A Ópera do Trindade

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Nuno Domingos

A ÓPERA DO TRINDADE FNAT: Política Social, Divulgação Cultural e Ideologia A Companhia Portuguesa de Ópera (1963-1975)

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Título A Ópera do Trindade © 2006, Nuno Domingos Todos os direitos reservados. 1.A EDIÇÃO / Junho de 2007 ISBN: 978-972-41-0000 Depósito Legal n.O: 246621/06

Distribuição ASA Editores, SA Av. da Boavista, 3265 — Sala 4.1 4100-138 Porto — Portugal Tel. 22 616 60 30 / Fax. 22 615 53 46 www.asa.pt [email protected]

Av. Eng. Duarte Pacheco, 19 — 1.O 1070-100 Lisboa — Portugal Tel. 21 380 21 26 / Fax. 21 380 21 15 [email protected]

Edição apoiada por:

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Colecção Músicas A colecção Músicas procura dotar o panorama editorial em língua portuguesa de estudos monográficos de carácter científico que enquadrem diferentes universos musicais, privilegiando as reflexões sobre os espaços Português e Lusófono. A actualidade das temáticas e das abordagens, bem como a multidisciplinaridade, são os principais critérios que norteiam a selecção dos trabalhos, partilhados por áreas disciplinares afins, como a Etnomusicologia, a Musicologia Histórica, a Antropologia, a Sociologia, os Estudos Culturais e os Estudos em Performance. Na expectativa de oferecer à música o lugar de destaque que lhe é devido no quadro de reflexão sobre a cultura e a sociedade, a colecção Músicas dirige-se não apenas aos especialistas como também ao grande público.

Coordenação Científica de Salwa Castelo-Branco Instituto de Etnomusicologia Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

e Susana Sardo Instituto de Etnomusicologia Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa Universidade de Aveiro

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Agradecimentos Este livro, que nasce de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Nova de Lisboa em 28 de Novembro de 2002*, deve-se em grande parte à orientação de Rui Santos e Mário Vieira de Carvalho. Pela responsabilidade diversa que tiveram na elaboração deste trabalho, queria destacar os contributos de Jorge e Isaura Domingos, Carlos Fragateiro e da equipa do Teatro da Trindade, Daniel Melo, Diogo Ramada Curto, Fernando Domingos, Frederico Ágoas, Inês Brasão, José Neves, José Serra Formigal, Miguel Jerónimo, Rui Vieira Nery, Salwa Castelo-Branco, e dos membros do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, Sílvia Nóbrega e Tiago Fernandes.

* A dissertação de mestrado foi apoiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

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Conteúdos Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Ópera para Trabalhadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 1 > Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres . . . . . . . . . . . . . . . 26 O lazer moderno e as suas funções sociais . . . . . . . . . . . . . . . 36 O Estado moderno e as políticas sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 1.1 > A organização dos lazeres na Itália fascista e na Alemanha nacional-socialista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 1.2 > O percurso histórico da FNAT . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 Alegria no Trabalho e a dimensão cultural . . . . . . . . . . . . .56 O Portugal do pós-guerra e o crescimento da FNAT . . . . .62 O crescimento da acção ideológica da FNAT . . . . . . . . . . .67 2 > A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos . . . . . . 80 A política cultural da FNAT no Teatro da Trindade . . . . . . . . . . 80 A ópera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Desproletarizar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 O Trindade e o meio operático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Políticas culturais e objectivos políticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 O São Carlos e o Trindade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 Sobre a sensibilidade para a ópera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 O público . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Enobrecer a cultura popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102 O Caso Ruy Coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 Os limites do espectáculo corporativo: as actas do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade . . . . . . . . . . . . . . 110 Um modelo operático alternativo: o caso do Grupo Experimental de Ópera de Câmara (GEOC) . . . . . . . . . . . . . . 118 Os cantores do Trindade e a sua condição . . . . . . . . . . . . . . . 126 3 > A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas . . . . . . 133 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .206 Anexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212 Índice Remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

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I´ndice de Abreviaturas FNAT: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho EFTA: European Free Trade Association (Associação Europeia de Comércio Livre) SNI: Secretariado Nacional da Informação JAS: Junta de Acção Social ETN: Estatuto do Trabalho Nacional ISCEF: Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras GATT: General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) GEOC: Grupo Experimental de Ópera de Câmara OIT: Organização Internacional do Trabalho CAT: Centro de Alegria no Trabalho CRP: Centro de Recreio Popular KDF: Kraft Durch Freude (Força Pela Alegria) OND: Opera Nazionale Dopolavoro OECE: Organização Europeia de Cooperação Económica FMI: Fundo Monetário Internacional

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Apresentação Este estudo é a biografia de uma instituição cultural desde a sua concepção. Como qualquer biografia, é, antes de mais, uma narrativa em que um conjunto de factos relevantes sobre a entidade estudada, as suas acções e os contextos destas, é ordenado num eixo, ou em vários eixos temáticos conexos, de modo a produzir uma sequência significativa. Neste caso, parafraseando Geertz, poderíamos falar de uma “narrativa densa”. Uma narrativa histórica sustentada por uma trama conceptual sociológica que, sem se reduzir ao enunciado de um qualquer esquema determinista, sabe usar a teoria para melhor colocar os problemas, romper com imprecisões da linguagem comum, seleccionar e interpretar a informação, arriscar hipóteses; mas também usar a narrativa para testar os limites das construções teóricas, reencontrar os sentidos da acção para os próprios actores e colocar a sua autodeterminação no contexto dos constrangimentos e das oportunidades do espaço social. Para apresentar brevemente este livro, importará, pois, começar por indicar o que, do nosso ponto de vista, define a relevância e dá significado à narrativa que contém. Em primeiro lugar, a própria instituição, a Companhia Portuguesa de Ópera (CPO) que teve sede no Teatro da Trindade, enquadrada nas actividades da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Aparentemente uma instituição menor, decerto uma pequena peça na estrutura institucional do Estado Novo, apresenta no entanto várias características que a tornam interessante como objecto de estudo sociológico e histórico. Uma dessas características é a ambiguidade da sua inserção institucional, enquanto instrumento de política cultural com objectivos bem precisos – divulgar socialmente o gosto pela ópera e o acesso a ela, gerar oportunidades para os criadores e intérpretes nacionais e constituir uma escola para talentos emergentes –, mas sob a tutela de um organismo vocacionado para as políticas sociais e à margem do Secretariado Nacional da Informação (SNI). Contra a visão de senso comum de um aparelho de Estado monobloco, agindo como se de um actor individual se tratasse, esta micro-análise destaca as tensões internas e os interstícios em que se desenvolvem margens de liberdade institucionais e 9

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pessoais, e se desenrolam lutas pela aquisição ou valorização de posições concorrenciais. Por outro lado, essa mesma ambiguidade leva a pôr em causa, em torno deste objecto específico, as categorizações tantas vezes aceites como óbvias que apartam política social de política cultural, cultura erudita de cultura popular, iniciativas estatais e estratégias individuais. Outra característica é o seu tempo e o contexto sociopolítico em que decorre. Acompanhando um processo de modernização tardia – desequilibrada e gorada em dimensões essenciais da sociedade portuguesa –, e as tensões entre a adaptação e a resistência à mudança no interior do regime, constitui um ponto de observação privilegiado para questionar esse mesmo processo em alguns aspectos cruciais: as relações entre mudança estrutural, mobilidade social, aspirações de consumo e formação de públicos culturais; as relações entre políticas sociais, políticas culturais, ideologia e legitimação do Estado e do regime, face a novas aspirações de camadas sociais emergentes. No contexto da mudança de regime, leva ainda a discutir os efeitos perversos de políticas de intenções niveladoras que, ao destruírem, em nome da igualdade de oportunidades de acesso à excelência, os níveis inferiores da hierarquia da oferta e da divulgação culturais, poderão ter aumentado as desigualdades que, à partida, pretendiam nivelar. Problemas históricos pela datação, não são menos problemas actuais da sociedade portuguesa, que hoje se apresentam sob novas formas que urge interrogar. Finalmente, a pequena escala da instituição faz dela um objecto fácil de manusear para apreender as disposições e as motivações dos actores individuais no desempenho, e mesmo, como é o caso, na criação dos seus papéis institucionais, dentro das margens de liberdade que conseguem criar e defender. De onde o importante cruzamento da biografia da instituição com as acções individuais de diversos actores, diferentemente posicionados nas relações aqui evidenciadas entre o campo político e o campo cultural, de que se destaca a figura do criador do projecto da CPO como actor central da narrativa. Ao Dr. Serra Formigal, pela sua colaboração num trabalho de investigação que necessariamente abordou a sua obra pessoal numa perspectiva crítica, gostaríamos, como orientadores científicos da investigação, de deixar uma palavra de apreço. 10

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Apresentação

Uma última palavra, de teor mais institucional. Este trabalho resulta de uma dissertação de mestrado em Sociologia defendida na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É a mais recente de um conjunto de publicações que, desde finais dos anos 80, atestam a vitalidade, a qualidade e a originalidade das investigações enquadradas em sucessivas gerações de cursos de mestrado em Sociologia, aqui particularizados na especialização em Sociologia Histórica. Produto de uma escola que procura na interdisciplinaridade, necessariamente assente em sólidos alicerces disciplinares, a identidade da sua prática científica, é significativo que a sua orientação tenha sido partilhada por dois docentes de departamentos diferentes, Sociologia e Ciências Musicais, com a aliciante – também um perigo com que, a nosso ver, o Autor lidou exemplarmente – de um de nós ter sido actor participante, enquanto crítico musical e activista político-cultural, nos acontecimentos narrados. Assim se ensaiou mais um cruzamento de competências científicas, entre os muitos possíveis em torno de problemas e objectos de estudo concretos. É com a alegria de ver de novo um trabalho de qualidade emergir dessa prática de colaboração, e de sabermos ter com ela apoiado uma investigação em que foram, como sempre, determinantes a formação, a competência e o trabalho do Autor, que subscrevemos esta nota. Rui Santos, Mário Vieira de Carvalho

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Teatro da Trindade, 1969 © João H. Goulart / AFCML

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Introdução A investigação das temporadas de ópera que a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) organizou no Teatro da Trindade, entre 1963 e 1975, pretende, pela análise de um objecto específico e historiograficamente marginal, questionar o contexto de intervenção e o alcance ideológico das medidas de política social delineadas pelo Estado Novo. O trabalho está dividido em quatro partes fundamentais. A primeira introduz o tema, envolvendo o leitor com a realidade explorada. A segunda tomou a forma de um enquadramento teórico e histórico. Enunciaram-se, então, os pontos de partida que proporcionaram a determinação dos eixos explicativos centrais. A definição de conceitos à luz do seu significado histórico e da sua capacidade explicativa foi importante para designar os parâmetros que configuraram a interpretação do tema. A análise dos espectáculos de ópera que a FNAT organizou no Trindade exige uma concepção das funções e evolução da organização de ocupação de tempos livres portuguesa. A definição das etapas de evolução da FNAT, determinada pelas transformações que caracterizaram a sociedade portuguesa no terceiro quartel do século XX, está relacionada, a um nível mais estrutural, com a explicação da dinâmica histórica que deu origem à criação de um conjunto de instituições estatais de regulação social. A breve comparação estabelecida com as organizações de tempos livres da Itália fascista e da Alemanha nacional-socialista serve para perspectivar melhor o âmbito da acção da organização portuguesa. A abordagem de um instrumento ideológico específico do Estado Novo implica uma concepção de acção ideológica que ultrapasse a componente mais visível da endoutrinação. Para compreender a acção da FNAT é importante criar uma distância de determinado tipo de estereótipo de dominação ideológica tradicional e autoritária – sem, no entanto, o excluir –, típico das análises que tratam as primeiras décadas do regime.1 Mais do que perceber a constelação de princípios doutrinais que

1. Modelo patente na obra historiográfica de Fernando Rosas, que abarca essencialmente o período do Estado Novo anterior à Segunda Guerra Mundial, mas também em trabalhos mais recentes, como, por exemplo: José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria no Trabalho – Uma História Política da FNAT (1935-1958), Colibri/INATEL, Lisboa, 1999.

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procurava forçar as consciências, cabe aqui avaliar o modo como o progressivo conhecimento da realidade social foi utilizado, por organizações como a FNAT, nas práticas sociais quotidianas, visando a transformação das consciências. É na adequação das práticas que se avaliará a eficácia ideológica. Neste sentido, as palavras de Bourdieu parecem exactas: Se é verdade que, ainda quando parece assentar na força nua, a das armas ou do dinheiro, o reconhecimento da dominação supõe sempre um acto de conhecimento, isso não implica que se justifique descrevê-lo na linguagem da consciência, cedendo a um “través” intelectualista e escolástico que, como acontece com Marx (e sobretudo com aqueles que, na esteira de Lukács, falam de “falsa consciência”), leva a esperar a emancipação… do efeito automático da “tomada de consciência”, ignorando, à falta de uma teoria disposicional das práticas, a opacidade e a inércia que resultam da inscrição das estruturas sociais nos corpos.2*

Depois de o objecto estar integrado num universo de sentidos macrossociais, seguiu-se a sua exploração. A prioridade da investigação empírica foi a reconstrução dos contextos que envolveram a criação e a existência da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade. Para a prossecução deste objectivo foi essencial o acesso a cinco tipos de fontes: o arquivo do Teatro da Trindade, o arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, o acervo de José Manuel Serra Formigal, o arquivo do INATEL (disponibilizado parcialmente) e um conjunto de textos publicados em jornais e revistas que acompanharam a história da Companhia Portuguesa de Ópera. Estabelecemos também contactos com vários agentes – organizadores, cantores, encenadores, funcionários da FNAT – envolvidos nos espectáculos. Deve acrescentar-se ainda toda a informação retirada de outras fontes bibliográficas, essenciais tanto para o enquadramento teórico como para o desenvolvimento do tema. Pareceu evidente, depois de efectuada uma parcela importante da pesquisa empírica, que o universo de estudo apresentava particularidades que dificilmente poderiam ser enunciadas em toda a sua especificidade se reduzidas aos princípios teóricos que traçáramos. O entendimento do contexto dos espectáculos de ópera do Trindade organizados pela 2. Pierre Bourdieu, A Dominação Masculina, Celta, Oeiras, 1999, ed. orig. 1998, p. 34. * Em todas as citações presentes neste livro optou-se por preservar a grafia original da época, facto que conduz a um duplo critério de revisão. A título de exemplo, tanto poderemos ler “S. Carlos” (nas citações) como “São Carlos” (no texto do autor). (N. do E.)

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Introdução

FNAT obrigava a entrelaçar um conjunto de relações que não poderiam ser bem compreendidas fora de um processo quotidiano que progrediu no tempo. A elucidação da dinâmica desse processo implica que todos os interesses individuais, colectivos e institucionais sejam colocados uns em relação aos outros. Pierre Bourdieu expressou bem esta necessidade ao afirmar que “ter presente que as ideologias são sempre duplamente determinadas, – que elas devem as suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das fracções de classe que elas exprimem (função de sociodiceia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção – é possuir o meio de evitar a redução brutal dos produtos ideológicos aos interesses das classes que eles servem (efeito de «curto-circuito» frequente na crítica «marxista») sem cair na ilusão idealista a qual consiste em tratar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes e autogeradas, passíveis de uma análise pura e puramente interna (semiologia)”3. A terceira parte do trabalho pretende, assim, reconstruir um processo. A narração assumiu-se como o instrumento ideal para analisar uma sequência histórica cuja explicação resulta da contingência entre um conjunto de factores. Como suporte teórico para esta opção considerámos o artigo que Margaret R. Somers4 escreveu para o American Journal of Sociology, a propósito de uma discussão teórica e metodológica que a opôs a Edgar Kiser e Michael Hetcher5, um bom modelo de inspiração. A autora defende um conjunto de princípios de investigação que reúne sob a designação de realismo relacional.6 Procurando um percurso intermédio entre um dedutivismo teórico que se impõe à realidade social e um empirismo ingénuo ao qual faltam eixos de concepção dos fenómenos que explora, Somers defende que a explicação social se funda na teorização de uma dinâmica social construída a partir da reconstrução empírica de processos de relações. A análise causal é interpretada

3. Pierre Bourdieu,”Sobre o Poder Simbólico”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994, p. 12. 4. Margaret R. Somers, “We’re No Angels: Realism, Rational Choice, and Relationality in Social Science”, American Journal of Sociology , Vol. 104, n.o 3, Novembro de 1998, pp. 722-84. 5. Kiser e Hetcher escrevem um artigo no mesmo número do American Journal of Sociology. Edgar Kiser; Michael Hetcher, “The Debate on Historical Sociology: Rational Choice Theory and its Critics”, AJS, Vol. 104, n.o 3, Novembro de 1998, pp. 785-816. 6. Em certo sentido não se afasta da expressão de Bourdieu: o real é relacional. Pierre Bourdieu, “Introdução a uma Sociologia Reflexiva”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994, ed. orig. 1982, p. 28.

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no interior de dinâmicas e sequências temporais. Não abdicando de eixos teóricos de interpretação, a explicação da acção tem uma origem contextual que deve ser considerada na abordagem dos movimentos dos actores sociais. O intricado conjunto de relações institucionais e de posições individuais que caracterizaram o contexto das temporadas de ópera no Trindade sugeriram uma construção narrativa. É possível, assim, estabelecer uma relação, inerente ao objecto investigado, entre a autonomia relativa da acção individual e as fronteiras estruturais e conjunturais responsáveis pelos limites dessa autonomia. Procurou-se evitar, deste modo, que os quadros teóricos violentassem parcelas do fenómeno social estudado, que só podem ser devidamente explicadas a partir de uma compreensão dos contornos da acção de alguns actores sociais. Esta parte do livro divide-se em dois momentos. No primeiro, propomos uma série de observatórios que acumulam uma descrição geral da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, designadamente: as implicações culturais e políticas do Plano Geral para a Programação Anual do Teatro da Trindade, a relação do Trindade com o São Carlos e com o Secretariado Nacional de Informação, a caracterização do público do Trindade, o “Caso Ruy Coelho”, a acção do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, a comparação com o Grupo Experimental de Ópera de Câmara subsidiado pela Fundação Gulbenkian e, por último, a análise da condição profissional dos cantores que constituíam a base artística da Companhia Portuguesa de Ópera. No segundo momento, acompanhamos a sua evolução cronológica ao longo dos anos em que esteve activa (1963-1975). O trabalho encerra com uma conclusão em que procuramos sintetizar alguns pontos essenciais resultantes da investigação.

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Serra Formigal apresenta a Companhia Portuguesa de Ópera à imprensa em Luanda. 1966

O´pera para Trabalhadores Em 11 Novembro de 1958, Quirino Mealha, presidente da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), escreveu ao chefe de gabinete do ministro das Corporações e Previdência Social. Uma carta anónima fora enviada ao secretário do ministro, apontando reparos ao recrutamento dos participantes nos campeonatos de futebol organizados pela FNAT. Prendia-se esta reclamação com o facto de a FNAT aceitar nestas competições desportivas inscrições de analfabetos menores de 21 anos. Argumentava o anónimo subscritor que as regras perfiladas pelas associações desportivas impediam pessoas com tais características de participar nas provas por elas organizadas. Quirino Mealha respondeu 17

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ao chefe de gabinete do ministro das Corporações e Previdência Social, afirmando que esses regulamentos não se aplicavam aos campeonatos desportivos organizados pela FNAT. A esta explicação, adicionou o seguinte epílogo: Promovendo a cultura e recreio entre os trabalhadores, como elementos de evasão de uma actividade profissional diária mais ou menos absorvente, a FNAT tem procurado atingir as finalidades que lhe são apontadas por lei, através de fórmulas a que as classes trabalhadoras se mostrem mais permeáveis. A actividade desportiva está naquelas condições. Assim a FNAT, no intuito do melhor aproveitamento do tempo livre dos trabalhadores, fornece aos Centros onde eles estão integrados, organização, estímulo e orientação para as actividades desportivas, entre outras. Não recruta elementos para os jogos dos seus campeonatos, mas antes e até por imposição geral legal, estimula os Centros à participação na actividade desportiva, sistema a que mostram maior receptividade. O desporto preconizado pela FNAT, designadamente o futebol – a modalidade visada –, é assim, não um fim em si mesmo como o que praticam os inscritos nas associações desportivas a que no Decreto n.o 40.964, de 31-12-56, se faz referência, mas um meio para atingir finalidades de muito maior valia e reflexos mais importantes na vida Nacional.1

Caracterizava-se, assim, a política geral da FNAT. Passados 16 anos e uma mudança de regime, no dia 8 de Outubro de 1974, a ópera Madame Butterfly,2 do compositor italiano Giacomo Puccini, foi levada à cena no ginásio do Futebol Clube Barreirense. A organização da ópera foi da responsabilidade da FNAT, que, em 6 de Abril de 1975, passou a designar-se por INATEL. A récita integrava-se na décima terceira temporada de espectáculos daquela que ficou conhecida pelo nome de Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade. A direcção da FNAT satisfazia assim uma solicitação da recentemente empossada Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Barreiro, que pretendia, com a participação da Companhia Portuguesa de Ópera, abrilhantar as festas do concelho. Em carta enviada ao presidente da Emissora Nacional, no intuito de recrutar a habitual colaboração da sua orquestra sinfónica, o director do Teatro da Trindade e vice-presidente 1. Carta de Quirino Mealha ao chefe de gabinete do ministro das Corporações e Previdência Social, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313. 2. As óperas referidas ao longo deste livro são nomeadas de acordo com a grafia presente em jornais, programas e outros documentos de época.

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da FNAT, José Manuel Serra Formigal, sustentou o interesse de mais um espectáculo que beneficiaria o “público trabalhador de uma das vilas mais industriais do País”3. A dedicatória do espectáculo a todos os trabalhadores do Barreiro reforçava um objectivo inúmeras vezes repetido nos vários contextos que envolveram, ao longo dos 13 anos da sua actividade, a Companhia Portuguesa de Ópera: a divulgação do género lírico pelas classes trabalhadoras. A ópera foi o esteio dominante de um projecto cultural lançado pela FNAT após ter adquirido, em 1962, o Teatro da Trindade. A década de 50 não fora uma época muito feliz para o Trindade. O problema era, aliás, comum a grande parte dos espaços artísticos da zona do Chiado. O Teatro Ginásio – depois de um incêndio – e o Chiado Terrasse encerraram as portas, e o São Luiz diminuíra substancialmente a sua actividade. No Trindade, as companhias teatrais de Orlando Vitorino, Francisco Ribeiro e Couto Viana preenchiam as temporadas sem êxitos assinaláveis, numa época em que a FNAT e a secretaria de Estado da Informação e Turismo organizavam, no Teatro, os seus concursos de arte dramática. Nessa mesma altura, o Monumental vivia dias de grande fulgor. Pela capital registava-se o aparecimento dinâmico de pequenas companhias experimentais. Notava-se, então, uma deslocação do centro da actividade artística, cada vez mais diversa, para outras partes da cidade. O desafio de Serra Formigal, nomeado director do Teatro da Trindade em 1962 pelo ministro das Corporações e Previdência Social, Gonçalves Proença, era recuperar uma já longa tradição teatral e musical, de forte cariz popular, apanágio da história do Trindade. Quando, em 1867, o Teatro foi inaugurado, o empresário Francisco Palha, principal responsável pela sua construção, homem do teatro e de boas relações políticas, afirmou pretender nele “apresentar, alternadamente, drama, comédia e ópera cómica, e que, além disso, tivesse ainda um vasto salão, onde se realizassem concertos e bailes”4. O Teatro, que o jornalista Júlio César Machado dizia ter surgido “aos olhos do romântico público de Lisboa como o mais moderno e afrancesado teatro da capital”, tornou-se, como 3. Carta de Serra Formigal ao presidente da Emissora Nacional, 14/8/1974, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1974. 4. Victor Pavão dos Santos, “A Trindade e o S. Luís – Grandeza e decadências de dois teatros do Chiado”, em Tomás Ribas, O Teatro da Trindade – 125 anos de vida, Porto, Lello & Irmão, 1993, p. 13.

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desejava o seu fundador, um palco teatral onde animados bailes no salão coexistiam com o grande sucesso da opereta e da zarzuela, géneros “que tanto se implantaram no gosto do nosso público oitocentista – quer o público janota ou popular e boémio de Lisboa, quer o público de provincianos que vinham até à capital e para quem se impunha uma noite no Trindade”.5 As frequentes mudanças de empresários, de companhias teatrais, e de filosofias de espectáculo que marcaram a história do Teatro não modificaram a sua tradição popular assente no teatro musical, na revista, na opereta e na ópera cómica, recurso várias vezes utilizado para colmatar alguma circunstancial menor apetência do público para um teatro declamado mais sério. O sucesso do teatro lírico mais ligeiro no Trindade deu consistência à tentativa, por iniciativa do empresário Afonso Taveira6, de formação de uma companhia portuguesa de ópera, no já distante ano de 1908. Para a única temporada desta primeira companhia lírica nacional, que soçobrou aos elevados custos que os espectáculos implicavam, o empresário Afonso Taveira seleccionou um reportório muito idêntico ao que Serra Formigal, em 1963, sob o patrocínio da FNAT, agruparia na sua primeira temporada de espectáculos. Ambas as temporadas, com 55 anos de intervalo, abriram ao som de O Barbeiro de Sevilha e contaram ainda com a La Bohème, de Puccini, e A Serrana, do compositor português Alfredo Keil. A vertente mais ligeira, tradicional no teatro do Chiado, foi reforçada pela companhia de Afonso Taveira com duas operetas: A Viúva Alegre, de Franz Lehar, e Sonho de Valsa, de Oscar Strauss; Serra Formigal preferia optar, para a apropriadamente intitulada “Temporada Popular de Ópera e Opereta”, pela obra de Franz Schubert, A Canção do Amor. Em 1925, o Teatro, depois de algumas remodelações, surgiu como um espaço novo. As características dos espectáculos mantiveram-se, notando-se, no entanto, um progressivo desaparecimento da opereta em favor das revistas musicais.7 O cinema chegou ao Teatro em 1938, e, em Novembro de 1940, estreou-se no Trindade o grupo dos Bailados 5. Ibidem, p. 13. 6. Ibidem, p. 37. 7. Como notava Tomás Ribas, “A companhia de Eva Stachino extasiava Lisboa com as suas revistas enfeitadas pelos restos dos guarda-roupa dos espectáculos parisienses do Folies Bergères, do Casino e do Moulin Rouge.” Tomás Ribas, op. cit., p. 48.

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Portugueses Verde Gaio, criado pelo Secretariado de Propaganda Nacional. Entre 1944 e 1947, Francisco Ribeiro ocupou a sala com a companhia Os Comediantes de Lisboa, registando talvez o último período dourado do Trindade antes da sua aquisição pela FNAT. A Fundação desejava que o Trindade voltasse a ser um palco popular. A programação proposta por Serra Formigal incluía temporadas de teatro declamado, ópera e opereta, concertos musicais, ballet, cinema, variedades e a apresentação de agrupamentos artísticos constituídos por trabalhadores – grupos cénicos, ranchos folclóricos, grupos corais, bandas musicais, etc..8 De um programa ecléctico que pretendia contribuir para o enobrecimento da “cultura popular” destacou-se, pelo montante do investimento consagrado em meios humanos e materiais, e pela repercussão pública que alcançou, a Temporada Popular de Ópera e Opereta do Teatro da Trindade. Em 27 de Abril de 1963, Serra Formigal reuniu-se com a imprensa para transmitir a máxima que tornava públicos as finalidades e pressupostos que estiveram na origem da sua iniciativa: fazer ópera de portugueses para portugueses. Num panorama operático há muito dominado pelo Teatro Nacional de São Carlos, o Coliseu passara, a partir de 1959, a apresentar récitas populares dos espectáculos que as companhias estrangeiras traziam ao Teatro Nacional de Ópera. O monopólio do São Carlos vinha sendo contestado. O editorial de O Século9 de 17 de Março de 1959, intitulado “Ópera só para alguns”10, defendia o regresso do género lírico ao Coliseu. O artigo salientava o direito de os povos acederem a uma educação artística: As ansiedades de arte e de beleza não constituem privilégio de quem possui muita ou regular ilustração ou recursos materiais suficientes. Vem da sensibilidade dos seres, que em todas as classes se encontram bem dotados (…) O dinheiro que se gasta em S. Carlos é de todos: dos ricos, dos remediados e dos pobres. Não pode servir só para recreio e cultura de alguns.11

8. José Serra Formigal: “Plano Geral Para Uma Programação Anual do Teatro da Trindade”, p. 1, Acervo Serra Formigal. 9. Os editoriais de O Século vinham, nas mais diversas áreas da vida pública, demonstrando um certo sentido crítico em relação à governação. 10. “Ópera só para alguns”, O Século, 17/3/1959, p. 1. 11. Ibidem. Serra Formigal sugeriu, na entrevista que nos concedeu, que foi pela sua acção junto do ministro Gonçalves Proença que se patrocinaram as récitas populares no Coliseu.

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Na temporada de 1962/63, o São Carlos iniciou os seus espectáculos com duas óperas – Telephone, de Gian Carlo Menotti, e L’Histoire du Soldat, de Igor Stravinsky – apresentadas pelo Grupo Experimental de Ópera de Câmara da Fundação Calouste Gulbenkian. A temporada oficial do São Carlos estava dividida em temporadas nacionais; abriu com as óperas alemãs, primeiro o Tannhäuser de Richard Wagner, depois o Orfeo e Euridice, de Christoph Gluck, e, finalmente, Arabella, de Richard Strauss. O compositor português Ruy Coelho, presença assídua no “São Carlos do Estado Novo”, ocupou o lugar destinado à ópera nacional com a sua obra Tá-Mar; espectáculo que antecedeu a temporada francesa, preenchida pela Manon, de Jules Emile Massenet, e Ariane et Barbe-Bleue, de Paul Dukas. O São Carlos concluiu as apresentações com a temporada italiana: As Bodas de Fígaro, de Wolfgang Amadeus Mozart, La Bohème, de Puccini, e O Trovador, de Giuseppe Verdi. Todas estas óperas, com excepção da portuguesa, foram representadas por companhias estrangeiras, onde pontuavam grandes vedetas do canto lírico. Aos cantores portugueses foram entregues, como era regra, alguns papéis secundários nas apresentações das conhecidas companhias internacionais. A predominância do elemento vocal sobre a dimensão teatral, no São Carlos, suscitava críticas frequentes. Sobre a temporada desse ano, o crítico José Blanc de Portugal afirmou que um “elenco razoável e individualidades excepcionais não escondem que falta no São Carlos, uma visão musicoteatral arejada, capaz de remoçar velharias cénicas e pobrezas teatrais que, dia-a-dia, se tornam intoleráveis num teatro nacional de ópera a que não compete – naturalmente – ser revolucionário mas que deve acompanhar os tempos, e sobretudo criar os elementos nacionais capazes de dar vida própria, nacional, à causa que serve.”12 O crítico João de Freitas Branco propôs, no final de uma temporada “que manteve a orientação definida há anos”, três pontos de mudança na programação do São Carlos: 1) renovação de reportórios, sugerindo para o efeito algumas obras contemporâneas: Peter Grimes, de Benjamin Britten, The Rake’s Progress, de Igor Stravinsky, ou Lulu, de Alban Berg, óperas antigas portuguesas e encomendas a compositores idóneos 12. José Blanc de Portugal, Rumo, n.o 73, 3/63, p. 215.

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contemporâneos; 2) valorização dos intérpretes portugueses; 3) renovação da escolha dos maestros e encenadores. Termina afirmando que “quanto a cantores estrangeiros, achamos que não será necessário ir acima do elevado nível que se tem verificado”13. O Festival Gulbenkian, que, em 1963, teve a sua sétima edição, tornou-se, como relatava o Diário da Manhã14 em manchete, o mais importante acontecimento artístico-musical de todo o país. João de Freitas Branco considerava, porém, que “o maior problema da cultura musical portuguesa não consiste, hoje, na falta de produção, mas sim na de consumo. É preciso criar um outro e muito mais extenso público afecto à arte musical de nível superior, para que esta possa exercer a sua preciosa acção de educadora de povos. A ópera é um dos melhores veículos do gosto pela arte”15. Num contexto com estas características, havia que “apoiar, com entusiasmo, a iniciativa do Teatro da Trindade”16. Para criar as condições necessárias para popularizar a ópera, Serra Formigal estabeleceu que os bilhetes para as óperas no Trindade custariam cinco escudos, quantia modesta para a época. A natureza dos espectáculos do Trindade perseguiria, em conformidade com “as fórmulas a que as classes trabalhadoras se mostrassem mais permeáveis”, a mesma intenção popularizante: “O pensamento que presidiu à escolha do reportório teve em vista o carácter popular da temporada pelo que se escolheram obras consagradas pela generalidade do público e facilmente apreensíveis sob o ponto de vista musical.”17 O ambiente agradável, recreativo e evasivo, de alegre convivência humana que se pretendia criar no Trindade era bem diferente do efeito que João de Freitas Branco notou em algumas pessoas que assistiram, alguns meses antes da temporada da FNAT se ter iniciado, a um concerto do compositor alemão Karl-Heinz Stockhausen: “Alguém opinou que [as obras de Stockhausen] estariam impregnadas dum subjectivismo doentio, mórbido, destrutivo de uma alegria de viver que bem necessário é fomentar nesta época em que nos encontramos.”18 A questão 13. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 528. 14. Diário da Manhã, 17/5/1963, p. 3. 15. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 526. 16. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 526. 17. “Alguns elementos sobre a ‘Temporada Popular de Ópera e Opereta do Teatro da Trindade’ referidos pelo director do teatro à imprensa na reunião efectuada em 27/4/1963”, em Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1963. 18. João de Freitas Branco, Arte Musical, Novembro de 1962, n.o 18, p. 611.

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subjacente a esta impressão era a «desumanização» da música contemporânea. A autonomização da linguagem dos campos artísticos desenvolvia-se, quase sempre, contra uma sensibilidade geral. A ópera no Trindade queria, pelo contrário, abraçar essa sensibilidade. O anúncio colocado na terceira página do Diário de Notícias19 na véspera da estreia do Barbeiro de Sevilha era modesto e estava entalado entre o filme português revelação do ano, Pássaro de Asas Cortadas, de Artur Ramos, que passava no cinema Roma, e a tourada no Campo Pequeno. No pequeno anúncio ao Trindade, que com o tempo aumentaria a sua dimensão, deixava-se explícito que a récita do dia seguinte seria dedicada aos beneficiários da FNAT, sócios dos Sindicatos Nacionais, dos CAT (Centros Alegria no Trabalho) e dos CRP (Centros de Recreio Popular). No próprio dia, as sobras vendiam-se ao público em geral. Em nota imediatamente colocada a seguir ao nome do teatro surgia uma frase informando da colaboração do Teatro Nacional de São Carlos. A plateia custava, como prometido, 5$00. O preço do music-hall do Monumental variava entre 5$00 e 22$50, enquanto a temporada de reprises cinematográficas do Olímpia, a preços populares, implicava 4$00 para a plateia e 6$00 para o balcão.20 Por essa altura, um bilhete para o Teatro Nacional de São Carlos custava 50$00. A encabeçar o elenco encontrava-se a cantora portuguesa, com carreira a decorrer em Itália, Fernanda Machado, que Serra Formigal conseguiu contratar depois de difíceis negociações. Do restante elenco faziam parte alguns dos cantores que mais se tinham destacado nos espectáculos do São Carlos ou no trabalho efectuado no Grupo Experimental de Ópera de Câmara: Maria Teresa de Almeida, Hugo Casais, Luís França, Armando Guerreiro, Manuel Leitão, Álvaro Malta, Costa e Silva e Helder Vaz. O maestro Silva Pereira dirigiu a Sinfónica de Lisboa. Na estreia, estiveram presentes o Presidente da República, o ministro da Presidência, o ministro das Corporações e Previdência Social, o presidente do Instituto de Alta Cultura e o presidente da Fundação Gulbenkian. Em O Século, o maestro Álvaro Cassuto afirmou que:

19. Diário de Notícias, 5/5/1963, p. 3. 20. Ibidem.

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Ópera para Trabalhadores Na verdade trata-se de um acontecimento muito invulgar: a realização de uma temporada de ópera só com meios nacionais triplica a solução de uma série de problemas e de um esforço na coordenação dos vários elementos que colaboram, os quais só dificilmente se podem vencer (…) A FNAT oferece, assim, aos seus beneficiários, uma série de espectáculos cujo interesse não precisa de ser esclarecido (…) se a iniciativa da FNAT não esmorecer – como tantas outras que nascem com grande entusiasmo – surgirá no nosso meio um público novo, uma série de pessoas para as quais a palavra ópera significa algo mais e algo diferente de um mito ou de um aborrecimento.21

O Diário de Lisboa22 salientou que a temporada popular do Trindade decorreria apenas com artistas portugueses, “todos ou quase todos os que entre nós podem desempenhar a função com um mínimo de dignidade”. A importância da iniciativa, “um velho sonho dos artistas portugueses, músicos, compositores, cantores e todos os que de um modo geral se encontram ligados à música, a criação de uma Companhia Portuguesa de Ópera”, secundarizava “as fífias e as notas de gosto menos requintado” que não “fosse possível evitar nos primeiros tempos”. Considerando o Trindade “um desdobramento mais modesto e com responsabilidade diferente” do São Carlos, o crítico do Diário de Notícias afirmou que a presença massiça do público não se devia aos “bilhetes a quinze tostões e cinco escudos, senão no de ter ali um espectáculo erguido com dignidade e entusiasmo”. O compositor português Joly Braga Santos resumiu o acontecimento na sua crónica para o Diário da Manhã23: “Acaba de se abrir uma nova página na vida artística e social portuguesa, página de profundo significado, principalmente pelas repercussões que pode ter no futuro, no duplo aspecto dos artistas e do público.” Adiantou, porém: “Tudo isto não quer, evidentemente, dizer que o espectáculo tenha sido impecável. Mas pontos débeis existem na grande maioria das récitas de ópera no mundo inteiro.” Entre 1963 e 1975, a Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade prosseguiu uma actividade contínua. A representação da La Bohème, de Puccini, em Novembro de 1975, pôs termo a uma iniciativa cujos contornos políticos e culturais se tentarão clarificar ao longo deste trabalho. 21. Álvaro Cassuto, O Século, de 7/5/1963, p. 12. 22. J.L., Diário de Lisboa, de 7/5/1963, p. 3. 23. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, de 13/5/1963, p. 4.

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1. Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres A Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho foi criada em 1935, nove anos depois do golpe militar que terminou com a Primeira República, e dois após a aprovação da Constituição que emoldurou, institucional e legislativamente, o regime do Estado Novo. O seu nome é muito similar ao que designava a organização dos tempos livres alemã, Força pela Alegria (Kraft Durch Freude), fundada, em 1933, pelo regime nacional-socialista acabado de chegar ao poder. Mais antiga era a italiana Opera Nazionale Dopolavoro que, desde 1925, actuava como instrumento da política corporativa do governo de Mussolini. Embora seja indiscutível a proximidade da FNAT com as organizações de tempos livres de regimes políticos semelhantes ao português, consideramos que o prolongamento temporal da sua evolução política leva a que determinada consanguinidade doutrinária seja analiticamente reenquadrada. A investigação sobre as temporadas de ópera que a FNAT preparou para o Teatro da Trindade, entre 1963 e 1975 – matéria central desta pesquisa –, obrigou a repensar a história da Fundação e a questionar o facto de uma organização corporativa que nasceu à imagem de organizações análogas criadas no fascismo italiano e no nazismo alemão ter ultrapassado em tempo de vida, antes da sua transformação no INATEL, os limites do regime do Estado Novo. O pioneiro trabalho de José Carlos Valente sobre os primeiros 23 anos da FNAT1 (1935-1958) insiste, precisamente, na natureza fascista da instituição: (…) a criação da FNAT por iniciativa governamental – em 13 de Junho de 1935 – faz parte de um plano sistemático de inculcação de valores nos principais sectores da vida

1. José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria no Trabalho – Uma História Política da FNAT, Edições Colibri-INATEL, Lisboa, 1999.

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António Oliveira Salazar, João Gonçalves Proença e Maria José Salavisa. Visita de Salazar ao Teatro da Trindade depois das obras de renovação, dirigidas pelo arquitecto Miguel Evaristo de Lima Pinto e cuja parte de decoração coube a Maria José Salavisa, 1967

social, um regime “tendencialmente totalitário” (Fernando Rosas), através de instrumentos organizativos que consagram a pretendida unicidade político-ideológica: além da PVDE e da Censura, a União Nacional e o Secretariado da Propaganda Nacional, as regras de admissão de funcionários públicos, a organização corporativa, a Educação Nacional de Carneiro Pacheco, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, a Organização Defesa da Família, a Obra das Mães pela Educação Nacional/MP Feminina.2

Em 25 de Abril de 1974, o regime do Estado Novo foi derrubado e todas estas instituições, que Valente vinculou à FNAT no interior do mesmo projecto político e ideológico, e que tinham quase todas, entretanto, sido rebaptizadas e reorganizadas3, foram imediatamente extintas. A

2. Idem, pp. 41-42. 3. Especialmente quando da chamada “Primavera Marcelista”.

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FNAT, pelo contrário, conservou o mesmo nome até 6 de Abril de 1975. O estudo de José Carlos Valente, que vem colmatar uma certa periferização a que a FNAT, como objecto de análise histórica4, tinha sido votada, atribui a tardia intervenção das forças de Abril na organização estatal dos tempos livres ao facto de a FNAT, para os opositores ao Estado Novo, ser uma instituição “politicamente periférica”5. A explicação adiantada para a circunstância de uma instituição que, nos seus primeiros anos, caminhava lado a lado com os tentáculos mais sinistros do Estado Novo ser praticamente ignorada após a mudança de regime, prende-se com as próprias alterações políticas e institucionais que caracterizaram o seu desenvolvimento: “… um estudo mais atento da evolução do organismo, permite verificar que essas características essenciais que o regime democrático deixará subsistir nos primeiros anos pós-25 de Abril – e mesmo até aos dias de hoje – são fixadas apenas no final da década de cinquenta.”6 O ano de 1958 é considerado por José Carlos Valente o limite cronológico que distingue uma determinada FNAT, que, “correspondente às etapas dominadas por uma componente ideológica bastante acentuada”7, de uma outra que acabou por se tornar numa “grande infraestrutura de prestação de serviços, realçada como instrumento de concretização da política social do Estado Novo.”8 Transferida para o mundo descolorido da política social do regime, a FNAT, como objecto de análise científica, parece tornar-se um anacronismo político. A organização teria abandonado o padrão repressivo, abertamente doutrinário e explicitamente ideológico que configurava a actividade de outros tentáculos operacionais do projecto autoritário do Estado Novo. A compreensão do desenvolvimento histórico da actividade da FNAT exige, porém, que o alcance dos conceitos de política e ideologia não se limite a um estereótipo de dominação autoritária. Durante o Estado Novo, foi exercida também uma dominação ideológica particular, de contornos modernos; ideologia de traços mais difusos, mas de eficácia consistente 4. Os estudos sobre o sistema corporativo português têm atribuído uma importância marginal à questão dos lazeres. Ver Manuel de Lucena, A Evolução do Sistema Corporativo Português, vol. I, O Salazarismo, Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976; Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo, 1930-1947, vol. 1, INCM, Lisboa, 1995; Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia, ICS, Lisboa, 1999. 5. José Carlos Valente, op. cit., p. 10. 6. José Carlos Valente, op. cit., p. 10. 7. Ibidem, p. 9. 8. Ibidem, p. 208.

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ao nível das práticas sociais, que corre o risco de ser afastada, ou periferizada, da análise histórica, se permanecer a opção de considerar a política social como um objecto a-ideológico, ou debilmente ideológico. No universo da política social, ao modo como a ideologia formata o pensamento, sobrepõe-se o interesse em perceber a sua eficácia em socializar as relações concretas onde esse pensamento é produzido. Implica, portanto, que as formas de mediação instrumental entre doutrinas e práticas sejam explicitadas.9 A esfera cultural, relevando as vivências e as socializações quotidianas, é um elemento central na interpretação dos processos de dominação. Neste quadro de análise, o conceito gramsciano de hegemonia cultural possibilita analisar, para além dos quadros institucionais repressores e autoritários, a subsistência de determinados padrões de organização social.10 A hegemonia cultural, legitimadora de uma ordem social, resultava de um conjunto de normas e valores socialmente prevalecentes, transmitidos por diversos mecanismos de socialização. A incorporação de “formas de ser e de agir” reflectia a desigualdade no que respeita às relações de poder. Este tipo de controlo social impunha-se como natural. O conceito de dominação weberiano11 revela o modo como as práticas quotidianas, envolvidas por relações de poder desiguais, legitimam elas próprias os grandes complexos de dominação social, transformando o poder em autoridade, ou seja, em dominação consentida e reconhecida pelos actores sociais. A descrição, pelo mesmo autor, dos mecanismos de dominação que envolvem as sociedades modernas remetia para a compreensão dos processos macrossociais que enformavam as práticas quotidianas. A dominação moderna, dita racional-legal, originava uma burocratização das relações sociais, organizada por uma divisão social de trabalho progressivamente complexa. A alteração, nos países que lideravam o processo de modernização, dos grandes eixos organizadores da vida quotidiana obrigou ao estudo das melhores formas de controlar

9. Como afirma Juan Linz, a propósito do regime franquista em Espanha: “Podemos ficar seriamente equivocados se estudarmos determinados regimes através das suas Constituições, leis, discursos ou textos de ideólogos desconhecidos e ignorados sem questionar a forma como tudo isto se disseminou na realidade social.” Juan Linz, “An Authoritarian Regime: Spain”, in Allardt, E. e Littunen, Y., ed., Cleavages, Ideologies, and Party System, The Academic Bookstore Helsinki, 1964, p. 294, tradução do autor. 10. Sobre o conceito de “hegemonia cultural”, ver Antonio Gramsci, Obras Escolhidas, vol. I, Estampa, Lisboa, 1974, pp. 384-387; Kate Crehan, Gramsci, Cultura e Antropologia, Campo da Comunicação, Lisboa, 2004, ed. orig. 2002, pp.122-133. 11. Max Weber, Economy and Society, 3 vols. Totowa, N.J., Bedminster Press, 1968, pp. 215-223.

