conceito de
vida. Neste sentido, há uma recusa explícita em interpretar a filosofia de
Dilthey (como acusa Rickert e Windelband de fazerem) apenas a partir de sua
defesa da especificidade das ciências humanas (ou do espírito). Em linhas
gerais – e sem adentrar muito na reconstrução de Heidegger de como isso se
articularia metodologicamente para Dilthey através de uma psicologia
descritiva e analítica – entra em questão o princípio de Dilthey de que a
vida não pode ser compreendida a partir do quadro trazido pelas ciências
naturais[10]. Outra posição fundamental é a de que a característica central
da vida é ser histórica, é a historicidade.

Compreender a vida e a obra adquire também para Heidegger um sentido
de averiguação do alcance do desenvolvimento das questões a que Dilthey se
dedicou. Ou seja, transita-se para uma avaliação de natureza crítica. Com
efeito, a crítica de Heidegger é apenas uma, mas no seu entender,
fundamental: Dilthey teria colocado a historicidade como caráter básico da
vida, mas não investigou o sentido mesmo da historicidade, não
problematizando a distinção entre sentido do ser e sentido do ente. A
fenomenologia teria as ferramentas próprias para este desafio, embora estas
devessem também passar por uma revisão. Ou seja, a fenomenologia seria o
caminho para a colocação da questão, mas não para resolver a questão mesma,
caso não passe por uma transformação. A revisão é feita num primeiro
momento pela breve caracterização do que Heidegger entende serem os
descobrimentos decisivos da fenomenologia, a intencionalidade e a intuição
categorial. Sobretudo, a crítica à fenomenologia não se restringe à
afirmação da necessidade de sua transformação ou do exame mais aprofundado
do conceito de consciência, mas se articula na descrição fenomenológica
mesma realizada nas seções seguintes. É necessário interrogar o ser da
consciência intencional e o ser da historicidade, e Heidegger o faz a
partir da descrição do homem enquanto ser-aí e ser-no-mundo. Estas seções
aproximam-se muito da descrição de SZ, onde tem destaque a interpretação da
estrutura ser-no-mundo a partir das noções de propriedade e impropriedade
(ou autenticidade ou inautenticidade).

Bem entendido, investigar coisas como o "ser da historicidade" ou "a
historicidade enquanto tal" requer para Heidegger que se transite para uma
análise do ser do ser-aí (o conjunto de determinações que qualifica
ontologicamente o ser humano). Um passo como esse requer uma premissa
adicional: o ser humano é o ente primordialmente histórico. Logo, perguntar
pela historicidade nestes termos nos comprometeria a elaborar uma concepção
de ser humano que evidencie tal determinação (sim, a suspeita de alguma
falácia ou de circularidade neste tipo de procedimento é conscientemente
assumida por Heidegger). Enfim, é com o problema da caracterização da
historicidade que Heidegger se depara na seção X, incorporando a discussão
com a historiografia e com a história da filosofia. De maneira raras vezes
tão clara, Heidegger estrutura a pergunta pela historicidade em três
etapas: 1. História e historicidade, 2. Historicidade e historiografia e 3.
Um exemplo de conhecimento historiográfico: a investigação filosófica.

Não de modo arbitrário, Heidegger inicia problematizando a distinção
entre História (Geschichte) e Historiografia (Historie). Curiosamente,
parte-se da observação que acentua a proximidade das duas noções e não a
diferença, embora se destaque que as duas noções possuem origens distintas
(Heidegger, 2009, p.92). Com efeito, Heidegger afirma que os seus
significados são muitas vezes intercambiáveis, e que tal possibilidade não
se daria por mera coincidência. Isso seria o caso pois tanto a história
quanto a historiografia são concernentes a nossa existência. Nós tanto
"vivemos" a história quanto podemos ter um conhecimento sobre o modo como a
vivemos. E é na possibilidade de intercâmbio de significados que Heidegger
reencontra a distinção ontológica entre história e historiografia, na
medida em que designa a história como um acontecer e a historiografia como
o conhecimento de (ou o indagar a) um acontecer. A possibilidade de se
tomar uma pela outra estaria em que o acontecer se preserva no conhecimento
que temos dele (Heidegger, 2009, p.93). Dito de modo pouco sofisticado:
algo se preserva do que aconteceu, mas isso somente é possível na medida em
que algo acontece.

Esse algo que acontece é o próprio ser humano. Insinua-se com esta
distinção (acontecer e conhecimento de um acontecer), portanto, a diferença
entre fato e interpretação, ação e reflexão ou fazer e pensar? Heidegger
aqui, a meu ver, coloca o problema em outra direção. Tal manobra seria
possível graças a uma ambivalência na noção de conhecimento. O conhecimento
da história no sentido primordial é, por assim dizer, o conhecimento de nós
mesmos. Se a história designa um acontecer que somos nós mesmos, o
conhecimento de um acontecer é um conhecimento de nós mesmos. Mas esse
conhecimento não é apenas algo teórico ou primordialmente articulado e
expresso, mas é o conhecimento do que somos na medida em que existimos, em
que agimos. Existir aqui é ser histórico, e ser histórico é ser
continuamente (presentemente) nosso passado na medida em que nos
direcionamos para o futuro. "Ser nosso passado" não é apenas acumular
experiências que após de passadas perdem sua efetividade: antes, e
Heidegger repete: "arrastamos nosso passado com nós mesmos" (Heidegger,
2009, p.92 e 93). O verbo "arrastar" significa aqui primordialmente não
algo que devemos suportar com esforço, mas do que é difícil (ou impossível)
de se desembaraçar – mesmo quando se buscaria superá-lo, o passado ainda
atuaria como parâmetro. Sobre o tópico da relação continuamente atuante com
o passado Heidegger apenas menciona a importância do conceito de Dilthey de
geração, sublinhando o caráter compartilhado da historicidade, sem acenar
ainda para as formulações hermenêuticas sobre o tema da tradição e do
legado, os quais serão centrais em SZ.

Deste modo, Heidegger qualifica não apenas a historicidade como o modo
como nós acontecemos ou existimos na articulação (não sem tensões) entre o
que recebemos, o que fazemos e o que planejamos fazer, mas também insiste
em que há um saber sobre este acontecer que lhe é estruturalmente
característico. Este saber não é plenamente expresso (em SZ há a tese
adicional de que este tende a encobrir-se), aspecto que fica mais evidente
quando Heidegger fala de um modo expresso de apreensão do passado como o
que, na perspectiva do presente, já passou: a historiografia. Heidegger vai
mais além e afirma que a historiografia apreende o passado sempre a partir
de uma circunscrição determinada pelo modo como a existência é
compreendida. A historiografia como ciência requeria como condição fundante
uma compreensão sobre o ser do ser humano. Isso o leva a afirmar
curiosamente que "Isto implica que a reflexão fundamental sobre a
investigação histórica também permite desenvolver um conceito de Dasein que
torna possível a interpretação da história" (Heidegger, 2009, p.95).
Curiosamente pois se indica que seria possível, a partir de uma reflexão
sobre uma ciência em particular, chegar a desenvolver um conceito
filosófico como o de ser-aí. Tal relação se inverte em SZ, onde se busca
mostrar a gênese da história a partir da constituição ontológica do ser-aí,
no parágrafo 76.

A abordagem da relação entre história e a historiografia conduz a uma
crítica da fenomenologia e da história da filosofia. A compreensão do
passado seria uma tarefa da crítica do presente, uma vez que o exame do
passado requereria também uma revisão de sua recepção (assim como, por
exemplo, Heidegger avalia a recepção de seus contemporâneos da filosofia de
Dilthey). Mais do que isso, a falta de crítica é capaz de produzir uma
obstrução na compreensão do passado: "No presente histórico respectivo em
que se move uma investigação existe o perigo de obstruir a história, de não
descobri-la, mas sim de fazê-la inacessível. Liberar-se de tais
prejulgamentos e meditar novamente sobre as condições que permitem
apreender o passado é uma tarefa crítica" (Heidegger, 2009, p.95). Acena-se
tanto para a possibilidade de não se compreender genuinamente o passado
quanto de uma avaliação que aponte este resultado. Mas tal procedimento de
meditar pelas condições que permitem a apreensão do passado não é
desvinculado da realização da interpretação mesma. Heidegger assim se volta
para a história da filosofia com vistas a problematizar a interpretação do
ser a partir do tempo, na qual se define ser como o que está sempre
presente ou presença. Sobretudo, para reafirmar que voltar-se para o
passado pode mostrar um repetido esquecimento fundamental: da distinção
entre ser e ente. Tal esquecimento encobriria também o problema
diltheyniano, uma vez que impossibilita mostrar a articulação entre ser,
tempo e historicidade.