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os efeitos perversos destas transformações, criando um acervo de conhecimento, disposto em doutrina, que procurava manipular os efeitos dos mecanismos de estruturação social. A hegemonia cultural resultava de uma acção ideológica. A avaliação deste processo deve ser efectuada à luz de uma sociologia histórica que reconstrua o modo como o conhecimento prático é ideologicamente condicionado, à luz de uma dominação que não subsiste, em grande medida, pela “força da palavra”, mas pela capacidade de socializar as práticas quotidianas. Os termos desta socialização, incorporação de sentidos da acção e esquemas de compreensão e interpretação do quotidiano, na exposição de Bourdieu, envolve uma ideologia “despolitizada”, no âmbito da palavra, e politizada, no respeitante aos mecanismos quotidianos de formação da conduta. São as práticas sociais que fundamentam as categorias de percepção do mundo social.12 Michael Mann, na sua abordagem histórica ao desenvolvimento dos Estados-Nação, definiu os critérios que possibilitam estabelecer uma aproximação ao contexto da relação entre iniciativas centrais e práticas quotidianas. Distinguindo poder despótico de poder infraestrutural13, Mann assinalou que a posse de um contundente poder coercivo concentrado em elites e assente num conjunto de instituições totalitárias e discricionárias, cujos mecanismos de propaganda as legitimam em programas de acção, discursos e palavras de ordem, não implica uma eficácia na socialização das práticas quotidianas dos actores sociais. O autor define “poder infraestrutural” como “a capacidade do Estado penetrar efectivamente na sociedade civil e implementar a nível logístico as suas decisões políticas”14 ao progressivo controlo que o Estado, no papel de mediador e regulador das práticas sociais, consegue exercer, a nível infraestrutural, sobre a vida dos seus cidadãos. Ao invés de 12. Como afirma Bourdieu: “Se as relações de força objectiva tendem a reproduzir-se nas visões do mundo social que contribuem para a permanência dessas, é porque os princípios estruturantes da visão do mundo radicam nas estruturas objectivas do mundo social e porque as relações de força estão sempre presentes nas consciências em forma de categorias de percepção dessas relações.” Pierre Bourdieu, “Espaço Social e Génese de Classes”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994, ed. orig. 1984, p. 142. 13. Michael Mann, “The Autonomous Power of the state: Its Origins, Mechanisms and Results”, em States in History, Stuart Hall ed., Basil Blackwell, New York, 1997, pp. 109-136. 14. Ibidem, p. 132, fragmento traduzido pelo autor. Mann aponta quatro parâmetros que reflectem o poder infraestrutural do Estado: a divisão do trabalho no interior da organização das actividades estatais; a literacia, que permite a transmissão de conhecimentos, regras e ordens; os mecanismos económicos que permitam a troca de mercadorias; a criação de estruturas que possibilitem uma rápida circulação de pessoas e bens. Ibidem, p. 117.

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observada a partir de uma lógica de consciencialização de determinados princípios da doutrina de um regime, os limites da ideologia são avaliados pela eficácia que os processos sociais regulados politicamente revelam, no aspecto de socializar os comportamentos quotidianos de determinados universos sociais. No estudo das funções ideológicas do Estado, o conceito de política social deve ser recuperado para um primeiro plano de análise. Embora seja possível vislumbrar, pelo menos a partir do século x vi15, a existência de medidas sociais centralizadas com o objectivo de regular a vida quotidiana e as relações de mercado, cabe sem dúvida às transformações estruturais que atravessaram o século xix a responsabilidade de um incremento sistemático e abrangente de políticas sociais estatais. Produzidas por aparelhos institucionais servidores de sistemas políticos diversos, as políticas sociais respondem, no fundamental, aos contornos de uma dinâmica estrutural, ocidental e europeia, que reproduz, em todas as esferas do quotidiano, o progressivo desenvolvimento de um modelo sócio-económico e cultural. A regulação realizada pelas políticas sociais actuava essencialmente em dois tipos de circunstâncias distintos: as crises do sistema económico e os momentos em que uma expansão resultava em significativas alterações estruturais.16 Mediadas pelas características políticas inerentes aos Estados que as aplicavam, as medidas de política social procuravam, num ambiente adverso, impedir uma politização da sociedade que pudesse desafiar a ordem dominante. Incentivavam, deste modo, a uma despolitização. O termo “despolitização” pode tornar-se equívoco, sugerindo a noção errada de que a sociedade estava já politizada no sentido de os indivíduos possuírem, em larga escala, o que poderíamos entender como uma consciência da sua posição de classe ou os meios de acção política organizada para a defesa dos seus interesses de classe. Consideramos, de forma mais exacta, que este exercício de despolitização actuava sobre as condições de socialização que proporcionariam o

15. Frances Fox Piven e Richard A. Cloward referem os exemplos das leis contra os pedintes que acompanharam, nalgumas cidades europeias, a evolução do feudalismo, a actuação de Lutero nos municípios alemães ou o caso paradigmático de Lyon, onde a intervenção social da Igreja foi substituída pela administração central. Frances Fox Piven e Richard A. Cloward, Regulating the Poor – The Functions of Public Welfare, Vintage Books, New York, 1993, pp. 8-13. 16. Idem, pp. 5-8.

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nascimento desta representação do combate classista. Estamos no terreno da guerrilha cultural, das lutas entre a hegemonia e a contra-hegemonia. A acção política sobre os direitos sociais, aqueles que mais próximos se encontram da vida quotidiana, tornou-se num importante mecanismo ideológico. Não raras vezes, a discussão acerca da natureza dos regimes centra-se em excesso numa análise formal baseada na estrutura institucional que enquadra os direitos civis e políticos, normalmente aqueles que mais se aproximam dos interesses quotidianos de quem analisa os acontecimentos históricos. A dissimulação da hierarquia profissional, a diversificação dos estilos de vida, dos hábitos culturais, descentrava da política do quotidiano, especialmente da sua realidade económica, as desigualdades que outros lutavam por tornar evidentes. O processo de despolitização, assentando numa dinâmica de democratização traduzida no acesso a bens e serviços, contribuía para legitimar a reprodução da hierarquia dos indivíduos e grupos no espaço social. No campo do lazer, a emergência de novas práticas, alterando morfologicamente o campo do consumo cultural, mantinha quase incólume uma relação hierárquica.17 >>>>>>>>>>> Em Portugal, os métodos de acção das políticas sociais eram conhecidos. António da Silva Leal, no ano lectivo de 1969/70, ministrou a cadeira de Política Social Portuguesa no Instituto de Estudos Sociais. O manual da disciplina revela as tarefas de um saber multidisciplinar que devia obedecer aos propósitos utilitários do Estado. Segundo Silva Leal, a política social teria tido a sua origem académica na Economia Social, disciplina que tratava do desenvolvimento económico e social, cuja introdução, em Portugal, fora feita na Universidade de Coimbra, em 1911.18 Sobre as tarefas específicas da Economia Social,

17. Evitando juízos de valor sobre a substância das diversas práticas culturais, é possível afirmar que a exclusividade no consumo de certos bens culturais implica uma exclusão. As dimensões desta exclusão podem ser determinadas na observação da capacidade (não nos referimos apenas às capacidades objectivas mas, fundamentalmente, às que resultam de desigualdades da incorporação de competências) de uns grupos consumirem os bens culturais e de lazer a que outros grupos acedem. 18. Disciplina que teria as suas origens no novo liberalismo oitocentista, desenvolvido no âmbito da institucionalização académica de disciplinas como a Economia, a Ciência Política e a Economia Política, e pelo trabalho de figuras eminentes do pensamento social e económico como John Stuart Mill e, mais tarde, Alfred Marshall. Ira Katznelson, “Knowledge about What? Policy Intellectuals and the New Liberalism”, in Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer (eds.), States, Social Knowledge, and the Origins of Modern Social Policies, Princeton University Press, New Jersey, 1996, pp. 17-47.

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o autor cita Armindo Monteiro19, professor do referido curso, que, em 1923, afirmou: (…) isolamos os assalariados – a classe mais desamparada e mais numerosa – e, pelo aproveitamento de todas as possibilidades, procuramos conquistar para eles a maior soma de vantagens materiais. Esse aproveitamento exige uma análise preliminar. Dela se encarregou a Economia Social – que é assim, segundo o nosso modo de ver, o estudo das condições de vida dos assalariados e dos melhoramentos de que eles são susceptíveis.20

De acordo com Silva Leal, o exercício moderno da política social, que estava, na sua opinião, bastante debilitado em Portugal, não seria função da ciência política, que se “ocupa fundamentalmente do poder político e das suas formas”, mas, especialmente “da história, da sociologia, da economia e do direito”21, disciplinas às quais o autor atribuía, no âmbito da política social, uma vocação prática. Para Silva Leal, o conceito de “política social” caracterizava-se pela “acção do Estado que consiste na definição e na prossecução das condições gerais do bemestar social”22, dirigindo-se às “camadas economicamente mais débeis”23, especialmente pela “adaptação recíproca do indivíduo e o seu meio social”24. A política social integrava-se na função política, dimensão constituída “pelas opções primárias ou fundamentais, através das quais o Estado define os ideais colectivos e toma posição perante os valores ou as exigências que procuram configurar a vida colectiva.”25 Silva Leal afirmava que a política social é um saber que tem por objecto uma acção: Existem evidentemente estreitas ligações entre a política como acção e a política como saber. A acção política constitui o objecto de um saber ou de um conhecimento, que, por isso mesmo, se dizem políticos. No entanto, o que tem levado os homens a reflectirem sobre a política não é uma curiosidade puramente intelectual, mas as

19. Armindo Monteiro destacar-se-ia fundamentalmente como ministro das Colónias, cargo para o qual foi designado em 1931. 20. Armindo Monteiro, Ensaio de um Curso de Economia Política, I, Coimbra Editora, Coimbra, 1923, p. 85, em António da Silva Leal, Apontamentos das Lições proferidas pelo Dr. António da Silva Leal aos alunos do 3.o ano, Lisboa, 1969/70, p. 38. 21. António da Silva Leal, op. cit., p. 43. 22. Ibidem, p. 7. O autor remete ao século xix a origem do conceito, provavelmente aos economistas alemães liderados por Gustavo Schmoller, que ficaram conhecidos por socialistas catedráticos, op. cit., p. 8. 23. Ibidem, p. 9. 24. Ibidem, p. 9. 25. Ibidem, p. 13.

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A Ópera do Trindade exigências da própria vida colectiva, os problemas de uma acção comum que se levantam em cada dia da vida real.26 A política social, porque animada “de uma preocupação de eficiência” deve assentar sobre um conhecimento tanto quanto possível rigoroso das condições de facto que configuram a vida colectiva.27

A relação do conhecimento28 com a política social, especialmente quando as transformações quotidianas obrigaram a intensificar a regulação com políticas concretas, envolveu intervenções em sectores como os lazeres, a educação29 ou a habitação30. A tentativa de satisfação das aspirações de grupos sociais que se viam cometidos, devido à dinâmica estrutural da sociedade portuguesa, num processo de mobilidade ascendente foi uma tarefa colocada aos instrumentos da política social, dado que a política económica não compensava, a nível salarial, o factor trabalho.31 A alteração que o desenvolvimento económico produziu nos quadros de referência quotidianos modificou as representações, as aspirações, os desejos e, no quadro de uma sociedade mais fluída, onde é mais plausível o movimento, a dinâmica das frustrações, o potencial do conflito e a possibilidade da anomia.32 Os parâmetros ideológicos da FNAT, como instrumento da política social, não podem ser apartados dos objectivos práticos inerentes a esta produção de conhecimento sobre a realidade social. O principal critério mobilizado para a compreensão da eficácia ideológica da FNAT é, sem

26. Ibidem, pp. 30-31. 27. Ibidem, pp. 32-33. 28. A este propósito é importante observar o impressionante inventário, realizado pela revista Análise Social, em 1965, onde se arrolam os organismos e instituições que à data tratavam de problemas económicos e sociais. “Investigação Social em Portugal – organismos e instituições”, Análise Social n.o 9-10, vol. III, 1.o Semestre, 1965. 29. No caso da educação, realce-se o estudo de Sérgio Grácio sobre a reforma do ensino técnico de 1948. O autor utiliza o termo “tecnologia social” para caracterizar o modo como o governo, utilizando o sistema educativo, procurou antecipadamente regular as expectativas de grupos sociais que poderiam tornar-se problemáticos perante um incremento industrial em preparação. Sérgio Grácio, Política Educativa como Tecnologia Social – As reformas do Ensino Técnico de 1948 e 1983, Livros Horizonte, Lisboa, 1986. 30. No que diz respeito à habitação social, Luís Baptista relata o modo como o Estado Novo foi reinventando a habitação social, consoante os problemas que as transformações do país iam colocando a quem tinha a responsabilidade de pensar uma política social de consequências primordiais. Neste sentido, o autor refere que, a partir da década de 50, vingou uma ideologia prática da técnica assente num planeamento que visava resolver os problema que a massificação das cidades, neste caso de Lisboa, ia colocando à ordem social. Luís V. Baptista, Cidade e Habitação Social, Celta, Oeiras, 1999. 31. Eduardo de Freitas demonstra o incremento da polarização social em Portugal entre 1930 e 1970. A percentagem de assalariados no total da população activa passou de 48,1%, em 1930, para 74,7%, em 1970. Os sectores industrial e dos serviços cresceram significativamente, em especial as empresas de maior dimensão, o que significou uma redução no número de patrões. Eduardo de Freitas, “Polarização das Relações Sociais em Portugal”, Análise Social, Vol. X, n.o 39, 1973, pp. 496-504. 32. A questão é exemplarmente tratada por Raymond Boudon, “La Logique de la Frustration Relative”, em Effets Pervers et Ordre Social, Quadrige/PUF, Paris, 1993, pp. 131-155. Adérito Sedas Nunes, no artigo intitulado “Portugal: Sociedade Dualista em Evolução”, caracteriza várias das cambiantes deste processo. Análise Social, vol. II, n.o 7-8, 1964, pp. 407-462.

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dúvida, o modo como a organização, ela própria agente de uma dominação burocrática e racional, conseguiu penetrar e enformar o quotidiano dos grupos sociais envolvidos nas suas actividades. É na vida das populações, nos seus movimentos e no modo como estes reflectem a incorporação de determinados sentidos da acção, que se vislumbram os efeitos das políticas sociais. Para compreender o quadro de acção da FNAT e as condições da sua eficácia, é indispensável ter como princípio de análise os grandes eixos de estruturação da vida quotidiana que determinaram as continuidades e as transformações ocorridas em Portugal, durante grande parte do século passado. É em relação a estes elementos, cuja articulação com o desenvolvimento da instituição iremos explorar mais adiante, que as etapas de evolução da FNAT devem ser pensadas e definidas. Foi quando se tornou um instrumento operacional da política social do regime, nomeadamente a partir de meados da década de 50, que a FNAT, nos parcos limites da modernização portuguesa, conseguiu desenvolver os seus princípios de acção ideológica, algo que, apesar do “som e da fúria” doutrinal dos primeiros anos, nunca conseguira antes alcançar. Não atribuindo à FNAT qualquer centralidade na explicação dos processos políticos em Portugal que, na realidade, não possui, o seu exemplo é indicador de algumas tendências inerentes a processos sociais mais vastos. Neste sentido, as palavras de Juan Linz, referentes ao caso espanhol, parecem adequadas ao regime português: “Os sistemas autoritários – mesmo aqueles aos quais podemos chamar reaccionários – são modernizadores no sentido em que representam uma descontinuidade com a tradição, introduzindo critérios de eficiência e racionalidade…”33 Gonçalves Proença, ministro das Corporações e Previdência Social entre 1961 e 1970, resumiu num discurso o âmbito da actuação ideológica de uma instituição como a FNAT: A nossa é, por definição, uma luta pela paz e pelo entendimento entre os homens que só por si quase ficará manchada quando, para triunfar, tenha de recorrer à força. Sob tal aspecto, e sem exagero, bem se poderá dizer que a nossa vitória será tanto

33. Juan Linz, op. cit, p. 321. Fragmento traduzido pelo autor.

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A Ópera do Trindade maior quanto mais despercebida passar aos olhos dos homens e naturalmente for aceite por estes sem constrangimentos ou coacções, mas por simples e natural adesão do seu espírito e da sua vontade livre. É o paradoxo da vitória que, para ser nossa, tem de o ser também daqueles sobre quem é alcançada, sob a pena de o não ser de nenhum.34

As diversas considerações atrás formuladas conduzem a uma abordagem da evolução da FNAT que remete para as origens modernas do lazer massificado e do contexto sócio-económico das políticas sociais de enquadramento, levadas a cabo pelos Estados ocidentais que lideravam o processo de modernização. Seguir-se-á uma breve análise das organizações de tempos livres de regimes semelhantes ao Estado Novo. A breve referência aos casos alemão e italiano tem como intuito tentar descortinar os pontos de contacto e distanciamento entre as políticas sociais em regimes de tipo fascista e as prosseguidas em regimes de tipo democrático. Este percurso, depois de garantir determinados eixos fundamentais de análise, converge, enfim, para a FNAT. Nomear-se-ão, nesse momento, as razões que sustentam a ideia de que é a partir de meados da década de 50 que a FNAT conseguiu, através da reunião de um conjunto de factores internos e externos, actuar com maior eficácia ideológica sobre as populações.

O lazer moderno e as suas funções sociais A compreensão do desenvolvimento dos “padrões sociais do autodomínio humano”, que acompanham o processo civilizacional, conduziu Norbert Elias a estabelecer uma estreita correspondência entre os efeitos socialmente pacificadores do parlamentarismo oitocentista inglês e o surgimento de determinadas práticas desportivas: “A ‘parlamentarização’ das classes inglesas que possuíam terras teve a sua contrapartida na ‘desportivização’ dos seus passatempos.”35 Não será, então, o acaso, ou uma inexplicável vocação britânica, que fez surgir em Inglaterra, em determinado tempo histórico, e junto dos grupos dominantes, um

34. Gonçalves Proença, A política social e o desenvolvimento económico, Junta de Acção Social, Lisboa, 1963, p. 3. 35. Norbert Elias, A Busca da Excitação, Difel, Lisboa, 1992, ed. orig. 1986, p. 59.

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conjunto de práticas de ocupação de tempos livres, quase todas desportivas, em que o confronto estava regulamentado. Mantinham-se, estas novas práticas, restringidas a pequenas elites. A parlamentarização, pelo contrário, tinha um significado social bem mais abrangente. Constituía um eixo importante das nações renovadas, um braço da cidadania conferida por um Estado central defensor de um pretenso bem comum, uma peça decisiva no puzzle da modernidade. Karl Marx, no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a propósito dos acontecimentos franceses de 1848, perspectiva de outro ângulo o processo de parlamentarização. A actuação do partido democrático francês sugeriu-lhe as seguintes palavras: Deixou [o partido democrático] que as paixões populares exaltadas se consumissem neste novo passatempo, que a energia revolucionária se saciasse com os sucessos constitucionais e se dissipasse em pequenas intrigas, em estéreis oratórias e numa agitação ilusória, permitindo assim que a burguesia se reorganizasse e começasse a tomar medidas para pôr em prática.36

A energia revolucionária de que Marx falava, ela própria carente da devida organização política para se tornar realmente revolucionária, ameaçava transviar-se para outros destinos que não os da revolução, isto, apesar da objectividade das relações de produção, numa modernidade industrial e urbana, tornar propícias as condições que levariam a essa ruptura social. O parlamentarismo seria apenas um dos passatempos que obstaculizaram as intenções de Marx. O aparecimento de um lazer massificado, fruto das profundas alterações que incidiram na esfera laboral, com particular incidência na transição do século, constituir-se-ia como mais um óbvio eixo de dominação, um novo passatempo. A procura do entendimento das práticas sociais sugere, no entanto, que não se tomem os agentes dominados por determinada instrumentalização da ordem social somente por essa sua condição subalterna. O estudo da funcionalidade dos tempos livres, de acordo com a proposta de Norbert Elias, depende da compreensão do modo como as sucessivas configurações históricas foram civilizando certas predisposições humanas: 36. Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições Nosso Tempo, Coimbra, 1971, ed. orig. 1852, p. 79.

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A Ópera do Trindade O que pode mudar, e aquilo que de facto mudou durante o longo desenvolvimento da humanidade, são os padrões sociais de autodomínio e a maneira segundo a qual eles se forjam no sentido de activar e modelar o potencial natural dos indivíduos, no sentido de retardar, suprimir, transformar, em resumo, de controlar de várias formas energias elementares e outros impulsos espontâneos.37

O constante aumento das interdependências sociais, resultante da estruturação das sociedades modernas, obriga ao controlo progressivo destes impulsos e ao consequente autodomínio. Sem estas condições, as sociedades desintegrar-se-iam38; sem estas condições estaria posto em causa o consenso mínimo essencial para a sustentação de determinada ordem social. A exigência de um controlo das sociabilidades diárias, situação típica da vida quotidiana das sociedades modernas, implica uma compensação orgânica. É neste ponto que Elias introduz a questão dos lazeres: Nas sociedades avançadas do nosso tempo, muitas profissões, muitas relações privadas e actividades, só proporcionam satisfação se todas as pessoas envolvidas conseguirem manter uma razoável harmonia e um controlo estável dos seus impulsos libidinais, afectivos e emocionais mais espontâneos, assim como dos seus estados de espírito flutuantes. Nestas sociedades, a sobrevivência social e o sucesso dependem, por outras palavras, em certa medida, de uma armadura segura, nem demasiado frágil nem demasiado forte, de autocontrolo individual. (…) No caso das sociedades que atingiram um nível relativamente avançado de civilização, isto é, com relativa estabilidade e com forte necessidade de sublimação, as restrições harmoniosas e moderadas, na sua globalidade, podem ser observadas, habitualmente, numa considerável multiplicidade de actividades de lazer, que desempenham essa função (…)39

As actividades de lazer, seguindo o pensamento de Elias, criam uma excitação regulamentada, em que todos os riscos são calculados e normalizados num conjunto de regras que projectam uma realidade fabricada. Esta função é essencial para o equilíbrio individual e colectivo: (…) muitas ocupações de lazer fornecem um quadro imaginário que se destina a autorizar o excitamento ao representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas

37. Norbert Elias, A Busca da Excitação, Difel, Lisboa, 1992, pp. 74-75. 38. Ibidem, pp. 74-75. 39. Ibidem, pp. 69-70.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres situações da vida real, embora sem os seus perigos e riscos. Filmes, danças, pinturas, jogos de cartas, corridas de cavalos, óperas, histórias policiais e jogos de futebol – estas e muitas actividades de lazer pertencem a esta categoria.40

A representação controlada e aceite da infracção às normas e regras sociais é permitida pela simulação de um “perigo imaginário, medo ou prazer mimético, tristeza e alegria” que “são produzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos.”41 Marx diria que assim se esgotava a energia revolucionária; o termo revolucionário está, no entanto, a qualificar apenas uma energia. Uma energia humana competitivamente organizável. Embora Elias não se debruce explicitamente sobre o contexto de determinadas relações políticas e económicas que trabalharam para enquadrar e regular estes processos, o sociólogo alemão expressa com exactidão o modo como as sociedades modernas configuram determinada evolução da existência humana.

O Estado moderno e as políticas sociais A consolidação política e económica dos regimes liberais europeus no século xix teve no papel do Estado, como agente de pacificação interna, um eixo de estruturação fundamental. Este processo reflectiu-se na criação de um conjunto de instituições de integração, estruturas que sustentavam, em diversos universos sociais, os desafios que o desenvolvimento do mundo moderno ia colocando. A salvaguarda legítima de imperativos económicos dominantes envolvia a naturalização paulatina de uma nova e indiscutível realidade. A defesa de um interesse nacional, comum ao universo de cidadãos, garantia ao Estado a legitimidade da intervenção sobre as relações sociais.42 As alterações que o desenvolvimento dos mercados produziu na esfera produtiva, ainda na primeira metade do século xix, impunham uma

40. Ibidem, pp. 70-71. 41. Ibidem, p. 71. 42. Sobre o papel do Estado na formação das nações modernas, ver Charles Tilly, The Formation of National States in Western Europe, Princeton University Press, Princeton, 1975; Michael Mann, The Sources of Social Power, Cambridge University Press, Cambridge, 1993; Anthony Giddens, The Nation-State and Violence, Cambridge Polity Press, Cambridge, 1985.

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resposta adequada por parte dos Estados. A proletarização de largas camadas das populações, desvinculadas de dependências sociais que configuravam uma sociedade tradicional em desvanecimento, exigia instrumentos de socialização que obstassem a rupturas bruscas.43 A existência de novos vínculos entre as populações e a instância estatal, estabelecidos pela partilha de direitos políticos e cívicos, substância de uma cidadania progressivamente nacionalizada, legitimava a acção do Estado. A estruturação das relações sociais modernas, abandonada ao normal desenvolvimento do mercado, poderia resultar numa grave situação anómica. Os efeitos da desigual distribuição capitalista teriam de ser atenuados sem que, com isto, se pusessem em causa os direitos de propriedade e a manutenção das condições que garantiam a continuidade da prática económica liberal. Tornava-se urgente uma ressocialização das populações. Projecto moderno de vários matizes, que acompanhou a edificação dos Estados-Nação, este processo socializador foi urdido pelo trabalho estrutural e simbólico que visava a unificação subjectiva dos grupos sociais reunidos num mesmo território. Surgiram as nações construídas sobre a imposição de uma língua oficial, pelos princípios históricos da pátria inculcados por sistemas escolares progressivamente abrangentes, pelo desenvolvimento do conhecimento científico dos territórios e das populações e, muitas vezes, pela instigação do reconhecimento negativo do outro. Este controlo do Estado sobre as populações concentrava ainda o poder coercivo numa centralização histórica progressiva, fortalecia os exércitos e sustentava, desta forma, projectos imperiais e domínios económicos e comerciais. As novas condições criadas pela transformação das actividades produtivas e das relações sociais de produção, mecanismos de socialização basilares, propiciavam o trabalho político e teórico das organizações e movimentos que se propunham superar a ordem dominante.44 A iniquidade das relações objectivas ao nível das relações de produção tornara-se, a partir do trabalho analítico de vários teóricos, o instrumento político activo utilizado por vários movimentos sociais e políticos na 43. Skocpol e Rueschemeyer, States, Social Knowledge and the Origins of Modern Social Policies, Princeton University Press, New Jersey, 1996, pp. 304-308. 44. O Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, data de 1848 e é porventura o marco deste trabalho teórico visando a acção política imediata.

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esfera do trabalho. A transmissão destas ideias de transformação, alicerçadas na análise histórica e na compreensão e interpretação do mundo social, a uma generalidade de Homens na condição de dominados, teve como um princípio de acção política elementar a luta de classes. As críticas formuladas à tradição, diversa em si mesma, da teoria das classes sociais45, especialmente ao modo como largos sectores da ciência social importaram para o seu seio, sem a crítica necessária, um projecto que, antes de ser científico, era político e filosófico, não fazem desaparecer a evidência, que a experiência histórica confirma, de que as práticas sociais num contexto de evolução da organização do trabalho reflectiam uma realidade que projectava na história a narrativa da luta de classes. A aplicabilidade de um modo de análise do real de forte pendor racionalizante, capaz de criar identidades políticas colectivas, e o trabalho, muitas vezes bem sucedido, dos movimentos políticos que o traduziam no quotidiano laboral, provaram aos interesses dominantes a seriedade da questão. Mais do que isso, sabiam, pela leitura atenta das doutrinas revolucionárias, que existia uma história já escrita, e que o final feliz dispensava a sua presença. Mas a inevitabilidade da “questão social”, doença endémica da evolução industrial, não impedia que os seus efeitos pudessem ser combatidos, que as reais condições objectivas pudessem, subjectivamente, ser mascaradas, negociadas, concertadas e mesmo alteradas. Para este empreendimento exigia-se a utilização de instrumentos orientados por um conhecimento profundo dos mecanismos da realidade social. Os instrumentos utilizados na prossecução das políticas sociais têm, na sua génese, um objectivo primordial: a eliminação da luta de classes.46 Seguindo Elias, diríamos que a uma tentativa de racionalização organizada das tensões, que seria o projecto da luta de classes, segue-se uma contra-racionalização regulada pela máquina estatal, actuando em favor dos interesses económicos dominantes, através das políticas sociais: uma acção persuasiva, em nome do interesse geral, criadora de uma 45. Ver a este propósito: Pierre Bourdieu, “Espaço Social e Génese de Classes”, em O Poder Simbólico, Difel, Viseu, 1994, pp. 133-162; Frank Parkin, Marxism and Class Theory: A Bourgeois Critique, Londres, Tavistock Publications, 1981; Anthony Giddens, The Class Structure of the Advanced Societies, Londres, Hutchison Library, 1973. 46. Como afirmam Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer: “Sem a intensificação das divisões de classe durante a fase inicial do capitalismo industrial as políticas sociais públicas provavelmente nunca teriam sido instituídas.” Skocpol e Rueschemeyer, op. cit., p. 305. Fragmento traduzido pelo autor.

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hegemonia que tentava evitar, de forma progressiva, mas muitas vezes sem sucesso, a utilização legítima dos atributos garantidos ao Estado pelo monopólio da violência. É unívoco, todavia, considerar o âmbito das políticas sociais dependente apenas da preparação do Estado para enfrentar um hipotético cenário de confrontação social entre classes. As características inerentes à sociedade em estudo, tanto do ponto de vista da configuração das suas estruturas históricas perante uma evolução para a modernidade, como das particularidades da sua organização política estatal e no modo como esta se relaciona com outras esferas da vida social, são essenciais para a contextualização do processo de aplicação das políticas sociais. Noutra perspectiva, é impossível deixar de considerar as conquistas alcançadas pelo trabalho persistente de movimentos políticos e sindicais no sentido da concretização de medidas em favor dos grupos sociais mais desprotegidos.47 Não se tratará aqui de encontrar uma lógica causal única, mas de compreender as relações de dependência entre os vários poderes em jogo, a sua colocação nas condições históricas, as adaptações, as negociações e as respostas que um determinado momento social suscita nos equilíbrios contextuais. O aprofundamento das relações entre o Estado e a sociedade civil implicou a multiplicação de instituições mediadoras entre os cidadãos, comunidade “uniforme” onde cabiam as grandes massas operárias, e o Estado. O processo foi acompanhado pelo crescimento de uma burocracia governamental progressivamente especializada e multidisciplinar. Marx, em O 18 de Brumário, relatou os efeitos que a capacidade estatal demonstrava ao falar na “absoluta dependência, onde o Estado encerra, controla, regula, superintende e mantém sob tutela a sociedade civil, desde as mais amplas manifestações de existência até à vida privada dos próprios indivíduos.”48 Nas palavras de Gramsci: As classes dominantes precedentes eram essencialmente conservadores no sentido que não tendiam a elaborar uma passagem orgânica das outras classes à sua, a alargar

47. Alexander Hicks enumera as diferentes teorias que procuram explicar a emergência do welfare state e das políticas sociais correlativas, distinguindo-as pela centralidade que conferem a determinados factores de causalidade, como o contexto da sociedade industrial, o papel da formação de classes e da organização de movimentos trabalhistas ou a acção do Estado. Alexander Hicks, Social Democracy and Welfare Capitalism, Cornell University Press, Ithaca, 1999, pp. 15-31. 48. Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições Nosso Tempo, Coimbra, 1971, p. 70.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres a sua esfera de classe “tecnicamente” e ideologicamente: a concepção de casta fechada. A classe burguesa põe-se a si mesmo como organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a ao seu nível cultural e económico: toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se “educador”.49

A percepção de que a luta de classes, mais do que uma inevitabilidade histórica traçada por agentes voluntários e consciencializados, era um projecto político e intelectual, assente em reais bases objectivas, mas que tinha de ser conquistado na construção das subjectividades50, foi porventura mais rapidamente apreendida por aqueles que queriam manter o domínio do que pelos que pretendiam usurpá-lo.

1.1 > A organização dos lazeres na Itália fascista e na Alemanha nacional-socialista O universo das políticas sociais, na primeira metade do século x x, foi marcado por dois processos fundamentais: por um lado, a Primeira Guerra Mundial, por outro, mais importante, a crise económica de 1929. Da guerra de 1914-1918 não resultou apenas uma nova geografia europeia, mas um movimento “trabalhista” internacional, animado pela revolução russa de 1917. Mas foram talvez os resultados da crise de 192951 que demonstraram a urgência de um aprofundamento das políticas sociais. As alternativas aos regimes liberais (que aparentavam uma implantação sólida e progressiva) surgiram, pela primeira vez, de forma ameaçadora.52 A ruína económica ameaçou a continuidade dos aparelhos institucionais do liberalismo político. A ruptura de 1929 tomou muito tempo a todos aqueles que se ocupavam de pensar a sociedade. Como afirma Hobsbawm:

49. António Gramsci, Obras Escolhidas, vol. 1, Estampa, Lisboa, 1974, ed. orig. 1945, p. 399. 50. Na leitura de Marx feita por Gramsci: “A proposição contida na introdução à Crítica da Economia Política, de que os homens tomam consciência dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias deve ser considerada como uma afirmação de valor gnoseológico e não puramente psicológico e moral.”, António Gramsci, op. cit., p. 87. 51. Piven e Cloward, op. cit., p. 45. Segundo Hobsbawm, em 1932/33 estava desempregada 23 por cento da força de trabalho britânica e belga, 24 por cento da sueca, 27 por cento da americana, 29 por cento da austríaca, 31 por cento da norueguesa, 32 por cento da dinamarquesa e 44 por cento da alemã. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Presença, Lisboa, 1996, ed. orig. 1994, p. 99. 52. Na Alemanha, o partido nacional-socialista derrubou, em 1933, pelo voto democrático, uma social-democracia incapaz de inverter o drama económico e social do país. O fascismo, sob a batuta germânica, tende a internacionalizar-se (com fortes movimentos na Hungria, na Roménia e na Croácia, mas também noutras latitudes, como em países da América do Sul, casos da Argentina, do Brasil ou da Colômbia. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 122), atraindo fundamentalmente as classe média e média baixa, aquelas que viam a sua posição mais ameaçada pelo rumo da crise do sistema liberal.

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A Ópera do Trindade A Grande Depressão obriga os governos ocidentais a dar às considerações sociais prioridade sobre as económicas nas suas políticas de Estado. Os perigos implícitos em não o fazer – radicalização da esquerda e, como na Alemanha e outros países agora o provaram, da direita – eram demasiado ameaçadores.53

Na economia da URSS, a prática planificadora estava há muito presente com os conhecidos planos quinquenais. Nos Estados Unidos, país que sempre evitara uma política social centralizada, o combate à crise, erigido pelo governo Roosevelt, indicava que ao Estado passaria a caber um papel fundamental na regulação da economia. Em 1935, foi aprovada uma primeira lei da segurança social. Em França, o horário semanal de trabalho foi reduzido, em 1936, para 40 horas. Estipulou-se ainda um período de férias pagas. O economista britânico John Maynard Keynes tornava-se o rosto da opção intervencionista do Estado. O esforço inglês de regulação precede o final da Segunda Grande Guerra, através da apresentação de um conjunto de medidas sociais reunidas no Plano Beveridge de 1942. Mas já antes, a Alemanha nacional-socialista, com a Constituição de Weimar de 1933, organizara um conjunto de medidas de regulação económica. Em Portugal, apesar da crise de 1929 não ter tido consequências estruturais, a Constituição de 1933 e a aprovação do Estatuto do Trabalho Nacional constituem a resposta nacional, inspirada nos exemplos alemão e italiano, aos problemas que afectavam o mundo industrializado.54 A aplicação das políticas sociais exige, porém, uma atenção particular a determinado tipo de características nacionais. Por um lado, os mecanismos das políticas sociais são diversos, influenciando diferentes esferas da vida quotidiana e, consequentemente, colocando distintos problemas no seu emprego prático. Por outro, a manipulação destes instrumentos é condicionada pelas características políticas e socio-económicas dos países em que são aplicados. Estes princípios de análise são centrais na breve abordagem às políticas de organização dos lazeres que tiveram lugar na Itália fascista e na Alemanha nazi.

53. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 101. 54. O Estatuto do Trabalho Nacional (ETN) assemelha-se bastante à Carta del Lavoro italiana, aprovada em 1927. Os objectivos do ETN eram extinguir, mesmo que não o fizessem formalmente, todas as práticas de associativismo livre que pudessem tornar-se foco organizador de luta de classes. Na sua redacção estão expressas as punições para quem transgredir as proibições de greve e de lockout, a imposição do controlo sobre os contratos colectivos de trabalho e a defesa da propriedade e da iniciativa privada. Manuel de Lucena, op. cit., pp. 179-205.

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>>>>>>>>>>> O universo das políticas sociais relacionadas com os lazeres levadas a cabo na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler foi uma resposta particular às consequências da modernidade55. O modelo que estes regimes seguiram, original no modo como as políticas de regulação social foram atravessadas pelas ambições e limites do projecto político, caracterizou-se, genericamente, pela manipulação de instrumentos utilizados para regular os processos de industrialização e modernização. As várias dinâmicas do projecto de dominação doutrinária, presentes, tanto no regime italiano e no alemão como no português, perfazem um quadro de análise importante. A forma como a natureza do regime político interagiu com a superintendência do Estado sobre a sociedade civil deu azo a uma concepção original dos lazeres. A Itália corporativa de Mussolini fundou a Opera Nazionale Dopolavoro (OND). Os fundamentos da nova organização foram as políticas de Mário Giani, na filial italiana da corporação americana de electricidade Westinghouse. A introdução destas políticas sociais em Itália surgiu pela via produtivista, seguindo o modelo empresarial americano.56 Tornar o trabalhador, enquadrado pelos sindicatos fascistas, num elemento funcional no processo de crescimento industrial constituía o desígnio do governo da Itália, país que, na transição do século, se tornara o mais desenvolvido do sul da Europa. A aposta industrial reflectiu-se essencialmente na região norte, ficando todo o mezzogiorno entregue à agonia de uma sociedade tradicional ruralizada. As consequências da crise de 1929 nas economias mais industrializadas obrigaram a um redimensionamento das políticas económicas e sociais.57 A Itália fascista não foi excepção. A necessidade 55. Barrington Moore Jr. destacou, na sua conhecida tese, o carácter modernizador dos regimes fascistas. Barrington Moore Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy, Penguin, Harmondsworth, 1966, pp. 433-452. 56. Peter Wagner e Bjorn Wittrock assinalam as diferenças entre as políticas sociais ocidentais oitocentistas prosseguidas pelos Estados e aquelas que apresentaram uma base não-estatal. Relacionando o desenvolvimento do pensamento social institucionalizado com os objectivos práticos da estrutura política e dos seus interesses associados em debelar a proeminente “questão social”, os autores apontam as diferenças entre as políticas estatais centralizadas da França, da Alemanha e da Itália e uma tradição mais liberal, presente em Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos. No caso americano, as reformas sociais não se desenvolveram a partir de instituições centralizadas mas, diferentemente, de uma aplicação na esfera do trabalho e na comunidade de princípios práticos de regulação organizados quase sempre pela iniciativa privada ou por unidades administrativas de nível local. Peter Wagner e Bjorn Wittrock, “Statist and Non-Statist Societies”, in Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer (eds.), States, Social Knowledge, and the Origins of Modern Social Policies Princeton University Press, New Jersey, 1996, pp. 90-113. 57. A Westhinghouse, empresa americana cujos métodos foram mimetizados e transformados pela organização corporativa italiana, perde, entre 1929 e 1933, dois terços das suas vendas e vê o seu rendimento baixar 76 por cento. Eric Hobsbawm, op. cit, p. 98.

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de estancar perturbações sociais transformou os Dopolavori em agentes primordiais da criação de uma cultura de consentimento social generalizado.58 A máxima “chegar às pessoas”, enunciada por Mussolini em 1931, passou a ser o esteio da nova política estatal implementada pela OND: mais socializada e consentânea com a viragem estatista observada em todo o mundo ocidental. Quando a Kraft Durch Freude (KDF) nasceu, em 1933, os efeitos da crise de 1929 abalavam ainda a Alemanha. Os nacional-socialistas acabavam de bater, pelo voto, o governo social-democrata que governara a República de Weimar desde 1918, e o partido comunista, seu principal adversário. A curta vida da República de Weimar caracterizara-se por um governo acossado pelo descontentamento social. Num país em grave crise financeira, a retórica nacionalista e xenófoba do partido nazi, incutida no povo pela paz punitiva imposta à Alemanha em Versalhes, foi conquistando adesões. Se o país estava no caos financeiro, não deixava de possuir estruturas industriais sólidas e um número de capitalistas que, apoiados pelo novo poder, estavam dispostos a revitalizá-lo. A intervenção da KDF foi mais ambiciosa do que as suas congéneres. A empresa era a célula primária das actividades da organização alemã, o que demonstra a importância socializadora que o local de trabalho ia adquirindo numa sociedade modernizada. Os resultados das políticas económicas e sociais alemãs serão concludentes. A recuperação do país criou as condições para o Terceiro Reich iniciar um esforço de guerra sem precedentes. Em 1938, o regime conseguiu eliminar o desemprego.59 A KDF vai ser apenas um dos componentes que regulou este desenvolvimento, impulsionando a renascida sociedade civil alemã: explorando as “tendências pequeno burguesas de uma parte dos operários”60, os promotores dos lazeres na Alemanha apresentavam-se na vanguarda da persuasão, sabendo que “não é de modo algum o que se dá ao povo trabalhador mas sim como se dá”61 a forma de alicerçar a pacificação 58. Expressão que se torna o mote de explicação do domínio cultural organizado na Itália fascista na obra de Victoria Grazia. Victoria Grazia, The Culture of Consent – Mass Organization of Leisure in Fascist Italy, Cambridge University Press, Cambridge, 1981, p. 62. 59. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 99. 60. Deutschland-Berichte der Sozialdemokratischen Partei Deutschlands (Sopade), 1934-1940. Frankfurt: Salzhausen, 1980; Vierter Jahrgang (1937), p. 1259, citado por José Carlos Valente, “A FNAT: das origens a 1941 – Estado Novo e Alegria no Trabalho”, em História, n.o 5, 1996, p. 15. 61. Arbeitertum, ano 5, n.o 1, 1/4/1935, p. 8, citado por José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria no Trabalho – Uma História Política da FNAT, Colibri-INATEL, Lisboa, 1999, p. 25.

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social. Mais uma vez, a política social visava o consentimento.62 A KDF iniciou uma profunda alteração na organização da empresa alemã: melhorias arquitectónicas, preocupações ambientais, ventilação e iluminação das fábricas, construção de móveis e artefactos criados para o local de trabalho. A KDF possuía um banco privado, ergueu o maior operador turístico a nível mundial e a criação da Volkswagen desejava multiplicar o número de alemães com automóvel próprio. Todos os laços se mostravam indispensáveis para prosseguir o objectivo central da KDF que, como referiu uma publicação da época, “não pode ser confundido com uma alteração (efectiva) da realidade social, mas apenas da sua percepção e avaliação.”63 A lógica de hegemonização, que, além da harmonia social, procurava a incorporação de uma “consciência de consumo”64, era comum ao universo das políticas estatais situadas no mundo capitalista, independentemente do tipo de regime político. No caso alemão e italiano, como no português, os fins visavam ainda acentuar fronteiras sociais mais consentâneas com o projecto global do regime. Um dos seus eixos era a questão nacional e étnica, um importante foco de ocultação de divisões de classe, que a Alemanha levou até às últimas consequências. A força unitária do princípio nacional apelava a um resíduo de valores e tradições, alvo de uma reconstrução e invenção permanentes, que encontrava na sociedade civil um terreno fértil de proliferação, cimentado em toda a visibilidade do aparato simbólico e institucional que o Estado, em construção permanente, conseguia mobilizar na sua sustentação.65 A influên62. Em 1943, o jornalista Tomé Vieira, que irá colaborar no Boletim da FNAT Alegria no Trabalho, escreveu um texto intitulado “A Questão Social”. Nele se explica a forma “superior” como a Alemanha resolvera o problema da luta de classes: “O nacional-socialismo não acabou simplesmente com a luta de classes, que considera absurda e criminosa. Instituiu a legislação social mais avançada que se conhece. Dando ao trabalhador os direitos que lhe confere a sua condição de pessoa, não lhe criou simplesmente meios de vida material. A obra do nacional-socialismo revolucionou profundamente os costumes do povo pela garantia da vida social que deu ao trabalhador. O desemprego acabou, os seguros de invalidez foram instituídos, a protecção à mulher e à criança deixou de ser simples aspiração ou programa de partido. A casa saudável e económica para o operário foi construída. E uma nova mentalidade surgiu entre os trabalhadores, pela mais bela criação que até hoje foi conhecida: ‘A Alegria no Trabalho’.” Tomé Vieira, A Questão Social, Edições Biblioteca, Lisboa, 1943, pp. 9-10. 63. Peter Reichel, “Ästhetik Staat Politik Zum Verhaltnis von Kultur und Politik im NS-Staat”, em Politische Vierteljahrsschrift, Sondenheft, Ano 28, pp. 133-134, em José Carlos Valente, op. cit, p. 25. 64. Expressão que Victoria Grazia utiliza para descrever a acção da OND. Victoria Grazia, op. cit., p. 158. 65. O apelo nacionalista criava óbvios problemas nas estruturas políticas oposicionistas, que eram incapazes de combater o poderoso efeito político da nacionalização da vida quotidiana, acabando, muitas vezes estratégica ou inconscientemente, por contribuírem elas próprias para a construção nacional. Mesmo os movimentos políticos de cariz internacionalista, que assentavam a sua análise do real nas questões das lutas de classes, introduziram no seu discurso a prioridade nacional. Ver a este propósito José Neves, Comunismo, Nacionalismo e Colonialismo – Notas sobre o Partido Comunista Português de 1921 a 1957, Tese de Licenciatura apresentada em 2001 no âmbito do Curso de História Contemporânea do ISCTE. (Texto policopiado)

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cia dos matizes do factor nacional sobre a sociedade civil levou Victoria Grazia a referir-se à acção dos Dopolavori em Itália como uma tentativa de nacionalização do lazer: da sua ideologização pela componente nacional. Os casos italiano e alemão permitem um exercício comparativo acerca da acção de instituições estatais de política social situadas em países em fases diferentes de desenvolvimento sócio-económico – fundamental para testar a eficácia ideológica das políticas sociais. A experiência italiana de instrumentalização das técnicas de controlo de lazer, a primeira em Estados com regime de tipo fascista, confrontou-se de imediato com a evidente dualidade da organização do espaço económico e social do país. Os desequilíbrios regionais italianos obrigaram a uma adaptação dos instrumentos de regulação do lazer. Os Dopolavori rurali, instrumentos na defesa dos valores da ruralidade contra a desfuncionalidade do cosmopolitismo urbano, acabaram por soçobrar perante uma sociedade tradicional alicerçada em vínculos antigos, e onde a força das elites locais era a prova da condição embrionária do controlo do Estado sobre o seu território e as suas populações. A retórica ruralista do fascismo italiano dissimulou uma prática efectiva, típica de um Estado moderno, mas denotando graves deformações estruturais, em que a aposta na indústria foi feita contra os campos e a vasta classe camponesa. As discussões acerca da política social no mundo rural, como veio a suceder nos casos italiano e português, expõem alguns dos limites dessa mesma intervenção. Uma estrutura produtiva tradicional e ruralizada, com uma divisão do trabalho pouco desenvolvida, dispensava, pesem embora as tentativas efectuadas pelos regimes em causa, a aplicação de políticas que visavam enquadrar uma realidade sócio-económica distinta. Os efeitos dos instrumentos modernos do lazer, como o cinema e a rádio, típicos das sociedades industriais e modernas, em espaços sociais que sempre se apresentaram, na sua autarcia, como forte sustentáculo social dos regimes, surgindo como a expressão ideal e perfeita de uma “cultura popular” entretanto forjada em gabinetes etnográficos, provocaram compreensíveis receios. Ao contrário do que sucedeu no mundo agrário, o movimento criado em torno dos Dopolavori situados em meio urbano, apesar da concorrência das associações socialistas e católicas, foi bastante dinâmico. No espaço rural, foi apenas nas regiões 48

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onde a agricultura se apresentava modernizada que as iniciativas corporativas tiveram um alcance positivo.66 Embora Mussolini afirmasse que os “capitalistas inteligentes não ganham nada com a miséria”67, para muitos patrões a tradição opressora, a hierarquia natural, a imposição das relações desiguais pela força continuava a ser o modo normal de resolução dos problemas. Tais termos de envolvência das relações laborais facilitavam, dando razão ao ditador italiano, a actividade da organização política no seio das relações de trabalho. Mas para muitos dos representantes dos interesses dominantes em Itália, as políticas sociais pareciam não apresentar qualquer utilidade. A formação de uma cultura hegemónica moderna, que se desejava consensualizadora, é pouco compatível com uma realidade económica débil e com um Estado cuja capacidade reguladora é precária. Victoria Grazia detecta essas mesmas insuficiências estruturais na economia italiana, o que determinou negativamente a actividade da OND. Durante o fascismo assistiu-se a um empobrecimento real dos trabalhadores italianos. A eficácia de políticas sociais, como as protagonizadas pelas organizações de tempos livres – que visavam a igualização das condições de consumo de bens e serviços, oferecendo, a baixos preços, teatro, ópera, concertos, turismo social, campeonatos desportivos, colónias de férias –, era frágil se não estivessem asseguradas às populações as condições básicas de sobrevivência, que iriam ser características de grande parte dos regimes liberais do pós-guerra. Esta situação de precariedade era mais evidente em edifícios políticos totalitários e autoritários que, inversamente aos regimes demo-liberais, não possuem um conjunto de instituições reguladoras de natureza igualitária, instâncias de apaziguamento das tensões.68 Em estruturas sociais inadequadas ao desenvolvimento das políticas de organização dos lazeres, normalmente pela fraca evolução da divisão social do trabalho, a ineficácia dessas mesmas políticas exprime uma evidente impossibilidade estrutural. As fronteiras desta impossibilidade estrutural vão ser discutidas numa breve aproximação à história da organização dos lazeres portuguesa: a FNAT. 66. Ibidem, pp. 120-126. 67. Victoria Grazia, op. cit., p. 62. 68. S.N. Eisenstadt, Os Regimes Democráticos, Celta, Oeiras, 2000, ed. orig. 2000, pp. 69-74.

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1.2 > O percurso histórico da FNAT O acompanhamento da evolução da FNAT durante o Estado Novo procurará articular a natureza dos seus objectivos com as circunstâncias que foram envolvendo a sua actividade. Os critérios utilizados para avaliar estes resultados, que configuram e classificam o desempenho ideológico da organização, encontram-se na eficácia da sua penetração na sociedade civil, no poder que demonstram em modelar as representações dos actores sociais, condicionando a sua movimentação em sociedade. Relacionámos o contexto desta actuação institucional com condições sócio-económicas mais vastas, que caracterizam um modelo de crescimento moderno, urbano, industrial e capitalista. Estas condições determinam duplamente a criação e actividade de organizações como a FNAT. Por um lado, são o motivo da sua existência como mecanismo de regulação das práticas quotidianas. Por outro, a prossecução e eficácia da sua actividade está relacionada com os fenómenos sociais que estas condições geram. Pensamos, então, que a eficácia ideológica da FNAT se foi desenvolvendo de acordo com o modo como algumas das estruturas características daquela modernidade penetraram em Portugal, alterando os grandes eixos estruturadores da vida quotidiana. O facto do regime político português ser uma ditadura de tipo fascista é decisivo para compreender as mediações e as contradições deste processo. >>>>>>>>>>> Quando a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho foi criada, em 13 de Junho de 1935, eram conhecidas, no interior do Estado Novo, as experiências de organização de tempos livres levadas a cabo na Alemanha e na Itália. José Carlos Valente, no seu trabalho sobre a evolução da FNAT, entre 1935 e 1958, demonstra a existência de relações próximas entre o recém-criado Sindicato Nacional dos Bancários e o Ministério das Corporações italiano.69 Em Lisboa, os bancários ensaiaram um modelo inspirado no Dopolavoro. Entretanto, os congressos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) tornaram-se locais de partilha de técnicas 69. José Carlos Valente, op. cit., p. 38.

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e métodos aplicados à organização dos tempos livres. Em 1933, Pedro Teotónio Pereira, subsecretário de Estado das Corporações, travou conhecimento com Robert Ley, o chefe da delegação alemã no congresso da OIT. Em 1936, nasceu, em Berlim, o Movimento Internacional Alegria e Trabalho, de que a FNAT foi membro fundador. Embora a experiência italiana fosse há mais tempo conhecida em Portugal, inspiração reflectida em todo o edifício corporativo português, os contactos com a KDF assumiram uma importância fundamental na organização portuguesa. Até 1939, a FNAT foi presença assídua nos congressos da KDF, numa altura em que a máquina bélica alemã ensaiava a Segunda Guerra Mundial na vizinha Espanha. Destes contactos não resultou somente a óbvia semelhança na nomenclatura da organização, mas a partilha de um conjunto de princípios de intervenção assentes num trabalho aprofundado sobre a dinâmica das relações humanas, fundamento das políticas sociais a empreender. Em Portugal, o Centro de Estudos Corporativos da União Nacional propusera, em 1934, a criação de uma colónia de férias na Costa da Caparica para servir alguns trabalhadores do sector terciário lisboeta.70 Deste centro de estudos corporativos faziam parte António Júlio de Castro Fernandes, um dos fundadores do Movimento Nacional-Sindicalista e membro do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, Jaime Ferreira, presidente do Sindicato Nacional dos Bancários do Distrito de Lisboa – que, com Carmona, Salazar e Teotónio Pereira, constituíram a primeira direcção da FNAT – e Higino Queiroz e Mello, fundador do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, e futuro presidente da FNAT.71 São estes homens que vão erguer a Fundação. A organização de ocupação dos tempos livres propunha-se actuar na esfera laboral, através da sua política social, mas também imprimindo à sua acção uma vertente consciencializadora dos grandes princípios da nação e do Estado. Como eixo da política social integrou-se num universo de acção governativa de uma debilidade extrema.72 Se, em grande parte dos países europeus, o final da Segunda Grande Guerra foi o marco temporal – apesar do problema estar há muito pensado – que 70. Ibidem, p. 42. 71. Ibidem, pp. 42-43. 72. Manuel de Lucena, op. cit., pp. 381-384.

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delimitou a instalação de um “Estado-Providência” como plataforma de modernização e acompanhamento do crescimento económico, em Portugal, só em 1961 é que o governo, pela lei n.o 2115, resolveu criar uma nova estrutura administrativa que se aproximava timidamente do exercício de uma previdência social. Cessa, nesta data, um período que atravessara todo o regime, em que as funções de assistência social eram praticamente da responsabilidade do associativismo e do mutualismo. Este vazio legislativo limitava-se a assinalar, como muitos outros indicadores o poderiam fazer, a fraca modernização da estrutura produtiva portuguesa. Se o objectivo principal das políticas sociais era minorar as consequências inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, ao crescimento da indústria e às alterações na esfera do trabalho, a estrutura sócio-económica do país estava muito longe de uma situação em que esses instrumentos se mostrassem realmente urgentes. A transferência de modelos configuradores de políticas sociais situados em países com regime político similar, mas como um alicerce sócio-económico dissemelhante, expõe em toda a sua dimensão aquilo que designámos de impossibilidade estrutural. Os primeiros anos da FNAT estiveram repletos de equívocos, que se reflectiram, fundamentalmente, na sua sobrevivência financeira. A nova estrutura corporativa reclamava pelo princípio da promoção “do aproveitamento do tempo livre dos trabalhadores portugueses por forma a assegurar-lhes o maior desenvolvimento físico e a elevação do seu nível intelectual e moral” (artigo 4.o dos Estatutos instituídos pelo decreto n.o 31.036). Os fins da organização estavam descritos em doze pontos. Os três primeiros abrangiam uma vertente educativa: a criação de cursos de formação de dirigentes sindicais, a realização de conferências radiofónicas e a instalação de bibliotecas populares. A fronteira entre o domínio educativo e o que pertencia a uma esfera cultural era quase sempre ambígua. É, portanto, com alguma distância que se podem considerar os pontos quatro e cinco, respectivamente, a promoção de visitas de estudo a locais de interesse histórico, técnico e didáctico, e a realização de sessões de cinema, horas de arte e representações de carácter popular, como fazendo parte de uma componente cultural. Da promoção e organização de actividades desportivas tratavam os pontos sexto, sétimo e oitavo. O nono ponto estabelecia a criação de colónias de férias; o décimo, de organizar refeitórios económicos, e o décimo 52

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primeiro, de promover passeios, excursões e viagens, tarefa para a qual as passagens grandiosas dos cruzeiros da KDF por Portugal se tinham tornado um exemplo edificante. José Carlos Valente demonstra que as primeiras iniciativas que visaram sustentar estes princípios estavam eivadas de uma forte intenção mobilizadora que visava a reificação, nas práticas, dos princípios doutrinários caros ao regime. Destas iniciativas de tendência mobilizadora destacaram-se a apropriação das comemorações do 1.o de Maio, na qual se integrou a criação de um jornal com o mesmo nome, a proximidade com a Legião Portuguesa, a tentativa de criar um escol de funcionários corporativos através dos Centros de Cultura Popular, a organização das Casas do Povo e a expectativa da utilização de formas culturais como princípio modelador das práticas, de que a utilização do livro, através da criação de bibliotecas populares, se revelava uma acção estrutural. Para tornar reais todas estas actividades que se exigia chegassem ao maior número de pessoas, era necessário montar uma máquina funcional vasta. A tarefa obrigava à consolidação de uma forte base financeira. Os rendimentos da FNAT proviriam de três fontes: os subsídios do Estado, os donativos dos particulares e o resultado das quotizações dos três tipos de sócios que os Estatutos consagravam – os efectivos, inscritos voluntariamente nos sindicatos ou Casas do Povo; os benfeitores, recrutados dos grémios, federações e uniões; e, por último, os auxiliares, que compreendiam todo o conjunto de organizações públicas ou privadas, e cidadãos de qualquer nacionalidade que quisessem contribuir. O apelo da FNAT às contribuições financeiras ambicionava, mais do que a garantia da sobrevivência económica da organização, envolver nas suas actividades uma série de sectores da sociedade civil que, de uma forma ou outra, poderiam beneficiar com as suas iniciativas. A resposta dos vários quadrantes envolvidos foi, porém, bastante decepcionante. No seio da organização corporativa, a colaboração foi frouxa. Os sindicatos, mesmo depois de a quotização ser considerada obrigatória, medida tomada em Setembro de 1939, pouco participaram. Esta contribuição teve origem em apenas cinco distritos, cabendo a Lisboa o total de 77 por cento das quotizações.73 O dado confirma a natureza 73. Os outro quatro distritos são o Porto, Setúbal, Coimbra e Funchal. José Carlos Valente, op. cit., p. 45.

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urbana da FNAT. As empresas também não responderam ao apelo da organização. Os patrões portugueses não perceberam, tal como os italianos não tinham em larga medida compreendido, a vantagem social de uma organização de tempos livres. Além disso, a grande maioria das empresas tinha margens de lucro que não permitiam que os donativos para a FNAT se tornassem uma prioridade. No que respeita aos associados, a procura revelava uma distância em relação ao projecto. Quando, em 1936, o preâmbulo do decreto-lei que atribuiu mais um subsídio estatal à FNAT refere que “o grande valor social da obra não conseguiu ainda interessar, de um lado, o patronato, e, do outro, os indivíduos ou classes que em alguns países costumam ser os seus maiores protectores”74, confirmava-se que o país não apresentava as condições necessárias para absorver a actividade da instituição. O dilema tornava-se sério. Era uma contradição que o Estado sustentasse por si só, sem qualquer reciprocidade, um tipo de organização que se queria imbricada na sociedade civil75, que tinha como esteio a concertação social, a junção dos interesses manifestos de vários grupos e tendências sociais. O sucesso registado pelas organizações de ocupação de tempos livres em países numa fase de modernização avançada não se reflectia em Portugal. Com um espaço rural predominante, dominado por fortes interesses agrários, e uma actividade industrial débil, cujo condicionamento – pela Lei do Condicionamento Industrial de 1931 – protegia as clientelas do regime, o país não tinha condições, nem a disposição de parte importante das suas elites, para se transformar. A incapacidade da FNAT em singrar nos seus primeiros anos de actividade deu origem, a partir dos Estatutos de 1940, a uma reacção normativa que procurava aproximar a Fundação do aparelho corporativo, garantindo-lhe, assim, um maior desafogo financeiro. Todos os organismos corporativos e de coordenação económica passaram, obrigatoriamente, à condição de associados da FNAT. A organização tomou ainda nas suas mãos o monopólio das iniciativas relativas à cultura popular, o que a colocou em confronto directo com todas as sociedades de recreio 74. Preâmbulo do Decreto n.o 27125, de 19 de Outubro de 1936. 75. A FNAT publicou, em 1945, um livro comemorativo dos dez anos da organização: Dez Anos de Alegria no Trabalho (1935-1945) onde estão referenciadas as suas actividades nos seus primeiros dez anos de existência. O carácter episódico e pouco sistemático das actividades da FNAT demonstra a sua débil implantação social. Dez Anos de Alegria no Trabalho: 1935-1945, FNAT, Edição fac-similada do INATEL, Lisboa, 1998, pp. 169-205.

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agrupadas na Federação das Colectividades de Educação e Recreio.76 A retórica ideológica e mobilizadora que José Carlos Valente detectou nos primeiros anos de actuação da FNAT foi atenuada no início dos anos 40. O desfecho da Segunda Guerra Mundial explica a inflexão. Em simultâneo, assistiu-se à recepção em Portugal de várias concepções humanistas sobre a organização do trabalho.77 As políticas sociais britânicas do princípio dos anos 40, agrupadas no Plano Beveridge, suscitaram um debate em Portugal acerca da opção que o governo deveria imprimir à sua política económica.78 A acumulação de capital, proporcionada pelas relações comerciais que o país desenvolvera durante a Segunda Guerra, aproveitando a sua ambígua neutralidade, criou as condições ideais para um arranque industrial.79 Duas iniciativas legislativas lançaram este novo ciclo: em 1944, a Lei da Electrificação Nacional, e, em 1945, a Lei do Fomento e Reorganização Industrial. Ferreira Dias, professor do Instituto Superior Técnico, e futuro ministro da Economia, publicou, em 1945, Linha de Rumo80, onde, discordando do caminho da economia nacional, traçou os eixos de uma aposta industrial que não poderia contar mais com a timidez e o receio das elites económicas nacionais. Para combater os efeitos adversos que se sabiam inerentes a tal 76. Ver a este propósito Daniel Melo, Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), ICS, Lisboa, 2001, especialmente, pp. 326-374. 77. José Carlos Valente, op. cit., pp. 121-123. 78. Terá sido um republicano democrata, Armando Marques Guedes, professor no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, que, defendendo as linhas mestras deste plano, atacou o que chamou de corporativismo medieval. Marques Guedes criticava os limites de um corporativismo demasiado apegado a antigas fórmulas de concertação social, aproximando-se da defesa de um neocorporativismo característico das modernas sociedades democráticas, assente num sistema global que garantisse aos trabalhadores um conjunto de regalias a que teriam direito. Num texto redigido em 1956, intitulado O Destino das Classes Médias, Marques Guedes, afirmando-se um neoliberal profundamente convicto (p. 15), traça o percurso histórico das classes médias, defendendo a necessidade urgente do Estado impedir a proletarização de vastas camadas da população – que Marques Guedes integra no conjunto das classes médias. O autor mostrava-se especialmente preocupado com a proletarização de algumas profissões intelectuais: “o sector intelectual proletarizado pode fornecer, melhor do que nenhum outro, os quadros de comando do exército revolucionário” (p. 15). Considerava, porém, que as políticas sociais prosseguidas em alguns estados europeus conduziam a um socialismo desvairado. Armando Marques Guedes, O Destino das Classes Médias, Academia das Ciências de Lisboa (separata de Memórias – classe de Letras – Tomo VI), 1956. É curioso que Tomé Vieira, no seu já citado texto sobre a Questão Social, defende as políticas sociais dos estados fascistas (neste caso, do fascismo italiano), através de uma frase de Marques Guedes no seu livro sobre o Plano Beveridge: “o sr. Prof. Marques Guedes, diz, a propósito da política social do fascismo: ‘Procurou-se melhorar a situação dos trabalhadores, por salários melhores, por obras públicas extensas, com que se pôs termos a muito desemprego; fixaram-se salários mínimos; regulou-se a política preventiva e reparadora quanto à higiene e segurança das oficinas e à indemnização do operário sinistrado ou da família do que morresse ou ficasse permanentemente inabilitado por acidente ou doença profissional; tomou-se mesmo a direcção e ocupação dos lazeres, das horas vagas do operário, na organização Dopolavoro’ ”. Tomé Vieira, A Questão Social, Edições Biblioteca, Lisboa, 1943, p. 11. 79. Em relação à aposta industrial, Manuel Vilaverde Cabral refere que a Campanha do Trigo, normalmente conotada, e certamente com fundamento, com os grandes interesses agrários tinha características fortemente industriais. Vilaverde Cabral assinala o forte impacte, quase sempre encoberto pela lógica puramente cerealífera, que a campanha causou na indústria dos adubos e na metalomecânica. Manuel Vilaverde Cabral, “Sobre o Fascismo e o seu Advento em Portugal”, em Análise Social, n.o 48, 1976, pp. 887-889 (873-915). 80. Ferreira Dias, Linha de Rumo, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945.

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opção estratégica, protegendo o investimento económico, aplicar-seiam políticas de concertação e consentimento social organizadas pelo Estado, apesar de estar implícito que, quando se mostrasse necessário, a máquina coerciva e discricionária estava pronta a actuar.

Alegria no Trabalho e a dimensão cultural O Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT 81 – publicado entre 1945 e 1949 – reflectiu nas suas páginas uma concepção modernizada da acção de uma organização de tempos livres, provando o conhecimento que alguns agentes estatais possuíam dos métodos da política social aplicados aos lazeres. Felner da Costa, o seu director, reafirmou, em Junho de 1946, os fundamentos básicos da política social: E porque obter uma existência tranquila e cómoda para os que trabalham, é um dever a que ninguém se deve furtar, eis a razão pela qual os sociólogos procuram solucionar, um a um, os problemas que se podem destacar da complexa Questão Social, concorrendo assim para a resolução integral do sistema. (…) Procurei demonstrar a razão do problema e dar-lhe a solução capaz. Sorel afirmou que o socialismo aspirava a transportar para a sociedade o regime da oficina, eu poderei afirmar que aspiro a transportar para a oficina o regime da sociedade.82

Os espaços onde se desenvolviam as modernas opções económicas eram os mesmos onde se traçavam as novas fronteiras da luta social. A oficina, a fábrica ou a empresa, as células da indústria e do capitalismo, eram, simultaneamente, o berço da Questão Social ou, sem eufemismos, da luta de classes. Se a opção envolvia riscos, conheciam-se mecanismos – os sociólogos estudaram-nos83 – que podiam contribuir para transformar o local de trabalho num socializador benéfico das relações 81. A publicação da FNAT parecia dirigir-se essencialmente aos quadros intermédios e outros funcionários da organização, no sentido de fazer a pedagogia da utilidade das técnicas de política social aplicadas ao universo dos lazeres. 82. Felner da Costa, “A Monotonia do Trabalho”, em Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 6, Junho de 1945, p. 75. 83. A monotonia no trabalho foi o modo como Felner da Costa se referiu aos problemas colocados pela industrialização e pelo capitalismo: “Verifica-se a necessidade instante de estudar o assunto no sentido positivo, abstraindo-nos de condenar o sistema económico que lhe deu origem. O estudo do sistema compete aos economistas; o estudo dos problemas resultantes pertence aos sociólogos.” Entre os sociólogos que Felner da Costa sabia tratarem destas questões, procurando os efeitos de “compensação” para os problemas da modernidade, encontravam-se: Ludwig Heyde, Émile Durkheim, Max Weber, Werner Sombart, Georg Simmel, Ferdinand Tönnies, Franz Oppenheimer, Leopold von Wiese, Gaetan Pirou, Heinz Zilcher, Bruno Rauecker e Conwell Evans. Felner da Costa, A Monotonia do Trabalho, FNAT, 1945, p. 10.

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quotidianas. Estes mecanismos procuravam, como Felner da Costa referiu, inverter a apregoada conquista da sociedade pela fábrica insubmissa: seriam, ao contrário, os valores da sociedade que deviam socializar a fábrica. Tendo em conta as características do regime do Estado Novo, que valores eram estes? Os regimes políticos que lidavam com transformações estruturais modernas partilhavam a intenção de aplicar políticas sociais. A capacidade de concretização dessas políticas divergia consoante as características mediadoras do aparelho institucional de cada país. Os regimes demo-liberais modernos alicerçavam a sua legitimidade num conjunto de ideologias e instituições que protegiam formalmente o exercício da vontade geral. A consagração da livre expressão da opinião e da participação através de um conjunto de mecanismos democráticos – as Constituições, os tribunais, os parlamentos e as eleições plurais, os sindicatos – enquadrava uma sociedade civil em progressiva solidificação.84 A possibilidade concedida aos cidadãos de participarem livremente nos destinos do seu país tornou-se num poderoso mecanismo de integração social. Os países com regimes demo-liberais, admitindo que a formalidade democrática é inoperante se um mínimo de direitos sociais, aqueles mais relacionados com a vida quotidiana, não for garantido às populações – como se percebeu depois de 1929 – construíram no pós-guerra um modelo de Estado-Providência que tentava completar de forma harmoniosa um universo de legitimação política e económica.85 No Estado Novo, o caminho para a modernização teria que coexistir com o constrangimento actuante, embora em progressivo desvanecimento, de valores e doutrinas tradicionais. A actividade da FNAT, constituindo-se numa aproximação a esse esforço de regulação moderna, exprimiu as contradições inerentes a um Estado que perseguia determinados objectivos, procurando gerir os vários interesses que o suportavam. A utilização da dimensão cultural e recreativa para regular expectativas sociais, para combater os efeitos perversos de um desejo de mobilidade que se sabia não poder ser satisfeito estruturalmente, podia, 84. Citando Eisenstadt: “Sectores apolíticos, relativamente passivos, da sociedade foram transformados e tornados politicamente activos, expressando não só os interesses discretos de diferentes grupos, mas também concepções diferentes e em competição quanto ao bem comum; actores mais activos em arenas dispersas passaram a participantes, ao menos potenciais, da arena política central.” S.N. Eisenstadt, op. cit., p. 26. 85. Alexander Hicks, op. cit., pp. 76-127.

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de modo paradoxal, fornecer instrumentos aos indivíduos para compreenderem e combaterem as iniquidades do regime, colocando em causa os seus limites estruturais. A cultura era temida, pela sua hipotética acção emancipatória, pelas suas perigosas relações políticas, pelo seu frequente desequilíbrio formal. Em tese apresentada, em 1944, ao II Congresso da União Nacional, intitulada O Aproveitamento do Tempo Livre Disponível dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, cuja autoria é atribuída ao Pelouro da Actividade Cultural da FNAT, foram expressos com clareza os receios que um descontrolo na organização dos lazeres podia provocar: Esta receptividade do povo para com a cultura de tipo escolar, de médio ou alto grau, suscita a reflexão demorada de quem esteja habituado a tratar com atenção os problemas sociológicos. Com efeito, o homem do povo que corresponde à chamada das instituições de cultura é movido pelo secreto ou confessado desejo de uma metamorfose mental. E seja qual fôr a intenção privada e o resultado individual da assimilação dos dados da cultura este fenómeno é sempre acompanhado de aspectos que devem ser sociologicamente analisados: a alteração do nível intelectual, a perda do carácter popular, a distinção em frente da comunidade profissional, o desequilíbrio social. A cultura desloca certos indivíduos do ambiente concreto a que estavam adaptados, sem que por virtude própria os transfira para mais alta situação profissional e social. A alteração da capacidade de saber, o aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, o desenvolvimento do espírito crítico, o apuramento do gôsto estético, etc., em breve formulam exigências cuja satisfação já não compete às instituições de cultura e que, insatisfeitas, suscitam melindrosos problemas de ordem pública.86

A análise da situação social do país nos anos 60, efectuada por Hermínio Martins, descreve um contexto no qual os receios aludidos pelo texto que a FNAT publicou em 1944 se tornaram mais prementes: (…) na esfera do consumo, houve uma apropriação por parte dos estratos inferiores de muitos correlativos simbólicos do status da classe média, de tal modo que o “efeito de gota” – agarrar constantemente o antigo e ser ultrapassado pelos novos símbolos de consumo dos estratos superiores – está certamente a funcionar na situação presente. É duvidoso que possa assumir de facto a mesma função estabilizadora que tem nas sociedades mais industrializadas.87

86. O Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, edição da FNAT, 1944, p. 14. 87. Hermínio Martins, Classe, Status e Poder, ICS, Lisboa, 1998, p. 130.

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O medo dos efeitos políticos e sociais resultantes de uma experiência individual com a cultura obrigava a um método de regulação. Colectivizavam-se as práticas, rejeitavam-se as formas transgressoras e os conteúdos polémicos. No interior destes limites, a FNAT organizaria as suas actividades: A cultura dirigida a homens adultos, estabilizados numa profissão e num ambiente social, não perseguirá fins excessivamente elevados nem utilizará meios perturbadores. Terá em vista, principalmente, o aperfeiçoamento profissional do trabalhador, quer para melhor enquadramento na unidade económica em que labora, quer para mais viva intervenção pessoal no organismo corporativo de que é membro. Visará também a formação da consciência política, revelando a cada trabalhador o grau de solidariedade e parcela de responsabilidade que lhe pertence no movimento progressivo da Nação.88

A evolução do país, consequência das opções económicas, acentuou os contornos carregados de uma dualidade estrutural. A intervenção reguladora dos tempos livres reflectiu essa cisão. A Junta Central das Casas do Povo, criada em 1945, tinha como função adaptar a regulação dos tempos livres ao mundo rural. Neste espaço, a política social e cultural insistiu numa postura tradicionalista, combatendo a comunicação inevitável entre o mundo da cidade e o mundo do campo. A batalha pela manutenção das características que tornavam autêntico o povo português, ameaçado pelos vírus da modernidade e do capitalismo, foi um princípio caro aos lazeres no mundo rural. Se a “questão social” era uma fatalidade da modernidade urbana que urgia remediar, a sua propagação aos eternos campos lusitanos era intolerável. Como refere Manuel Lucena, a lei sindical de 1933 só previa a sindicalização de empregados e operários do comércio e da indústria.89 Só nestes espaços profissionais se admitia, no âmbito das corporações, a existência de associações de classe. O meio rural definia-se por uma “organização profissional, não diferenciada”, isto é, por “natureza” as questões classistas não lhe seriam inerentes. A comunidade rural resistiria, unida pela força estabilizadora das suas elites, porta-vozes locais da ordem e dos princípios 88. O Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, edição da FNAT, 1944, p. 14. 89. Manuel de Lucena, “Casas do Povo”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, p. 246.

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centrais, pela acção da Igreja Católica, pelo perdurar de vínculos quase servis. Ao contrário do universo urbano, as Casas do Povo continuaram a merecer, até 1971, uma publicação mensal: O Mensário das Casas do Povo. O jornal dirigia-se às elites locais, os notáveis, médicos, professores, padres e comerciantes que, idealmente, se constituíram como as instâncias intermédias entre o poder central e as populações, os agentes da regulação social. Na sua tarefa educativa, manuseariam os instrumentos mediadores de uma “cultura popular” moldada pela prática etnográfica oficial.90 No espaço urbano e empresarial, a FNAT, a partir de 1949, deixou de ter publicações: as características da sua acção ideológica dispensavam-nas. Até 1949, o Boletim da FNAT converteu-se no espaço de reflexão teórica sobre a acção envolvente dos tempos livres numa ordem industrial à qual nenhum país se deveria, sob pena de um atraso irremediável, furtar. Em Julho de 1946, Felner da Costa citou longamente o escritor António Cândido: Gosto de ver o povo nas festas, nos divertimentos públicos. Precisa disso. (…) O trabalho violento, as privações de todos os dias, a miséria do desamparo, a comparação com outros destinos que são ou parecem melhores, o assombro de tantas coisas inexplicáveis no mundo e na consciência, a impossibilidade de contemplar a vida no conjunto dos seus aspectos, e de repousar assim a inteligência em alguma verdade geral – tudo isto, se não houvera compensações, tornaria verdadeiramente insuportável a existência de numerosas classes, a que o morgadio social instituído em favor deixa apenas o usufruto gratuito do sol, do ar, e de poucas coisas mais. O povo diverte-se pouco. É um sintoma grave; mais grave do que parece. Se eu governasse, havia de proteger, de preferência a outras indústrias, a que tivesse por fim recrear, alegrar e consolar e divertir o povo. (…) Mas a participação do povo nas festas públicas tem diminuído sempre, cada vez mais. É pena; até porque, ao contrário daquele conhecido verso de um grande poeta, um povo que folga não é nunca um povo perigoso.91

90. A tentativa da formação de quadros intermédios que sustentassem a dinâmica corporativa registou, mais uma vez, resultados negativos. Rogério Reis afirmava, em Agosto de 1968, nas páginas do Mensário: “De resto, não falta quem pense que basta marcar presença em ocasiões solenes e cumprimentar entidades representativas (alguém disse que ‘politicamente, o que parece é’) para exibir uma espécie de comunhão de desobriga… que na prática se contradiz. Na verdade, sem irmos todos os que de algum modo podem – verdadeiros proprietários, sacerdotes, professores, diplomados, intelectuais – ao encontro das prementes realidades e das aspirações da gente rural, como conter o seu êxodo e a sua insatisfação? Como elevar-lhe o nível mental, cívico, económico e familiar? Como aperfeiçoar as Casas do Povo? Como alargar a sua rede e o seu labor? Rogério Reis, “As Casas do Povo e a valorização rural”, Mensário das Casas do Povo, n.o 266, Agosto de 1968, p. 10. 91. António Cândido, citado por Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – VI – A alegria no trabalho”, in Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 19, Julho de 1946, p. 134.

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O receituário – prospectivo no que respeita à importância crescente das indústrias culturais – passou pelos pontos essenciais da doutrina socializante dos tempos livres, várias vezes assinalada no Boletim da FNAT. Devido à acção da FNAT “já não é luxo, nem coisa só para ricos, o serão cultural e recreativo, a ‘hora da arte’; já não é só na cidade e na vila que funciona o clube ou a sociedade, que há o grupo teatral, o rancho folclórico, o grupo de futebol (…) Pelo que respeita à cidade já não se encontra a família de um trabalhador que dispense a manifestação de arte, o operário a quem não interessa a competição desportiva do grupo da empresa onde trabalha.”92 Nas relações de trabalho operava-se a transformação da condição simbólica do operário, combatendo-se as imagens e os seus fabricantes, que pretendiam fazer reflectir nas consciências individuais a sua condição colectiva objectiva: “O trabalhador, considerado economicamente como factor de produção, não vai ser apreciado como instrumento de trabalho, mas dignamente, como colaborador e associado da produtividade.”93 Felner da Costa parecia dirigir a sua pedagogia aos patrões portugueses, ainda distantes das técnicas modernas de regulação: É mais um segredo do patrão do que uma exigência do operário. As empresas que seguem as novas directrizes sociais só têm a lucrar com essa política, pois ela, reconhecendo o valor humano do trabalhador, dá a este a certeza de que exerce a sua actividade como associado aos destinos da empresa, pelos vínculos da corporação. (…) Constituindo uma verdadeira família.94

Em 1936, Salazar afirmara que a família era assunto sagrado, não sendo alvo de qualquer discussão ou conflito: “Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode viver.”95 A transposição para a fábrica 92. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – Para um Melhor Nível Moral e Cultural do Trabalhador Português”, in Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT”, n.o 41, Maio de 1948, p. 107. 93. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – I – O trabalho e a técnica”, in Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 9, Setembro de 1945, p. 138. 94. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – Para um Melhor Nível Moral e Cultural do Trabalhador Português”, Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, Setembro de 1948, pp. 187-188. 95. António de Oliveira Salazar, Salazar – Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevista (1909-1953), edição do SPN/SNI, editorial Vanguarda, 1954, p. 13.

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deste pequeno mundo de afectos, instituindo-se a alegria no trabalho, era uma das operações com que Felner da Costa pretendia levar para a oficina o modelo da sociedade.

O Portugal do pós-guerra e o crescimento da FNAT Em 1941, Lisboa foi palco de importantes greves operárias. No mesmo ano, a FNAT, com a colaboração da Emissora Nacional, transmitiu, a partir da Fábrica de Loiça de Sacavém, o seu primeiro serão para trabalhadores. A repercussão na FNAT da opção industrial do governo foi a expressão, no pós-guerra, da morosidade do processo de modernização. Apesar disto, são de assinalar algumas iniciativas importantes. A criação dos Centros de Alegria no Trabalho (CAT) foi regulamentada em 28 de Dezembro de 1940, pelo Decreto-Lei 31.036.96 Apesar de uma disseminação abrangente, a sua natureza adaptava-se, preferencialmente, a um contexto empresarial. Em Março de 1945, a publicação do Decreto-Lei n.o 34.446, que regulava a distribuição de refeições em refeitórios organizados, apontava para a mesma opção estrutural. O problema da refeição converteu-se num objecto de análise social bastante rico: A crescente extensão da actividade industrial e a necessidade de proporcionar aos trabalhadores habitações higiénicas e de rendas acessíveis, as quais, por virtude da expansão das áreas urbanas, tendem a afastar-se dos locais de trabalho, torna para aqueles difícil, se não impossível, a deslocação a suas casas à hora das refeições.97

A defesa da unidade da família, contra outras unidades menos prezadas, princípio reiterado no primeiro parágrafo do preâmbulo da lei, convivia com a retórica mais modernizadora: “O problema, já considerado e resolvido em grande número de países, tem interesse capital, não 96. Os CAT’s eram “núcleos de carácter cultural, recreativo e desportivo, constituídos por trabalhadores dependentes de organismos oficiais e particulares e ainda os agrupamentos desportivos, culturais e recreativos de trabalhadores que tenham por objecto o aproveitamento útil das suas horas livres.” Dez Anos de Alegria no Trabalho (1935-1945), p. 163. 97. Decreto-Lei n.o 31.036.

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só enquanto procura defender a economia do trabalhador, mas também quando encarado sob o aspecto higiénico…”98 A medida procurava, sobretudo, suprir as limitações de uma política económica assente em salários baixos: A resolução do problema, enquadra-se, em última análise, na política dos salários, porquanto a fixação destes, quer por acto do Governo, quer por estipulação contratual, é directamente influenciada pelo custo de vida e, designadamente, pelo custo da alimentação do trabalhador, mormente no momento que atravessamos, em que os preços acusam as repercussões do conflito internacional. O fornecimento de refeições económicas traduzir-se-á assim num aumento efectivo do salário.99

Pela formulação da lei, compreendia-se que a política social continuava a caracterizar-se por um voluntarismo governamental, distanciado dos ideais dos patrões portugueses. O Estado viu-se obrigado a impor às empresas a introdução das modificações que propunha. Para as mais débeis, do ponto de vista financeiro, não se exigiu, como nas grandes empresas, a criação de cozinhas económicas no espaço de trabalho100, mas uma contribuição para o funcionamento de grandes cozinhas colectivas, organizadas pela FNAT, na proporção do número de trabalhadores. A acompanhar este conjunto de iniciativas desenvolveram-se as bases de uma institucionalização do pensamento corporativo. Sob a direcção de Pires Cardoso, nasceu o Gabinete de Estudos Corporativos do Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa. Formado, na sua maioria, por um conjunto de intelectuais católicos, o Gabinete de Estudos Corporativos esteve ligado à tentativa, iniciada em princípios dos anos 50, de reorganizar o corporativismo português. A revitalização de um corporativismo de livre associação pretendia aproximar Portugal da organização económico-social europeia.101 Em 1949, aos microfones da Emissora Nacional, o presidente da FNAT, Higino de Queiroz e Mello, no programa Alegria no Trabalho, caracterizou a imagem pública da FNAT, qualificada como um “organismo de 98. Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945. 99. Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945. 100. Segundo o artigo 3.o da lei: “Incumbe às entidades patronais do comércio, da indústria, das profissões liberais, da organização corporativa e de coordenação económica, criar refeitórios higiénicos e dotados com o mínimo de conforto, destinados a ser utilizados pelo seu pessoal.” Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945. 101. Neste sentido, é essencial integrar nestas novas concepções de envolvimento económico e social a actividade editorial, preponderante nos anos 60, das revistas de inspiração católica, Brotéria e Rumo, bem como, e principalmente, da Análise Social.

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vanguarda dentro do Estado Corporativo”, responsável por uma nova configuração da relação política e ideológica entre o Estado e os cidadãos: Todos sabem que dentro da FNAT não se faz política; nos Refeitórios como nas Colónias de Férias as paredes não se encontram forradas de cartazes de propaganda, como também não se fez ali a distribuição de panfletos. Os serões culturais e as competições desportivas não servem de pretexto para conferências ou discursos apologéticos. Quer, porém, isto dizer que a FNAT é um organismo apolítico? Por forma alguma. A FNAT é um organismo de vanguarda dentro do Estado Corporativo. (…) Despontou por fim um dia radioso de primavera que tu olhaste com desconfiança, mas que a pouco e pouco te foi convencendo com as coisas novas que te oferecia, a dignificação do trabalho, o horário de trabalho, as casas económicas, as Casas do Povo e dos Pescadores, o abono de família, o auxílio na doença e na invalidez, o seguro de velhice, os contratos colectivos de trabalho, os salários mínimos, as férias pagas, os refeitórios económicos, as colónias de férias para ti e para os teus filhos.102

Em 1950, a FNAT publicou os seus novos Estatutos103, e Higino Queiroz e Mello, presidente desde a fundação, foi substituído por Quirino Mealha. A actividade continuava tripartida pelas atribuições de carácter educativo, recreativo e económico-social, notando-se, no novo documento que regulava a actividade da organização, um multiplicar de funções e uma maior especificação das suas regras. Reflectia-se, deste modo, uma crescente burocratização da instituição. Entre as funções educativas e recreativas continuava a notar-se uma sobreposição em vários aspectos essenciais, como as relações com os meios de comunicação social e a orientação da actividade artística. As funções económico-sociais permaneciam, apesar da propaganda em contrário, um fraco substituto de uma previdência estatal quase inexistente. A FNAT ficava ainda incumbida da coordenação e fiscalização de todas as iniciativas referentes à cultura popular. O surgimento em 1950 dos Centros de Recreio Popular, regulamentados pelos novos estatutos da FNAT publicados nesse mesmo ano, reforçou a cisão de estratégias no que diz respeito à intervenção regional. Possuindo características similares aos CAT, os CRP passavam a coordenar as organizações de trabalhadores criadas no espaço

102. Higino Queiroz e Mello, Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT n.o 49, Janeiro de 1949, p. 2. 103. Aprovados pelo Decreto-Lei n.o 37.836, de 24/5/1950.

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institucional das Casas do Povo, Casas dos Pescadores e populações rurais. A existência destes agrupamentos impedia os seus associados de se filiarem noutras associações similares, fossem privadas ou oficiais. >>>>>>>>>>> A política económica imposta pelo governo nos anos 50 reflectiu uma tentativa de desenvolvimento industrial que protegia o investimento interno de toda a concorrência. A concepção de Planos de Fomento (com a duração de seis anos) envolvia um tipo de modelo económico designado por “Modelo de Industrialização por Substituição de Importações”. Mantendo-se o condicionamento industrial e o proteccionismo, entregava-se o mercado interno ao investimento privado nacional abrigado da concorrência. Estava favorecida a concentração de capitais, gerando-se as condições para o desenvolvimento de fortes grupos industriais e financeiros. Entre 1953 e 1958 – período referente ao primeiro Plano de Fomento –, a taxa global de crescimento industrial situava-se nos 7,4 por cento por ano.104 Apesar dos evidentes desequilíbrios estruturais105, a situação económica do país iniciava, a partir dos anos 50, um período relativamente próspero que acompanhou os anos dourados da economia europeia.106 Num quadro económico cada vez mais globalizado, Portugal era “obrigado” a estreitar relações com os outros países europeus. A insistência numa economia fechada ao exterior contrariava a tendência que ia dominando a organização do comércio internacional, pautada pela criação de grandes plataformas de cooperação e regulamentação das trocas. Depois de fazer parte do grupo de países beneficiados pelo Plano Marshall, aderindo, em 1948, à OECE (organização que controlava a aplicação do Plano), Portugal ingressou, em 1950, na União Europeia de Pagamentos e, em 1955, assinou o Acordo Monetário Europeu. Foi um dos membros fundadores da EFTA – Associação Europeia de Comércio Livre, e, 104. Para este resultado contribuíram, fundamentalmente, de acordo com os princípios do Plano, as indústrias de base, destacando-se as celuloses, as metalomecânicas, as químicas e as metalúrgicas. João Confraria, “Indústria”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 8, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 263-264. 105. O sector agrícola, ganhando inicialmente com a quebra demográfica sentida nos campos, equilibrando-se a oferta e a procura de emprego, foi incapaz de se modernizar. A contínua sangria humana do interior do país repercutiu-se numa produção agrícola tradicional, para a qual as modernas técnicas de cultivo, fossem as máquinas para lavrar os campos ou os adubos para os fertilizar, eram uma miragem distante. 106. Ver José da Silva Lopes, A Economia Portuguesa desde 1960, Gradiva, Lisboa, 1996.