A tarefa crítica de apropriação da filosofia pode propiciar para
Heidegger uma "abertura originária" do passado, uma não vinculação
irrefletida à tradição. Com efeito, nas Conferências se destaca a
importância desta apropriação originária da história da filosofia. Mas, uma
vez em que se pensa numa historiografia, por assim dizer, existencial (o
conhecimento por vezes não expresso de nosso acontecer no tempo) há
evidentemente também uma relação originária com o passado, com a nossa
historicidade. Com efeito, nas Conferências apenas se insinua este tópico,
uma vez também que há claramente um privilégio para o passado na
determinação da historicidade. Em SZ entra em questão na relação originária
com a historicidade o momento temporal do futuro. Falando ainda a grosso
modo, em SZ a temporalidade do ser-aí é pensada a partir do movimento em
direção à singularização decisional, no qual o ser-ai compreenderia sua
identidade não a partir do empenho no mundo das ocupações e como a posse de
uma propriedade estável, mas como apenas possibilidades que não adquirem
consistência. Heidegger pensa o futuro como um "chegar a si", como uma
relação própria consigo mesmo e as determinações herdadas.

A identidade estruturalmente sem consistência (o futuro) é condição
para que tanto o ser-aí tenha um presente quanto um passado, pois este
necessita projetar-se, estar em possibilidades herdadas de relação com o
mundo (com os outros, os utensílios, os objetos, a natureza e consigo
mesmo). Em que medida pensar a historicidade nos termos apresentados nas
Conferências requer uma complexa doutrina da temporalidade em termos
existenciais? É profícuo pensar a historicidade ou a história humana com
uma concepção tão exótica do tempo? Em que medida a concepção que chamei de
"historiografia existencial" pode ser apropriada para superar a distinção
entre fato e interpretação, história e historiografia? A meu ver, é
fundamental aprofundar a compreensão da ontologia da história de Heidegger
problematizando estas questões.

Referências Bibliográficas:

HEIDEGGER, Martin. Der Begriff der Zeit. GA64. Frankfurt am Main,
Klostermann, 2004.

___________ Der Zeitbegriff in Geschichteswissenchaft. In: Frühe Schriften.
GA1. Frankfurt am Main, Klostermann, 1978.

__________ Die Grundprobleme der Phänomenologie (1927). GA24. Frankfurt am
Main, Klostermann, 1976.

__________El trabajo de investigación de Wilhelm Dilthey y la actual lucha
por uma concepción histórica del mundo. In: Tiempo e História. Trad Jesus
Adrian Escudero. Madrid, Editorial Trotta, 2009.

_________ Sein und Zeit. 11. ed. Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1967.
________ Was ist Metaphysik? Frankfurt am Main, Klostermann, 1975.


MALPAS, Jeff. From the transcendental to 'Topological'. Heidegger on
Ground, Unity and Limit. In: From Kant to Davidson: Philosophy and the Idea
of the Transcendental. Malpas, J. (Org.). London, Routledge, 2003, p. 75-
99.


KISIEL, Theodore. The Genesis of Heidegger's Being and Time. Berkley,
University of California Press, 1993.






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[1] Trata-se da primeira página de Que é metafísica? (WM, p.1). No escrito
considerado com a terceira parte não publicada de Ser e Tempo, Os problemas
fundamentais da Fenomenologia, de 1927, Heidegger pronuncia-se mais
detidamente sobre a frase de Hegel. Tomo a liberdade de citá-la aqui, já
que está presente a frase completa de Hegel, mesmo sabendo que se trata do
tipo de afirmação de Heidegger que tanto embasa seus detratores quanto se
presta às tentativas de esclarecimento e reabilitação por parte dos
heideggerianos. Heidegger comenta o veredicto de que, aos olhos do são
entendimento comum, ser seria o conceito mais evidente e não necessitaria
de definição: "Compreender o "é" e, com isto, o ser em geral é tão evidente
que pôde se perpetuar na filosofia um dogma até hoje inconteste: o ser é o
conceito mais simples e auto-evidente; não é suscetível de definição e nem
necessita de definição. Apoiamos-nos no são entendimento comum do homem.
Mas sempre que se converte o são entendimento comum na mais alta instância
de apelação da filosofia devemos desconfiar da filosofia. Hegel disse em
Sobre a essência da crítica filosófica em geral: 'A filosofia é de acordo
com sua natureza algo esotérico, por si mesma nem está feita para o povo
nem deve ser inventada por ele. É filosofia unicamente porque se contrapõe
ao entendimento, e além disso, ao senso comum do homem, que não é mais do
que a visão limitada temporal e localmente de uma geração de seres humanos;
com relação a esta o mundo da filosofia é em si e por si mesmo, um mundo às
avessas'. As pretensões e os padrões do senso comum humano carecem de toda
a validade e não representam nenhuma autoridade no que diz respeito ao que
é ou não é filosofia". (GA 24, p.70)