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em 1960, juntou-se ao FMI e ao Banco Mundial, aderindo, dois anos mais tarde, ao GATT. O choque da economia portuguesa, num espaço de comércio livre, com economias mais sólidas, apesar do estatuto especial que o país apresentava no seio da EFTA, foi negativo para a economia nacional. As evidentes diferenças na divisão e especialização internacional da produção provocaram uma troca desigual, e a possibilidade do fomento de economias de escalas esbateu na nossa insuficiência produtiva. A prossecução das novas opções económicas num contexto europeu de globalização das trocas, apesar dos limites estruturais do desenvolvimento português, deu origem a importantes transformações sociais. Entre meados da década de 50 e o final do regime, o país assistiu a profundas alterações. A dualidade estrutural acentuou-se com a decisiva, mas deficiente, reestruturação do espaço económico. O sector industrial transformou-se no motor do desenvolvimento perante o abandono dos campos.107 Portugal litoralizou-se desequilibradamente e urbanizou-se, com as mais baixas taxas de toda a Europa, sendo incapaz de criar uma rede de cidades intermédias.108 O impacto da modernização portuguesa revelou-se ainda, de modo decisivo, na aproximação dos indicadores sociais às médias europeias.109 A transformação do país, que se iniciou definitivamente em finais da década de 50, proporcionou à FNAT um terreno mais propício ao desenvolvimento das suas actividades de regulação que, em simultâneo, se tornaram, do ponto de vista político, mais urgentes. O final da década de 50 foi um período difícil para o governo. A união das oposições ao regime em torno da candidatura à Presidência da República do general 107. O PIB cresce, entre 1957 e 1965, a um ritmo anual de 5,5 por cento contra 2,9 por cento da década anterior, registando, no período entre 1965 e 1973, um aumento anual de 7,2 por cento O sector industrial é o grande responsável por esta evolução, crescendo entre 1957 e 1973, a um ritmo anual de 8,6 por cento Destes valores, o sector primário, que, no início da década de 50, representava 38,9 por cento do PIB, chega a 1970 com o valor de 20,2 por cento. Inversamente, o sector secundário cresce, no mesmo período, de 23 por cento para 36 por cento. Pedro Lains, “Crescimento Económico”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 460-461. 108. Deste modo, entre 1950 e 1970, a percentagem de população urbana situada na faixa litoral entre Setúbal e Braga passa de 57,9 por cento para 66 por cento, sendo a área metropolitana de Lisboa, especialmente através dos seus concelhos limítrofes, a grande receptora desta população, crescendo, no mesmo período, mais de meio milhão de habitantes. Jorge Gaspar, “Cidades”, idem, p. 317. 109. Se, em 1930, a esperança de vida era, respectivamente, para homens e mulheres, de 46,5 e 50,6 anos, no início da década de 70 registava os valores de 64,4 e 67,7 João Ferreira de Almeida, “Crescimento Económico”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, p. 511. Entre 1960 e 1970, Portugal vê a sua taxa de mortalidade infantil reduzida de 65 por mil para 39 por mil (a média da Europa e América do Norte era 21), a taxa de analfabetismo de 30 por cento para 25 por cento (a média da Europa e América do Norte era de 14 por cento, as suas calorias per capita de 2567 para 3108 mil (a média da Europa e América do Norte era de 3135). João César das Neves, “Economia”, idem, p. 579.

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Humberto Delgado marcou o final da década.110 Vilaverde Cabral relaciona esta instabilidade com o crescimento de uma nova classe média urbana, terciarizada, mais escolarizada, frustrada nas suas expectativas económicas.111 Quirino Mealha, em 1958, cedeu a direcção da FNAT a Bento Parreira do Amaral. A criação da Junta de Acção Social e a aplicação do Plano de Formação Social e Corporativa, tomando a FNAT como parceiro estratégico fundamental, retiraram-lhe competências. A Fundação circunscreveu-se a objectivos mais precisos e mais consentâneos com a sua natureza. A FNAT dispunha, enfim, apesar dos constantes conflitos com o governo a propósito das suas atribuições financeiras, de condições sociais mais adequadas ao exercício das suas funções de regulador e pacificador do local de trabalho e, consequentemente, de eixo de controlo da ordem social.

O crescimento da acção ideológica da FNAT Pela consulta dos Relatórios de Actividades e Contas da FNAT durante o terceiro quartel do século x x, verifica-se o crescimento rápido e sistemático da organização de ocupação de tempos livres. FNAT: Evolução do Património, Número de Sócios, Centros de Alegria no Trabalho e Centros de Recreio Popular Quadro n°. 1 Ano . . . . . . . Património (Esc.) . . . . Índice . . . . . N°. Sócios . . . . . . Índice . . . . . N°. CAT’S . . . . N°. CRP’S 1950 . . . . . . 38.651.887 . . . . . . . . . 100,0 . . . . . 47.117 . . . . . . . . . 100,0 . . . . . . — . . . . . . . . . . — 1951 . . . . . . 38.096.941 . . . . . . . . . 98,6 . . . . . . 51.307 . . . . . . . . . 108,9 . . . . . . 238 . . . . . . . . . 23 1952 . . . . . . 38.611.739 . . . . . . . . . 99,9 . . . . . . 54.258 . . . . . . . . . 115,2 . . . . . . 258 . . . . . . . . . 31 1953 . . . . . . 42.067.681 . . . . . . . . . 108,8 . . . . . 57.370 . . . . . . . . . 121,8 . . . . . . 272 . . . . . . . . . 46 1954 . . . . . . 43.479.428 . . . . . . . . . 112,5 . . . . . 60.473 . . . . . . . . . 128,3 . . . . . . 91 . . . . . . . . . . 78

110. A gravidade da situação irá originar uma revisão da Constituição, em 1959, que retira aos cidadãos a possibilidade de elegerem o Presidente, passando esta mesma eleição a ser feita por colégio eleitoral restrito. Este colégio eleitoral era composto pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa e pelos representantes municipais de distrito ou de província ultramarina. 111. Vilaverde Cabral, “Classes Sociais”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 335-336.

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Ano . . . . . . . Património (Esc.) . . . . Índice . . . . . N°. Sócios . . . . . . Índice . . . . . N°. CAT’S . . . . N°. CRP’S 1955 . . . . . . 47.212.020 . . . . . . . . . 122,1 . . . . . 63.910 . . . . . . . . . 135,6 . . . . . . 301 . . . . . . . . . 92 1956 . . . . . . 50.847.873 . . . . . . . . . 131,6 . . . . . 67.452 . . . . . . . . . 143,2 . . . . . . 307 . . . . . . . . . 106 1957 . . . . . . 53.154.958 . . . . . . . . . 137,5 . . . . . 70.389 . . . . . . . . . 149,4 . . . . . . 303 . . . . . . . . . 104 1958 . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . 73.655 . . . . . . . . . 156,3 . . . . . . 322 . . . . . . . . . 105 1959 . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . 77.310 . . . . . . . . . 164,1 . . . . . . 329 . . . . . . . . . 101 1960 . . . . . . 82.942.226 . . . . . . . . . 214,6 . . . . . 81.998 . . . . . . . . . 174,0 . . . . . . 341 . . . . . . . . . 106 1961 . . . . . . 88.408.119 . . . . . . . . . 228,7 . . . . . 86.499 . . . . . . . . . 183,6 . . . . . . 356 . . . . . . . . . 112 1962 . . . . . . 103.190.634 . . . . . . . . 267,0 . . . . . 92.460 . . . . . . . . . 196,2 . . . . . . 372 . . . . . . . . . 113 1963 . . . . . . 10.884.288 . . . . . . . . . 286,9 . . . . . 99.260 . . . . . . . . . 210,7 . . . . . . 389 . . . . . . . . . 116 1964 . . . . . . 120.759.599 . . . . . . . . 312,4 . . . . . 104.867 . . . . . . . . 222,6 . . . . . . 441 . . . . . . . . . 135 1965 . . . . . . 132.098.960 . . . . . . . . 341,8 . . . . . 111.195 . . . . . . . . 236,0 . . . . . . 481 . . . . . . . . . 137 1966 . . . . . . 144.981.923 . . . . . . . . 375,1 . . . . . 118.500 . . . . . . . . 251,5 . . . . . . 498 . . . . . . . . . 123 1967 . . . . . . 163.223.866 . . . . . . . . 422,3 . . . . . 127.890 . . . . . . . . 271,4 . . . . . . 541 . . . . . . . . . 128 1968 . . . . . . 178.106.182 . . . . . . . . 460,8 . . . . . 138.177 . . . . . . . . 293,3 . . . . . . 582 . . . . . . . . . 142 1969 . . . . . . 206.811.072 . . . . . . . . 535,1 . . . . . 147.264 . . . . . . . . 312,5 . . . . . . 626 . . . . . . . . . 148 1970 . . . . . . 239.272.069 . . . . . . . . 619,0 . . . . . 158.775 . . . . . . . . 337,0 . . . . . . 658 . . . . . . . . . 156 1971 . . . . . . 274.190.945 . . . . . . . . 09,4 . . . . . . 169.729 . . . . . . . . 360,2 . . . . . . 694 . . . . . . . . . 154 1972 . . . . . . 308.316.811 . . . . . . . . 797,7 . . . . . 180.762 . . . . . . . . 383,6 . . . . . . 728 . . . . . . . . . 159 1973 . . . . . . 345.179.194 . . . . . . . . 893,0 . . . . . — . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . 913 . . . . . . . . . 152 1974 . . . . . . 388.392.989 . . . . . . . . 1004,8 . . . . — . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . — . . . . . . . . . . — Fonte: Relatórios de Actividade e Contas da FNAT (1952-1974)

Gráfico n°. 1

Património da FNAT nos anos de 1950 a 1974

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Gráfico n°. 2

Número de sócios da FNAT nos anos de 1950 a 1972

Em relação aos seus beneficiários, os responsáveis da Fundação afirmavam que os números descritos estavam longe de se aproximar da realidade. Por um lado, bastava que o chefe de família fosse associado para o resto dos membros do seu agregado poderem beneficiar das actividades da FNAT, por outro, os sócios das Casas dos Pescadores, Casas do Povo, dos Centros de Alegria no Trabalho (CAT) e dos Centros de Recreio Popular (CRP) estavam dispensados de inscrição. Segundo o Relatório de Actividade e Contas de 1963, o número de beneficiários atingido nesse ano, cerca de cem mil, era, na realidade, bastante maior. Se um agregado familiar teria, em média, quatro pessoas, era necessário adicionar aos cem, mais 300 mil beneficiários. Concluía a FNAT que se a estes 400 mil se juntassem os sócios dos outros organismos corporativos acima indiciados, a organização estava ligada, directa ou indirectamente a “muito mais de um milhão de pessoas”112. O crescimento anual do património da FNAT situou-se, com a excepção de 1974, bem acima dos números da inflação. Esta evolução patrimonial tem origem na necessidade das suas infra-estruturas suportarem a procura por parte das populações. Entre 1950 e 1974, o património da FNAT, a preços correntes, cresceu dez vezes (de 38.651.887$00 para 388.392.989.$00). O aumento do património decorreu, fundamentalmente, da actividade económico-social, em especial do investimento 112. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1963, Março de 1964, Arquivo do INATEL, p. 4

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nas colónias de férias. Parcela importante da despesa da FNAT era conduzida para a actividade económica e financeira. Gráfico n°. 3

Variação em percentagem do IPC e do Património da FNAT nos anos de 1961 a 1974

A comparação da evolução do património da FNAT com a evolução do índice de preços demonstra que a organização de tempos livres crescia bem acima da economia. Só em 1973, como resultado da crise económica provocada pelo choque petrolífero, é que se nota um abrandamento do crescimento da FNAT em relação à inflação. A evolução do número de CAT e CRP revela uma delimitação progressiva da área geográfica e social da actuação da FNAT. Gráfico n°. 4

Evolução de CAT e CRP nos anos de 1951 a 1973

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A ligação da FNAT ao tecido económico, observada pelo crescente vínculo, através dos CAT, ao quotidiano das empresas, reforçou a inserção urbana da instituição. O caso dos refeitórios económicos foi, a este propósito, paradigmático. Como referiu o Relatório de Actividade e Contas de 1967: O surto de desenvolvimento industrial que acentuadamente se tem feito sentir nos últimos anos, teve inevitavelmente grandes repercussões na vida de muitos milhares de trabalhadores que por força dele tiveram que ingressar em muitas Empresas. Assim, para essa massa de trabalhadores – a maior parte deslocada da província – houve que estudar não só a sua instalação em bairros apropriados, como também conceder-lhes alimentação (almoço) e géneros nas Cantinas a fim de acorrer às suas necessidades primárias. Estas medidas tiveram que ser tomadas muitas vezes não só tendo em vista, com estes benefícios, um complemento de salário, mas ainda para suprir a falta das infraestruturas necessárias em muitos locais em que foram instaladas as novas unidades fabris.113

>>>>>>>>>>> A impossibilidade de acesso aos mapas contabilísticos dos Relatórios de Actividade e Contas da FNAT não permitiu uma avaliação mais rigorosa da distribuição funcional das receitas e das despesas. FNAT: Evolução da Receita Ordinária e da Despesa Ordinária Quadro N.° 2 Ano . . . . . . . Receita Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice . . . . . . . . . .Despesa Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice 1953 . . . . . . 22.901.870 . . . . . . . . . . . . . . . . . .100,0 . . . . . . . . . . .18.830.419 . . . . . . . . . . . . . . . . . .100,0 1954 . . . . . . 26.376.281 . . . . . . . . . . . . . . . . . .115,2 . . . . . . . . . . .22.897.306 . . . . . . . . . . . . . . . . . .121,6 1955 . . . . . . 30.047.594 . . . . . . . . . . . . . . . . . .131,2 . . . . . . . . . . .28.313.651 . . . . . . . . . . . . . . . . . .150,4 1956 . . . . . . 31.421.747 . . . . . . . . . . . . . . . . . .137,2 . . . . . . . . . . .29.400.032 . . . . . . . . . . . . . . . . . .156,1 1957 . . . . . . 35.674.271 . . . . . . . . . . . . . . . . . .155,8 . . . . . . . . . . .32.142.054 . . . . . . . . . . . . . . . . . .170,7 1958 . . . . . . 39.138.027 . . . . . . . . . . . . . . . . . .170,9 . . . . . . . . . . .35.665.415 . . . . . . . . . . . . . . . . . .189,4 1959 . . . . . . 39.439.141 . . . . . . . . . . . . . . . . . .172,2 . . . . . . . . . . .36.705.945 . . . . . . . . . . . . . . . . . .194,9

113. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 1968, Arquivo do INATEL, p. 38. Das empresas e instituições que tinham refeitórios organizados pela FNAT encontravam-se, só em Lisboa, entre outras: o Arsenal do Alfeite, BP, Cidla, Firestone, Mercauto, Metropolitano, Mobil, Sacor, Sécil, Central de Cervejas, Sopac, Soponata, Tabaqueira, TAP, Porto de Lisboa, Refinaria do Ultramar, Sonap, Cometna, Dyrup, Cabos d’Ávila, Publicações Europa América, Somapre, Sores, Valentim de Carvalho. Ibidem, p. 41, e Relatório de Actividade e Contas de 1969, p. 36.

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Ano . . . . . . . Receita Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice . . . . . . . . . .Despesa Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice 1960 . . . . . . 36.471.324 . . . . . . . . . . . . . . . . . .159,3 . . . . . . . . . . .34.320.264 . . . . . . . . . . . . . . . . . .182,3 1961 . . . . . . 39.166.332 . . . . . . . . . . . . . . . . . .171,0 . . . . . . . . . . .36.696.677 . . . . . . . . . . . . . . . . . .194,9 1962 . . . . . . 47.850.599 . . . . . . . . . . . . . . . . . .208,9 . . . . . . . . . . .41.693.539 . . . . . . . . . . . . . . . . . .221,4 1963 . . . . . . 53.638.063 . . . . . . . . . . . . . . . . . .234,2 . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . — 1964 . . . . . . 60.995.204 . . . . . . . . . . . . . . . . . .266,3 . . . . . . . . . . .49.904.110 . . . . . . . . . . . . . . . . . .265,0 1965 . . . . . . 75.552.573 . . . . . . . . . . . . . . . . . .329,9 . . . . . . . . . . .63.660.770 . . . . . . . . . . . . . . . . . .338,1 1966 . . . . . . 107.273.337 . . . . . . . . . . . . . . . . .468,4 . . . . . . . . . . .93.363.648 . . . . . . . . . . . . . . . . . .495,8 1967 . . . . . . 107.798.646 . . . . . . . . . . . . . . . . .470,7 . . . . . . . . . . .94.372.641 . . . . . . . . . . . . . . . . . .501,2 1968 . . . . . . 99.882.901 . . . . . . . . . . . . . . . . . .436,1 . . . . . . . . . . .83.315.209 . . . . . . . . . . . . . . . . . .442,5 1969 . . . . . . 121.298.773 . . . . . . . . . . . . . . . . .529,6 . . . . . . . . . . .93.405.275 . . . . . . . . . . . . . . . . . .496,0 1970 . . . . . . 131.381.758 . . . . . . . . . . . . . . . . .573,7 . . . . . . . . . . .99.825.567 . . . . . . . . . . . . . . . . . .530,1 1971 . . . . . . 144.194.306 . . . . . . . . . . . . . . . . .629,6 . . . . . . . . . . .108.289.268 . . . . . . . . . . . . . . . . .575,1 1972 . . . . . . 158.430.174 . . . . . . . . . . . . . . . . .691,8 . . . . . . . . . . .124.392.368 . . . . . . . . . . . . . . . . .660,6 Fonte: Relatórios de Actividade e Contas da FNAT (1953-1972)

Gráfico n°. 5

FNAT: Receita e Despesas Ordinárias nos anos de 1953 a 1971

Os números possibilitam, no entanto, acompanhar a progressão do investimento da Fundação e as prioridades da sua despesa.114 A actividade económico-social, que incluía as colónias de férias, as cozinhas, refeitórios e cantinas, e as albergarias, levava a fatia mais grossa do or114. A lacuna em relação aos dados das despesas administrativas impede uma ideia mais concreta do crescimento burocrático da FNAT.

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çamento. Em 1957115, representava 76,3 por cento da despesa ordinária (24.547.121$00 sobre o total de 32.142.054$00), para, em 1969116, representar 59,7 por cento (55.819.131$ sobre um total de 93.405.275$00). Os Centros de Férias sempre registaram grande procura. A FNAT considerava a sua acção fundamental, especialmente pelo modo como colmatavam algumas insuficiências da vida regular dos trabalhadores, provocadas pelo “crescente urbanismo nos grandes centros populacionais que, pela carência de casas em condições normais de habitabilidade, obriga muitas famílias de trabalhadores a viver em acanhadas partes de casa, em quartos ou mesmo barracas.”117 As férias seriam, assim, um útil escape ao quotidiano, ainda mais porque “o aumento galopante do custo de vida, aliado ao surto turístico que se vem acentuando dia-a-dia, torna proibitiva para a maioria dos trabalhadores portugueses a utilização de instalações hoteleiras, mesmo de pensões modestas. Desta maneira, a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho é a única forma possível, para muitos, de poderem, quer na praia ou no campo, retemperarem o organismo do grande esforço a que a vida moderna os obriga.”118 O turismo social, integrado no interior da actividade socio-económica, tornou-se no motor da actividade da instituição. A atenuação das tensões inerentes à “vida moderna” justificava uma regulação social que incidia sobre grupos sociais prejudicados pela fraca remuneração do factor trabalho. Por seu lado, a actividade cultural, em 1957119, representava oito por cento da despesa ordinária (2.559.657$00), para, em 1969120, representar 8,7 por cento (8.096.514$00). Parte substancial da despesa com a parte cultural destinou-se, a partir de 1963, à programação do Teatro da Trindade. Em 1963121, de um total de investimento em actividade cultural de 8.622.968$00, 3.863.167$00 foram gastos com o Trindade, ou seja, 45 por cento, para, em 1965122, o Trindade representar 55 por cento (4.043.033$00 sobre 7.386.397$00) do investimento da área cultural.

115. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1957, 1958, Arquivo do INATEL, p. 61. 116. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, pp. 58-59 e Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 54-55. 117. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, p. 27. 118. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1973, 1974, Arquivo do INATEL, p. 30. 119. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1957, 1958, Arquivo do INATEL, pp. 57-61. 120. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, pp. 58-59. 121. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1963, Março de 1964, p. 30. 122. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, p. 7.

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Em termos substanciais, a actividade cultural foi registando um aumento de dotação significativo. Mas quando comparada com os números da actividade desportiva, notam-se diferenças consideráveis. Passando a contar, a partir de 1962, com parte da percentagem de receitas do Totobola, o desporto da FNAT cresceu muito. Se, em 1962123, a despesa com o desporto representava quase metade da registada com a actividade cultural, (3.109.257$00 e 5.099.127$00, respectivamente), em 1967124, é mais do triplo (19.760.578$00 e 6.074.553$00, respectivamente). A evolução da receita da FNAT revela ainda os limites da sua autonomia financeira, questão remissível às relações da Fundação com as instâncias estatais que a financiavam. As receitas da FNAT provinham essencialmente de duas origens: dos Organismos Corporativos e de Coordenação Económica e das Caixas de Previdência e das contribuições dos beneficiários e encargos resultantes dos serviços da FNAT. As outras receitas, tal como os donativos de identidades públicas e privadas, os juros de fundos capitalizados e o dinheiro resultante da renovação anual dos cartões tinham um peso pouco expressivo. Apenas as receitas das Apostas Mútuas chegaram a atingir quantias consideráveis no seu orçamento anual. No primeiro ano (1962)125 representaram 8,4 por cento da receita ordinária da Fundação, ou seja, 4.001.377$00 para um total de 47.850.599$00. Em 1969126, as receitas do Totobola atingiram o seu ponto máximo: 20,2 por cento da receita ordinária (24.500.171$00 sobre 121.298.173$00). Eram as receitas provenientes do Estado, por um lado, e as receitas próprias, por outro, que sustentaram a FNAT. A sua lógica de progressão revela algumas tendências significativas. A primeira é o decréscimo acentuado do peso relativo das receitas próprias: 70,2 por cento em 1955127, 64,4 por cento em 1960128, 61,8 por cento em 1965129, e 51,3 por cento em 1970130. O investimento directo do Estado manteve-se, em

123. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1962, Março de 1963, p. 20. 124. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 18/3/1968, pp. 54-55. 125. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1962, Março de 1963, p. 18. 126. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, p. 56. 127. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1955, 28/3/1956, Arquivo do INATEL, p. 41. 128. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1960, Março de 1961, Arquivo do INATEL, pp. 35-36. 129. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, Arquivo do INATEL, pp. 39-40. 130. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 52-53.Este dado não inviabilizou o seu aumento absoluto nos quinze anos considerados: de 21.090.645$00, em 1955, para 67.388.881$00, em 1970. Ibidem.

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termos relativos, estável: 28,2 por cento em 1955131, 33,5 por cento em 1960132, 20,4 por cento em 1965133, e 31 por cento em 1970134. Há que considerar, no entanto, a variação que, a partir de 1962, as Apostas Mútuas introduzem no quadro. É impossível deixar de as considerar um benefício estatal. O aumento do investimento estatal não chegou para contentar as suas sucessivas direcções, que consideravam ter a FNAT condições para crescer mais: “Verifica-se que à medida que se vão desenvolvendo as actividades da FNAT o seu número de beneficiários vai acompanhando paralelamente aquela evolução.”135 As consecutivas direcções da FNAT sentiram que a organização só não se desenvolvia em moldes mais eficazes por não possuir as condições necessárias para incrementar a oferta de bens e serviços. Dotada de infra-estruturas, a FNAT poderia gerar verbas que, por si só, a sustentassem. Determinadas actividades da Fundação, além do seu relevante efeito social, proporcionavam lucros consideráveis. Em 1957, a organização das cantinas e refeitórios suscitou à direcção de Quirino Mealha uma reclamação quanto à colaboração técnica e funcional do Ministério das Corporações, bem como dos diversos organismos corporativos. À semelhança do que sucedia noutros países, era importante criar “sistemas de controle de modo a permitir que os serviços sejam de engrenagem fácil, na sua maior parte mecanizados, de óptimo rendimento de trabalho com pessoal muito reduzido e a burocracia extremamente simplificada (…) Os serviços têm de adaptar-se aos objectivos específicos do Organismo e não serão estes que se têm de limitar por causa daqueles. Será esta a orientação a imprimir à FNAT (…)136 Por falta de verba, a FNAT, ainda em relação aos refeitórios, não pôde aproveitar os serviços do Centre d’Etudes & Organisation de Versailles, que já realizara vários estudos em Portugal e com quem a direcção da Fundação estivera em contacto. O mesmo motivo colocava a FNAT na

131. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1955, 28/3/1956, Arquivo do INATEL, p. 41 132. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1960, Março de 1961, Arquivo do INATEL, pp. 35-36. 133. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, Arquivo do INATEL, pp. 39-40. 134. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 52-53 135. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1972, 19/3/1973, Arquivo do INATEL, p. 7. Imediatamente se afirma que o aumento do número de beneficiários exigiu que se comprassem dois ficheiros eléctricos rotativos de grande capacidade. Ibidem. 136. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1956, 1957, Arquivo do INATEL, p. 7.

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contingência de perder alguns dos seus funcionários mais qualificados para as grandes empresas.137 Os protestos da FNAT pela falta de condições financeiras, independentemente da direcção que lhe presidia aos destinos, apresentaram um carácter sistemático e ininterrupto. Mesmo nas ocasiões em que o governo atendeu a estas reclamações, designadamente atribuindo à instituição, em 1961138, percentagem de receitas do Totobola – consignadas a um investimento na actividade desportiva –, e alterando, em 1967, de dois para três por cento a contribuição das Instituições de Previdência para o orçamento da FNAT, o panorama continuava a não satisfazer as ambições da direcção. Em relação a esta última medida, refere a introdução do Relatório de Actividade e Contas relativo ao exercício de 1967: “(…) se este aumento não nos vem dar maiores possibilidades de expansão das actividades da FNAT para o futuro, teremos pelo menos a inestimável vantagem de não vermos, de momento, mais agravada uma situação que há vários anos se vinha gradualmente acentuando.”139 >>>>>>>>>>> A direcção da FNAT elaborou, em Julho de 1972, um documento que procurava planear as suas actividades no período entre 1974 e 1979, o mesmo espaço temporal em que o quarto Plano de Fomento enquadraria as grandes opções económicas do país. De acordo com a resolução do Gabinete de Planeamento da FNAT, procedeu esta a um diagnóstico de cada actividade da instituição, sendo apresentado, de seguida, um conjunto de soluções, finalidades e acções. A sustentar a política de desenvolvimento das diversas actividades específicas, impunha a concretização definitiva de dois objectivos primordiais. Por um lado, exigia do Estado um maior envolvimento financeiro, decisivo para a Fundação conseguir responder ao constante crescimento da procura dos seus serviços por parte das populações. Por outro lado, instava por uma clarificação do universo da sua actuação. Algumas das atribuições 137. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1956, 1957, Arquivo do INATEL, p. 7. 138. Decreto-Lei n.o 43.777, de 3/7/1961. 139. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 18/3/1968, Arquivo do INATEL, p. 3.

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e competências da FNAT sobrepunham-se às da Junta de Acção Social, criada no já longínquo ano de 1956. A desejada depuração das funções da organização de tempos livres implicava que as suas actividades se cingissem à oferta de bens e serviços à qual eram inerentes os mesmos propósitos de regulação social, adicionada a uma perspectiva comercial com horizontes sustentados: Daquelas acções da competência da Junta de Acção Social e da FNAT salientam-se as seguintes: > Difusão dos princípios da legislação social e das suas realizações e estabelecimento e coordenação dos meios adequados à formação de uma consciência dos deveres e regalias dos trabalhadores, designadamente em matéria de organização corporativa, regime de trabalho e previdência social. > Edição de publicações, conferências e palestras com a utilização da Imprensa, Rádio, Cinema e TV, com as finalidades referidas acima. > Instalação de bibliotecas para trabalhadores. > Estudo e divulgação da Higiene e Segurança no Trabalho.140

O último parágrafo presente no texto asseverava que “só com substancial auxílio exterior, a FNAT poderá cumprir o plano traçado que se julga não ser sequer muito ambicioso dentro das atribuições que competem ao Organismo.”141 O Relatório e Contas da FNAT relativo ao ano de 1973, assinado pelo novo presidente da Fundação, Fernando Moreira Ribeiro, cinco dias antes do 25 de Abril, exprimia a intenção de constituir um grupo de trabalho, dirigido pelo Gabinete de Organização e Métodos do Ministério das Corporações e Segurança Social, que seria responsável pela avaliação da organização com os olhos postos numa reestruturação breve: “impõe-se repensar a validade das estruturas existentes”142. Sobre este estudo afirmou o novo presidente da FNAT: Sem prejuízo do que se vier a apurar no final, parece evidente que convirá futuramente à FNAT tentar substituir a sua actual administração tradicional, de índole predominantemente burocrática, por uma administração moderna, tipo “management”, em

140. Ibidem, p. 2 141. Ibidem, p. 80. 142. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1973, 1974, Arquivo do INATEL, p. 3.

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A Ópera do Trindade que os princípios de gestão por objectivos, participação, rendibilidade, planeamento e controle teriam inteira aplicabilidade.143

A flexibilização da FNAT, de acordo com os pressupostos de uma empresa moderna, assentava na evidência de que, além das suas funções sociais basilares, a instituição podia tornar-se, caso lhe fossem proporcionadas garantias de crescimento ao nível das infra-estruturas, numa organização financeiramente auto-sustentada. Apesar das tensões com as instâncias estatais de que dependia, a FNAT, a partir dos anos 50, desenvolveu consideravelmente as suas actividades e, em consequência, a vertente socializadora das práticas quotidianas, eixo fundamental da acção ideológica. Ao contrário da análise sugerida por José Carlos Valente, considerando que, a partir de 1958, “a FNAT ganha em massa associativa e estrutura orgânica, mas perde em conteúdo e actuação ideológica própria”144, é precisamente quando “tende a tornar-se uma rede de infraestruturas burocráticas, prestadora de serviços e distribuidora de orientações emanadas de órgãos colegiais”145, que a FNAT conseguiu, na prática, demonstrar o potencial da sua eficácia ideológica. O crescimento da FNAT relacionou-se com as condições criadas pelo contexto de modernização do país, especialmente a partir dos anos 60. Neste processo, um conjunto de tensões institucionais obviou a uma clarificação mais sistemática e precoce das suas atribuições e competências. Foi apenas nos anos 70, próximo do 25 de Abril de 74, que parecia estarem reunidas as condições para a FNAT se afirmar de forma mais eficaz como instrumento de uma política social moderna, praticamente depurado de qualquer intenção moralizante. As contradições inerentes ao seu desenvolvimento e ao papel desempenhado na sociedade portuguesa reflectiram-se, de forma particular, na organização de uma Companhia Portuguesa de Ópera no Teatro da Trindade. As temporadas realizadas entre 1963 e 1975 foram a expressão de um investimento cultural patrocinado pelo Estado e pensado de acordo com as directrizes de uma política social que procurava responder aos problemas que a transformação do país colocava. A utilização 143. Ibidem. 144. José Carlos Valente, op. cit., pp. 196-197. 145. Ibidem, pp. 196-197.

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das práticas culturais como instrumento de regulação social moderno respondia a critérios de eficiência e a lógicas estudadas e aplicadas. Esses critérios afastam a política estatal de uma concepção de cultura popular tradicionalista e rural, para a aproximar de um consumo diverso, recreativo e urbano.

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A política cultural da FNAT no Teatro da Trindade A evolução da FNAT transformou-a num dos eixos da política social do Estado Novo. Foi argumentado que no desempenho desta função normativa a organização teria tido condições para se tornar num instrumento ideológico eficaz. Esta eficácia foi relacionada com o facto da sua natureza de moderno regulador da competição entre os grupos sociais encontrar, nas alterações estruturais que o país sofreu, a partir da década de 50, um contexto mais adequado ao desenvolvimento das suas actividades. Depois das iniciativas pioneiras terem sido estancadas pela descrença e desmobilização dos vários interesses implicados, as políticas sociais corporativas encontravam, enfim, um mercado crescente. A aquisição do Teatro da Trindade, em 19621, foi mais uma etapa da evolução orgânica e patrimonial da FNAT. O seu impacte na área reservada pela Fundação à cultura foi significativo, pela diversidade das propostas artísticas. Bento Parreira do Amaral, presidente da FNAT, com a anuência do ministro Gonçalves Proença2, remeteu a responsabilidade 1. O chefe de gabinete do ministro das Corporações, Gonçalves Proença, informou o presidente da FNAT, em carta com data de 7 de Março de 1962, que o ministro autorizara, com dispensa do pagamento de sisa, a compra do Teatro da Trindade pela quantia de 8.000.000$00. Carta n.o 292/62, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313. 2. Em 24 de Outubro de 1962, o presidente da FNAT escreveu ao chefe de gabinete do ministro das Corporações, informando da deliberação da direcção em criar o lugar de director do Teatro da Trindade. A nomeação, atribuída a José Serra Formigal, era compatível com outras funções. Depois da resposta do ministro, seguiu outra carta da FNAT, de 25 do mesmo mês, desta vez para a JAS, transcrevendo a autorização de Gonçalves Proença em nomear Serra Formigal director do Teatro da Trindade, podendo o mesmo acumular este cargo com o de vogal da Comissão Executiva da JAS onde tratava do cinema, rádio e televisão e pelo qual recebia 5.500$00 mensais. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313. O dia 24 de Outubro de 1962 é precisamente a data em que Gonçalves Proença aprovou o Plano Geral Para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, apresentado por Serra Formigal, em 18 de Setembro do mesmo ano.

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As Variedades de Proteu, de António José da Silva, musicada por António Teixeira. A encenação foi de Artur Ramos, Julho de 1968

da organização das actividades anuais do Trindade para José Serra Formigal3, advogado, antigo subdelegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência em Vila Real e Aveiro, juiz titular do Tribunal do Trabalho de Lisboa. A partir de 1957, foi director da Junta de Acção Social, dedicando-se, neste âmbito, aos sectores da televisão, cinema, e acção social descentralizada. Em 1960, foi nomeado Chefe da Repartição de Programas Musicais da Emissora Nacional. Serra Formigal era um conhecido melómano com formação musical: estudou violino 3. Serra Formigal, em entrevista concedida a propósito deste trabalho, atribui a sua nomeação para a direcção do Teatro à amizade que mantinha com Gonçalves Proença, com quem partilhava uma enorme paixão pela música. O ministro abordou-o afirmando que a compra do Trindade era ideal “para se fazer centralização cultural” já que só tinham “os serões para trabalhadores”.

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e canto, chegando a actuar no São Carlos sob a direcção dos maestros Pedro Freitas Branco e Antonino Votto.4 O exercício das funções de Serra Formigal à frente do Teatro da Trindade estava condicionado pelos propósitos da política social desenvolvida pela FNAT. O Trindade seria o centro de uma actividade cultural, suportada, política e financeiramente, pelo Ministério das Corporações e Previdência Social. A legitimidade do modelo artístico proposto por Serra Formigal dependia da sua capacidade para mobilizar um público-alvo participante de um conjunto de serões alegres e fraternais, cuja idoneidade política e dimensão artística formal correspondessem aos objectivos institucionais. Em 1962, Serra Formigal redigiu um documento intitulado Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, propondo um conjunto de actividades artísticas caracterizado pela preocupação em produzir espectáculos de “qualidade elevada”: Pretende-se que o Teatro da Trindade constitua uma fonte viva de cultura artística e de saudável recreio para o trabalhador português o que obriga a especiais cuidados na programação, elencos, encenações, montagens e restantes elencos técnicos e artísticos. Tais circunstâncias envolverão necessàriamente uma despesa que se não se pode considerar avultada em função dos resultados que se pensam vir a obter, será no entanto vultuosa em face dos critérios que normalmente orientam a vida portuguesa neste sector de actividades. Estamos, porém, certos que a visão superior de quem tanto se preocupa por estes importantes aspectos da cultura popular e com a aquisição do Teatro que a veio possibilitar, dará o apoio necessário e possível à concretização da obra.5

As actividades programadas eram o teatro, o bailado, os concertos musicais, a ópera, a opereta, o cinema e algumas “variedades”. A diversidade da oferta cultural exigia, no interior de determinada racionalização económica, um equilíbrio orçamental entre as várias propostas. O ministro congratulou-se com a criação de “um movimento renovador da música portuguesa e sua progressiva nacionalização” e com “a participação dos trabalhadores no desenvolvimento da arte dramática”6, mas 4. Currículo de Serra Formigal integrado em documentação seleccionada para acompanhar a Companhia de Ópera do Trindade a Barcelona, aquando da representação de A Serrana. Arquivo do Teatro da Trindade, 1966. 5. José Serra Formigal, Plano Geral Para Uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 2, em Arquivo Serra Formigal. 6. Ibidem, pp. 1-2.

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determinou alguma contenção financeira: a produção teatral, como Formigal sugeriu, deveria ser atribuída a uma empresa externa, e as restantes actividades, com o intuito de serem realizadas de acordo com os pressupostos incluídos no Plano Geral, teriam que ser comparticipadas por outros organismos, fossem eles governamentais, como o SNI e a JAS, que partilhavam com a FNAT algumas funções semelhantes, ou de carácter privado, como a Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar dos reparos, Proença viabilizou o Plano em toda a sua extensão, concordando com a generalidade das propostas. A concessão da actividade dramática a uma companhia externa libertava verbas para a formação de um agrupamento nacional de ópera e opereta. Por razões técnicas, económicas e sociais, expostas por Serra Formigal de forma clara, os espectáculos de teatro, bailado, concertos musicais, ópera e opereta seriam organizados em temporadas anuais. Esta opção permitia “uma melhor tomada de consciência em unidade (…) O público estará sucessivamente afecto ao Teatro, à Ópera, ao Ballet ou aos concertos em períodos de tempo suficientes para se criar a indispensável atitude de adesão e interesse por cada modalidade artística.”7 O cinema, embora constasse da programação inicial, acabaria por ficar de fora, opção suportada por considerações de ordem técnica. A apresentação do Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade compreendia uma descrição das actividades e uma estimativa financeira para a primeira temporada. Numa verba total de 4.650.000$00, a produção interna preenchia a maior parte do orçamento. A exploração teatral, se fosse atribuída a uma companhia residente formada pela FNAT, custaria 1.204.825$00. A ópera representava um investimento de 1.299.722$00. Os números destas duas produções são significativamente superiores aos apresentados pelo conjunto dos outros espectáculos. Os concertos sinfónicos somariam 124.000$00. Estavam previstos 16 concertos apresentados pela Orquestra da Emissora Nacional, ou, melhor, pelos seus elementos que, durante a temporada do São Carlos, não cabiam no fosso da orquestra do teatro nacional de ópera, estando, 7. Ibidem, p. 3.

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portanto, libertos para outras actuações.8 As despesas materiais e as horas extraordinárias da orquestra, ainda em relação aos concertos sinfónicos, seriam pagas pelo Trindade, numa estimativa de 30.000$00. Requeria-se ainda a presença de um solista por concerto, ao preço unitário de 2.000$00, a mesma quantia que o maestro receberia por cada apresentação. Ao musicólogo João de Freitas Branco9, pelos comentários às peças interpretadas, seriam atribuídos 1.500$00 por concerto. A temporada de bailado, coincidente com a de ópera e opereta, estava orçamentada em 210.000$00. Serra Formigal esperava contar, para a realização de trinta espectáculos, com a colaboração do Grupo de Bailados Verde-Gaio e da Companhia Portuguesa de Bailado sediada na Fundação Gulbenkian. Os espectáculos para trabalhadores ficariam a cargo de conjuntos culturais e artísticos ligados à estrutura organizativa da FNAT: grupos de teatro amador, grupos corais, bandas e tunas. Esperava-se ainda organizar os espectáculos comemorativos do 23 de Setembro e do Colóquio do Trabalho da Organização Corporativa e Previdência Social. Todas estas iniciativas representariam um esforço financeiro de 250.000$00. Juntava-se à verba já acumulada, 856.536$00 de Seral (despesas renováveis todas as noites de espectáculo), 114.600$00 de custos com o pessoal administrativo e 15 por cento para encargos imprevistos. As despesas e as receitas da temporada de 1963 excederam os valores orçamentados.10 De uma despesa total de 3.863.167$00, a direcção do Trindade gastou, com a companhia de ópera, a quantia de 2.149.900$00, que corresponde a uma percentagem de 55,6 por cento do investimento total. As despesas de funcionamento representaram 1.467.791$00, ou seja, 38 por cento da totalidade dos gastos. Os restantes espectáculos apresentados ultrapassaram em pouco os seis por cento da despesa total. Para a realização da temporada de 1963, o Teatro de São Carlos recebeu do Ministério da Educação 7.853.000$00, quase quatro vezes mais do que o investimento estatal no Trindade.11

8. Este problema orquestral foi um primeiro indício das inúmeras complicações que a constituição de formações musicais de orquestra traria ao Trindade, ao longo dos seus anos de actividade sob gestão da FNAT. 9. João de Freitas Branco (1922-1989) dedicou-se fundamentalmente ao ensino e divulgação musical. A sua figura é absolutamente central para o entendimento da vida musical portuguesa na segunda metade do século xx. 10. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 13. 11. Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.o 184, de 5/3/1965, p. 4474 (113).

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

A Ópera A distribuição financeira do Plano de Programação não podia deixar de ser bem justificada pelo director do Teatro. Cabia-lhe fundamentar o investimento inicial. O primeiro argumento utilizado para legitimar a formação de uma Companhia Portuguesa de Ópera explicitou o valor que o género possuía, não apenas como proposta artística, mas tendo em conta a sua adequação aos contornos específicos da dinâmica institucional que a iria suportar. Se a ópera em Portugal era uma actividade cultural pouco democratizada, era evidente, na opinião de Serra Formigal, a apetência de um vasto público pelo género: A forma lírica é talvez a mais adequada para trazer ao nosso povo, com eficácia, a mensagem artística da música, e em que a sugestão das belas vozes ainda mais humaniza esta. A experiência está feita e não apenas com os espectáculos dos últimos anos, no Coliseu – espectáculos que só merecem aplausos e continuação – mas pelas sucessivas companhias que passaram em muitas décadas pela mesma casa de espectáculos e que sempre atraíram as massas populares. Se a ópera é um bom espectáculo cultural e o povo a ama, o teatro do povo deverá promovê-la.12

Na opinião de Serra Formigal, a formação de uma Companhia Portuguesa de Ópera teria um importante impacte profissional, de forte expressão nacionalista: “Apenas num aspecto temos falhado constantemente, em parte talvez devido às carências nacionais em valores mas fundamentalmente por falta de organização e trabalho sèriamente orientado: na constituição de agrupamentos nacionais permanentes de ópera.”13 Propondo-se ultrapassar este amadorismo, Serra Formigal considerava fundamental o concurso de “técnicos competentes”, e “onde não os houver portugueses”, deverá recorrer-se a “estrangeiros abalizados (…) mas não sistematicamente para cantar as óperas, pois, então, gastamos o dinheiro e ficamos sempre na mesma.”14 12. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 12. 13. Ibidem, p. 13. 14. Ibidem. Como o princípio da década de 60 foi época de êxitos desportivos – o Benfica ganha duas taças dos Clubes Campeões Europeus (1961 e 1962) comandado pelo húngaro Bela Gutmann – Formigal arriscou uma comparação: “Perdoe-se o paralelo, mas para se conseguir “o profissionalismo” no futebol foi à custa de técnicos estrangeiros que instruíram os nossos jogadores, o mesmo terá que acontecer na ópera.”

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A iniciativa legitimava-se pela sua inserção nacional, procurando ganhar um espaço de validação face às características das temporadas do São Carlos, onde, segundo Formigal, se gastava dinheiro com artistas estrangeiros que vinham “sistematicamente para cantar as óperas”, ficando, depois da sua partida, tudo na mesma. Para que tal não sucedesse no Trindade, a necessária participação de elementos estrangeiros, especialmente no que concerne à organização profissional da companhia, deveria servir para a criação de estruturas de ensino e formação permanentes. A importância legitimadora do argumento nacional obrigou Serra Formigal, contra a sua sensibilidade melómana, a defender a tradução dos libretos e a sua apresentação em português: Outro aspecto que interessa focar é a questão da língua em que são cantadas as óperas. Tanto em França como na Alemanha e na Itália, verifiquei que em todos os teatros, e abstraindo algumas récitas especiais, as óperas são cantadas na língua do país. Só entre nós e em alguns outros poucos países, especialmente na América do Sul, se cantam sempre nas línguas originais, salvo algumas excepções sem continuidade. Aponte-se no entanto que a Companhia de Ópera de Câmara da Fundação Gulbenkian está começando a cantar óperas em português. E tem de ser este o caminho, pois de contrário a compreensão do espectáculo fica muito diminuída, sobretudo quando se dirige às camadas populares.15

A música erudita, pelo seu carácter abstracto, nunca fora um universo cultural que preocupasse as instâncias reguladoras do regime. A comunicação entre emissor e receptor não levantava problemas políticos. A exigência de uma ópera cantada em português sentia-se apenas em determinados quadrantes culturais e políticos afectos à situação, representados ao mais alto nível pelo compositor Ruy Coelho. Dentro da lógica de uma arte pedagogicamente nacionalista, era defendida a criação de obras que considerassem as tradições mais profundas do país e, por conseguinte, no respeito à língua materna, exigia-se a tradução dos libretos estrangeiros. Serra Formigal não se enquadrava nesta tradição. A ideia de traduzir as óperas, nomeadamente quando se tratava de obras pertencentes ao património lírico romântico italiano e francês, chocava com o seu ethos de apreciador do espectáculo. No entanto, dadas as 15. Ibidem, p. 14.

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condições políticas que envolveram a criação da Companhia, considerou uma boa estratégia acenar com o argumento nacional. Por um lado, a ideia da ópera em português era importante para convencer a FNAT da possibilidade da iniciativa alcançar sucesso junto do público, por outro, a posição nacionalista contentava algumas forças no interior do regime e, ao mesmo tempo, garantia a Formigal a hipótese de criar um espaço de crítica ao São Carlos. A opinião de Serra Formigal sobre a questão da tradução, assente numa apreciação formalista, deduz-se de um passagem do mesmo documento sobre os problemas que a língua portuguesa levanta à interpretação dos cantores: “Há, porém, uma dificuldade: conseguir que os artistas cantem correctamente o português. A língua é ingrata, cheia como está de vogais mudas de emissão gutural, o que tende a “engolar as vozes”16. Servirá esta carência nacional para convencer o ministro das Corporações da urgência em contratar o mestre Tomás Alcaide (1901-1967), o cantor português com maior sucesso internacional, à data funcionário administrativo da Emissora Nacional, para dirigir, ele próprio, uma escola de canto lírico erguida nas instalações do Teatro. A escola formou-se, mas as óperas traduzidas, se exceptuarmos os poucos originais alemães que foram apresentados, nunca chegaram a realizar-se.

Desproletarizar A organização dos espectáculos foi pensada em face dos objectivos institucionais da FNAT. A política de preços que o Teatro deveria praticar é um eixo importante da ligação entre a FNAT, o financiador corporativo, e o Trindade, o espaço cultural de mediação. A questão mereceu de Serra Formigal, no Plano de Programação, uma desenvolvida discussão. Entre os promotores da política cultural da FNAT não havia qualquer ilusão quanto ao retorno financeiro que a actividade do Trindade 16. Ibidem, p. 15. Na entrevista que realizámos com Serra Formigal, o antigo director do Trindade acrescenta outros argumentos: “Modestamente, pensei que o que era bom (e o Alcaide concordava comigo) era o italiano. É uma língua boa, ajuda, as vogais são boas. No português, as vogais são péssimas. Temos vogais que não permitem cantar bem, a não ser com uma adaptação. Uma língua difícil. Mas deve-se cantar em português. Os ingleses não têm uma vogal pura, são todas sujas. O alemão é uma língua dura, mas as vogais são limpas. A Itália tem as duas coisas. Por isso o italiano facilmente canta, os populares facilmente cantam. Assim, pensei que a ópera italiana era uma boa base para a formação do cantor português, como de qualquer lado. Portanto, uma certa maioria de óperas italianas.”

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proporcionaria. A FNAT sobrevivia, em parte substancial, com dinheiros estatais e a sua função social não era contabilizável. A gratuitidade dos espectáculos, como princípio social e político, foi uma opção ponderada como regra central da relação da instituição com os seus associados. Havia mais de 20 anos que os serões para trabalhadores tinham instaurado essa prática de solidariedade cultural. O âmbito cultural do Trindade era, no entanto, diferente. Serra Formigal não concebera um espaço de variedades mas um Teatro de “artes sérias”, onde se apresentaria ópera e bailado, concertos sinfónicos e temporadas de teatro declamado. A diferença implicava uma concepção diferente da política de preços, relacionada com a prossecução de uma política social. Serra Formigal distinguiu os espectáculos que designou de “caros” – ópera, opereta, bailado e concertos sinfónicos – dos outros, a que, não chamando baratos, tratou pela aparente neutralidade do nome: cinema e variedades.17 Quanto a estes últimos, não via qualquer entrave a que fossem gratuitos; os restantes, porém, “como a gratuitidade tende, entre nós, a desclassificar, quer o espectáculo quer o espectador”, deviam ser pagos já que assim se “afasta do espectador a ideia do favor total, sempre um pouco humilhante.” Propõe-se, então, um preço, nunca além dos cinco escudos, que fosse compatível com os salários dos trabalhadores portugueses. O montante definido resultou de uma análise profunda da realidade portuguesa; ponderou-se com exactidão a relação a criar com o público desejado. A nobreza de certos espectáculos e os seus efeitos simbólicos sobre os espectadores, objectivos subjacentes ao “novo Trindade”, não poderia ser diminuída pela gratuitidade. Noutra perspectiva, o preço teria que ser adequado aos rendimentos dos grupos sociais a atingir. Como mecanismo de regulação, o enobrecimento social pela cultura ficaria limitado se convivesse com um contexto sócio-económico que contrariasse os seus pressupostos. A política de preços dos espectáculos, não podendo desqualificar um projecto cujas metas apontavam para a requalificação estatutária de determinados grupos sociais, deveria situar-se nos limites do razoável. Contas feitas, a quantia de cinco escudos por espectáculo, depois de alguma aritmética, foi considerada a mais razoável. Serra Formigal explicou: 17. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos É que temos de pensar nas famílias em que o chefe tem que arcar com as despesas de todos os bilhetes, muitas vezes quatro ou cinco. Com tal preço máximo, a despesa pode atingir o limite médio de 20$00, o que é compatível com o nível de vida das classes trabalhadoras. Não podemos esquecer que, embora pareça ridículo o preço máximo de 5$00, ele é o que convém ao nosso operário se queremos realmente “desproletarizar” já que os seus salários ainda orçam, muitas vezes, pelos 30$00 a 40$00 diários, em semanas de seis dias.18

Cinco escudos era o preço da “desproletarização”, palavra que quase resume o objectivo das políticas sociais. No caso do Teatro da Trindade, a tarefa foi confiada a artes consideradas nobres. Os espectáculos “a que as classes trabalhadoras estão mais habituadas”, como o cinema e as variedades, se fizessem parte da programação do Teatro, poderiam ser gratuitos, possibilitando assim alguma vantagem sobre a concorrência. A raridade de um bem cultural, se valorizado socialmente, tornava-o no elemento ideal para o exercício de desproletarização. O cinema e as variedades tinham um mercado alargado com forte participação da iniciativa privada e um controlo político que lhes garantia a idoneidade dos produtos culturais. Nestes casos, o Trindade podia demitir-se da regulação directa dos lazeres. O mesmo já não sucederia com a ópera, o bailado, os concertos e o teatro declamado. Sendo o lucro, nestas actividades, muito incerto, a sua posição estava enfraquecida; o papel subsidiador do Estado ou de outras organizações, como a Fundação Gulbenkian, afigurava-se fundamental para sobreviverem. Este lugar de mercado, inerente quase sempre às exigências de produção envolvidas em espectáculos naturalmente onerosos, tornava os bens culturais mais raros e distintos: situação que também não é alheia à conquista de uma autonomia sobre a procura mercantil, assegurada pelo mecanismo do subsídio. As propostas artísticas do Trindade indicavam que a FNAT entrara em terrenos novos. As suas finalidades não se alteraram, mas o ambiente de diversificação social exigia uma diversificação cultural. O mecanismo de distinção, intrínseco a uma “desproletarização”, dependia de uma análise da situação do mercado de bens culturais. A análise obriga a um olhar diferente sobre a cultura. Processar-se-ia, idealmente, 18. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, pp. 5-6.

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uma fragmentação social distintiva, accionada por dispositivos culturais. O Estado, através da FNAT, iniciou uma dinâmica de democratização cultural, certamente condicionada, suportada por práticas artísticas dominadas por grupos sociais restritos. Possibilitava-se o acesso de classes médias-baixas que, na sua maior parte, seriam constituídas por pequenas burguesias terciarizadas, a bens culturais que lhes eram praticamente inacessíveis.19 O alcance dos objectivos de “desproletarização”, enformados por uma instituição de regulação social como a FNAT, harmonizava-se com a aposta na organização de determinadas actividades culturais socialmente consideradas. Não é possível, no entanto, estabelecer uma separação entre esta aparentemente rígida lógica institucional e as perspectivas e intuitos pessoais do director do Teatro da Trindade. As preferências artísticas de Serra Formigal eram conhecidas por quem assumiu a responsabilidade de o nomear director de um teatro com objectivos sociais muito específicos. Os contornos que caracterizam, de um ponto de vista artístico, o “Trindade de Formigal” relacionam-se com a vontade do director do Teatro de intervir no campo cultural português. Serra Formigal desejava reforçar a sua respeitabilidade no interior deste universo e, de forma muito mais evidente, na estrutura da ópera em Portugal sobre a qual tanto queria actuar.

O Trindade e o meio operático A apresentação pública da Companhia Portuguesa de Ópera acentuou o desígnio nacional da iniciativa. A relação com o público e com a crítica estabeleceu-se pela frase, inúmeras vezes repetida, de que no Teatro da Trindade, por iniciativa da FNAT, se iriam apresentar espectáculos de ópera feitos por portugueses para portugueses. A bandeira da organização estava há muito erguida. Se tal posição se adequava aos desejos da política social da FNAT, a um movimento “democratizador” das práticas culturais, o seu significado no campo musical tinha outras 19. É possível argumentar que o Coliseu, ou a Gulbenkian, mais significativamente no caso dos concertos, dos bailados e da ópera, desempenhavam semelhante função de democratização cultural. A FNAT, aliás, tinha acordos com estas entidades com vista à reserva de entradas destinadas aos seus sócios, nos espectáculos por elas oferecidos. Desde 1959 que a FNAT pôs à disposição dos seus sócios bilhetes para as récitas populares que as companhias que passavam no São Carlos apresentavam no Coliseu. Semelhante colaboração existiu entre a FNAT e a Gulbenkian, especialmente aquando da realização do Festival de Música.

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repercussões, algumas delas também políticas. Os objectivos elencados pelo director do Trindade, ao caracterizar as traves mestras do funcionamento da sua companhia – fazer ópera para os trabalhadores portugueses e apresentá-la em espectáculos representados pelos artistas de teatro lírico nacionais – constituía-se, no panorama operático, como uma ruptura com a situação dominante. Historicamente, e com algumas excepções de permeio, a ópera sempre fora um espaço confiado ao gosto de alguns grupos restritos que rodeavam o Teatro Nacional de São Carlos.20 Os artistas portugueses, grupo escasso e debilmente preparado por sistemas de ensino ineficazes, ficavam quase sempre de fora do palco do único teatro de ópera português. As digressões anuais das grandes companhias de ópera, e das suas vedetas, tornaram-se no principal motivo de atracção do Teatro Nacional de Ópera. O público do São Carlos habituara-se a estes sinais do bom gosto. O Teatro lírico era subsidiado, na sua totalidade, pelo governo, através do Ministério da Educação. A ópera no Trindade ficou afecta ao Ministério das Corporações. O São Carlos, durante o Estado Novo, caracterizava-se por ser um espaço exclusivo, usado como sinal de distinção e feudo de sociabilidade. Reabrira as suas portas em 1940, depois de sete anos de encerramento, com uma nova ópera de Ruy Coelho, D. João IV. As temporadas regulares reiniciaram-se em 1946, sob a liderança de José Figueiredo, director que apenas seria substituído, em 1970, por João de Freitas Branco. A obrigatoriedade do traje de gala e as alterações na arquitectura e decoração assinalavam, aquando da reabertura, a posição solene que o São Carlos passaria a representar na vida cultural portuguesa.21 Mário Vieira de Carvalho acentua a sua função representativa, ritual do culto snob da aparência, “espécie de filosofia nacional”22. Ao contrário das intenções, protagonizadas por homens como António Ferro ou Ruy Coelho, de transformar o Teatro Nacional de Ópera num palco de uma arte nacionalista, o modelo sócio-musical que iria carac20. Mário Vieira de Carvalho, Pensar é Morrer ou O Teatro de São Carlos na Mudança de Sistemas Sociocomunicativos Desde Fins do Séc. XVIII aos Nossos Dias, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maia, 1993. 21. Em 1946, o compositor Luiz de Freitas Branco propôs uma outra forma de estabelecer a relação entre público e comunicação artística: “Na impossibilidade de atingir o esplendor vocal dos italianos, esplendor até hoje não igualado por nação alguma, poderíamos trabalhar no sentido da encenação, fazer espectáculos que valessem pelo estilo e pela interpretação, para o que teríamos a vantagem de um pessoal fixo, vantagem que não têm as companhias estrangeiras, formadas por elementos diversos.” Luiz de Freitas Branco, “Arte Musical”, 25/6/1946, citado por Mário Vieira de Carvalho, ibidem, p. 237. 22. Ibidem, p. 215.

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terizar os espectáculos do São Carlos foi privado de quaisquer efeitos explicitamente ideológicos.23 A sua função resumia-se a uma ornamentalização de um ritual distintivo encenado, no qual os membros do governo não se coibiam de participar, numa prática de estetização da política e propaganda do Estado.24 No Trindade, pelo contrário, a ópera seria dirigida, sobretudo, às classes trabalhadoras. Além do mais, prestava-se um serviço ao subalternizado artista nacional. O projecto do novo teatro de ópera da FNAT nascia, na sua aparência imediata, em ruptura com algumas características prevalecentes no panorama artístico-social que dominava no São Carlos. As relações políticas e artísticas entre o Trindade e o São Carlos não devem, todavia, ser simplificadas. Se os dois espaços serviam, cada qual de modo particular, determinados interesses no interior do regime, esta complementaridade macro-estrutural é espartilhada por lógicas contraditórias que remetem quase sempre para posições sustentadas no ambiente da ópera portuguesa. É impossível decalcar as tomadas de posição inerentes ao universo musical e lírico de intenções políticas e doutrinárias. O meio musical tinha uma inequívoca lógica própria, em especial por ter sido quase sempre tratado como um espaço inócuo do ponto de visto político: um universo que, de certa forma, se auto-regulava. A intervenção da FNAT no campo musical erudito demonstrou, no entanto, um relativo poder transformador. O âmbito da sua acção revelou ainda as tensões existentes entre as várias instituições do regime ocupadas com as manifestações culturais.

Políticas Culturais e objectivos políticos Na preparação da primeira temporada de espectáculos no Trindade, Serra Formigal escreveu ao chefe de repartição da Cultura Popular do Secretariado Nacional de Informação, colocando-o a par da natureza e organização dos eventos que passariam a ter lugar no Trindade e 23. Ibidem, p. 225. No São Carlos, as componentes internas da obra seriam secundarizadas em relação à função social de distinção, inerente aos espectáculos, embora seja impossível separar esta função da predominância de algumas formas líricas sobre outras. O potencial dramático ligado à palavra era especialmente sacrificado; as obras, na expressão de Mário Vieira de Carvalho, encontravam-se «dessemantizadas». 24. Ibidem, pp. 213-254.

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pedindo uma colaboração em várias áreas.25 Quanto ao teatro, Serra Formigal tentava obter um financiamento para a companhia contratada para o Trindade, a partir da verba atribuída todos os anos pelo SNI, através do Fundo do Teatro. Outro assunto respeitava às condições de participação do grupo Verde Gaio na temporada de bailado. Por último, requereu, para a primeira temporada de ópera, um subsídio de 400.000$00. O chefe de repartição da Cultura Popular do SNI, Júdice da Costa, respondeu em 12 de Novembro26, concordando em atribuir apenas a quantia de 140.000$00 mensais ao teatro. Em relação à cedência do Verde Gaio, exigiu o pagamento de 3.000$00 por espectáculo ou, em alternativa, o produto da bilheteira. Um certo mal-estar resultante do teor da resposta do SNI acentuou-se na negociação da participação do Verde Gaio para a temporada seguinte. Dadas as receitas de bilheteira dos bailados terem tido um resultado abaixo das expectativas, o SNI propôs rever a colaboração com o Trindade.27 Serra Formigal alegou que a proposta de 5.910$00 por espectáculo era exagerada e provocava um tratamento discriminatório em relação ao coro do Teatro Nacional de São Carlos. Ao contrário do que o SNI sugerira, o coro fora cedido sem qualquer contrapartida financeira. O director do Trindade considerou que um organismo financiado pelo Estado, como era o caso do Verde Gaio, não devia receber por duas instituições culturais diferentes: (…) os resultados de bilheteira nem sempre foram muito brilhantes, certamente em virtude do número excessivo de espectáculos. Tal facto originou que os componentes do “Verde-Gaio” por vezes e por espectáculo recebessem gratificações muito pequenas e mesmo irrisórias. Porém, dessa circunstância não somos culpados e sempre pensámos que para quem já tem os seus ordenados assegurados, as “bilheteiras” deveriam ser sempre consideradas como uma gratificação ou lembrança.28

Serra Formigal dispôs-se, como última proposta, a substituir a incerta receita dos espectáculos do Verde Gaio pela quantia de 2.800$00 por actuação. 25. Carta de 23 de Outubro de 1962. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”. 26. Carta de 12 de Novembro de 1962. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”. 27. Carta de 6 de Março de 1964. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”. 28. Carta de 4 de Maio de 1964. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”.

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Em Março de 1964, o presidente da FNAT escreveu ao SNI a pedir um subsídio de 670.000$00, para patrocinar a itinerância da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade. Alegava Bento Parreira do Amaral que, dentro das suas possibilidades, a companhia lírica vinha fazendo um verdadeiro esforço de formação de uma “nova cultura popular”. O chefe de repartição do SNI, Manuel Henriques da Silva, apesar de “manifestar o maior interesse pela acção a todos os títulos meritória da FNAT, no sentido de levar os espectáculos de ópera à província”, lamentou a impossibilidade da atribuição do subsídio requerido, pelo facto de ter “o seu esquema de actividade já planeado há muito”29. Em virtude da resposta do SNI, Bento Parreira do Amaral protestou, por carta, junto do ministro Gonçalves Proença: Deverá fazer-se notar que o SNI subsidia todos os espectáculos de revista do parque Mayer, certamente porque entende que aquilo sim, aquilo é que é “cultura popular” e da boa… Para espectáculos do nível e categoria dos que a FNAT apresenta… não há verba. Valha-nos… Santo António.30

O modo de alcançar e transformar a “cultura popular” suscitava divergências no interior das instituições do regime. O Trindade, ao procurar enobrecer a “cultura popular”, pretendia requalificar o público consumidor. O modelo cultural de política social convivia com a lógica populista do SNI, tal como com o contexto elitista do São Carlos. A ideia de uma complementaridade estratégica e funcional entre as forças político-culturais do regime não coexistia com uma solidariedade institucional, o que, no fundo, acabava por condicionar a própria ideia de estratégia. Tal complementaridade é atravessada por interesses paralelos, colectivos ou individuais, que cruzam o universo político, distorcendo a sua aparente linearidade. Os espectáculos do Grupo Verde Gaio, herança de António Ferro, representavam, no panorama do Trindade da FNAT, uma mediação cultural ultrapassada e ineficaz; uma imposição institucional que se vinha mostrando onerosa e conflitual, que não preenchia os objectivos da FNAT quando interveio na “cultura popular”,

29. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 314. 30. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 314.

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e que, além de tudo, não agradava à sensibilidade de Serra Formigal no seu papel de produtor cultural.

O São Carlos e o Trindade A dissensão face às políticas culturais estava circunscrita a um espaço regrado por normas que os agentes envolvidos nestas questões sabiam não poder ultrapassar. Esta realidade é notória nas relações entre o Trindade e o São Carlos. Aparecendo como um projecto que rompia com certos hábitos corporizados pelo Teatro Nacional de Ópera, o Trindade tinha um espaço de crítica residual, embora muitas das pessoas envolvidas, designadamente Serra Formigal, fossem, pela sua posição e ambições no interior do campo artístico, críticos em relação ao estado em que se encontrava a ópera em Portugal. Era impossível, porém, colocar em causa o papel estrutural do Estado, que, afinal, constituía o alicerce que suportava a manutenção, em determinado moldes, de um campo operático nacional. A ópera popular do Trindade dependia das condições técnicas e humanas postas à disposição pelo Teatro Nacional de Ópera. Todos os folhetos, programas, anúncios e notícias sobre os espectáculos referiam a colaboração do Teatro Nacional de São Carlos. A ligação era inevitável, dadas as inúmeras carências que pontuavam um projecto erguido da base, num domínio cultural com óbvias dificuldades de formação de especialistas: o coro pertencia ao São Carlos, ensaiado e dirigido pelos maestros italianos Mario Pellegrini e Carlo Pasquali, que trabalhavam nestas funções desde 1946, passando, a partir de 1963, a exercer, em simultâneo, uma colaboração regular com a Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT. O trabalho de construção de maquetes, cenários e o arranjo de cena e luzes cabia aos cenógrafos Raul Campos e Alfredo Furiga, também eles ao serviço do São Carlos. A dependência funcional do Trindade em relação ao São Carlos impeliu Serra Formigal a fazer circular as suas críticas ao estado da ópera em Portugal apenas nos canais de comunicação inerentes ao fechado círculo de relações próprio do meio. Nas declarações públicas, a relação entre os dois Teatros fazia transparecer uma total harmonia. Foi essa imagem que passou para a opinião pública quando, em 27 de Abril de 63, Serra Formigal 95

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apresentou à imprensa a primeira temporada de espectáculos de ópera. Depois de explicitar o interesse da FNAT em divulgar um género que correspondia tão vivamente ao gosto das classes trabalhadoras31, Serra Formigal referiu o impacte profissional do seu projecto, notando ainda, com alguma ironia, “que o São Carlos tem já dado importantes oportunidades a cantores portugueses, alguns dos quais ali têm tido actuação de assinalado mérito. Mas não ignoramos também que o S. Carlos é o único teatro lírico português, de grandes tradições, com um público exigentíssimo, não podendo, portanto, também abalançar-se a experiências e ‘estreias’ que julgo constituírem função de teatros líricos de menor responsabilidade.”32 Afirmando-se director de um Teatro de Ópera de segunda ordem, Serra Formigal confirmava a subalternidade e dependência funcional, política e simbólica do Trindade. O êxito da primeira temporada de espectáculos reforçou a posição de Serra Formigal como produtor cultural. No relatório de actividades que escreveu em 1964, acerca do modo como se desenrolou o ano de estreia da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT, as suas opiniões sobre o meio operístico nacional, num documento que, com toda a certeza, se limitou a circular entre instituições do regime, revelam uma opinião crítica quanto à situação da ópera em Portugal. Serra Formigal salientava que o Trindade estava a transformar-se, em muitos aspectos, numa verdadeira alternativa ao São Carlos: A acção desenvolvida neste sector foi, segundo nos parece, a mais interessante e difícil, dado as circunstâncias em que se desenvolveu. Na verdade, constituir uma companhia lírica apenas integrada por artistas portugueses para a realização de uma temporada que se processou ao longo de três meses e que constou de 46 récitas, incluindo as do Funchal e Porto, foi um facto inédito entre nós.33

Nos aspectos considerados, o trabalho da sua companhia de ópera era inédito em Portugal:

31. Alguns elementos sobre a Temporada Popular de Ópera e Opereta do Teatro da Trindade referidos pelo director do Teatro à imprensa na reunião efectuada em 27/4/1963, em Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1963, p. 1. 32. Ibidem, pp. 1-2. 33. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 11.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos Em todo o mundo civilizado, os diversos países têm construído as suas óperas nacionais; não me refiro aos edifícios pois que a esse respeito temos um dos mais belos de todo o mundo mas sim à construção do edifício músico-dramático ou seja à constituição de companhias permanentes englobando cantores, maestros e règistas. Esta construção iniciou-se em Portugal em 1963 tudo levando a crer que se desenvolva, complete e institucionalize nos anos que se vão seguir. E a autoria dessa obra transcendente no plano músico-teatral da vida portuguesa, ninguém pode ignorá-lo, é exclusivamente da FNAT.34

Ao estabelecer o ano de 1963 como aquele que anunciou a institucionalização, pela primeira vez em Portugal, de uma companhia nacional de ópera, Formigal fazia uma assinalável crítica ao domínio do São Carlos no campo da arte lírica nacional. Notava-se, no entanto, que o director do Trindade corria riscos, nesta fase precoce do projecto, se ultrapassasse os limites do implícito, do irónico ou do privado. A dependência material e humana da iniciativa do Ministério das Corporações, algo insólita no campo operático, não lhe proporcionava grande margem de manobra. A sua posição como produtor cultural dependia do sucesso do Trindade.

Sobre a sensibilidade para a ópera A mobilização conseguida foi a grande conquista do primeiro ano de espectáculos. O director do Trindade estimou que, na primeira temporada da companhia, tenham assistido aos espectáculos de ópera 45 mil pessoas. O número garantiu-lhe o beneplácito institucional para continuar a desenvolver o seu projecto. O público não foi indiferente ao tipo de proposta cultural apresentada: Este facto veio demonstrar cabalmente o interesse social do empreendimento e a obra de educação das classes economicamente mais débeis que por este meio se pode realizar, educação indispensável para a desproletarização de tais classes, pelo afinamento das respectivas sensibilidades.35

34. Ibidem. 35. Ibidem, p. 12.

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Os resultados confirmaram os benefícios de uma iniciativa bem estruturada, mas que não estava isenta de riscos. Serra Formigal tinha de demonstrar à direcção da FNAT a possibilidade de desenvolver uma política social eficaz, apostando na ópera. A oferta de bens culturais era um mecanismo de regulação típico da FNAT. No entanto, a incursão por terrenos menos habituais, mesmo estando estes ligados a uma intervenção sobre as expectativas de determinados grupos sociais, podia gerar algumas resistências a quem duvidasse da eficácia da estratégia. Serra Formigal aproveitou todas as conquistas deste primeiro ano para salientar a oportunidade do projecto, reforçando a sua legitimidade como alto funcionário da política social do regime e, simultaneamente, a sua autonomia como programador de espectáculos: Num plano cultural das mesmas classes sociais, a conquista parece-me igualmente valiosa, pois que para muitos, neste ano de 1964, nomes que representam glórias da Humanidade, como Puccini, Rossini e Verdi, e outros que são valores nacionais, como Alfredo Keil, Tomaz Alcaide, Álvaro Malta, Hugo Casais, Guilherme Kjölner, Fernanda Machado, Maria Teresa de Almeida, Ana Lagoa, etc, já estão devidamente hierarquizados na escala dos valores em relação aos de Matateu, Eusébio, Simone de Oliveira e outras vedetas do desporto e teatro ligeiro, únicas que tinham verdadeira consagração popular. E isto, parecendo graça, tem muita importância no campo da cultura.36

Ao depender do mercado para promover uma nova “cultura popular”, cumprindo os fins políticos da FNAT, Serra Formigal tinha de acreditar nos seus consumidores. O “português comum”, a quem se dirigiam os espectáculos da FNAT, estava capacitado para apreciar os produtos culturais que ele próprio estimava e desejava institucionalizar num país que ainda estava longe dos “países civilizados”. O Trindade, ao contrário do São Carlos, não podia ser um espaço de exclusão. Se parte importante da cultura política incentivada pelo regime fazia corresponder uma hierarquia social a uma ordem natural das sensibilidades, segundo a qual, por exemplo, o São Carlos se destinava apenas a servir o “bom gosto” de grupos específicos, as camadas sociais a que a FNAT apelava, no interior de um projecto que consistia na divulgação de produtos distintos, não podiam ser caracterizadas pela sua débil sensibili36. Ibidem p. 12.

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dade. As óperas do Trindade, não rompendo com uma hierarquia artística e social, colocavam em causa princípios essencialistas sobre o gosto e a sensibilidade: E há um ponto em que devemos manifestar a nossa opinião. É que não há propriamente, sob o ponto de vista intelectual e em relação ao público geral dos teatros, um “público da FNAT”. A reacção do público do Teatro da Trindade aos diferentes espectáculos que aqui têm sido apresentados demonstra-o cabalmente no seu acerto e adequação tal como acontece com o público do Coliseu em relação ao de S. Carlos no caso das óperas.37

Em matéria de sensibilidade, Formigal considerava que o público do Trindade não se distinguia da audiência das outras duas salas que dominavam o panorama operático lisboeta, o aristocrático São Carlos e o mais popular Coliseu dos Recreios, onde a ópera convivia com outros espectáculos populares, como o circo, transformando a sala num espaço dessacralizado, conhecido pela heterogeneidade do seu exigente público. Embora o Trindade não tivesse ambições comerciais, no sentido financeiro do termo, o facto de ter que conquistar um mercado enquadrava a sua lógica de actuação no âmbito da venda do produto, da divulgação, da popularização. A situação confrontava, neste aspecto, a lógica instituída: Julgo de ser tempo de reconhecer que a intuição e sensibilidade artísticas têm pouco ou nada a ver com o rendimento financeiro das pessoas. (…) É preciso não esquecer que todos os empregados por conta de outrem constituem o tal público especial do Trindade. Em certo sentido, penso que o público do D. Maria ou do S. Carlos é muito mais “especial”. Pelo menos neste último teatro, tenho ouvido opiniões sobre ópera verdadeiramente “especiais”, o que não acontecia quando frequentava a “geral” do Coliseu em espectáculos da mesma natureza.38

O Público As características do público que frequentou as temporadas de ópera no Trindade foram-nos descritas por Celeste Martins, bilheteira do Teatro

37. Ibidem, p. 13. 38. Ibidem, p. 13.

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da Trindade, e pelo próprio Serra Formigal. O director do Trindade elaborou na altura um pequeno inquérito. Os espectadores eram convidados a preencher fichas de caracterização que atendiam especialmente à sua inserção profissional.39 A maior parte, segundo Celeste Martins40, era constituída por empregados de escritório, empregados de balcão e de estabelecimentos vários, embora também houvesse médicos e engenheiros. Serra Formigal confirmou41 a predominância de empregados de escritório, funcionários públicos e também dos tipógrafos, acrescentando que “o Teatro da Trindade era um teatro de divulgação popular, sobretudo destinado às classes que tinham um bocadinho de médias, à classe média baixa e aos que quisessem vir. Operários? Encantado da vida, ainda não vinham assim muitos, lá foram alguns.”42 Serra Formigal relatou ainda o modo como informou o Ministro Gonçalves Proença da sua intenção de colocar os preços dos bilhetes a cinco escudos: A maior parte desta gente não está habituada a ir à ópera… Se eu puser ópera a trinta mil reis ou quarenta, o “Zé” lê aquilo: Quarenta paus, ópera? Isso é uma grande chatice, não vou. Depois vai para o Trindade, depois o taxi, os transportes não são fáceis, não vai. Mas se puser a cinco mil reis, é capaz de ir. Lê aquilo e diz: isto não presta, mas vamos lá a ver. E vai. E se for e gostar, volta. E assim foi. No primeiro ano esteve sempre cheio.43

O depoimento de Celeste Martins possibilita a compreensão de determinados rituais que envolviam a sociabilidade no teatro. À substância das categorias profissionais acima indicadas é acrescentada uma descrição dos hábitos e práticas que as caracterizavam. Ao enobrecimento da cultura popular era inerente a tentativa de distanciar um público específico, com aspirações sociais ascendentes, as tais classes médias baixas, de algumas ligações proletárias que não convinha ver reforçadas. O sucesso dos espectáculos da Companhia de Ópera do Trindade foi um indício claro da prossecução deste objectivo. Entre o público do Trindade era possível encontrar alguns melómanos do São Carlos, que não perdiam um espectáculo e que frequentavam 39. Não foi possível aceder às fichas de caracterização do público. 40. Entrevista a Celeste Martins (2001). 41. Entrevista a José Serra Formigal (2001). 42. Ibidem. 43. Ibidem.

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também o Coliseu. Mas grande parte da sala de espectáculos estava preenchida com novos frequentadores, atraídos pelas vantagens oferecidas pelos espectáculos da FNAT. É perceptível, na entrevista de Celeste Martins, que a ópera foi uma opção eficaz da política cultural da FNAT, accionando, entre indivíduos de determinados grupos sociais, os desejados mecanismos de distinção social. No Trindade procurava-se viver a democratização da ópera e das suas funções rituais: Havia muito entusiasmo porque havia muita gente que vinha aqui e que conhecia as óperas de ouvirem bocadinhos na telefonia. Havia muita gente que nunca foi a S. Carlos, para elas isto era um deslumbramento, até porque o teatro era muito bonito, era um deslumbramento. Às vezes perguntavam-me se era preciso vir de vestido comprido. Eu respondia que não porque era uma ópera para trabalhadores e não era obrigatório virem com as peles. Também perguntavam se vinham de gravatinha e eu dizia que desde que viessem compostos, não era necessário vir de lacinho. (…) Ao princípio fazia-lhes muita confusão porque estavam habituados a ver as récitas no S. Carlos, havia pessoas que iam mesmo ver a entrada do público, com vestidos até aos pés, com as suas jóias, as suas peles, então quando nós começámos aqui, as pessoas ficaram uma bocado desconfiadas se iria ser como no S. Carlos, muita gente pôs isso em questão. Mas explicava-se que era ópera para trabalhadores, podem vir compostos sem ser preciso trazer peles, se não as tiverem, se as tiverem, que as tragam e as exibam. (…) As pessoas tinham o cuidado de vir bem arranjadas, mas nada de grandes exageros, porque também não tinham. Então às vezes via-se que as pessoas ficavam receosas, com vontade de virem mas, ao mesmo tempo, com receio de não se sentirem bem ao pé das outras pessoas, porque quem tinha, trazia. Claro que uma ida à ópera é sempre uma ida à ópera, mesmo sendo para trabalhadores e via-se que o público que ia para a galeria ou para o balcão de terceira, se sentia tímido perante os outros.44

Os espectáculos de ópera no Trindade eram momentos de forte sociabilidade em que se realizava uma espécie de performance social, negociada de acordo com a percepção que os elementos do público teriam acerca do comportamento correcto a representar naquela situação. Os contornos desta representação seriam, na maior parte dos casos, o resultado de uma interpretação de imagens irradiadas por grupos de referência, aqueles que habitavam a mundanidade do Teatro de São Carlos. O contacto com um produto artístico pertencente a uma cultura dominante 44. Entrevista a Celeste Martins (2001).

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solidificava determinadas trajectórias sociais. O espectáculo em si secundarizava-se, passando a ser um pretexto para exibir um novo estatuto social. Cumpriam-se as finalidades da FNAT. Compreende-se, assim, o fascínio pelas estreias, momentos de ajuntamento de notáveis: “(…) a pessoa que não arranjasse bilhete para a estreia já não vinha, porque sabia que naquele dia lhe interessava vir, porque via o Sr. Fulano, o Sr. Sicrano.”45 O Trindade criou um público fiel, presença assídua ao longo das temporadas. As suas preferências passavam, sem dúvida, pelos grandes clássicos da ópera italiana que conheciam pelas passagens mais famosas. A familiaridade auditiva e o fausto visual faziam os encantos de um público deslumbrado com o espectáculo de ópera apresentado no seu formato mais tradicional. As demonstrações de agrado suscitadas pela generalidade dos espectáculos originaram alguns reparos por parte da crítica especializada. Havia uma inadequação do comportamento dos espectadores em relação a limites sociais e artísticos que definiam, segundo o espectador mais “culto”, a interacção numa sala de espectáculos de ópera. O choque entre determinado ethos artístico cultivado, produzido pelo próprio meio, e um modo de participação no espectáculo que estaria mais próximo de manifestações culturais de natureza popular, é visível no decorrer da descrição das temporadas, apresentada mais adiante.

Enobrecer a cultura popular A intenção do director do Trindade de “elevar” o nível da cultura popular foi igualmente notória nas outras realizações que completaram a primeira temporada do Teatro da Trindade. Os concertos sinfónicos, comentados por João de Freitas Branco, e contando com alguns dos solistas portugueses46 mais conceituados, foram um sucesso de público e de crítica. O director do Trindade resolveu ainda, apesar de tal iniciativa não constar do plano inicial por si apresentado ao presidente da FNAT e ao Ministério das Corporações, organizar um conjunto de quatro 45. Entrevista a Celeste Martins (2001). 46. Nesta primeira temporada, Vasco Barbosa (violinista), Maria Manuela Araújo, Fernanda Wandschneider e Nina Marques Pereira (pianistas), Maria Teresa de Almeida, Maria Cristina de Castro, Ana Lagoa, Álvaro Malta, Hugo Casais e Fernando Serafim (cantores). Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, pp. 13-14.

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concertos de câmara com a colaboração do Quarteto de Lisboa47 e do Trio de Lisboa48. Apesar da recepção crítica ter sido muita generosa, a iniciativa não atraiu o público. Estas circunstâncias desfavoráveis não demoveram Serra Formigal de continuar o esforço: Dada a alta categoria desta música e a possibilidade que sinto dela ser apreciada e amada pelo público uma vez conhecida e destruindo o preconceito de intelectualismo e portanto aborrecimento que a tem cercado, sobretudo devido à sua falta entre nós, julgo que deverá insistir-se na organização de concertos semelhantes, pois vale a pena o sacrifício financeiro e até moral de ver casas com tão pouco público para tão boa música, com a esperança fundada de que se continuarmos a dá-la, o público acabará por acorrer em maior número.49

Apesar de o público não ter aderido a alguns espectáculos, Serra Formigal defendeu a sua continuidade, pela riqueza cultural que proporcionavam. A intenção de nobilitar a “cultura popular”, especialmente a mais urbanizada, alargou-se ao espectáculo que, até à data, tinha sido mais banalizado pela FNAT. As “variedades”, de que os serões para trabalhadores, popularizados pela transmissão radiofónica, constituíam o ponto alto, sofreram também uma alteração cosmética: Os espectáculos que se realizaram nesta modalidade obedeceram à ideia de uma renovação do género entre nós, de forma a aproximarmo-nos mais das “varietés”, normalmente apresentadas no estrangeiro e que, como se sabe, constituem uma diversão que reúne números de várias espécies e não como entre nós é hábito, um desfile de cançonetistas que por não as termos em quantidade, de real valor, resulta muitas vezes maçudo e insípido.50

Desta forma, sem inviabilizar a vertente mais popular, mas apresentando o que considerava de melhor nessa categoria – Alice Amaro, Mara Abrantes, João Maria Tudela –, o director do Trindade introduzia “um número de características elevadas que pudesse ao mesmo tempo ser recreativo e cultural, numa aspiração de elevação do espectáculo”. Entre os ginastas, prestidigitadores e palhaços, surgia Lurdes Norberto a recitar poesia, números de bailado clássico, o Grupo de Fernando 47. Constituído por Antonino David, Mário Camerini, François Broos e Chaterine Heinz. Ibidem, p. 14. 48. Formado por Leonor de Sousa Prado, Nella Maissa e Pedro Corostola. Ibidem. 49. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 15. 50. Idem, p. 15.

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Pessoa, ou o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Almeirim, todos, segundo o próprio Formigal, muito saudados pela assistência: “os maiores aplausos foram sempre recolhidos pelos números de carácter mais elevado ou de sabor genuinamente popular.”51 Serra Formigal relevava os produtos culturais “genuinamente populares”, no sentido da tradição, da pretensa autenticidade da cultura do povo, e ainda os números de “carácter elevado”, substância de uma nova cultura popular urbana, que o director do Trindade desejava se impusesse a um conjunto de produtos provenientes de uma cultura massificada, cinematográfica, radiofónica, televisiva, que, durante os anos 60, propulsionada pelos meios de comunicação social, ia entrando em Portugal.

O Caso Ruy Coelho A constituição de uma Companhia Portuguesa de Ópera suscitou algumas reacções importantes, quer musicais, quer políticas, isto se for possível, no caso presente, estabelecer uma clara linha divisória. Não havia dúvida de que o director do Teatro da Trindade fora escolhido para este cargo porque as pessoas responsáveis por essa opção, tanto na FNAT, como no Ministério das Corporações, conheciam as suas competências nos assuntos musicais e artísticos, a sua boa movimentação no meio e a relação que mantinha com os seus diversos agentes. No entanto, Serra Formigal era também um homem de confiança política, com uma carreira firmada na máquina corporativa e conhecedor profundo da problemática das políticas sociais. Foi a esta posição política que ficou a dever a possibilidade de construir um espaço de cultura feito à sua medida. O projecto do Trindade, nascido da base, veio criar uma estrutura de oportunidades significativa para uma série de interesses que encontraram na iniciativa estatal um possível espaço de realização profissional. O modo como a FNAT se preparava para reconfigurar as posições do campo operático revelar-se-ia fundamental para um conjunto de percursos artísticos. No contexto musical português, o poder do director do Trindade era assinalável e apetecível. 51. Ibidem, p. 15.

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Os maiores obstáculos à formação da Companhia Portuguesa de Ópera irromperam de sensibilidades afectas ao universo cultural do Estado Novo. O maior protagonista desta oposição veio a ser aquele que desde os primeiros momentos foi o compositor protegido do regime: Ruy Coelho. Com afinidades pessoais com alguns membros do grupo modernista do Orfeu, Ruy Coelho nunca se aproximou esteticamente de qualquer vanguarda.52 A proximidade com António Ferro concedeu-lhe, porém, uma posição no meio musical erudito. As suas ligações políticas deram-lhe a honra de reabrir o São Carlos, em 1940, apresentando a ópera D. João IV. A partir do momento em que o Teatro Nacional de Ópera passou a organizar temporadas internacionais, em 1946, Coelho viu as suas obras serem apresentadas com regularidade no mais nobre espaço lírico do país. Apesar da sua relevância, a defesa acérrima de uma arte nacionalista nunca vingou no meio musical português, muito pelo facto de o regime não encontrar na música erudita um instrumento preferencial de propaganda. Ruy Coelho nunca conseguiu chegar a director do São Carlos e a sua posição no campo era combatida em várias frentes. Conheciam-se as suas divergências com a família Freitas Branco, especialmente devido às polémicas travadas com o compositor Luiz de Freitas Branco. Noutro campo de batalha, o compositor Fernando Lopes-Graça foi um feroz adversário de Coelho, tanto do ponto de vista estético como do político. A discussão acerca do modelo artístico do Trindade foi apenas o motivo apontado por Ruy Coelho para demonstrar o seu desagrado pelo facto de tão importante iniciativa estatal dispensar os seus serviços. O conflito não se resumia à oposição entre dois homens mas, sobretudo, ao confronto das lógicas que eles representavam, política e artisticamente. Quando José Serra Formigal conseguiu, através da FNAT, o apoio estatal para construir, desde a base, uma Companhia Portuguesa de Ópera, Ruy Coelho insurgiu-se contra o tipo de proposta apresentada. A contenda ficou-se pelas instituições ministeriais, bem longe do público.53 Em 3 de Março de 1963, ainda antes do início da primeira temporada de espectáculos, Ruy Coelho escreveu uma carta ao ministro das 52. Mário Vieira de Carvalho, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Relógio D’Água, Lisboa, 1999, p. 176. 53. Os documentos que retratam esta querela – um conjunto de cartas – estão agrupados no Arquivo do antigo Ministério das Corporações, hoje Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, num envelope destacado, pertencente à pasta 313, em cuja face se encontra escrito “O Caso Ruy Coelho”.

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Corporações, Gonçalves Proença. O assunto prendia-se com a escolha da ópera A Serrana, de Alfredo Keil54, para representar a ópera nacional na primeira temporada de espectáculos. Discordando da opção, Ruy Coelho indignava-se com o facto de as suas óperas terem sido preteridas por uma obra do século xix, escrita e cantada em italiano.55 Fora a sua Inês de Castro a primeira ópera cantada no nosso país em língua portuguesa, no já distante ano de 1927. Mas o afastamento das suas óperas representava mais do que uma simples ofensa pessoal: (…) excluindo as Óperas Portuguesas que foram criadas nos últimos quarenta anos, e dando só a Serrana de 1899, vai criar no espírito dos trabalhadores da FNAT a lição falsa e errada de que em 30 anos da política do espírito, não se criou Arte Nacional, desmentindo grosseiramente a afirmação feita pelo Secretariado Nacional da Informação, com a Exposição “30 Anos de Cultura Portuguesa.”56

Para “estabelecer a verdade da cultura portuguesa”, Ruy Coelho propôs que fossem incluídas de imediato na programação do Trindade as óperas de sua autoria, Rosas de Todo o Ano, Crisfal e Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, que, segundo a sua opinião, eram o elemento acabado da ópera do regime. Para enquadrá-las numa programação já organizada, Coelho propôs que se reduzisse de dez para oito o número de apresentações das outras três óperas e da opereta A Canção do Amor. Os termos do protesto de Ruy Coelho, demonstrativos da importância que atribuía a si próprio no interior do panorama do teatro lírico nacional, além de representarem a imposição de uma orientação artística, foram blindados por uma argumentação que os legitimava à luz de alguns princípios doutrinários do regime. A Coelho escapava, porém, que este tipo de argumentação era inoperante quando confrontado com os contornos políticos que delimitavam as actividades do Trindade da FNAT. A posição e opções de Serra Formigal estavam salvaguardadas por mecanismos de legitimação pouco sensíveis à retórica nacionalista e interventora de Ruy Coelho. O Trindade, antes de ser um projecto cultural do regime, constituía-se como um eixo da sua política de ocupação 54 .Alfredo Keil (1850-1907) Compositor e pintor. Foi o autor de A Portuguesa, que se viria a tornar no hino nacional. 55. Carta de Ruy Coelho dirigida ao ministro das Corporações, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 1. 56. Ibidem, p. 3.