[2] Como, por exemplo, já em 1916 no escrito O conceito de tempo na Ciência
Histórica (GA1), no qual propõe investigar a estrutura do conceito de tempo
a partir do exame a) da função que este desempenha numa ciência particular
e b) da finalidade desta ciência. Heidegger elege a História e a Física
como ciências particulares a serem consideradas.
[3] Seja pela delimitação temática, seja pelas minhas limitações no
envolvimento com a obra de Heidegger, esquivo-me aqui do problema da
historicidade ou temporalidade própria do ser em geral (não apenas do ser
do ser-aí) apontada em Ser e Tempo e que predominará no que se denomina de
segunda fase de seu pensamento.
[4] Tal terminologia aqui não é equívoca: Heidegger diversas vezes enuncia
em SZ (por exemplo, o intuito de buscar a condição de possibilidade dos
fenômenos. A inspiração kantiana é inegável, embora exista espaço para a
alegação dos intérpretes de que se trata de uma condição de possibilidade
"fenomenológica". Um exemplo é Jeff Malpas, que defende que a resposta à
questão pela condição de possibilidade em Heidegger é pensada a partir da
noção de uma unidade articulada e complexa de elementos, e não como um
princípio explicativo primordial e em relação hierárquica com o que
fundamenta (Malpas, 2003, p.90-91).
[5] É interessante observar que, se SZ é uma obra onde não há referências
mais extensas sobre outros filósofos – merecem este privilégio apenas
Descartes, Aristóteles, Hegel – exista um parágrafo inteiro (o parágrafo
77) apenas para o comentário do livro de cartas Dilthey-Yorck. Um caso para
além de aproveitamento de material, se tivermos presente a quantidade de
referências a este livro nos anos que circundam SZ. Um bom exemplo são
justamente as Kasseler Vorträge e O Conceito de Tempo (GA64, pp. 7-15).
[6] Ambos os escritos são considerados por Kisiel como dois dos três
rascunhos de SZ (o terceiro sendo a preleção de 1927, Os problemas
fundamentais da fenomenologia). No caso do Dilthey draft (O conceito de
tempo), Kisiel defende que as semelhanças não são apenas de conteúdo, mas
também da estrutura da exposição – duas seções da metade do escrito
corresponderiam à divisão em duas partes de SZ, além do pronunciamento em
linhas gerais sobre a importância da destruição da história da filosofia,
por exemplo. (Kisiel, p. 322)
[7] Não pretendo aqui me enlear na complexa e inesgotável discussão sobre a
relação entre Husserl e Heidegger, bem como sobre onde estão os pontos
críticos mais fortes de Heidegger quanto à Husserl, ou se as críticas
heideggerianas são pertinentes. Basta por hora ressaltar que Heidegger
trata criticamente tanto Dilthey quanto a fenomenologia, embora reconheça
que seu questionamento tem como ponto de partida o trabalho de ambos.
[8] Heidegger também reconhece um sentido mais amplo do termo visão de
mundo, que não o advindo da pretensão de uma visão de mundo com base no
conhecimento científico: "Em um sentido mais amplo se fala também de uma
concepção natural do mundo que todo o homem enquanto tal já traz consigo
pela determinação que exerce o ambiente, a situação, a educação, etc. Neste
caso se fala de uma concepção pré-científica de mundo, que se distingue da
propriamente científica, ou seja, uma posição que se forma sobre a base de
um conhecimento teórico-científico". (Heidegger, 2009, p.43)
[9] Não poderei me deter neste ponto, mas a seção com o comentário sobre a
vida de Dilthey mereceria um artigo à parte. Além de um exemplar de análise
da obra de um filósofo, há aspectos da biografia de Dilthey que Heidegger
faz questão de ressaltar, e que acabam sendo coincidentes com a sua própria
biografia, como o pai envolvido com a igreja (o pai de Dilthey foi pastor,
o de Heidegger, sacristão), o fato de primeiro ter se dedicado ao estudo da
teologia e somente depois à filosofia e as ciências históricas, o
conseqüente afastamento da teologia, entre outros.
[10] Tendência a qual Heidegger afirma ser uma recusa direta de Dilthey ao
positivismo francês, embora o reconheça como uma (as outras seriam a escola
histórica e o kantismo via Schleiermacher) das influências na filosofia de
Dilthey, seja como reação, seja como adesão a alguns aspectos. No caso da
adesão, se trataria da assunção da crítica positivista à metafísica
(Heidegger, 2009, p.52)
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