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de tempos livres. Serra Formigal, no entanto, estando ciente da contradição inerente ao discurso de Ruy Coelho, sabia que, por diversas razões, não era producente incompatibilizar-se com um compositor que ainda mantinha algum peso institucional. Inteirando-se do conteúdo da carta de Ruy Coelho, provavelmente por comunicação do próprio Ministério das Corporações, o director do Trindade respondeu através de uma “informação” expedida 15 dias depois. Com esta resposta, Serra Formigal pretendia justificar o afastamento do compositor, rejeitando, ao mesmo tempo, as implicações políticas por ele sugeridas. O primeiro argumento esgrimido infirmava a unanimidade que rodeava o compositor, sugerindo-se que Joly Braga Santos (1924-1988), esteticamente mais moderno que Coelho, se aproximava mais do ideal de compositor do regime: “Braga Santos é um compositor gerado na vigência desta situação política, o que não aconteceu com o Sr. Ruy Coelho, e, assim, teria, no ponto de vista em que este compositor se situa, ainda mais razão para reclamar. Mas nenhum outro compositor fez qualquer reclamação.”57 Afirmando, em tom irónico, que a presença num teatro modesto como o Trindade não poria em causa uma obra já tão conhecida pelo público e pela crítica, Formigal adiantou que não percebia como este suposto afastamento poderia ser um atentado contra a “Situação”. O projecto do Trindade prosseguia o caminho da “política do espírito”, empresa não redutível a proezas individuais: Mas principalmente, parece-me que os factos são apreciados numa óptica errada se se confundir a política de espírito dos últimos trinta anos com a pessoa do Sr. Ruy Coelho. […] Sem dúvida que o Sr. Ruy Coelho devia considerar que esta nova realização da FNAT é mais uma afirmação de política de espírito de que o signatário não é mais do que um executor mas, afinal, parece que só assim poderia pensar desde que o seu nome constasse do cartaz, o que sinceramente lamento.58

De forma diplomática, ficava legitimado o afastamento de Ruy Coelho. Formigal, referindo que “não se pretende lançar ao ostracismo o Sr. Ruy Coelho”, julgou-se por bem organizar um “reportório atendendo 57. Informação de Serra Formigal a propósito da carta de Ruy Coelho para o Ministério das Corporações, 18/4/1963. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 6. 58. Ibidem, p. 8.

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a determinados critérios objectivos que poderão não ser os melhores mas que assim se afiguram a quem teve de decidir e que, além disso mereceram a concordância não só do Teatro Nacional de S. Carlos como a superior aprovação de Vossa Excelência.”59 Serra Formigal construía, com o apoio do Ministério das Corporações e a necessária dependência do São Carlos, a sua legitimidade política e artística. O Trindade apresentava-se como um novo representante da “Política do Espírito”. Esta tinha, porém, bases de “espiritualização” necessariamente diferentes. A discussão entre Serra Formigal e Ruy Coelho permite vislumbrar a oposição entre dois modelos culturais vinculados a intervenções políticas distintas. A explicação do director do Trindade para justificar a escolha do reportório, nomeadamente quanto à opção de A Serrana para a primeira temporada de espectáculos, em detrimento das óperas de Ruy Coelho, possibilita esclarecer o processo de comunicação artística idealizado para o Trindade. Salientando que o modelo popular do Teatro corporativo, tão fundamental para a valorização dos artistas portugueses, fora “bem aceite pela direcção do Teatro Nacional de S. Carlos, teatro com o qual esta obra é feita em colaboração”60, Formigal justificava a sua escolha, afirmando que a selecção do reportório atendera a “dois factores: que as obras fossem ao mesmo tempo de fácil apreensão pelo público, ou seja, de gosto popular e que facultassem aos cantores o possível luzimento.”61 As óperas seleccionadas correspondiam ao padrão indicado: Quanto ao “Barbeiro de Sevilha” e “Bohème”, parece não haver quaisquer dúvidas de que são obras que o público de todo o mundo de há muito consagrou e constituem alimento músico-dramático de vastas camadas populares. São obras obrigatórias de todos os repertórios e de todos os elencos. A opereta “Canção do Amor”, servindo-se de melodia de Schubert e romanciando um episódio da sua vida, tem qualidade musical e chama simpàticamente a atenção do público menos culto para a figura daquele grande compositor.62

A escolha de uma opereta, género considerado menor, exigiu de Formigal uma justificação mais prolongada: “A mistura de ópera e opereta 59. Ibidem, p. 5. 60. Ibidem, p. 1. 61. Ibidem, p. 1. 62. Ibidem, p. 2.

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(não na mesma noite, claro) faz-se lá fora em teatros categorizados cantando e representando opereta grandes artistas… pelo que penso que este facto não poderá ofender, entre nós, nem a música nem o gosto do público.”63 A defesa da opção A Serrana seguiu o mesmo juízo argumentativo: Não se dirá que “A Serrana” seja a melhor ópera portuguesa, mas julgamos não estar longe da verdade ao afirmarmos que é aquela que mais tem concitado o aplauso das camadas populares. As representações a que assistimos, designadamente no Coliseu dos Recreios assim o demonstraram. Nunca faltam nem público nem aplausos desde que o desempenho seja suficiente; o assunto muito português, o libreto com interesse dramático, a música de cariz popular de inspirada linha romântica e melódica, os bel-coros, levam a uma adesão fácil e proveitosa para a arte lírica por parte dos que não estão iniciados nem familiarizados com linhas de evolução estéticas mais modernas. Papini representará, talvez, o sentir geral do público médio de ópera – é sabido que tal público é regra geral conservador nos seus gostos – quando afirma que, na ópera, prefere beber sempre o vinho velho embora por odres novos.64

As características formais que tornavam A Serrana, à semelhança das óperas do património romântico clássico, uma ópera ideal para responder com eficácia aos objectivos sociais da FNAT, correspondiam a um modelo estético concebido para suscitar a adesão do público. As obras de Ruy Coelho não preenchiam este desígnio. Na sua retórica, Serra Formigal afirmava que Coelho era um autor demasiado moderno, de difícil relação com o público, e cuja obra devia ser apreciada por públicos mais selectos: Claro que esta é uma opinião [sobre A Serrana] que, artisticamente e num plano de elites musicais, não terá validade mas não podemos ignorar as preferências dos públicos médios e populares pelas óperas “românticas”, numa iniciativa que tem necessàriamente de conquistar a adesão do público a que se dirige e portanto ir ao encontro dos seus gostos.65

63. Ibidem, pp. 3-4. 64. Ibidem, p. 4. 65. Ibidem, p. 4.

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O património romântico do século xix, especialmente o italiano e o francês, foi a fórmula indicada para o director do Trindade chegar ao mercado. Era também a tradição musical mais adequada às capacidades interpretativas dos cantores portugueses. Neste âmbito, ocorreu uma sobreposição quase ideal das metas da FNAT e de uma prática empresarial europeia cuja produção, embora renegada por algumas elites, se aproximava do gosto de Serra Formigal: E não se diga que a ópera do século xix não tem qualidade artística já que ela constitue ainda a parte mais vultuosa em todos os repertórios dos principais teatros do mundo. Por isso preferimos, nesta primeira temporada, a “Serrana” a uma ópera portuguesa de autores contemporâneos, integrados necessàriamente em estéticas mais modernas mas também menos apreensíveis para quem toma os primeiros contactos com a arte lírica.66

Não seria a “modernidade” de Coelho que incomodava o director do Trindade. Além de não apreciar, em larga medida, a obra do compositor, o modelo de comunicação que esta subsumia chocava com o projecto da FNAT. O Trindade foi pensado como um espaço de cultura recreativa para compensar as aspirações sociais dos seus espectadores e não um local de doutrinação nacionalista.67 A obra de Coelho não cabia ao lado das grandes óperas românticas do século xix, património músico-dramático que permanecia, nos seus momentos mais grandiosos, na memória sensível do público. Desta correspondência com a sensibilidade do público dependia a eficácia ideológica da iniciativa cultural.

Os limites do espectáculo corporativo: as actas do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade A comunicação músico-teatral que enformou as temporadas de ópera do Trindade representava uma opção entre várias alternativas. Serra Formigal explicara as condições da sua proposta. Do ponto de vista for-

66. Ibidem, pp. 4-5. 67. Lógica que, como afirmámos, nunca foi preconizada pelo regime.

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mal, a escolha do grande reportório romântico do século xix garantia a compatibilidade com um determinado gosto comum. A virtude da opção descartava outras hipóteses incompatíveis com as atribuições do Trindade, um teatro de ópera financiado pelo Ministério das Corporações. O modelo de espectáculo proposto, a origem artística e natureza da obra, a sua concepção cénica e a língua em que era transmitida, harmonizavam-se com os objectivos da instituição que os sustentava, não sendo, deste modo, necessária uma preocupação censória com o produto e a encenação. Os promotores do Trindade optaram por um modelo operático que não implicava, como convinha à FNAT, a exteriorização de uma censura política e formal. A preferência ajustava-se aos desejos da maior parte do público, aos reais interesses dos cantores portugueses, e aos gostos sinceros dos próprios organizadores. No entanto, se na ópera o modelo sócio-comunicativo permitia aceitar a prática censória, a organização das temporadas teatrais exigia outras cautelas. O teatro era a arte do texto verbalizado, encenado e apresentado ao público português na língua portuguesa. No Plano Geral de programação da primeira temporada de espectáculos, Serra Formigal estabeleceu que o teatro seria uma prioridade: “Julgamos que o teatro, pela função social que representa, deve ter o primeiro lugar no que se refere à extensão da respectiva temporada.”68 A função social a que Serra Formigal se referia relacionava-se com a natureza pedagógica e didáctica da arte dramática, instrumento útil em determinadas circunstâncias, mas muito problemático se a sua mensagem não fosse controlada. O teatro era um foco de preocupação, desde as peças representadas nos grandes espaços urbanos à enorme rede de pequenos teatros amadores e populares que interessava laborassem dentro de um registo inofensivo. O teatro discutia-se em jornais e revistas. A evolução das técnicas teatrais, o papel do dramaturgo, do encenador, dos actores, dos empresários, suscitava uma discussão que, quase sempre, redundava na função social da arte dramática. Como as temporadas de teatro no Trindade foram concessionadas a uma companhia externa, Serra Formigal decidiu criar um Conselho Consultivo para discutir as peças levadas à cena. Esta prática censória, eufemizada pelo nome institucional atribuído ao conselho, consultivo, 68. Serra Formigal, Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, Arquivo Serra Formigal, 1962, pp. 6-7.

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não significava que Formigal abdicasse de apresentar obras que, dentro dos critérios institucionais, se considerassem representantes de um “bom teatro”. As actas dos três primeiros anos de trabalho da direcção do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade revelam os critérios que enformavam a opção artística dos promotores das temporadas de espectáculos. As condições políticas e formais impostas à arte dramática foram a expressão visível dos contornos intransponíveis da política corporativa seguida no Trindade. O conteúdo das actas expõe ainda os limites temáticos e formais impostos a todos os tipos de espectáculos. A lógica selectiva do Conselho Consultivo foi atravessada por algumas das contradições inerentes a todo o projecto do Trindade. Não é justo caracterizar este Conselho exclusivamente pelo seu carácter censório. O grupo de notáveis que julgava as peças propostas pela companhia de teatro, à qual a concessão do Trindade estava atribuída, procurava reunir o interesse institucional com a preocupação de apresentar espectáculos de “nível elevado” que conseguissem suscitar o interesse do público da FNAT. As apreciações dos membros do Conselho são a expressão destas contradições. A opinião de Serra Formigal, no papel de mediador entre uma posição artística que partilhava com os outros membros do Conselho e as obrigações impostas pela lógica política e social da FNAT, revelou-se bastante significativa. A reacção negativa da crítica especializada a O Milagre da Rua, comédia dramática popular de Costa Ferreira, sugeriu ao director do Trindade, no relatório que apresentou à direcção da FNAT acerca do primeiro ano de espectáculos, algumas considerações sobre as responsabilidades particulares da sua iniciativa: Estas reacções da crítica evidenciam um dos problemas mais difíceis em toda a exploração do teatro, ou seja, a escolha das peças. Se a peça é elevada do ponto de vista literário e dramático, logo aparecem os críticos que a consideram inviável para o “público da FNAT”; se a peça tem características mais populares, então a FNAT não está a cumprir a função de divulgação cultural que lhe incumbe; finalmente, se a peça trata problemas de maior profundidade moral, psicológica ou político-social, surge então o problema de poder ser perigosa.69

69. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, pp. 8-9.

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O “bom teatro” defendido por Serra Formigal resultava de uma natural filtragem: Claro que toda a regra tem excepção e que no meio é que está a virtude, e assim julgo que, com exclusão de peças especialmente vanguardistas e herméticas ou ainda política e moralmente desaconselháveis, a preocupação que nos deve nortear na escolha das peças deve basear-se num critério amplo e ecléctico.70

A 9 de Novembro de 1962, reuniram-se, no Gabinete do Director do Teatro da Trindade, José Serra Formigal, presidente do Conselho Consultivo, e os vogais, Domingos Mascarenhas, Orlando Vitorino e Afonso Botelho.71 Registe-se a ligação de alguns destes elementos, entre os quais se inclui o próprio Serra Formigal, ao chamado grupo da Filosofia Portuguesa72. O critério do eclectismo condicionado pela depuração política e formal foi assumido na primeira acta do Conselho Consultivo. Era sua tarefa apreciar, “não só o valor literário e dramático das peças, mas também a sua adequação para o público especial a que se destinam.”73 A análise colectiva a que foram sujeitas as peças da Companhia de António Couto Viana, à qual fora atribuído o subsídio do SNI e, consequentemente, a concessão do espaço do Trindade, exigia uma harmonização dos referidos critérios. A peça Os Gladiadores, de Alfredo Cortez, foi considerada “demasiado epocal e com dificuldades de compreensão para o público constituído pelos beneficiários da FNAT.”74 Foi indicada, em sua substituição, o Oiro, peça do mesmo autor, que se adequava pelo “sentido construtivo no plano moral que é apresentado de forma clara, e, portanto, acessível à generalidade do público.”75 O Con70. Ibidem, p. 9. 71. Afonso Botelho, licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, ensaísta filosófico, um dos teóricos da filosofia da saudade, dramaturgo, apoiante da causa monárquica; Orlando Vitorino, licenciado em Ciências Histórico-filosóficas pela Faculdade de Letras, filósofo e dramaturgo; Domingos Mascarenhas exerceu as funções de crítico cinematográfico na Emissora Nacional, entre outras actividades culturais. Saragga Leal, vice-presidente da Junta de Acção Social, e Beker da Assunção, chefe da repartição de Programação da Emissora Nacional tornam-se membros permanentes do Conselho Consultivo em 1964. Acta n.o 7 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 24/4/1964, p. 1. 72. O Grupo da Filosofia Portuguesa formou-se a partir da obra O Problema da Filosofia Portuguesa, publicada em 1944 por Álvaro Ribeiro. Deste resultou um diálogo com Eduardo Salgueiro sobre os fundamentos de uma “filosofia portuguesa”. Este diálogo alargou-se na década de 1950 e 1960 a pensadores como António Quadros, António Telmo, Pinharanda Gomes, Afonso Botelho, Orlando Vitorino ou António Braz Teixeira. 73. Acta n.o 1 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 1. 74. Ibidem, p. 1 75. Ibidem, p. 1.

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selho recomendou ainda O Crime, de Francisco Ventura: “Apresenta uma estrutura dramática susceptível de proporcionar um espectáculo com emoção e de comunicabilidade com a sensibilidade do público, defendendo bons valores familiares e sociais.”76 A discussão acerca de Os Tecelões, de Hauptmann77, peça do teatro naturalista, elucida acerca de outros limites que o Trindade não podia ultrapassar. A obra debruça-se sobre um “conflito entre operários e empresas apoiadas pelo governo”. Apesar do seu “inegável significado histórico-teatral”, considerou-se que “o conflito de que trata exige, da parte do espectador, uma transposição cultural para se adequar à actualidade; o clima e a forma como o tema é conduzido, além das dificuldades de realização determinadas pelo grande número de personagens, desaconselham a representação desta peça e sobretudo a transposição cultural que o conflito exige do espectador é difícil de obter e presta-se, antes, a um entendimento que pode ser indesejável.”78 A transposição da temática das obras para a actualidade social e política – algo que poderia ser feito através da encenação – devia ser evitada a todo o custo. Este princípio era aplicável a qualquer tipo de espectáculo. No caso da ópera, não seria apenas o problema da conquista do público que levou à exclusão de certo património contemporâneo, mas, com toda a certeza, o modo como determinadas obras pretendiam reverter o espectador para o seu quotidiano.79 A função pedagógica do teatro, e da arte em geral, admitia, para uma boa expressão da vivência corporativa, a encenação do conflito, desde que o “bem e o mal” estivessem devidamente identificados80, e que o epílogo conclusivo expressasse com clareza de que lado estava a razão. Agnes Bernauer, de Hebbel, narra “uma tragédia em que o conflito é a oposição entre os interesses do Estado e as razões do amor.” Embora os motivos que justificaram a rejeição da peça fossem logísticos, a descrição 76. Ibidem, p. 2 77. Gerhart Hauptmann (1862-1946), poeta e dramaturgo alemão, com acentuada tendência socialista. Foi Prémio Nobel da Literatura em 1912. 78. Acta n.o 2 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1. 79. Tome-se o exemplo das encenações das peças da dupla Bertold Brecht/Kurt Weil. 80. Acta da segunda reunião do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 1. Preparando a temporada de 1964, o Conselho irá considerar a peça Uma Rapariga Moderna, de Francisco de Azevedo, muito apropriada para subir ao palco do Trindade, já que “possui numerosos motivos que a recomendavam, pois tinha um nível artístico e literário aceitável, era completamente representável e oferecia especiais recomendações pelo aspecto social da sua intriga que defende e propugna a responsabilidade do patronato nos problemas do trabalho.” Acta n.o 6 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 5/2/1964, p. 1.

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do enredo evidencia que o conflito entre o “Estado” e o “amor” não era adequado a um teatro que fazia do entendimento entre o “Estado” e a “alegria” o seu princípio fundamental. É visível o esforço do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade para justificar a recusa das peças com outros critérios que não apenas os políticos e doutrinários. Cocktail-party, de T.S. Elliot, também não sobreviveu, pelo facto de a “linguagem da peça, pela sua subtileza” ser de “difícil apreensão para um público a iniciar no teatro, o que ainda torna menos explícitas as ideias nela expostas.”81 Estas ideias eram transmitidas por um tema central que se desenvolve “na boa sociedade britânica através de dois adultérios que não são suficientemente explicados nem condenados.”82 Na preparação da temporada de 1963, a peça O Homem do Quiosque de Tomaz de Figueiredo, proposta ao Conselho por Afonso Botelho, foi rejeitada por Serra Formigal. O director do Trindade repete argumentos anteriores: (…) devido precisamente ao carácter cultural e estèticamente vanguardista que possui, causaria decerto estranheza ao público habitual do Trindade; seria, por isso, mais conveniente aguardar o prosseguimento das actividades culturais da FNAT até ao momento em que esse público já esteja preparado para se lhe poderem apresentar, com proveito artístico e cultural, espectáculos deste género.83

Na elaboração das temporadas foi notória a dificuldade de apresentar peças portuguesas consideradas adequadas.84 O nível das obras não agradava, ou o seu conteúdo era susceptível de gerar mal-entendidos. Dos autores portugueses, apenas Domingos Monteiro e Eduardo Schwalbach pareciam preencher os requisitos. O Preço do Pecado, de Américo Durão, “apresenta personagens e situações que de modo algum são compatíveis com as finalidades educativas da FNAT.”85 Amor, de Augusto de Castro, considerada por todos uma obra excepcional, peca

81. Acta da segunda reunião do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 2. 82. Ibidem, p. 2. 83. Acta n.o 9 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 8/5/1964, p. 1. 84. “ (…) depois de se ter verificado que entre os outros dramaturgos contemporâneos, por uma ou outra razão seria talvez mais difícil encontrar obras que satisfizessem os fins apresentados pelo Presidente.” Acta n.o 4 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 13/1/1964, p. 2. 85. Acta n.o 9 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 8/5/1964, p. 2.

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pelos “diálogos demasiadamente longos em relação às possibilidades de receptividade do público do Trindade”, além do desenlace merecer “um conceito mais reflectido de amor.”86 A selectividade do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade impunha, no entanto, alguma depuração aos seus argumentos. Justificavam-se algumas recusas por outros motivos que não os políticos ou os formais, embora ambos estivessem, quase sempre, implícitos. Os membros do Conselho Consultivo queriam realizar a sua tarefa com dignidade. A posição que tinham perante o espectáculo dramático não era a de simples apreciadores mas de conhecedores profundos. O Conselho defendeu a representação da peça de Malaparte, As Mulheres Também Perderam a Guerra, contra a proibição a que tinha sido submetida pela censura; considerou o dramaturgo francês Jean Anouilh como um grande representante do teatro de tradição clássica, salvaguardando a sua pureza artística, com a referência de que saíra “incólume de todas as tentativas de engagement perante a política em outros domínios extrínsecos à arte teatral. (…) É de notar que, no nosso ambiente cultural, saturado de preconceitos políticos, a valorização e a desvalorização de J. Anouilh estão cheias de episódios ridículos.”87 O Conselho procurou, assim, salvaguardar uma certa autonomia da representação artística perante uma função institucional de controlo que teria de representar. À filtragem política e cultural das peças de teatro seleccionadas teria de se acrescentar algumas preocupações em apresentar um produto que se integrasse com êxito no mercado dramático da época. Serra Formigal acabará por referir que interessaria inovar o tipo de peças que Couto Viana sugeria, já que era nítida “uma sensível tendência classicista na escolha do reportório. Seria de recomendar a escolha de algumas peças de “choque”, que terão de ser de autores contemporâneos.”88 Num contexto em que a procura teatral reagia melhor a determinado tipo de produto contemporâneo do que a obras de certo pendor clássico, tornava-se urgente criar condições que levassem a uma melhor relação com o público. Couto Viana, em inquérito promovido 86. Ibidem, p. 2. 87. Acta n.o 15 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 24/11/1965, p. 1. 88. Acta n.o 12 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 10/2/1965, p. 1.

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pela revista O Tempo e o Modo, revelava-se um cultor do gosto clássico, pouco condescendente com experiências formais ou cedências comerciais: O teatro não se restringe a espectáculo, a efeitos cénicos, a recursos circenses, instintivistas, sensoriais, etc., nem se baseia puramente nos preconceitos interesseiros e primários do público (por exemplo: um baixo sectarismo político, a sensualidade grosseira, a lisonja ao gosto da revolta e à crítica fácil (…) O dramaturgo não pode sujeitar-se à mera preocupação do êxito.89

O êxito, num projecto em que os espectáculos tinham uma função instrumental, não se constituía como um elemento acessório. No caso da ópera, não havia, com a excepção do Coliseu, uma alternativa real de consumo para certos estratos da população, já que o São Carlos permanecia inacessível. No teatro, de modo diverso, a concorrência era forte. A tendência conservadora e clássica de Couto Viana competia com o teatro ligeiro a que o Trindade não queria fazer concessões. Noutro registo, iam surgindo em Lisboa pequenos teatros de cariz experimental, que conseguiam, com produções de baixo custo, conquistar, em algumas franjas da capital, um público firme. As produções de Couto Viana no Trindade encontravam-se, deste modo, entre uma restrita vanguarda experimental em crescimento, diversa em si mesma90, e um teatro ligeiro muito vulgarizado. Formigal, exprimindo a vontade de substituir uma tendência classicista por outra mais contemporânea, tentava captar um público atraído por um teatro independente quase sempre ideologicamente distante do regime.91 Couto Viana condenava as novas tendências teatrais pela sua “ausência ideológica responsável”, pela “privação de uma tradição dramática”, pelo “provincianismo basbaque”, 89. Inquérito a Couto Viana, a propósito do teatro, O Tempo e o Modo, n.o 6, Junho de 1963, p. 129. 90. É essencial não tomar o teatro experimental de forma unívoca, já que tanto ao nível da proposta estética como das relações políticas existia bastante variedade. 91. Tome-se o exemplo da resposta de Bernardo Santareno e Fiama Hasse de Pais Brandão ao mesmo inquérito de O Tempo e o Modo. Santareno afirmou: “O Povo tem que ser educado nas novas formas estéticas, com peças actuais, modernas na estética e na temática. Pode-se ser simples e ter nível artístico, simultâneamente: Bertold Brecht pode ser entendido por todos os públicos, mesmo pelos mais rudes.” Inquérito a Bernardo Santareno a propósito do teatro, O Tempo e o Modo, n.o 6, Junho de 1963, pp. 137138. Fiama Hasse Pais Brandão, por seu lado, referiu que “a arte deve colaborar no movimento de transformação das estruturas, ensinando os homens a transformá-las. Função didáctica, por conseguinte. Ei-lo, portanto, em condições por excelência de ensino e divulgação de um tipo de comportamento.” Inquérito a Fiamma Hasse de Pais Brandão a propósito do teatro, O Tempo e o Modo, n.o 6, Junho de 1963, pp. 139-140.

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pelo “amadorismo de ‘capelas’” e pelo “formalismo, que se baseia na espectacularidade, no sentimentalismo, no declamatório, em esquisitices e sensações.”92 O director do Trindade teria, no entanto, de pensar os seus espectáculos face a estas condições de mercado. As dificuldades de Serra Formigal em seleccionar peças publicamente competitivas demonstraram que os limites políticos impostos à escolha colocavam entraves importantes a um exercício moderno de regulação social. O panorama da ópera era muito diferente. Para os grupos sociais a atingir pela iniciativa da FNAT não havia uma significativa alternativa operática no mercado. A ópera como instrumento da política social apresentava, deste modo, uma autonomia mais estável.

Um modelo operático alternativo: o caso do Grupo Experimental de O´pera de Câmara (GEOC) A comparação da concepção cultural que presidiu aos espectáculos organizados no Trindade com outra proposta de teatro lírico, contemporânea da iniciativa da FNAT, permite um olhar mais profundo sobre alguns dos fundamentos artísticos da Companhia Portuguesa de Ópera. Perseguindo este objectivo, é útil analisar a actividade do Grupo Experimental de Ópera de Câmara (GEOC), subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde estava também sediada.93 No movimento de reforma cultural dirigido pela Fundação Gulbenkian, a partir de 1957, em Portugal, a ópera foi apoiada de forma a possibilitar a constituição de um grupo experimental. Ao contrário da orquestra e do coro da Gulbenkian, integrados na orgânica da Fundação, a ópera e o bailado afirmavam-se como actividades exteriores. A sua autonomia financeira era, por conseguinte, mais frágil. A existência do GEOC parecia ser, para alguns agentes do meio, a base para algo mais ousado. O crítico João José Cochofel, por exemplo, afirma que “o Grupo Experimental de Ópera de Câmara propõe-se a lançar os 92. Inquérito a Couto Viana, op, cit., p. 129. 93. O GEOC fora criado por iniciativa de Filipe de Sousa, Germana Medeiros, Francisco Menano, Manuela Menano e Hugo Casais.

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alicerces de uma companhia portuguesa de ópera, mediante a consolidação de um certo número de pressupostos; profissionalização dos elencos, funcionamento regular e descentralizado, estímulo à produção operática nacional, versão para a nossa língua do repertório estrangeiro.”94 Na apresentação pública da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, Serra Formigal referiu várias vezes a inspiração que este grupo experimental provocou na nova companhia, por dois motivos principais: o trabalho de itinerância feito na província e a sua relevância para o enriquecimento das carreiras dos cantores portugueses. Apesar das semelhanças apontadas, é essencial pensar que o significado das duas iniciativas no meio musical português era substancialmente diferente. Esta distinção entre o projecto do GEOC e os outros espaços líricos era a expressão de lógicas que, atravessando os campos artísticos, transcendiam as nossas fronteiras. No interior da generalidade dos universos da arte discutia-se as condições de autonomia da criação, processo histórico social e geograficamente desigual. Na ópera, os parâmetros do debate foram influenciados pelas transformações que ocorreram no género teatral. Filipe de Sousa, um dos grandes responsáveis pelo GEOC, mencionou, em artigo para a Colóquio Artes 95, a importância, fundamental para a ópera, das transformações por que passou a arte dramática desde o princípio do século: O teatro, e mais propriamente dito, o teatro lírico, tem passado desde os primeiros anos deste século por um processo de renovação de estéticas, de princípios e de conceitos, que traduz e reflecte aspectos e problemas de uma nova época e de um novo comportamento do homem perante valores essenciais. Aos novos prismas de visão e interpretação do mundo actual, correspondem, nas artes, novas temáticas, novos símbolos e novas linguagens, dentro de uma constante geral que foi a atitude anti-romântica de reacção a um passado próximo e, ao mesmo tempo, atitude de modernismo mais preocupado com a “actualidade” do que com a “sinceridade” da obra de arte.96

A ruptura que Filipe de Sousa descreveu, caracterizada pela “multiplicidade caótica de todos os ismos, de todas as técnicas e atitudes experi94. João José Cochofel, Arte Musical, Agosto de 1962, n.o 137, p. 114. 95. Filipe de Sousa, “A propósito da Ópera de Câmara”, Colóquio Artes, n.o 25, Outubro de 1963, pp. 62-64. 96. Ibidem, p. 62.

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mentais”97, expressava a evolução da profissão de artista e o nascimento de um mercado consumidor que permitiu, no caso específico do teatro, de forma progressiva, uma maior independência da criação: No teatro – arte total –, esta revolução processou-se simultâneamente na procura de um equilíbrio ou simbiose perfeita de todos os elementos (texto, jogo cénico, cenário, figurinos, iluminação, adereços, etc.) e na renovação de conceitos estéticos, alinhados todos no mesmo propósito de “reteatralizar o teatro” dentro das novas concepções de vida e do homem. Fundidos numa arte de harmonia – e encenação – esses elementos (a palavra, o movimento, a linha, a cor, a luz) tornaram-se então elementos “músicos”, equilibrados e correspondentes, de um mesmo todo.98

A exploração profunda das diversas formas que constituíam um discurso teatral foi possibilitada pela autonomização, sempre precária, dos campos artísticos. Se é verdade, como refere Filipe de Sousa, que a “reteatralização do teatro” resultava de uma interpretação de novas concepções da vida e do homem, não é menos real que essa idealização só podia ser concretizada porque existiam condições objectivas que possibilitavam um trabalho artístico autónomo de dependências financeiras, políticas, institucionais e comerciais. O processo de autonomização da arte não atingiu as diversas actividades artísticas de forma semelhante. A pintura, ou mesmo a literatura, dados os custos inerentes ao seu processo criativo, conseguiram, com maior rapidez, uma independência que nos casos do cinema, do teatro e da ópera, exigiram lutas e compromissos de outra ordem. A sobrevivência de uma nova arte teatral e seus correlativos operáticos implicava a correspondência da ruptura formal anunciada com as condições materiais que proporcionassem a sua concretização efectiva. A defesa dessas novas condições estaria relacionada com os contornos da proposta artística: O teatro, como todas as manifestações musicais e, em especial, a ópera, é uma realização fatalmente anti-económica que se tornou, por isso, quase sempre, iniciativa oficial desde o século passado [século xix]. Não era, portanto, no grande teatro e na grande ópera oficiais, presas de todos os conservantismos, que podia ter surgido

97. Ibidem, p. 62. 98. Ibidem, p. 63.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos tamanha revolução de princípios e de estéticas. Esse papel coube aos pequenos palcos experimentais, aos teatros de arte, muitos deles fundados por alguns dos grandes reformadores da cena actual: ali se puseram em prática os novos princípios, ali se operou a revolução das artes do espectáculo.99

O equivalente operático a estes teatros experimentais que, na década de 60, surgiam em Lisboa em grande actividade, estava representado pelos conjuntos de ópera de câmara. A partir de pequenos agrupamentos, num contexto em que o investimento em grandes infra-estruturas para uma ópera modernizada se verificava apenas em alguns Estados europeus, foi possível ver reflectida esta exploração formal. Era evidente, porém, que a natureza do teatro lírico não proporcionava, mesmo tratando-se de agrupamentos reduzidos, uma organização tão rápida e pouco onerosa como os grupos de teatro experimental. Tal condição era responsável, segundo Filipe de Sousa, pela falta de correspondência na ópera, mesmo na condição ideal de teatro lírico experimental, “dos problemas estéticos e da verdadeira cultura musical do nosso tempo”. Apesar do atraso, o compositor considerou que à actividade dos conjuntos experimentais se deviam grandes progressos artísticos. Em Portugal, era essencial criar condições para a subsistência destas companhias, favorecendo uma aproximação moderna do espectáculo com o intuito de criar um novo público. Assumia-se como primordial o incentivo a uma prática itinerante, obviamente favorecida pelas dimensões das Companhias Experimentais. Humberto D’Ávila100, nas páginas da Arte Musical, a propósito da representação de O Telefone, de Menotti, pelo Grupo Experimental de Ópera de Câmara da Fundação Calouste Gulbenkian, destacando a encenação de Carlos Wallenstein, referiu a importância que os pequenos conjuntos conferiam à encenação, o grande motivo criador da ópera contemporânea. O GEOC, porque suportado pela Gulbenkian, tinha a obrigação de proceder em antítese ao que se ia fazendo na ópera em Portugal. Ávila defendia, deste modo, a condição do encenador português de ópera101, marginalizado, à semelhança dos intérpretes nacionais: 99. Ibidem, p. 63. 100. Ibidem, p. 63. 101. Humberto d’Ávila foi fundador da Juventude Musical Portuguesa, crítico musical e vice-presidente da Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio. Serra Formigal, na entrevista que nos concedeu, afirmou que Humberto d’Ávila fazia parte de um grupo de amigos que semanalmente se reunia, entre os quais se encontravam João de Freitas Branco e Joly Braga Santos.

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A Ópera do Trindade A vinda de alguns encenadores estrangeiros ao nosso País, e nisto estamos a pensar globalmente no São Carlos, onde o problema é o mesmo, tem resultado negativa, por nada aproveitar à formação de artistas nacionais, por haver impedido até agora a prática corrente em todos os países civilizados da tradução dos libretos, a fim de popularizar os espectáculos de ópera e conquistar para eles novas plateias, e, ainda, por o seu trabalho se revelar muitas vezes abaixo daquilo que costuma ser para o “seu público”, ressentindo-se duma certa displicência de atenienses entre bárbaros, para os quais tudo serve. E tudo tem servido, na verdade, e continuará, se a crítica não quiser fazer frente comum contra o snobismo culto, viajado e intelectual que é também uma forma do nosso provincianismo artístico. (…) Só em grupos experimentais de teatro, esses nossos candidatos têm podido, e em condições elementares, praticar a sua arte, dando provas que justificam a esperança que neles se deve depositar.102

O GEOC, à sua escala, poderia tornar-se num elemento de exploração formal e comunicacional alternativo, no interior de um género lírico cuja autonomia esteve quase sempre condicionada por opções políticas e económicas. Em contraponto com o Trindade, dadas as distintas necessidades dos modelos de produção, era possível uma diferente exploração do reportório e o acentuar da manipulação de vertentes da comunicação artística, normalmente subalternizadas ou fixadas por convenções. O debate que envolvia a encenação das óperas possibilita destrinçar algumas das posições no meio musical português. O encenador era uma figura emergente no contexto operático moderno. A oportunidade de um indivíduo apresentar um novo olhar sobre uma obra pré-definida, transformando-a criativamente, redimensionou o ofício e recolocou-o perante as outras dimensões, internas e externas, do espectáculo. Processo ligado à autonomia da criação artística, a ideia de mise-en-scène, teatral por natureza, atravessara, com as especificidades inerentes, um conjunto de artes.103 A imagem do autor independente, rebuscada na figura do poeta ou do pintor, contagiou outras artes, cuja natureza de produção, e concomitante relação com o mercado, dificultava tal libertação. Na ópera, a autonomia da encenação lutava contra um predomínio de outros elementos do espectáculo, historicamente condicionados a

102. Humberto D’Ávila, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 529. 103. No caso do cinema, por exemplo, é a ideia da mise-en-scène que suporta a teorização francesa dos anos 50 e 60, que tomou o nome de política dos autores, suportada por publicações como os conhecidos Cahiers du Cinema.

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uma relação, em evolução, com o mercado. A predominância histórica do elemento vocal como centro comunicativo com a audiência constrangia a liberdade criativa do encenador. A oposição do bel-canto à encenação, sugeria, nos termos da discussão mantida no interior do campo, contrapor superficialidade a profundidade, comércio a arte, sucesso imediato a universalidade temporal. O respeito literal à obra original comprometia, por exemplo, a possibilidade de actualização histórica do enredo ou a reconstrução das personagens na base de um trabalho aprofundado de dramaturgia. A modalidade de encenação que o teatro de Serra Formigal iria abraçar foi sintetizada por Tomás Alcaide, responsável por algumas encenações no Trindade, em artigo na Arte Musical sobre a interpretação e encenação das óperas de Verdi. Considerando que a função do encenador é “importantíssima e, se não excede, pelo menos iguala a do maestro director de orquestra”104, ideia suportada pela afirmação de Werner Oehlman de que “a história da interpretação lírica, depois de 1920, é a história da mise-en-scène”105, Alcaide demonstraria a sua fidelidade à estrutura original das obras, em especial quando pertenciam a um reportório clássico. Não secundarizando o papel do encenador, Alcaide avaliava a sua qualidade pela capacidade que demonstrasse em revivificar o trabalho dos criadores originais. Afastando-se da lógica particular da arte teatral, afirmou que “se no teatro tudo é ilusão, na ópera tudo é convencional. (…) A encenação de uma ópera é muito mais formal do que a de um drama, de uma comédia, ou mesmo de uma opereta que consentem mais expressão pessoal da parte do encenador. Mesmo quando se quer fugir à rotina e à má tradição, há limites que convém respeitar.”106 As óperas de Verdi serviram para Alcaide estabelecer a ligação entre o género lírico e as classes sociais menos abonadas, distantes das experiências que a autonomia relativa do campo operático ia suscitando num ambiente mais vanguardista. Sem negar a dimensão teatral do espectáculo ou o papel do encenador, assumia-se que uma apresentação de ópera popular teria que presidir a determinado tipo de convenção 104. Tomás Alcaide, “A Interpretação e Encenação das Óperas de Verdi”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 583. 105. Ibidem, p. 583. 106. Ibidem, p. 583.

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teatral: “Interpretar é cantar a música tal e qual está escrita, mas de modo pessoal, sugerido por um estado artificialmente criado pela imaginação do cantor. O artista lírico em cena não é como um títere actuando passivamente segundo a vontade dos autores.”107 A autonomização de um campo artístico é medida pela capacidade de ser o próprio campo a ditar as regras que estabelecem os limites de criação das obras.108 A liberdade do encenador cresceu, deste modo, contra a dependência do género lírico das imposições exteriores ao campo. As experiências musicais e teatrais que exploravam a manipulação das formas e dos temas à luz da evolução de um código progressivamente autónomo chocavam com a sensibilidade de um público mais vasto, cuja socialização operática não penetrava nos movimentos mais vanguardistas. As propostas auto-referenciais geradas no interior do campo chocam com uma espécie de código sócio-musical convencionado ou, no caso da ópera, sócio-musical-teatral. Esta experiência física, que, no interior do campo, é denominada por conceitos como o de estranhamento, era tomada de forma menos cultivada pelo ouvinte comum. Mário Vieira de Carvalho assinala a utilização deste mecanismo musical pelo compositor Fernando Lopes-Graça, no âmbito da sociedade de concertos para a música contemporânea, Sonata, fundada pelo próprio, em 1942. A descrição com que Vieira de Carvalho caracteriza a tendência de utilização formal do anticlímax, que Lopes-Graça, no encalço de Claude Debussy, empregava nas suas obras, torna compreensível o modo como a autonomia dos campos artísticos foi afastando as obras de uma certa ordem formal, desbaratando os seus anteriores sentidos, criando novas soluções e significados e, simultaneamente, quebrando os laços que ligavam os velhos códigos da arte a uma experiência social generalizada: (…) o tempo era sustado, quando um acelerando parecia estar a alcançar o seu objectivo; as estruturas rítmicas, descaracterizadas, quando se tornavam demasiado incisivas; crescendi, contidos ou subtilmente cortados por um pianissimo quanto estavam prestes a explodir; elementos motívicos e temáticos, cindidos, como se tivessem perdido a capacidade de se reencontrar; a marcha harmónica, detida, quando a sua textura se torna cadencial; a sonoridade (mormente na 107. Ibidem, p. 581. 108. Uma das teses centrais defendidas por Pierre Bourdieu em As Regras da Arte, Lisboa, Presença, 1995. Ver nomeadamente pp. 207-241.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos música para orquestra ou conjuntos instrumentais), turvada, “inacabada” em pinceladas expostas, quando as superfícies começavam a tornar-se demasiado definidas.109

A encenação moderna e autónoma, tanto na ópera como no teatro, no bailado, ou no cinema, pretendia ter a liberdade de jogar de modo similar com as formas. Um agrupamento de ópera de câmara, apoiado por uma instituição como a Gulbenkian, concedia aos autores que nela estavam integrados essa possibilidade formal, independente de variáveis políticas ou económicas. O projecto do Trindade, pelo contrário, estava preso dentro dos limites da convenção formal. A tentativa de praticar um tipo de espectáculo devedor da evolução autónoma do campo iria provocar, muito provavelmente, não um estranhamento, categoria que faz parte do vocabulário do campo, mas uma rejeição natural por desconhecimento do código. Este era o último efeito que o Teatro da FNAT queria provocar no seu público. O Trindade conseguiu, por outro lado, utilizar a pequena escala sem prejuízo dos seus objectivos de política social. A itinerância de conjuntos operáticos reduzidos, destacados da companhia principal, participantes em serões musicais pela província, provou a utilidade da pequena dimensão na divulgação da ópera. O seu efeito em localidades cujos habitantes nunca tinham tido oportunidade de assistir a um espectáculo de ópera foi significativo. A presença de alguns artistas, embora em cenário modesto, foi suficiente para causar a impressão de que em Lisboa se exigia um pouco de fausto, até porque o São Carlos estava mesmo ali em baixo. O projecto do GEOC caiu poucos anos depois de se ter iniciado. A direcção da Gulbenkian decidiu integrar o bailado na sua organização interna, deixando de apoiar a ópera de câmara. Sem um enquadramento institucional, a continuidade de uma iniciativa experimental como o GEOC estava condenada.

109. Mário Vieira de Carvalho, op. cit., p. 186.

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Os cantores do Trindade e a sua condição O modelo de produção cultural avançado em 1963 pelo director do Trindade comportava, como foi referido, riscos consideráveis. Se a maior parte das actividades prometidas não atingia grandes custos, o que diminuía a responsabilidade de Serra Formigal perante hipotéticos maus resultados, a criação de uma Companhia Portuguesa de Ópera residente exigia um esforço financeiro que dominava todo o investimento orçamental. As condições materiais e humanas não ofereciam todas as garantias de sucesso. Formigal acreditou, contra os mais cépticos, na possibilidade de criar uma companhia de ópera, maioritariamente nacional, que se apresentasse a um público constituído por trabalhadores. A tarefa não foi simples. Os primeiros anos caracterizaram-se por uma construção progressiva das bases de consolidação da Companhia Portuguesa de Ópera. O director do Trindade rodeou-se de pessoas com experiência no meio operático, aproveitando todas as possibilidades que lhe foram concedidas pelo São Carlos. A contratação de Tomás Alcaide para a direcção de uma escola de canto completou mais uma etapa no enquadramento institucional da iniciativa. Subsistiam, porém, alguns problemas. A falta de músicos dificultava a formação de uma orquestra. A Sinfónica de Lisboa, dirigida por Fernando Cabral, foi uma segunda escolha. Só em 1964 foi possível contar com a colaboração regular da Orquestra da Emissora Nacional. Os maestros Silva Pereira, Jaime Silva Filho e Ivo Cruz passaram a constituir o núcleo forte de directores de orquestra do Trindade. Dada a falta de oportunidades que os maestros portugueses tinham em trabalhar com regularidade, a direcção de orquestra nas óperas da FNAT era apetecível.110 A encenação foi repartida, nos anos iniciais, pelo encenador e antigo actor de teatro, Álvaro Benamor, e por Tomás Alcaide. Nenhum deles tinha experiência directa na encenação de óperas. 110. O editorial da Arte Musical, de Agosto de 1959, referia-se, brevemente, à situação dos maestros em Portugal: “Dão-se, às vezes, no nosso meio musical, fenómenos curiosos. Um dos últimos foi o surgimento de uma quantidade de maestros, transbordando da escassez das orquestras sinfónicas portuguesas. De vez em quando, aparece na imprensa a informação de que um maestro se diplomou numa escola importantíssima estrangeira, que é o único português detentor de certo título invejável, etc, etc. Para que a coisa perca o aspecto de guerra dos nervos, sugerimos que se examine a papelada desses laureados dirigentes e que, em conformidade com ela, se estabeleça um sistema de galões, como na tropa. Doutor em música? Três galões. Diplomado num curso de aperfeiçoamento? Dois galões. Regra obrigatória: dirigir fardado. Só receamos que, por tal critério, Arturo Toscanini não passasse de furriel, sem viabilidades de promoção.” Arte Musical, n.o 5/6, Agosto de 1959, pp. 122-123.

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A qualidade dos cantores era um dos maiores problemas da Companhia. A voz era uma peça primordial do espectáculo lírico, pelo menos para a sensibilidade daqueles a quem Serra Formigal chamara de “espectadores médios de ópera”. Os cantores em Portugal não possuíam créditos suficientes para tranquilizar o director do Trindade. A estrutura de ensino musical, centrada no Conservatório, não formava cantores em quantidade e qualidade. As escassas oportunidades no mercado operático nacional não contribuíam para alterar a situação. O São Carlos, teatro de ópera do circuito internacional, não se compadecia com prestações amadoras. No entanto, apesar da condição profissional dos cantores, houve interpretações que demonstraram a qualidade de alguns intérpretes nacionais. Tanto em papéis secundários, em óperas no São Carlos, como no próprio coro da mesma instituição, ou ainda no trabalho efectuado pelo Grupo Experimental de Ópera de Câmara da Gulbenkian, alguns cantores portugueses despontavam para uma boa carreira. Em artigo publicado na Gazeta Musical, em 1960, João José Cochofel apreciou umas das raras apresentações de um elenco nacional no São Carlos, classificando-o como um “desempenho de grande homogeneidade e nível comparável ao de qualquer elenco estrangeiro de certa categoria.”111 A apresentação de duas únicas récitas, “espécie de concessão anual aos artistas nacionais”, deu azo a que Cochofel insistisse na criação de uma companhia nacional de ópera, o único modo de evitar que os cantores portugueses não passassem de eternas “promissoras esperanças”. O discurso de João José Cochofel, cujos eixos fundamentais apresentam uma evidente recorrência histórica, não difere em muito da retórica utilizada, três anos depois, no lançamento da ópera da FNAT: Alega-se que não haverá público bastante para a sustentar. Mas não é fechando o TNSC a um pequeno círculo de frequentadores da ópera estrangeira que esse público se formará. E uma companhia nacional teria como uma das suas principais missões deslocar-se à Província e levar os espectáculos de ópera às cidades e vilas que nunca ou raramente os têm. Mas haverá realmente vontade de criar uma companhia nacional de ópera por parte das entidades a quem cabe resolver o problema?112

111. João José Cochofel, Gazeta Musical, n.o 108, Março de 1960, p. 39. 112. O Tempo e o Modo, n.o 3, Maio de 1963, p. 48.

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O modelo do Trindade não seria o preconizado por Cochofel; no entanto, no que diz respeito a algumas exigências genéricas, adequava-se quase na totalidade. A formação dos cantores portugueses, tanto no respeitante à educação escolar como em relação à experiência cénica, não lhes garantia uma prática adequada para o desempenho de determinados papéis. Como referiu João de Freitas Branco, pouco antes do começo da temporada do Trindade, a máxima concessão feita ao cantor português era, “excepcionalmente, o desempenho de personagens centrais de óperas cómicas, tipo Barbeiro de Sevilha ou o Elixir do Amor.”113 A prática que afastava o intérprete português dos papéis principais, dos reportórios considerados mais sérios, das óperas cantadas noutras línguas que não o italiano, concorria para uma formação musical e dramática incompleta, centrada que estava em modelos líricos restritos e muitas vezes secundários. Os resultados do trabalho inicial de Tomás Alcaide no Centro de Preparação e Aperfeiçoamento de Cantores Líricos, que dirigiu nas instalações do Trindade, foram comunicados ao director do Trindade através de actas, cuja elaboração estava prevista no contrato assinado por ambos. O conteúdo das actas revela o empenho e dedicação de Tomás Alcaide à Companhia Portuguesa de Ópera. Serra Formigal encontrou no mais famoso cantor português de todos os tempos, visita frequente dos palcos líricos mais consagrados do mundo, uma dedicação absoluta à causa de um pequeno teatro de ópera lisboeta, cheio de debilidades. As informações de Alcaide acerca da evolução da preparação dos cantores possibilitam a compreensão de alguns dos frágeis alicerces que caracterizavam a companhia. Tomás Alcaide escreveu a Serra Formigal pouco tempo antes do início da primeira temporada. O professor de canto queixava-se da escassez de tempo para os ensaios da opereta A Canção do Amor, e da falta de empenho demonstrada por parte dos cantores. Avisava ainda que, sem treino intenso, os resultados poderiam não ser os melhores: Eu sei que o tempo urge para todos, mas também sei a razão por que insisto. Tenho algumas dezenas de anos de prática de teatro e já estou perfeitamente esclarecido

113. Idem, p. 39.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos sobre as possibilidades, ou antes, impossibilidades e deficiências dos meus “artistas” do Teatro da Trindade. Se não ensaiarem, e muito, não darão conta do recado e seria o desastre.114

Alcaide preveniu Formigal do grande “obstáculo a vencer”, adiantando que os ensaios, “mesmo que se tratasse de competentíssimos profissionais, seriam indispensáveis, quanto mais com amadores que, a despeito da boa vontade e diligência, têm as suas limitações, inerentes, afinal, à sua própria condição.”115 O famoso cantor português estava consciente do tipo de “matéria-prima” com que lidava, partilhando com Serra Formigal a noção das condições específicas que moldaram essa “matéria-prima”. Os artistas portugueses não podiam subsistir apenas com o seu trabalho nos palcos. A condição de amadores, para quem a ópera implicava um esforço suplementar, moldava as suas possibilidades. Os ensaios da opereta continuavam a preocupar Tomás Alcaide, especialmente na parte teatral: Os únicos papéis com responsabilidade vocal são os de Schubert, Barão Franz, Anete e Carlina. Todos os outros “cantarolam” mais ou menos, quase sempre em conjunto, sem grandes exigências vocais… Em contrapartida, o que verdadeiramente importa é que se mexam bem em cena e “digam” como deve ser dita a parte recitada. Eu estou pronto a dar todo o meu esforço para demonstrar que a palavra “impossível” é desconhecida do Teatro da Trindade, mas para isso preciso de mais horas diárias para ensaiar toda esta gente. Acontece, porém, que, tratando-se de amadores, têm outros empregos e apenas podem ensaiar das 18 às 20 horas, e, mesmo assim, nem todos os dias.116

Na informação expedida em Novembro de 1963117, Alcaide continuou a queixar-se da falta de assiduidade dos seus alunos: o professor de canto afirmou que são gente que “dá a impressão de não saber o que quer”. A análise individualizada de Tomás Alcaide acerca dos cantores apontou as razões aludidas para a falta de pontualidade: um “anda a fazer pela vida”, o outro tem pouco tempo livre porque o tem de dedicar “à Ordem dos Engenheiros, onde trabalha”, outros dois, “bastante assí114. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 24/4/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1. 115. Ibidem, p. 1. 116. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 8/5/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1. 117. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 8/11/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1.

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duos e voluntariosos, desde que trabalham na revista vêm muito menos às lições”, os coristas “volatizaram-se todos”. Os resultados destes maus hábitos, a que muitos não podiam fugir, evidenciavam-se sobretudo nos cantores mais velhos: Há ainda o facto… da idade dos cantores, que oscila entre os 28 e os 40 anos, o que é demasiado elevada, tendo ainda em consideração que todos eles gastaram muitos anos cantando de qualquer jeito, sem escola, ou, pior ainda, com péssima escola, saltando de um para outro “professor”, num desorientando vocal que lhes danificou o órgão fonador e lhes criou vícios difíceis e morosos de eliminar. E é com este material humano que V. Excia e eu temos apresentado as óperas ao público, até agora, colhendo o que se nos deparou à mão de semear, mas quanto tempo de vida vocal terão eles à sua frente?118

A análise serviu para Alcaide afirmar a urgência do recrutamento de jovens valores que poderiam ser aliciados pela rádio, televisão e imprensa. Esta atitude não seria, porém, suficiente: “Lembro também a conveniência de iniciar um curso, género colóquio, colectivo de interpretação lírica, representação, maquilhagem, versando todos os diversos problemas da vida profissional do cantor, incluindo higiene vocal, orientação profissional…”119 O director do Trindade sabia que não era uma iniciativa esporádica, como a realização de alguns espectáculos de ópera por temporada, que alteraria, por si só, o nível artístico dos cantores portugueses. O esforço exigido a pessoas que, na sua maior parte, repartiam a sua carreira com outras profissões, não era suficiente para garantir em continuidade sustentada uma Companhia Portuguesa de Ópera. Alcaide, por várias vezes, notou uma quase inevitável falta de profissionalismo. A existência da escola de canto foi apenas um primeiro passo para a criação de condições que proporcionassem uma institucionalização da companhia alicerçada na necessária profissionalização dos artistas portugueses. Os contratos efectuados entre os artistas que participaram na primeira temporada de ópera e o Teatro da Trindade estabeleciam um pagamento por récita, consoante a importância do respectivo papel. O contrato era simples, exigindo apenas a assiduidade aos ensaios. Não havia ainda

118. Ibidem, p. 1. 119. Ibidem, p. 1.

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grandes diferenças individuais em relação aos pagamentos. O elemento mais forte de hierarquização era a importância do papel. Entre papéis de topo não se notavam grandes desequilíbrios. Os contratos valiam por um ano. Para os cantores prevalecia uma forte insegurança quanto ao futuro. >>>>>>>>>>> A profissionalização dos cantores da Companhia Portuguesa de Ópera era apenas um dos objectivos a médio prazo. Serra Formigal pretendia, com o tempo, libertar o seu projecto dos condicionalismos que o oprimiam. A construção de uma Companhia Portuguesa de Ópera era um projecto cuja independência teria que ser ganha paulatinamente, com pequenas e progressivas conquistas sobre os diversos obstáculos e constrangimentos; um jogo de equilíbrios políticos e artísticos que exigia uma sensibilidade apurada e uma certa capacidade de mobilidade no interior de universos que, sendo diferentes, partilhavam laços estruturais. O director do Trindade teria que provar anualmente, perante a FNAT, a eficácia dos seus espectáculos em benefício do complexo exercício de “desproletarização”. A legitimidade da sua proposta cultural tinha ainda que conquistar espaço a outras instituições do regime, nomeadamente ao SNI. Teria que encontrar um equilíbrio entre as exigências políticas e as expectativas artísticas inerentes aos seus espectáculos de ópera. Ao contrário da actividade teatral no Trindade, as óperas apresentadas resguardavam os promotores institucionais de quaisquer apropriações “perigosas”. No entanto, as restrições formais (em grande parte elucidadas através da comparação com o GEOC) inerentes aos seus objectivos sociais e as limitações de dependências materiais e humanas da companhia colocavam sérios problemas a um projecto que queria conquistar um lugar de destaque no panorama operático nacional. A análise dos anos de actividade da Ópera do Trindade, sistematizados na parte seguinte deste livro, recupera as vicissitudes que envolveram a construção de um projecto cultural e as suas progressivas etapas até à extinção, em 1975.

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Elsa Saque e Hugo Casais, O Segredo de Susana, de Wolf Ferrari, 1968.

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1. A primeira temporada de espectáculos, apesar das carências estruturais e humanas, foi um sucesso. O público encheu quase todas as récitas, entusiasmando-se com o que via e ouvia. A imprensa acompanhou, na generalidade, este entusiasmo, salientando, mais do que os espectáculos em si, descritos muito sucintamente, a nobreza da iniciativa e a sua importância social e artística. Todas as insuficiências foram secundarizadas e compreendidas porque, como afirmou o compositor Joly Braga Santos, na sua crónica no Diário da Manhã: “Acaba de se abrir uma nova página na vida artística e social portuguesa, página de profundo significado, principalmente pelas repercussões que pode ter no futuro, no duplo aspecto dos artistas e do público.”1 A segunda ópera apresentada nesta primeira época foi A Serrana. O sucesso foi idêntico. Formigal parecia ter vencido a polémica que travara com Ruy Coelho; mais ainda porque Joly Braga Santos fez questão de salientar a justeza da opção: Trata-se de uma ópera nacional de importante valor histórico. A Serrana, datada de 1899, é, em geral, apontada como a obra que iniciou o movimento nacionalista na música teatral portuguesa. A sua inclusão na presente temporada, para representar a ópera do nosso país, constitui uma acertada escolha, pois que a A Serrana, apesar das imperfeições técnicas, continua a poder ser considerada uma obra representativa da música teatral portuguesa, dadas as reais virtudes que encerra, como uma autêntica veia lírica, um bom “libretto” e uma meia-dúzia de ideias musicais genuínas.2

1. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 20/5/1963, p. 4. 2. Idem.

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Francine Benoit3, habitual articulista do Diário de Lisboa, considerou, a propósito da mesma A Serrana, o empreendimento do Trindade algo “hesitante”4, mas referiu, como o fez também João de Freitas Branco nas páginas d’O Século5, que o futuro seria de aperfeiçoamento, sendo essencial deixar o tempo actuar. Não havia dúvida de que a Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade ganhara um património de aceitação que lhe permitia alguns passos em falso. A direcção da FNAT, por seu lado, tinha motivos para se sentir satisfeita; a generalidade da imprensa, através da opinião de pessoas situadas em diferentes quadrantes políticos e afectações musicais, registava o calor de um público que enchia “festivamente o teatro”6. Num panorama global de felicitações, as implicações formais suscitadas pela necessidade básica do espectáculo da FNAT agradar ao público não passaram despercebidas à crítica especializada. Joly Braga Santos censurou um cantor, no Barbeiro de Sevilha, por apresentar “os acentos caricaturais demasiado fortes, a puxar ao fácil, naturalmente na tentativa de mais fácil acesso ao público”7, enquanto Francine Benoit, a propósito da opereta A Canção do Amor, considerou que o espectáculo se assemelhou a uma “comédia musical”8. O tom desta crítica era ainda ligeiro, mas os indícios faziam prever que a insistência na orientação músico-teatral chocaria em breve com ethos artísticos mais exigentes, regulares seguidores das transformações vanguardistas que invadiam os grandes palcos da Europa. A insistência na ópera cómica, por exemplo, reunirá algumas antipatias. A imediata ligação que estas óperas estabeleciam com o público, intercalando em harmonia perfeita com os dramas mais intensos, constituía uma opção de grande eficácia comunicativa.9 A representação da La Bohème, de Puccini, bastante aclamada, fazia pensar que o futuro da companhia, desde que bem trabalhado, poderia ser risonho. João de Freitas Branco, resumindo o ano de espec3. Compositora, professora na Academia de Amadores de Música e crítica musical. Figura próxima de Fernando Lopes-Graça e da oposição ao regime. 4. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 17/5/1963, p. 3. 5. João de Freitas Branco, O Século, 16/5/1963, p. 9. 6. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 17/5/1963, p. 3. 7. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 13/5/1963, p. 4. 8. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 30/7/1963, p. 3. 9. Em 1970, Gino Saviotti, colaborador do Trindade, escreverá na revista Ópera as seguintes palavras sobre os fundamentos do contexto da ópera cómica, um género de produção que exigia que “ as paixões fossem sinceras, não convencionais, as personagens tiradas mais ou menos da vida de todos, a nossa existência quotidiana reverberada com caricatura, sim, mas no fundo com cordialidade humana, por baixo também da cintilante alegria.” Ópera, n.o 5, Março de 1970, pp. 3-4.

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táculos nas páginas da Arte Musical, elogiou o grupo da FNAT, considerando “que nenhuma novidade se acrescentou ao meio musical lisboeta, que pudesse equiparar-se, em importância, à temporada de ópera no Teatro da Trindade.”10 Advertia, porém, “que toda a moeda tem duas faces e, neste caso, o reverso dos incontestáveis êxitos está no perigo de deslumbramento.” O futuro da companhia dependeria de uma “maior exigência de habilitações musicais àqueles cantores que ainda as não têm suficientes”, da capacidade de “manter a orientação das muitas récitas da mesma ópera, para um público relativamente reduzido de cada vez” e de um “especial cuidado com o repertório português”11.

2. A ópera A Vingança da Cigana, de Leal Moreira (1758-1819), foi a representante do teatro lírico nacional na temporada de 1964. Mais uma vez, Serra Formigal evitava os autores portugueses contemporâneos. O maestro José Atalaya, que se revelará um apoiante fiel da iniciativa da FNAT, subscreveu no Diário da Manhã a escolha, apesar de considerar o estilo rossiniano, imposto pelo maestro Jaime Silva Filho, pouco apropriado para uma ópera que, segundo ele, se aproxima de Mozart. A redescoberta da ópera de Leal Moreira foi, para Atalaya, o acontecimento que marcou o espectáculo, o que lhe sugeriu um comentário em defesa “dos mais famosos operistas portugueses do passado” de quem se vinha tentando “ ‘apagar’ o rasto” e que “de resto, fizeram mais prolongada carreira internacional do que qualquer dos nossos respeitáveis contemporâneos: Ruy Coelho, Joly Braga Santos, Frederico de Freitas e outros.”12 Álvaro Benamor, prestigiado encenador teatral, estreou-se na encenação lírica. Os espectáculos de A Vingança da Cigana foram repartidos pelo trabalho de dois maestros, o já referido Jaime Silva Filho e o maestro Silva Pereira. A opção da direcção do Trindade levantou acesa polémica com 10. João de Freitas Branco, Arte Musical, n.o 20, 21 e 22, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 527. 11. Ibidem, p. 527. 12. José Atalaya, Diário da Manhã, 17/7/1964, p. 4.

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Filipe de Sousa, o maestro que revira a obra, e que possuía os seus direitos de representação.13 Em contrapartida da cedência dos direitos de A Vingança da Cigana, Serra Formigal prometera a Filipe de Sousa a direcção da Orquestra da Emissora Nacional num dos concertos sinfónicos da temporada do Trindade, dado que, na altura, por compromissos já estabelecidos, era impossível conceder-lhe a direcção da referida ópera. Sucedeu que, quando o programa de concertos de 1965 foi publicado, Filipe de Sousa não foi nomeado para a direcção de nenhum dos concertos previstos. O maestro escreveu então duas cartas. A primeira, para Formigal, relatando todo o episódio e pedindo explicações.14 A segunda, dirigida ao ministro das Corporações que, por sua vez, a remeteu ao director do Trindade.15 Filipe de Sousa juntou à carta um documento do Sindicato Nacional dos Músicos onde estavam arrolados os nomes de todos os directores de orquestra portugueses separados por um critério: a posse de credenciais do Conservatório. Filipe Sousa procurava demonstrar ao ministro que uma importante iniciativa estatal no campo da música não estava a servir os maestros que melhores competências possuíam. Na lista dos maestros sem credenciais, encontravam-se os colaboradores do Trindade: Silva Pereira, Frederico de Freitas, Fernando Cabral e Ivo Cruz.16 No grupo dos maestros credenciados17 encontrava-se, sublinhado a preto, o nome de Filipe de Sousa. A escolha dos maestros para este novo espaço de oportunidades profissionais estava determinada por uma síntese entre opções políticas e opções musicais, mediada por agentes como Serra Formigal, que tinham de gerir as diversas sensibilidades em jogo com vista à prossecução de objectivos específicos. A selecção dos directores de orquestra não poderia 13. Filipe de Sousa fora o fundador do Grupo Experimental de Ópera de Câmara, da Juventude Musical Portuguesa e do Centro Português de Bailado, tinha sido professor do Conservatório, era júri dos concursos de composição do SNI e dos exames do Estado para professores de Canto Coral, e exercia o cargo de presidente da assembleia geral do Sindicato dos Músicos. Informações anexadas pelo próprio Filipe de Sousa à carta que enviou, em 19/7/1965, ao ministro das Corporações e Previdência Social, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 14. Carta de Filipe de Sousa ao director do Teatro da Trindade, 18/7/1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 15. Carta de Filipe de Sousa ao ministro das Corporações e Previdência Social, 19/7/1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 16. Deste mesmo grupo faziam parte nomes como Ruy Coelho, Mário Sampayo Ribeiro, Lourenço Alves Ribeiro, Leonel da Silva Rodrigues, António Lopes, José Alves Ribeiro, José da Cruz Braz, Armando Fernandes, António Francisco Marques, Wenceslau Pinto, Pedro Lamy Costa Reis, Manuel João Alves, Franscisco Pereira de Sousa, Gustavo Augusto Coelho, Berta Cândida Alves de Sousa, José Luciano da Graça, Armando de Mendonça Escoto e Jaime Mestres Perez. Ibidem. 17. Do grupo de maestros com documentos do Conservatório encontravam-se Francine Benoit, Joly Braga Santos, Jorge Peixinho, Silva Dionísio, Artur Alves dos Santos Correia de Sousa, José Maria Antunes, Domingos Fernandes Ganhão, Ilidio Gomes de Sousa Cyrilo, Ruy Onofre Barral, Jorge Bettencourt, Natércia de Almeida Couto, Elvira Santos, José dos Santos Pinto e César Augusto Ribeiro de Morais. Ibidem.

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ser determinada, como Filipe de Sousa pretendia, por uma simples racionalidade meritocrática. A Vingança da Cigana foi a última ópera em cartaz na temporada de 1964. Pelo Trindade tinham já passado o Rigoletto, O Amigo Fritz, La Traviata e La Bohéme. Todas constituíram um enorme êxito de público. Justificava-se a opção de Serra Formigal pelas óperas italianas do período romântico. O reportório era eficaz e o público aderia aos clássicos, tocado, como no caso da Traviata, “com a essência romântica da sua música, com as suas melodias famosas, com todo aquele caudal, ora sereno ora apaixonado, ora lírico ou trágico, com que se desempenha musical e dramaticamente a vida amorosa e a morte da pobre Violeta Valery.”18 Esta ópera de Verdi, precursora do verismo, tratava pela primeira vez um drama doméstico, apelando a um certo sentimentalismo da comunicação músico-dramática. O público da FNAT acolheu com entusiasmo as grandes obras do património verista italiano, identificando-se com os seus temas sentimentais coloridos por atractivas melodias.19 A vertente popular da ópera foi ainda acentuada com encenações e representações que estabeleciam um fio condutor, mesmo se ténue, com a forma e disposição de outros patrimónios artísticos. Francine Benoit referiu que, na Traviata, um cantor “até se apresentou com ares de compadre de revista no primeiro acto; e ainda bem que se redimiu no quarto”20, assinalando, a propósito de La Bohème: “A vivacidade e o capricho desenvolvidos na encenação do ano passado recrudesceram este ano, o que, em si, seria muito acertado se não roçasse, como estilo, por momentos, o teatro ligeiro.”21 As críticas residuais não ofuscavam a continuação do êxito. Reforçava-se na opinião pública e na imprensa a importância da iniciativa para a criação de um novo público de ópera e para a sustentação progressiva de uma companhia portuguesa em que os artistas nacionais tivessem condições para desenvolver o seu trabalho. 18. N, Diário de Notícias, 7/6/1964, p. 5. 19. Lopes Graça e Tomás Borba classificam verismo da seguinte forma: “Designação aplicada à estética realista da ópera italiana de fins de Oitocentos e princípio de Novecentos, de que foram principais cultores Puccini, Leoncavallo, Mascagni e Umberto Giordano. O verismo era, no fundo, um falso realismo, pois que pintava de preferência e unilateralmente os aspectos brutais da vida, mais lhe cabendo propriamente a designação de sensacionismo.” Fernando Lopes-Graça e Tomás Borba, Dicionário de Música: ilustrado, Cosmos, Lisboa, 1955, p. 681. 20. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 14/6/1964, p. 10. 21. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 6/7/1964, p. 10.

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3. Muitos dos termos utilizados para caracterizar o Trindade eram devedores das posições teóricas e estéticas de quem classificava e, sobretudo, do lugar que ocupava no campo musical português. As tomadas de posição artísticas estavam relacionadas com a história recente da ópera, as suas transformações, a evolução dos seus ideais de convenção e vanguarda. Em Julho de 1964, a revista Arte Musical publicou alguns artigos dedicados às figuras de Verdi e de Wagner. O texto de Tomás Alcaide sobre as encenações das óperas de Verdi suscitou, em capítulo anterior, a comparação da concepção artística do Trindade com a do GEOC. A publicação em simultâneo destes textos partia de uma clara lógica de oposição entre os dois compositores. Embora os redactores evitassem formular uma explicitação clara dos critérios subjacentes a esta oposição, contrapunha-se, pelo valor e significado que à época os dois compositores tinham no campo operático, a convenção à vanguarda. A discussão é esclarecedora quanto a alguns eixos que traçavam os limites das posições no interior do campo musical, permitindo situar melhor a concepção preconizada para o Trindade. Sobre Verdi escreveram, entre outros, Tomás Alcaide e José Blanc de Portugal. Os dois autores, incondicionais adeptos da filosofia do Trindade, tiveram o cuidado de evitar o anátema da convenção. No seu discurso, porém, existia uma clara relação entre a tradição verdiana e a ópera popular. Para o cantor, Verdi, “herdeiro da grande tradição do bel canto italiano, exige dos seus intérpretes vozes sãs, belas, e de óptima escola”22. Neste aspecto, não se confundia com Wagner: “(…) em Wagner as vozes são apenas uma parte do todo orquestral, tratadas no mesmo plano dos outros instrumentos, ao passo que em Verdi é a voz do cantor que conduz a melodia fundida com a palavra no modo mais expressivo.”23 Na encenação das óperas de Verdi, “pouco há a dizer além de generalidades.”24 Para Alcaide, a função de um teatro de ópera tocado pelo espírito de Verdi era “cumprir a sua nobre missão cultural e educadora, contribuindo com afã para a elevação do nível artístico do espectáculo, incrementando assim o 22. Tomás Alcaide, “A Interpretação e Encenação das Óperas de Verdi”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 580. 23. Ibidem, p. 580. 24. Ibidem, p. 582.

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gosto pela ópera.” Sem se referir ao Trindade, Alcaide tinha os olhos postos na iniciativa da FNAT quando afirmou que a ópera perdera “a sua feição de luxuosa festa mundana, apenas acessível a um reduzido círculo de magnates de alta roda. Despiu a casaca, democratizou-se”, realçando com cautela que “hoje, mais do que nunca, é uma instituição social, embora num sentido não político.”25 Blanc de Portugal, por seu turno, afirmou que em “Verdi não há qualquer directriz estético-filosófica estruturada como disciplina formadora. A evolução da sua obra teatral aparece-nos, aparentemente, como muito mais espontânea e à mercê da inspiração do momento”26. Em oposição a Verdi, “Wagner tentou racionalizar a música.”27 A demonstração “da genialidade viva de Verdi” tinha sido, havia pouco tempo, comprovada num concerto no Teatro da Trindade.28 Os textos sobre Wagner, da autoria do compositor Jorge Peixinho, do poeta José Carlos Ary dos Santos e de João de Freitas Branco enfatizaram a componente racional do compositor. Peixinho afirmou que Wagner, com excepção de Mahler e Debussy, tinha sido “o único compositor do século xix que colocou o problema da grande forma ou forma global em termos dialecticamente novos.”29 Foi origem de um movimento “que irá ruir os últimos alicerces tonais e desembocar na ruptura da tonalidade.”30 Ary dos Santos, que tratou da influência de Wagner no teatro, considerou que o compositor foi um dos antepassados do teatro moderno na esteira da afirmação de Hebbel, em 1843, de que “o ‘teatro novo’, se vier a acontecer, afastar-se-á totalmente do padrão shakespeareano que será definitivamente posto de parte para dar lugar a uma Arte onde a dialéctica transcenda o simples diálogo de personagens, integrando-se directamente no próprio contexto, de forma a que não se debata somente a relação do Homem com a Ideia, mas também a validade da ideia em si.”31 João de Freitas Branco sintetizou a importância da figura de Wagner no epíteto de “artista-intelectual”. A arte exprimia uma série de con25. Idem. 26. José Blanc de Portugal, “Apontamentos para um ‘Verdi Vivo’ ”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 572. 27. Ibidem, p. 567. 28. Ibidem, p. 575. 29. Jorge Peixinho. “O Clímax”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 549. 30. Ibidem, p. 550. 31. José Carlos Ary dos Santos, “Wagner e o Teatro”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 556.

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quistas civilizacionais. Wagner tornou-se, no interior do campo musical, teatral e músico-teatral, a figura que assegurou ao artista a liberdade de ser e parecer culto: (…) pode falar uma linguagem de homem instruído, provar que leu e compreendeu grandes literatos, demonstrar que raciocinou e construiu uma vontade própria, individual; pode discordar; pode mesmo escrever para publicação em letra de forma, e tudo isso na crescente certeza de interessar um círculo de cidadãos suficientemente vasto e garante para substituir, de facto, o apoio de outra gente de maior linhagem (…) Deu-se uma elevação mental do músico.32

João de Freitas Branco, sem considerar o adjectivo na sua acepção estritamente positivista, considerou Wagner como um cientista: um cientista do belo. Para a tradição wagneriana, o respeito pelo texto, componente essencial do drama, não podia ser violentado por construções operáticas que davam primazia a outro tipo de princípios de criação, nomeadamente a voz. O facto de a ópera ser, também, um objecto legível, compreendendo-se a sua dramaturgia, choca com uma comunicação artística que submete esta semântica ao domínio de outras formas. O Teatro da Trindade não era um espaço para o artista intelectual, para o cientista, para o experimentador. O Trindade tentaria ser um teatro de ópera na senda espiritual verdiana: popular, intuitivo, emotivo, festivo. Longe, porém, dos objectivos humanos grandiosos e das experiências formais inovadoras que os textos da Arte Musical atribuíam à herança wagneriana. As divisões teóricas e formais consagradas pelo desenvolvimento do campo do teatro lírico garantiam um determinado significado aos espectáculos do Trindade, o que implicava um posicionamento simbólico, mas com consequências reais, no interior de um universo de significados. Para os integrados numa elite cosmopolita que acompanhava com particular agrado as novidades do espectáculo lírico internacional, o projecto da FNAT era conservador: o reportório demasiado fácil e evidente, a matriz da encenação – dimensão do espectáculo pela qual passava grande parte das inovações operáticas – absolutamente convencional. João de Freitas Branco representava, no meio da música eru-

32. João de Freitas Branco, “Significados Actuais de Wagner na Música e no Teatro”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 558.

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dita nacional, essa vanguarda, embora o seu papel de divulgador musical – com conhecida experiência televisiva – o tornasse numa figura popular. A sua posição modernista, na senda, aliás, de uma tradição familiar cuja continuidade se assegurava com figuras como o crítico e compositor João Paes e o crítico Sidónio Pais, não o impediu de apoiar, sem ceder a um populismo fácil, o projecto de Serra Formigal, iniciativa pouco importante para a ópera reconhecida como “arte total”, mas fundamental pelas funções que desempenhava a outros níveis, no universo do teatro lírico português.

4. Os espectáculos do Trindade seguiam-se à temporada do Teatro Nacional de São Carlos. João Paes, crítico da revista O Tempo e o Modo, mostrou-se desagradado pelo modo como decorreu a temporada de 1965 no Teatro Nacional de Ópera, onde, em questões de reportório, “a rotina faz lei”33. Considerou ainda que entre a rotina aceitável, Strauss, Wagner, Verdi, Vincenzo Bellini, Gaetano Donizetti e Puccini, e a inaceitável, Ruy Coelho, “o assinante-médio-normal das temporadas de ópera no São Carlos saiu desta feita regalado” porque “reage simpática e quase exclusivamente ao elemento vocal”34. A “avalanche de bel canto”, segundo este crítico, não possibilitava a atenção que a encenação merecia: “Função cuja importância a direcção do Teatro de São Carlos parece ainda não ter avaliado. (…) Função importantíssima para a conquista de um público jovem que não está na disposição de tomar a sério um espectáculo de síntese com uma das componentes fundamentais visivelmente escamoteadas.”35 No Trindade, a ópera italiana reinava. Serra Formigal, procurando dar brilho ao início da temporada de 1965, contratou, para representar o principal papel na Tosca, de Puccini, a cantora Simona Dall’Argine. A participação da cantora italiana surgiu como forma de incentivar os intercâmbios artísticos com outros teatros. Em informação expedida em 33. João Paes, “Recordação da Casa dos Divos”, O Tempo e o Modo, Julho de 1965, p. 549. 34. Ibidem, p. 549. 35. Ibidem, p. 50.

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Agosto de 196436, já Serra Formigal considerara as vantagens de tais intercâmbios. A assinalada carência na Companhia de alguns registos vocais, especialmente as de soprano lírico spinto 37 e soprano dramático, inviabilizavam a realização de algumas óperas, caso da Tosca e do Trovador. O desenvolvimento destes intercâmbios encontrava em Espanha, pelas boas relações políticas entre a FNAT e a sua congénere espanhola, e em Itália, pelo especial interesse dos cantores portugueses irem cantar à “pátria da ópera”38, os países ideais para fomentar relações artísticas. Formigal referiu ainda que, apesar de alguns cantores portugueses demonstrarem, nas suas actuações passadas e presentes, um alto nível artístico, os intercâmbios teriam de ser feitos com teatros que não pertencessem ao grupo dos mais importantes. Propôs que, no mês de Setembro, a FNAT concedesse, a si próprio e ao cantor Hugo Casais – cuja experiência profissional em Itália se traduzia num bom cartão de visita – uma viagem àqueles dois países. A deslocação seria feita no carro de Formigal para ser mais barato. Na passagem por Milão, a soprano Dall’Argine foi contratada para protagonizar a Tosca, recebendo um cachet de cinco mil escudos por récita.39 Os cantores portugueses que representavam papéis principais auferiam, na altura, dois mil escudos por récita.40 No mesmo ano, o Trindade celebrou um contrato com o famoso cantor italiano Gino Bechi.41 O acordo previa que Bechi encenasse três óperas – uma delas, Falstaff, de Antonio Salieri, protagonizada pelo próprio, que não se chegou a realizar – e prestasse os seus serviços como regente da escola de canto do Teatro. Por sete meses Bechi receberia 130 mil escudos. Joly Braga Santos não ficou muito convencido com a prestação de Dall’ Argine: “boa voz, mas movimentação convencional”.42 As frequentes imperfeições dos espectáculos revelavam-se incapazes de abalar o simbolismo que representava o início de mais uma temporada de ópera no Trindade, ocasião ideal para relembrar a nobreza do empreendimento.

36. Informação de Serra Formigal sobre o intercâmbio de cantores, 1/8/1964, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 37. Ibidem. 38. Ibidem. 39. Contrato entre Serra Formigal e Simonna Dall’Argine, celebrado a 9/4/1965. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 40. Cachets dos artistas – Temporada de ópera de 1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 41. Contrato entre Gino Bechi e o Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965. 42. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 13/5/1965, p. 4.

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João de Freitas Branco considerava a “estreia auspiciosa, a prometer uma temporada à altura dos próprios fins em vista”43. À Tosca seguiuse La Traviata. Francine Benoit gostou da récita, embora as atitudes do público, a espaços, a incomodassem: “Alguns espectadores precisam de convencer-se de que o silêncio é uma necessidade imperativa mesmo antes de abrir a cortina do palco, para não prejudicar da maneira mais enervante os que não querem perder o princípio do admirável ‘prelúdio’ da ópera.”44 As figuras femininas continuavam a reinar no Trindade, sob a batuta dos mestres italianos. Madame Butterfly, “a tragédia amorosa da ingénua e sensível japonezinha”45, constituiu um assinalável sucesso. Álvaro Benamor destacou-se na encenação de O Elixir do Amor. João de Freitas Branco assinalou este sucesso, argumentando que Benamor “deu movimento às figuras individuais e colectivas, sem jamais cair naqueles excessos hoje praticados por alguns registas de ópera, cujo efeito é contraproducente numa peça tão convencional por sua própria natureza como O Elixir do Amor”46. Um dos propósitos de Serra Formigal ao contratar encenadores como Benamor, Alcaide ou Bechi foi conferir aos seus espectáculos uma relevância teatral, num contexto em que as vozes não tinham estatuto suficiente para sustentar, por si só, os espectáculos.47 Sem arriscar quaisquer aventuras modernistas, os encenadores iam cumprindo a sua função. O quinto espectáculo da época tinha em cartaz duas óperas: Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, e Palhaços, de Nicolo Leoncavallo. O crítico do Diário de Notícias considerou que o espectáculo “resultou agradável e brilhante”, destacando o “poder de atracção destas duas óperas, às quais o público sempre se rende, a clareza e facilidade da sua linguagem musical sempre em constante comunhão com a intensidade e a violência da acção dramática, a qualidade interpretativa e realizadora, vocal e cénica, requerida aos artistas…”48

43. João de Freitas Branco, O Século, 30/4/1965, p. 9. 44. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 18/5/1965, p. 10. 45. A.N., Diário de Notícias, 7/6/1965, p. 5. 46. João de Freitas Branco, O Século, 18/6/1965, p. 10. 47. Na entrevista que nos concedeu, Serra Formigal afirmou que “o factor teatral era muito exigente ali. Porquê? (…) Queria que se cantasse bem, queria que houvesse técnica vocal, representação teatral e que se entendesse que ópera é teatro para música, e, então, numa companhia jovem que não tem grandes estrelas, tem de ser assim senão não interessa: tem de se compensar com mais teatro e mais cena o que pode faltar em celebridades vocais.” Entrevista a José Serra Formigal, p. 6 (2001). 48. A.N., Diário de Notícias, 9/7/1965, p. 5.

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O Trindade terminou o ano com a obrigatória ópera portuguesa, produzida com o apoio da Fundação Gulbenkian. A escolha recaiu na Condessa Caprichosa, de Marcos Portugal. Compositor português oitocentista, com vasta carreira europeia, Marcos Portugal era recordado como um dos músicos nacionais cuja carreira mais êxito alcançara no estrangeiro, registando, com presenças frequentes nos maiores teatros de ópera, uma apurada sensibilidade pelo gosto médio de um público de ópera em crescimento. Mas a ópera portuguesa iria ter, ainda em 1965, um papel de relevante significado no âmbito da companhia do Trindade. Em Dezembro, a Companhia Portuguesa de Ópera estreia-se internacionalmente no Grande Teatro do Liceo, em Barcelona, apresentando A Serrana, de Alfredo Keil. A imprensa espanhola49 acolheu bem a prestação dos cantores portugueses. Algumas análises reflectiram, porém, uma perspectiva já reconhecida na imprensa portuguesa: “Los artistas del Teatro ‘da Trindade’, de Lisboa, presentan A Serrana dignamente.”50 Os críticos espanhóis retiveram-se bastante na natureza da obra de Keil, referindo que a sua estrutura reflectia uma inevitável datação histórica: “Fué estrenada en 1899, o sea cuatro años después de Thaïs, dos ante de La Bohème y es anterior en un año a Tosca. Está pués emplazada en la época y el área estética de Massenet y Puccini y tiene afinidades con el estilo de estos dos operistas en cuanto a lo musical. Escénicamente pertenece a la tendencia nacionalista…”51

Comentou o mesmo crítico que do “pobre material” saiu uma obra que não é apenas um subproduto, na medida em que apresentava alguma consistência e originalidade, sobretudo pelo modo eficaz como o maestro Frederico de Freitas dirigiu a orquestra. O Trindade assinalou, assim, uma internacionalização inédita na história de uma companhia portuguesa de ópera, reforçando, deste modo, a sua legitimidade interna. No final do ano, Serra Formigal foi nomeado, pela sua actividade à frente do Trindade, vice-presidente da FNAT.52

49. Xavier Montsalvatge, em La Vanguardia e Menendez Aleyxandre, em La Prensa. 50. Xavier Montsalvatge, La Vanguardia Espanola, 25/12/1965. 51. Ibidem. 52. Decreto-Lei n.o 46 649, de 17/11/1965.

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5. Em Janeiro de 1966, o compositor português Jorge Peixinho, seguidor das vanguardas musicais europeias, escreveu na Seara Nova uma crítica a quatro óperas (O Elixir do Amor, Cavalleria Rusticana, Palhaços e A Condessa Caprichosa) que a companhia do Trindade levou ao Porto. Louvando o esforço do projecto no respeitante às oportunidades que vinham sendo dadas aos artistas portugueses, Peixinho concluiu que o reportório apresentado pelos artistas do Trindade gorava grande parte do mérito da iniciativa: “(…) a direcção da CPO não tem demonstrado uma visão lúcida nem corajosa na orientação artística que tem imprimido à companhia, voltando costas, não só ostensivamente à produção moderna e contemporânea como ainda ao reportório barroco e clássico.”53 Considerou ainda que sendo difícil, por questões técnicas e humanas, apresentar “um Wozzeck ou uma Lulu”, já não se compreendia a omissão de algumas obras cénico-musicais de Stravinsky, de A Mão Feliz, de Arnold Schoenberg, ou, entre muitas outras, as óperas épicas resultantes do trabalho conjunto de Kurt Weil e Bertolt Brecht. A apreciação de Peixinho aos espectáculos apresentados no Porto, entre alguns elogios individuais, caracterizou-se por uma crítica transversal. Aos olhos de um vanguardista, o projecto era débil e convencional. A temporada de 1966 foi preenchida pelo Rigoletto, de Verdi, a Lucia de Lammermoor, de Donizetti, o Fausto, de Charles Gounod, a Inês Pereira, de Ruy Coelho, e, a finalizar, a dupla Rita, de Donizetti, e Palhaços, de Leoncavallo. No final da temporada, um relatório do Teatro da Trindade dava conta dos números alcançados pelas várias óperas.54 O Rigoletto registara a maior frequência nas oito récitas realizadas, com uma média de 501 espectadores. Seguiu-se a Lucia de Lammermoor, com 486,6; o Fausto, com 468,2; Rita e Palhaços, com 344,1. A Inês Pereira, de Ruy Coelho, com 240,3, fora, de longe, o espectáculo que menos suscitou o interesse do público. Apesar dos indícios que levariam a prever este desfecho, Serra Formigal, contrariando a sua opinião pessoal, acabara por ceder à representação de uma ópera de Ruy Coelho.

53. Jorge Peixinho, Seara Nova, n.o 1443, 1/66, p. 28. 54. Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Arquivo do Teatro da Trindade, 31/5/1967, p. 2.

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A direcção da Inês Pereira foi repartida pelo seu autor e pelo maestro Jaime Silva Filho, como consta do contrato assinado entre José Serra Formigal e Ruy Coelho, em 2 de Novembro de 1965.55 A pacificação, pelo menos aparente, das relações entre Ruy Coelho e o Trindade foi sentida quando aquele iniciou uma crítica regular dos espectáculos do Trindade nas páginas do Diário de Notícias. Coelho procedeu a uma alteração na sua retórica: se não foi possível o advento de uma arte nacionalista, o elemento pátrio estava assegurado pela actuação dos filhos da nação, ainda mais quando este sentimento era reforçado pela presença na sala de altas personalidades do regime, como foi o caso do Presidente da República, Américo Thomaz, na estreia de Rigoletto: (…) a Arte tem uma profunda função social, e de tanto maior alcance educativo de todas as classes das populações, quando é feita com elementos criados pelo próprio meio, como afirmação da existência das actividades seleccionadas dos artistas nacionais, que desse modo confirmem o superior grau do nível da cultura artística do próprio país.56

Ruy Coelho, a quem Serra Formigal negara a entrada no Trindade pelo facto de o seu “modernismo” atentar contra sensibilidades menos habituadas à ópera, veio, mais tarde, na crítica do Diário de Notícias relativa à Lucia de Lammermoor, a defender “a grande época de oiro da ópera italiana, em que Donizetti, Bellini e Rossini – de 1800 – formam a trindade dos astros que deram ao canto teatral a beleza do bel canto”, contra “a aberração de algumas falsas estéticas contemporâneas que proclamam transformar os valores racionais em irracionais, com o delírio organizado (…) e que utiliza no canto a exploração dos efeitos primários – do grito – o que dá a possibilidade de ser cantor mesmo a quem tenha má voz e não saiba cantar, (…) se é acessível a toda a gente, sem excepção, o pseudocanto – sprechgesang, ‘falar ritmado’, ‘gritar’, o chuchotement.”57

55. Contrato entre Serra Formigal e Ruy Coelho, com vista à representação da ópera Inês Pereira, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1966. 56. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 5/5/1966, p. 5. 57. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 23/5/1966, p. 6. Sprechgesang é uma técnica vocal que está entre o falar e o cantar. Chuchotement refere-se ao canto sussurrado.

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As referências aos espectáculos nos jornais continuaram mornas. O Fausto, de Gounod, primeira incursão do Trindade pela ópera francesa, contou com a participação do cantor gaulês Jean Soumagnas. A apresentação da Inês Pereira, de Ruy Coelho, levou a crítica a largar o seu registo monocórdico. A figura de Ruy Coelho, pelo significado político e musical, não deixava ninguém indiferente. O Diário de Notícias fez um elogio rasgado à obra do seu cronista: “Esta reposição de Inês Pereira vem mais uma vez fixar o nome de Ruy Coelho como criador de uma obra que abarca vários géneros, mas sempre subordinados a uma constante, cuja função é de aproveitamento e recreação de atmosferas e motivos portugueses e populares.”58 A recriação de uma pretensa portugalidade pela expressão musical e dramática propiciava acesa discussão. A oposição principal às observações de Ruy Coelho sobre o tema, fossem no âmbito de polémicas ou exprimindo-se em obras musicais, era protagonizada por Fernando Lopes-Graça.59 A concepção de Lopes-Graça paira na análise de Francine Benoit à ópera Inês Pereira: “Nada, na invenção de Ruy Coelho, se fortalece de raízes medularmente tradicionais ou de pensamento verdadeiramente moderno.”60 À margem desta discussão, um facto parecia indiscutível: quando Serra Formigal se afastou do paradigma que enformava a escolha do reportório, o público desmobilizou. Se a temporada no Trindade terminou sem história, com a representação conjunta das óperas Rita e Palhaços, outro acontecimento gerou uma movimentação importante. A Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT partiu em tournée para Angola. A guerra na antiga colónia portuguesa começara havia cinco anos. No mesmo ano da viagem da Companhia do Trindade, o Estado português organizou em Angola o 1.o Festival das Artes, pretexto para levar a companhia a Luanda. A iniciativa estava conotada com o mesmo pendor democratizante que caracterizava a imagem pública dos espectáculos do Trindade. 58. N., Diário de Notícias, 5/7/1966, p. 5. 59. Fernando Lopes-Graça travou vários combates teóricos com Ruy Coelho. As diferentes concepções que apresentavam para estruturar a vida musical portuguesa e a música nacional foram quase sempre a origem das inúmeras polémicas. O culminar desta oposição terá sido o livro de Lopes-Graça, A Caça ao Coelho e outros Escritos Polémicos, Edições Cosmos, Lisboa, 1976. 60. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 7/7/1965, p. 8.

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Serra Formigal, em entrevista concedida depois da passagem da companhia por Luanda, Benguela e Lobito, salientou essa postura: Quando se projectou a ida a Angola, pessoas houve que, dentro do preconceito pseudo-culto próprio dos que desconhecem inteiramente este género artístico, exprimiram a ideia de que o espectáculo lírico subsiste apenas para “elites” muito “snobs”, por consequência, seria inútil e até ridículo levá-lo a Angola, onde os ânimos estão voltados para realidades mais fortes e onde, por outro lado, não haveria preparação nem disposição do público para ele. (…) Os que amam a ópera, pelo contrário, sabem que ela é cada vez mais um espectáculo popular, aqui e no estrangeiro. Quem vai ao Trindade e ao Coliseu e vê as casas sempre cheias de um público entusiástico e pagante que, certamente, pela sua condição económica, não frequenta os espectáculos para exibir trajes ou jóias nem para fazer ou afeiçoar relações úteis e mundanas…61

Serra Formigal fez questão de referir que os espectáculos foram feitos sem “interferências de ‘sociedade’ a influir no fenómeno”62, e que o público de Angola “é do melhor que temos tido a assistir aos nossos espectáculos: interessado, sincero e inteligente”63. A viagem realizada a Angola não deixou de se constituir num acontecimento político. A metrópole tentava mostrar que o seu interesse pela colónia deveria ser considerado também em vertentes como as da política cultural. A operação de charme correu bem e a imagem do carácter democrático, pluriclassista e multirracial da iniciativa circulou nos periódicos angolanos. Na Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Serra Formigal demonstrou agrado pela forma como decorreu a temporada lírica. A Lucia, de Donizetti, destacara-se, facto para o qual contribuiu, em grande plano, a cantora Zuleika Saque, a grande estrela da companhia. Pelo contrário, a Inês Pereira foi a representação menos conseguida, “não só por não se ter conseguido uma homogeneidade de elenco tão grande como se desejava (…) mas também sendo a própria ópera pouco conhecida do público e com as desigualdades próprias deste compositor.”64 O ponto alto da temporada fora, sem qualquer 61. Súmula das entrevistas de Serra Formigal, e críticas aos espectáculos, a propósito da viagem a Angola, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1966, p. 2. 62. Ibidem, p. 3. 63. Ibidem, p. 3. 64. Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Arquivo do Teatro da Trindade, 31/5/1967, p. 2.

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dúvida, a digressão a Angola, onde a companhia alcançou um “êxito enorme”, prestigiando a “FNAT e a cultura portuguesa no continente africano”65.

6. A temporada de 1967 iniciou-se sob o efeito das obras realizadas no Teatro da Trindade durante o ano anterior.66 A apreciação à Tosca, de novo eleita para a estreia da temporada, foi secundarizada pela impressão causada pelas alterações na morfologia do Teatro. João de Freitas Branco aproveitou os sinais de institucionalização do projecto da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade para fazer o elogio dos seus promotores: As importantes melhorias introduzidas no teatro vêm confirmar que as directrizes superiores, emanadas pelo Sr. Prof. Gonçalves Proença, e a sua interpretação e realização pela FNAT, e pelo director do Trindade, Sr. Dr. José Serra Formigal – um right man in the right place – representam uma (…) consciência daquilo que a população economicamente desfavorecida tem o direito de usufruir através da cultura em geral e da arte em particular (…)67

A apresentação do “novo teatro”, à qual as altas individualidades do regime não quiseram faltar, foi assinalada pela presença da cantora italiana Franca Como. A Tosca marcava o início de uma temporada preenchida pelo reportório italiano clássico, o Werther, de Massenet, e a inevitável ópera portuguesa, este ano, pela segunda vez, A Vingança da Cigana. Dom Pasquale, de Donizetti, conquistou a opinião da crítica, provando que a insistência num reportório convencionado resultava no aperfeiçoamento do estilo. A encenação de Gino Bechi foi aclamada. Francine Benoit, pautando 65. Ibidem, p. 2. 66. A obra, dirigida pelo arquitecto Miguel Evaristo de Lima Pinto, contou com o trabalho de decoração de Maria José Salavisa. Sobre a sua tarefa afirmou: “No que diz respeito à decoração, houve uma sugestão desde logo a aceitar: a decoração legada pelo final do século passado. Em faceta tão importante, realçou-se o que originalmente havia de bom e aproveitável, desembaraçado de acréscimos e enfeites posteriores, alguns deles de manifesta incoerência e evidente mau gosto! Teve-se sempre em mente no restauro não sobrecarregar o Teatro de decorativismos supérfluos em que o ecletismo do “fim do século” foi pródigo, mas não se ajustavam às teorias de hoje.” Maria José Salavisa, Programa do Teatro da Trindade, 1967, p. 23. 67. João de Freitas Branco, O Século, 29/4/1967, p. 9.

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as suas crónicas jornalísticas por determinada reflexão a que outros, escondendo-se atrás de um paternalismo condescendente, muitas vezes se escusavam, referiu que “o velho Trindade, transformado em teatro de ópera, está de parabéns”68. Defendeu, no entanto, que a aposta “na composição das óperas ajustadas (mais ou menos) às possibilidades dos nossos cantores líricos” e a representação “do reportório estrangeiro menos batido” continuava a ser a sua maior aspiração em relação ao Trindade, que teria de progredir sem se preocupar com “as reacções dos espectadores”. Quando a Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade aparentava uma sustentação sólida, com estruturas que garantiam alguma continuidade, a discussão acerca da orientação artística aplicada às suas temporadas ganhou, em detrimento das componentes organizacionais, um espaço de debate alargado. Já não se tratava de garantir a sobrevivência de um projecto, que parecia ter alcançado uma certa margem de autonomia, mas de lutar pelos moldes que presidiam à sua concepção. A apresentação de O Barbeiro de Sevilha ficou marcada pela estreia da cantora Elizete Bayan, que, até à extinção da Companhia Portuguesa de Ópera, iria ser uma das vedetas do Trindade. Nas récitas seguintes, Joly Braga Santos conduziu a orquestra em mais uma representação de La Bohème. A Vingança da Cigana foi a penúltima ópera em cartaz, antes do Werther. No final da temporada, o crítico Humberto d’Ávila escreveu n’O Século um comentário a propósito do projecto do Trindade, que traduz com alguma felicidade a complexidade inerente a uma iniciativa refém de objectivos políticos, mas com consequências profundas no interior de um quadro cultural sobre o qual intervém: (…) se é bem certo que a função faz o órgão, não menos certo é que a existência deste proporciona a necessidade de muitas necessidades virtuais e latentes que doutra forma não se concretizariam e nem, talvez, chegassem a manifestar-se, nesta impotência realizadora em que, à míngua de estruturas culturais, as melhores intenções têm vindo a estiolar-se. A conclusão lógica de tudo isto é que, com a realização presente e outras já devidas à mesma origem, a simples formação e manutenção de uma companhia de ópera portuguesa, assente em quadros estáveis, quer artísticos

68. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 5/5/1967, p. 8.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas quer de apoio, com que a FNAT soube tão meritória como bem orientadamente responder à metodologia preconizada pelos sectores mais interessados, veio provar à saciedade (…) que a promoção de uma autêntica actividade musical nacional só é possível a partir de uma institucionalização das estruturas necessárias…69

A recomposição do meio operático português com a institucionalização estrutural promovida pelo Trindade não resultou numa transformação significativa da sua organização simbólica. O Diário de Notícias apresentou, em 2 de Fevereiro de 1967, um editorial intitulado “Luzes de São Carlos no Trindade”70, em que enaltecia o Teatro da FNAT. O elogio apontava o papel digno que vinha alcançando na peugada do brilho do Teatro de São Carlos. Esta gradação valorativa desconsiderava as transformações estruturais que o projecto do Ministério das Corporações concretizara. As discussões e os parâmetros de avaliação do género lírico eram dominados pelos aspectos exteriores dos espectáculos, a presença das estrelas, a oportunidade das encenações. “As luzes do São Carlos” iluminavam o campo do teatro lírico nacional; os próprios artistas e colaboradores que todas as temporadas ajudavam a construir o projecto do Trindade nunca tinham tirado os olhos do Teatro Nacional de São Carlos. O simbolismo da tradição e as passagens gloriosas das vedetas que preenchiam as enciclopédias e as memórias operáticas tornavam o São Carlos um espaço mágico, mesmo para o público e para os artistas que ficavam do lado de fora. O facto de uma hierarquia cultural ser reconhecida pelos diversos actores envolvidos, tanto na produção como na recepção dos espectáculos, implicava o reconhecimento do poder instituído e, por conseguinte, das suas funções políticas e sociais. Os dominados contribuíam para o reconhecimento da sua condição subalterna: efeito paradoxal do seu acesso ao consumo cultural. Em Setembro do mesmo ano, os elementos do Coro do Teatro Nacional de São Carlos escreveram uma carta ao seu director pedindo-lhe para reivindicar, junto de Serra Formigal, um aumento das remunerações por récita – de 120$00 para 150$00. Acrescentaram que o coro tinha aceite “excepcionalmente as mesmas condições vigentes no São Carlos, por motivo das características especiais de que se revestia a

69. Humberto d’Ávila, O Século, 4/7/1967, p. 9. 70. “Luzes de São Carlos no Trindade”, Diário de Notícias, 2/8/1967, p. 6.

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simpática iniciativa desse Teatro”71. Serra Formigal respondeu ao director do São Carlos em 20 de Dezembro de 1967. Começou por argumentar que lhe parecia desaconselhável que um teatro com as características do Trindade, “de certo modo experimental em relação ao nosso Teatro Nacional de Ópera, se veja mais onerado do que o próprio Teatro Nacional de Ópera, relativamente a um sector de colaboração que lhe é prestada por este teatro.”72 Mas Formigal foi mais longe, argumentando que a iniciativa estatal que sustentava o Trindade fazia parte de uma mesma lógica global que presidia à organização do São Carlos: Teria também muito prazer que V. Exa. não considerasse as actuações do Coro do Teatro Nacional de S. Carlos no Trindade (FNAT) como efectuados fora do Teatro Nacional, pois que foi sempre nosso propósito, e assim temos procedido, que as temporadas do Teatro da Trindade, dada a sua função nacional atrás referida, se processassem em íntima colaboração com o Teatro de S. Carlos; este aliás, tem sido o nosso mútuo desejo e intenção de suas Excelências os Ministros da Educação Nacional e das Corporações e Previdência Social que presidem aos destinos dos Ministérios que ambos servimos.73

Formigal argumentou que o coro recebera mais pelos espectáculos do Trindade do que pelas apresentações no São Carlos, que cada vez eram mais raras. Relativamente ao facto, também aludido na primeira carta, de que os outros elementos do Trindade, especialmente os cantores, ao contrário dos elementos do coro, tinham tido os seus aumentos, Formigal respondeu que os motivos destes aumentos – de 1.500$00 para 2.000$00 e depois para 2.500$00, no que respeita aos principais papéis – eram outros: Porquê estas actualizações? Exactamente para diminuirmos um pouco a grande “décalage” existente entre os nossos “cachets”, os do Teatro Nacional de S. Carlos e outras instituições financeiramente mais poderosas que o Teatro da Trindade. Com efeito, julgamos não nos enganar se afirmarmos que o Teatro Nacional de S. Carlos paga aos cantores portugueses por cada récita (1.os papéis) 5, 6, ou 7 mil escudos, o que, sendo pouco, é bastante mais do que nós podemos pagar.74

71. Carta do Coro do Teatro Nacional de São Carlos ao director do Teatro Nacional de São Carlos, Setembro de 1967, enviada como anexo de uma carta do Teatro Nacional de São Carlos ao Director do Teatro da Trindade em 19/9/1967, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1967. 72. Carta de Serra Formigal ao director do Teatro Nacional de São Carlos, 20/12/1967, p. 1 Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1967. 73. Ibidem, pp. 2-3. 74. Ibidem, p. 3.

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Ponderando tudo, Serra Formigal considerou que era possível aumentar os elementos do coro, à custa de muitos sacrifícios, em 10$00 por récita. Entretanto, procurou assegurar75, junto do Instituto da Alta Cultura, uma contribuição financeira para a continuação de Gino Bechi, durante oito meses, nas suas funções de professor de canto e cena e de encenador. Solicitou ao Instituto de Alta Cultura um subsídio de 150.000$00, o que, juntando a outros 150.000$00 atribuídos pela Gulbenkian, completava, quase na totalidade, o ordenado anual de 320.000$00 que Bechi passaria a usufruir. Serra Formigal aproveitou ainda para informar o presidente do Instituto de Alta Cultura dos excelentes resultados práticos das bolsas de estudo que deram oportunidade às cantoras Zuleika Saque e Elsa Saque de frequentar o Centro de Avviamento do Teatro Massimo de Palermo, onde trabalharam sob a direcção do mesmo Gino Bechi. O Instituto concedeu o subsídio.

7. A Companhia Portuguesa de Ópera entrou na sexta temporada com a Sonambula, de Bellini. A escolha da ópera de um dos mestres do belcanto não deixava evidenciar as representações importantes que marcaram o ano de 1968 no Trindade. Na estreia, o Presidente da República, Américo Thomaz, condecorou Tomás Alcaide. A encenação de Bechi foi muito admirada, levando o crítico Nuno Barreiros76, no Diário de Lisboa, a formular um desejo: “Além de a CPO proporcionar emprego a muita gente poderia permitir a alguns elementos experimentar soluções que noutros espaços não lhes seriam permitidas.”77 A troca da habitual dupla Os Palhaços e Cavalleria Rusticana pela parelha que agregava Os Palhaços e O Segredo de Susana, de Ermanno Wolf-Ferrari, autorizou, segundo o crítico do Diário da Manhã, que se tivesse poupado “ao público dois dramas sangrentos”78. Entretanto, Ruy 75. Carta de José Serra Formigal ao presidente do Instituto de Alta Cultura, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta da Correspondência. 76. Nuno Barreiros, adepto de um modernismo musical, próximo dos Freitas Branco. Nuno Barreiros era casado com Maria Helena de Freitas, uma das principais colaboradoras de Serra Formigal no Trindade. 77. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 8/5/1968. 78. JCP, Diário da Manhã, 24/5/1968, p. 4.

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Coelho mostrava-se conquistado pelo Trindade. A música que por lá passava não era “música que entra por um ouvido e sai pelo outro, que se esquece logo no momento em que se ouve. Essa, por mais que se oiça – por mais que se force a audição, por mais que se pretenda impor – nasce e desaparece porque em música só se gosta do que se aceita naturalmente.”79 A ópera Os Palhaços era o exemplo acabado desse género de “disposição musical genética”, pois “são muitas as frases, as melodias que milhares de pessoas conhecem de cor – pessoas de todas as classes de ouvintes – em todos os países – frases que vivem na memória, que se cantam mentalmente, que se estimam verdadeiramente.”80 O director de orquestra desta dupla representação lírica foi o maestro brasileiro David Machado. Serra Formigal convidou-o, ainda em 196781, para dirigir seis récitas do Otello, de Verdi, ópera que nunca viria a fazer parte do reportório do Trindade. Formigal prometeu a Machado um pagamento total de 36.000$00. O seu talento era reforçado pelo facto de ser “natural do nosso país irmão, o Brasil, com o qual procuramos hoje edificar, cada vez mais, a Comunidade Luso-Brasileira”82. Apesar da citada relação lusófona, Machado foi contratado pelo seu valor artístico, rompendo com a exclusividade portuguesa na direcção da orquestra. Serra Formigal continuava a lutar pela progressiva qualificação do seu teatro de ópera. A terceira apresentação do Rigoletto não impressionou. O que se seguiu, porém, constituiria, na história da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, um momento importante. Serra Formigal arriscou a colocar em palco As Bodas de Fígaro, de Mozart. Os jornais reagiram de imediato. Joly Braga Santos defendeu a audácia de representar Mozart só com elementos locais, “porque esse arrojo constitui um louvável esforço para sair da rotina. Neste caso a rotina é a ópera italiana romântica, que é muito mais difícil do que em geral se crê. O único inconveniente da insistência do repertório italiano e francês do século passado é que não separa o trigo do joio. E assim encontramos a par de partituras geniais, como o 79. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 19/5/1968, p. 5. 80. Ibidem, p. 5. 81. Carta de Serra Formigal para o maestro David Machado, 10/10/1967, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1968. 82. Ibidem. O Brasil estava, desde 1964, sob o domínio de um regime militar que se intensificara em 1967, com a subida ao poder de Arthur da Costa e Silva, antigo ministro do Exército do seu predecessor, o general Castello Branco.

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Simão Bocanegra, o Werther ou La Bohème, outras de péssima qualidade musical, como A Favorita ou Os Palhaços. Nesse ponto os alemães estão melhor, visto que no seu país aquelas óperas que se tornaram mais populares são exactamente as de mais elevada qualidade.”83 Se a quebra da rotina, feita em nome de uma “ópera de mais elevada qualidade”, agradou à generalidade da crítica, em alguns pormenores de As Bodas de Fígaro ainda subsistiam elementos de uma popularização excessiva do espectáculo: Nuno Barreiros exigiu mais contenção, porque o Fígaro de Mozart não é o de Rossini, advertindo um dos cantores para o facto de a sua personagem ser pouco mozartiana: “Preferíamos que tivesse adoptado um quid de leveza, uma concepção menos a traço grosso.”84 O espectáculo em si tinha agradado porque “chegava a parecer impossível: um elenco de cantores portugueses sem prática mozartiana abalançar-se a umas das mais importantes óperas do mestre de Salzburgo e conseguir uma realização, não só digna mas decorrendo a nível elevado. Perfeita, paradigmática? Evidentemente que não. Mas positiva, altamente positiva.”85 O Trindade deixara a sua mediana dignidade, para se apresentar, em As Bodas de Fígaro, a um nível mais elevado. A Manon Lescaut, de Massenet, constituiu a segunda incursão do Trindade pelo património romântico francês. João de Freitas Branco considerou que “o resultado global não igualou… o memorável êxito de As Bodas de Fígaro”, especialmente porque os “nossos cantores pronunciam muito pior o francês do que o italiano.”86 O público que preencheu o teatro pareceu não importar-se com o defeito de expressão, aderindo à ópera de Massenet. O compositor francês foi elogiado por Ruy Coelho. Alguns críticos, recordou Coelho, afirmavam que Massenet tinha a faculdade de agradar excessivamente desenvolvida. O compositor português preferia, no entanto, recordar as palavras de Debussy: “Invejavam-lhe os grandes puristas que só aqueciam o coração no respeito laborioso dos cenáculos.”87 A temporada do Trindade não tinha ainda terminado. As Variedades de Proteu, peça de António José da Silva88, musicada por António Tei83. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 17/7/1968, p. 4. 84. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 26/6/1968. 85. Idem. 86. João de Freitas Branco, O Século, 13/7/1968, p. 4. 87. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 12/7/1968, p. 5. 88. Que terá sido o primeiro autor literário e produtor teatral de composições operísticas portuguesas, faladas e cantadas em português. João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4.

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xeira, introduziu um elemento dissonante na lógica prosseguida por Serra Formigal, em relação às óperas nacionais. Mais uma vez a obra fora recuperada por Filipe de Sousa, que assumiu também a direcção da orquestra.89 João de Freitas Branco considerou a peça “um singspiel na melhor tradição germânica”90, embora musicalmente recebesse o italianismo de braços abertos. A forma músico-dramática de As Variedades de Proteu salientava a importância da palavra, realçando a força dramática do enredo, em detrimento de uma comunicação monopolizada pelo canto e a melodia. Lamentou ainda o cronista de O Século, que Filipe de Sousa tivesse excluído da peça pormenores que poderiam chocar “espectadores com preconceitos”91. Como exemplo deste procedimento exagerado, a supressão de um pequeno trocadilho com as palavras “casar” e “azar”: “casar diria, ainda que eu não ouvi mais do que azar: porém casar e azar tudo é o mesmo.”92 Quem não apreciou a obra foi Ruy Coelho. A mistura de alguns números soltos, de música para canto e pequena orquestra entre muitas e diversas passagens declamadas pelos próprios cantores e diversos quadros com as respectivas mutações, o que, desde logo, com tantos hiatos, cria uma atmosfera sem acção musical. E, conjuntamente, a fraca acção musical dá monotonia.93

A novidade de As Variedades de Proteu não se esgotou na ruptura com determinada tradição de reportório. A encenação, da responsabilidade de Artur Ramos, velho amigo de Serra Formigal, apesar das patentes divergências políticas, causou alguma sensação. O impacte das encenações do Trindade na crítica especializada tinha-se resumido, até à data, com uma ou outra excepção, a uma ou duas linhas de jornal. Num momento em que, tanto no teatro como na ópera, a encenação conquistara um papel fundamental na concepção das obras, recriando-as de forma que, muitas vezes, desagradava a sensibilidades mais

89. O maestro Filipe de Sousa assinou um contrato, em 4/4/1968, com José Serra Formigal, onde se compromete, em troca de uma remuneração de 15 mil escudos, a dirigir seis récitas de As Variedades de Proteu, como a ensaiar a orquestra e os cantores “tanto ‘à italiana’ como de cena”. Contrato entre Filipe de Sousa e Serra Formigal, 4/4/1968, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1969. 90. João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4. 91. Ibidem, p. 4. 92. Ibidem, p. 4. 93. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 27/7/1968, p. 5.

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puristas, no Trindade tudo parecia convencional. A ausência de debate em torno da encenação dos espectáculos não se explica pela falta de interesse que os críticos dos jornais e das revistas, mais uns do que outros, nutriam pelo tema. O contexto do Trindade, todavia, não suscitava nenhuma abordagem. A concepção dos espectáculos, o público a quem se dirigiam, a natureza dos reportórios, os elementos executores, tudo fazia pensar na rotina de um figurino preconcebido. Estando a encenação modelada, o reportório quase fixo em determinado arquétipo, restava à crítica salientar a prestação dos cantores, a beleza dos cenários, a qualidade da orquestra e o trabalho do maestro. Quando, em As Variedade de Proteu, Artur Ramos, um homem com carreira teatral firmada, concebeu uma encenação que transportava a peça de António José da Silva para um futuro longínquo com cenários espaciais, a encenação passou a personagem principal da ópera: “O que mais caracterizou estas Variedades de Proteu, como espectáculo dos nossos dias, foi, exactamente, a quase sensação de ser Artur Ramos o autor da peça.”94 O insólito da questão suscitou a João de Freitas Branco uma longa prosa sobre a encenação, algo inédito nas suas crónicas jornalísticas sobre a Companhia Portuguesa de Ópera. Freitas Branco analisou o trabalho de encenação, considerando-o, apesar da aparente inovação, convencional: “(…) além dos cenários e figurinos (…) não primarem pelo bom gosto, a marcação cénica mantém-se demasiado próxima das velhas convenções, o que não pode deixar de produzir um efeito de discrepância.”95 Para certo ethos artístico, a aparente quebra de uma determinada rotina podia, afinal, ser um mero simulacro. Mas o facto de uma encenação do Trindade ter originado discussão era por si só uma vitória. O ano de 1968 deixava no ar uma aparente intenção de mudança. Serra Formigal, notando o fortalecimento da autonomia da companhia, parecia querer, medindo bem até onde podia ir, forçar as expectativas que se colocavam ao seu Teatro.

94. Em comentário, Freitas Branco cita um artigo de Ernst Krause para a revista alemã Opernwelt, que dizia: “Acaso vamos ainda assistir a La Bohème de Puccini, ou será Zeffirelli o seu autor? Discutimos o Barbeiro, de Herlschka, ou a partitura de Rossini? Qual é o Wagner mais importante, o Wieland ou o Richard? João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4. 95. Ibidem, p. 4.

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8. A temporada de 1969 não se adivinhava fácil. As dificuldades de organização da temporada, motivadas pelas muitas solicitações feitas aos artistas portugueses, ficaram bem elucidadas numa carta que Serra Formigal enviou à cantora Ana Lagoa, a propósito da sua contribuição para os espectáculos previstos. O Trindade estava ainda longe dos centros musicais da capital, verdadeiros monopolizadores de eventos e congregadores das sensibilidades mais apuradas: (…) o Festival Gulbenkian de Música do ano próximo veio desorganizar-me de forma importante a temporada. Como vão, em 1969, utilizar as orquestras do Porto e de Lisboa durante o festival, a Emissora não tem músicos disponíveis para o Trindade, o que me obriga a parar todas as récitas e ensaios de orquestra de 27 a 31 de Maio. Por outro lado, pedem-me a tua colaboração para um concerto em 21 de Maio, e ainda a do Malta, Cláudio e Elsa para diversas e desvairadas datas.96

João de Freitas Branco considerou, nas páginas da Colóquio Artes97, o oitavo Festival Gulbenkian de Música como aquele que, até àquela data, tinha alcançado maior projecção. A abertura dera-se no Coliseu dos Recreios, onde o maestro Claudio Abbado dirigiu a Filarmónica de Viena na interpretação das Três Peças para Orquestra, de Alban Berg, e as Cinco Peças, de Anton Webern. Pela primeira vez em Portugal, foi representada uma ópera de Georg Friedrich Haendel, Alcina. No campo do teatro lírico, realizaram-se também Ida e Volta, de Paul Hindemith, o Capote de Luciano Chailly, com a participação de Elsa Saque, e O Retábulo de Mestre Pedro, de Manuel de Falla. Passaram ainda pelo Festival Gulbenkian, entre muitos outros artistas, Mstislav Rostropovitch, Karl Richter, Martha Argerich e o compositor Olivier Messiaen. No Trindade, o orçamento98 para a temporada de ópera, que decorria em simultâneo com o Festival Gulbenkian, previa uma despesa total de 4.225.000$00.99 Este valor era na sua maior parte coberto pela contribui96. Carta de Serra Formigal para Ana Lagoa, 7/12/1968, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1969. 97. João de Freitas Branco, “O XIII Festival Gulbenkian de Música foi o de maior projecção”, em Colóquio Artes, n.o 54, Junho de 1969, pp. 43-51. 98. Orçamento Ordinário da Receita e Despesa para o ano de 1969, Arquivo do Teatro da Trindade. 99. Nesse ano, as Contas Gerais do Estado assinalavam um gasto de 10.006.000$00 com o Teatro de São Carlos. Diário das Sessões n.o 89, de 14/4/1971, p. 1788 (97).

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ção da FNAT, 2.700.000$00, acrescentado de 500.000$00 da Junta de Acção Social, 200.000$00 da Fundação Gulbenkian e 75.000$00 do Instituto de Alta Cultura. Esperava-se 440.000$00 de receitas extraordinárias. A restante verba resultaria de rendimentos próprios, perfazendo os 310.000$00 que se pensava arrecadar com a venda de bilhetes. A autonomia financeira do Teatro da Trindade situava-se nos 7,3 por cento. Do total da despesa, 787.820$00 prendem-se com gastos com o pessoal100, 25.500$00 com despesas materiais, 466.775$00 com pagamentos de serviços e diversos encargos. Com a actividade artística o Trindade despendia 2.767.700$00, dos quais 2.708.700$00 com a ópera, 40.000$00 com o teatro declamado e 19.000$00 com concertos. Significava isto que, do total da actividade artística, a ópera preenchia 97,8 por cento do orçamento. O Trindade estava transformado, quase exclusivamente, num teatro de ópera. Não se juntam a estes montantes as despesas extraordinárias do Teatro, ocupadas, numa parte importante, por desembolsos com tournées da Companhia Portuguesa de Ópera – 77.000$00, num total de despesas extraordinárias que atingia os 177.000$00. Face ao reportório do ano anterior, a temporada de 1969 foi menos ousada. Notou-se uma tentativa de oferecer produtos novos aos espectadores. O contexto que envolvia a gestão formal das temporadas e as limitações materiais e humanas da iniciativa reduziam, no entanto, as possibilidades de apresentar propostas muito variadas. O espectáculo de estreia, reservado ao sucesso garantido de um clássico italiano, fez-se ao som de La Traviata. A ocasião serviu para o Presidente da República condecorar, no foyer do Teatro, Serra Formigal e Gino Bechi. O grau de oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada foi justificado pelos serviços prestados à ópera portuguesa. O êxito alcançado por As Bodas de Fígaro no ano anterior conduziu Serra Formigal a repetir o evento. Com os mesmos protagonistas, Ivo Cruz na orquestra e Benamor na encenação, As Bodas de Fígaro foram um sucesso. A crítica gostou, tocada pelo espírito da obra: “Temos no Trindade um espectáculo de elevado 100. Na nota justificativa do orçamento, Serra Formigal fundamenta a decisão: “Os bilheteiros estavam a metade dos ordenados normais mais baixos dos vários teatros de Lisboa, conforme verificámos. Quanto ao pessoal de cena (electricistas e maquinistas), também os seus vencimentos são baixos, mesmo depois deste aumento, relativamente a alguns teatros, mas ficam agora mais equilibrados”. Nota justificativa do Orçamento Ordinário da Receita e Despesa do Teatro da Trindade para o ano de 1969, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 2.

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nível, cujo mérito deve aferir-se das responsabilidades do empreendimento. Ora pairou, de facto, na realização da Companhia Portuguesa de Ópera um espírito mozartiano.”101 Seis anos depois de ter sido escolhida como a representante do património lírico nacional para a primeira série de espectáculos no Trindade, A Serrana, de Alfredo Keil, regressou aos palcos do Teatro. Considerada, na altura, uma escolha certeira, se olvidarmos a polémica interna que marcou a posição de Ruy Coelho, foi sem a envolvência celebratória que caracterizou o lançamento da Companhia Portuguesa de Ópera, em 1963, que a obra foi agora recebida. O Diário de Notícias, no entanto, manteve a sua postura editorial, assinalando que n’A Serrana “todas essas características fundamentais em que o amor, a paixão sem freio, a violência e a brandura se fundem para conseguir umas das mais significativas obras de carácter rústico do nosso teatro lírico.”102 Quem não alinhou no elogio ao nacionalismo operático foi Joly Braga Santos. É útil recordar que este compositor afirmara, em 1963, aquando da primeira representação, que a obra era “uma ópera nacional de importante valor histórico” com “uma autêntica veia lírica, um bom libretto e uma meia dúzia de ideias musicais genuínas”, e que, portanto, tinha constituído “uma escolha acertada… para representar a ópera do nosso país”. Seis anos volvidos, um certo desagrado, já notado, apesar de tudo, na crónica de 1963, surgiu com violência: E só como produto de um romantismo ultra-decadente pode ser apreciado o libreto de “A Serrana”, dramalhão de faca e alguidar, com todos os rodriguinhos do mau teatro que fez as delícias de muitos dos nossos avós e bisavós (…) dificilmente se compreende o zelo daqueles que teimam em considerar “A Serrana” como uma obra importante do ponto de vista linguístico-musical, pois que um dos seus maiores defeitos é precisamente maltratar a língua portuguesa com uma prosódia, não só cheia de erros, como ausente de justa correspondência rítmica na partitura (…) Mas também como linguagem musical a Serrana não pode ser comparada a nenhuma das óperas que fizeram carreira mundial no teatro musical verista. A sua escrita coral é de fraca orgânica, tanto harmónica como polifónica e a orquestração é rudimentar e desajeitada.103

101. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/5/1969. 102. A.N., Diário de Notícias, 7/6/1969, p. 5. 103. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 28/6/1969, p. 4.

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O que em 1963 era admissível, seis anos depois deixara de o ser. Joly Braga Santos, o compositor português que mais se destacava na conjuntura política e social da época, parecia exigir, não se sabendo em que termos concretos, uma nova política para o Trindade, em especial no que respeitava às óperas portuguesas. Seguiram-se Amélia al Ballo, de Menotti, e Il Gobbo del Califfo, de Franco Casavola. Ruy Coelho considerou as óperas, nomeadamente a primeira, “na linha das melhores óperas italianas, onde a música é sempre música e não mera especulação da escrita.”104 A Joly Braga Santos também agradou a ópera de Menotti; quanto a Il Gobbo del Califfo, “Lasciate morire lo chi è morto.”105 João de Freitas Branco sugeriu que a ópera de Casavola “é uma brincadeira cénico-musical suficientemente conseguida para proporcionar um recreativo entretenimento.”106 Werther, de Massenet, voltou a levar aos palcos do Trindade o romantismo exacerbado. A temporada finalizou com três óperas de Rossini: La Scala di Seta, Cambiale de Matrimonio e Adina. Com o maestro Mario Pellegrini a dirigir a orquestra, Artur Ramos foi o responsável pela encenação. Quase todos os críticos concordaram que das três óperas, só a Cambiale di Matrimonio poderia proporcionar um bom espectáculo. Entretanto, nas páginas da Vida Mundial, o crítico Mário Vieira de Carvalho107, numa retrospectiva da temporada da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, sistematizou um modelo alternativo ao tipo de concepção artística que ia decorrendo no Teatro.108 Antes, porém, apontou aquelas que julgava constituírem-se como as principais deficiências estruturais da organização da FNAT: a) o ensino da música, além de restrito geográfica e socialmente, não está estruturado com o mínimo de dignidade e eficiência: assim, o recrutamento e formação dos cantores (dos músicos em geral) processa-se ao acaso da fortuna e das vocações improvisadas; b) o magistério de Gino Bechi, exercido “a latere” e em função dos espectáculos do Trindade, nunca poderá suprir a ausência de formação de base; c) cantor de ópera é profissão que não existe no nosso País; os cantores são tratados oficialmente

104. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 18/6/1969, p. 5. 105. “Deixai morrer o que está morto”. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 22/7/1969, p. 4. 106. João de Freitas Branco, O Século, 19/6/1969. 107. Mário Vieira de Carvalho desempenhava as funções de crítico musical no Diário de Lisboa, na Seara Nova e na Vida Mundial. Defensor de estéticas vanguardistas, era um opositor ao regime, membro do Partido Comunista Português. 108. Mário Vieira de Carvalho, Vida Mundial, n.o 1574, 8/8/1969, p. 58.

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Vieira de Carvalho, não deixando de considerar importante o papel que o Trindade assumira na carreira dos artistas portugueses, referia que o “mérito será maior se o reportório se renovar, se a Companhia tradicional se transformar em Companhia experimental, se a problemática abordada em cena for, tanto quanto possível, sentida e vivida por uma plateia de hoje, se o ir ao Teatro da Trindade deixar de ser um hábito pequeno-burguês dos vencidos da vida.” Termina afirmando que “a grande missão da ópera no Trindade ainda é a de colocar na ordem do dia as reformas estruturais que se impõem.”110 As reformas que Vieira de Carvalho pretendia ver concretizadas no Teatro da Trindade erguiam-se contra o modelo de ocupação de tempos livres preconizado pela FNAT. Tendo em conta as finalidades culturais e políticas da organização corporativa, a organização de um teatro experimental com um reportório que acentuasse a função social e política da ópera era uma impossibilidade evidente. Por outro lado, as reformas no panorama músico-dramático português não faziam parte das atribuições do Ministério das Corporações e da FNAT, aos quais a ópera só interessava como instrumento político. O que se ia passando no Trindade, em relação à ópera, resumia-se a um efeito colateral das políticas de ocupação de tempos livres.

9. O impacte que a actividade operática do Teatro da Trindade representou para as carreiras de muitos artistas foi reforçado, em 1970, quando o orçamento ordinário do Trindade concedeu uma verba destinada a descontos para a previdência social. O objectivo da profissionalização, definido desde o início por Serra Formigal, estava mais perto. Como

109. Ibidem, p. 58. 110. Ibidem.

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consta da Nota Justificativa do Orçamento Ordinário do Teatro para o ano de 1970: Nos “encargos com os artistas” verifica-se uma menor despesa prevista em relação a 1969, apesar de se considerar a contribuição para a Previdência, que não só nos é exigida pela Caixa respectiva, como representa uma decisão de eminente justiça social, primeira e importante medida no caminho da profissionalização sócio-económica do cantor lírico português, que assim é iniciada (…)111

O orçamento para 1970 previa a diminuição das récitas totais de ópera, de 36, em 1969, para 30. Desde que a Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT apresentava espectáculos no Trindade vinha-se assistindo a uma redução progressiva do número de récitas, durante muitos anos colmatada com um aumento de óperas apresentadas. As contribuições externas da FNAT, da JAS, da Gulbenkian e do Instituto de Alta Cultura, mantinham-se nos mesmos valores absolutos. Serra Formigal esperava apresentar cinco óperas: La Rondine, de Puccini, na sua primeira audição em Portugal, Fausto, de Gounod, Carmen, de Georges Bizet, Madame Butterfly, de Puccini e La Domanda di Matrimonio, de Chailly, que também seria uma primeira audição no nosso país.112 O reportório, que pela primeira vez não contava com uma ópera nacional, registaria uma alteração: a ópera de Chailly foi substituída pela dupla Rita e Cavalleria Rusticana. A célebre ópera de Bizet abriu a época no Trindade. Para a encenar veio de França o regista Jean-Louis Cassou.113 O encenador francês era um seguidor atento da experiência do Trindade, chegando mesmo a escrever dois artigos para a revista francesa Opéra sobre a Companhia Portuguesa da FNAT. Demonstrando-se um adepto do modelo de ópera praticado pelo Trindade, sobretudo pelo carácter popular das récitas114, suportadas por subvenção estatal, Cassou, depois de uma passagem por Lisboa, em 1968, onde assistira aos primeiros dois espectáculos da 111. Nota Justificativa do Orçamento Ordinário do Teatro da Trindade para o ano de 1970, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 2. 112. Ibidem, p. 2. 113. Jean-Louis Cassou fora director do Centre Lyrique Populaire de France e desempenhava, na altura, as funções de encenador. 114. Jean-Louis Cassou, «Le Theatre de la Trindade a Lisbonne: une expérience passionnante de théâtre populaire», Opéra, n.o 69, Setembro de 1967, pp. 44-45.

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temporada de ópera, La Traviata e As Bodas de Fígaro, discordara das soluções cénicas dos espectáculos. La Traviata do Trindade caracterizarase pela sua estética académica; As Bodas de Fígaro foram demasiado clássicas: “Nulle invention scénique, nulle recherche dans l’interprétation.”115 A “Carmen” de Cassou, que marcou a estreia aclamada de Isabel Malaguerra, não fez os encantos do público. O crítico da Vida Mundial, Carlos Rego116, apreciou a encenação que caracterizou pela sua contenção, pouco voltada para grandes expansões e movimentos, porventura a explicação para o descontentamento dos espectadores. Se a Carmen apareceu no Trindade mais depurada, a La Rondine, de Puccini, segundo a crítica, enveredou por caminhos mais complacentes, algo proporcionado pela própria natureza da obra, que os críticos concebem mais perto da opereta. Carlos Rego, no final da sua apreciação, interrogou: “Os resultados foram por sua parte, bons, mas deixamos a questão. Teria valido a pena dar vida a uma ópera de qualidade deveras inferior?”117 De Rita e Cavalleria Rusticana destacou-se a estreia da cantora Teresa Barbieri. Seguiu-se a La Bohème e o encerramento com um Fausto, de Gounod, prezado pelos jornais: A qualidade do espectáculo espantou-nos (…) Para o Trindade, o seu pequeno espaço disponível, as suas limitações de aparelhagem, este Fausto é de craveira notável (…) Infelizmente acontece no Trindade que uma ópera não resulta por haver um desnível abismal entre os vários elementos que compõem o elenco, caso da última Butterfly, por exemplo.118

Finda a temporada, Serra Formigal recebeu uma carta na qual os cantores do elenco do Teatro de Ópera expressavam um conjunto de reivindicações. Serra Formigal, como referiam, conhecia-as, e dera o seu aval à realização de reuniões para os artistas discutirem a sua situação. O primeiro ponto tratava da questão das remunerações. Argumentavam que os cachets auferidos eram idênticos aos de 1963, quando do início das actividades da Companhia. Em 1963/64, foram pagas, no que res115. Jean-Louis Cassou, “Comment Nait l’Opéra Portugais de Demain”, Opéra, n.o 78, Julho de 1968, p. 31. 116. Carlos Rego, Vida Mundial, n.o 1614, pp. 62-64. 117. Carlos Rego, O Século, 16/5/1969, p. 11. 118. Carlos Rego, O Século, 15/7/1970, p. 11.

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peita aos papéis principais, dez récitas a 1.500$00 cada, o que perfazia 15.000$00. Em 1965 e 1966, as récitas reduziram-se para oito por ópera, tendo o pagamento subido para 2.000$00, o que, no total, implicava um pagamento de 16.000$00. Entre 1967 e 1970 o número de récitas baixou para seis por ópera, pagas a 2.500$00 a récita, o que totaliza 15.000$00.119 Segundo os cantores, a situação artística da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade atingira um patamar incompatível com a modéstia dos primeiros salários, na altura “plenamente aceites porque todos compreenderam o objectivo grandioso que V.Exa se propunha realizar e todos nos orgulhamos de ter dado a colaboração necessária dentro do melhor que cada pode. (…) Felizmente, o nível dos espectáculos evoluiu favoràvelmente durante as últimas temporadas e, talvez por isso, todos sentimos mais exigência, tanto dos críticos como do público.”120 Os artistas reivindicaram, além de alguns pormenores relativos à organização dos ensaios, o pagamento de 5.000$00 por récita para os papéis principais, 3.000$00 para os segundos, e 1.500$00 para os pequenos. O director do Trindade encheu a margem esquerda do original da carta com pequenos comentários, muitos deles ilegíveis. Parece, no entanto, tratar-se de um esboço de carta à direcção da FNAT, sustentando as exigências dos cantores. A primeira frase ainda é perceptível: “Os cachets são, com efeito, muito baixos (…) Desta forma o Trindade não pode ser estimulante.”121 O pedido do director do Trindade à direcção da FNAT, não chegando aos números sugeridos pelos artistas, foi generoso: principais papéis 4.000$00, segundos 2.400$00 e pequenos 1.200$00. A afirmação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade no meio operático nacional, aspiração fundamental do seu director, era incompatível com as remunerações praticadas. Sustentando as reivindicações salariais dos cantores, Serra Formigal esperava fortalecer a autonomia de um projecto que continuava a sofrer duras comparações com a realidade do São Carlos.

119. As contas devem, no entanto, ser feitas deste modo. Se as récitas vinham a baixar progressivamente, o número de óperas, até certa altura, aumentara, o que implicava mais récitas. Por outro lado, nem todos cantores tinham um número de récitas assegurado, variando a sua intervenção consoante a programação apresentada. 120. Carta dos Artistas Líricos da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade ao director do Teatro, 20/7/1970, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1970. 121. Ibidem.

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10. A distribuição dos papéis e respectivas remunerações122 para as óperas a apresentar em 1971 confirmaram a concretização dos aumentos sugeridos à FNAT por Serra Formigal. Em documento interno que resumia o trabalho realizado até ao ano de 1970, referiu-se à representação de 400 récitas, em que participaram 360 mil espectadores. A meta seguinte era alcançar “o profissionalismo integral dos artistas líricos nacionais através da formação de um quadro estável.”123 Tal finalidade só seria alcançável com um acordo institucional, porque “só pode obter-se em colaboração com o Ministério da Educação Nacional através do Teatro de S. Carlos, por razões de ordem financeira e por serem as duas entidades – Teatro da Trindade e Teatro Nacional de S. Carlos – interessadas no sector.”124 Serra Formigal sabia que a continuidade do Trindade estava mais segura se a Companhia Portuguesa de Ópera, como projecto de produção e de formação, fosse integrada em estruturas estatais relacionadas com o universo cultural. Esse seria o seu lugar natural, e não no interior de uma instituição que funcionava sob a alçada do Ministério das Corporações, a quem cabia a coordenação e pacificação controlada dos diversos interesses sociais e económicos. Fora das atribuições de um Ministério como o da Educação, que financiava o São Carlos, a institucionalização de uma estrutura operática era uma realidade complexa. O “Trindade do futuro” deveria ser valorizado pela sua relevância na esfera cultural e não apenas como um instrumento da política social do país. Na introdução do programa das óperas do Trindade para 1971, Serra Formigal expressava todas estas tensões: A fase experimental já lá vai, pode dizer-se. Experimental no sentido de procurar um caminho e de se analizar as reacções do público. O caminho está encontrado há muito e o público tem reagido o melhor possível, quer em número quer em entusiasmo, quer em discernimento, sabendo, geralmente, distinguir as melhores realizações apresentadas no palco do Teatro da Trindade… Tal discernimento constitui prova (em relação a alguns sectores) de que a obra empreendida vem dando frutos. Existe 122. Temporada de Ópera de 1971 – Repertório e Elenco, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971. 123. Documento que resume o trabalho realizado no Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971, p. 2. 124. Ibidem, p. 2.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas já hoje um grupo de melómanos que não saiu, pròpriamente, dos antigos frequentadores do Coliseu nem dos actuais assinantes de S. Carlos. Muito embora uns e outros se juntem com o novo grupo da rejuvenescida sala do velho Trindade. As noites de estreia adquiriram até, ao longo destes nove anos, um ar de gala, pois não raro deparamos com pessoas conhecidas, que fazem parte da assistência elegante de S. Carlos. Porém, os trabalhadores – mesmo os mais modestos – não perderam o seu lugar e estão em sua casa. Esta iniciativa da FNAT destina-se a eles, muito especialmente, mas alargou-se a um público mais vasto, mercê do bom nível conseguido em tantos espectáculos.125

As considerações de Formigal coincidiram com a nomeação de João de Freitas Branco para a direcção do Teatro de São Carlos. O cargo de director do São Carlos, desempenhado durante décadas por José de Figueiredo, era uma posição de poder bastante apetecível. A nomeação de João de Freitas Branco, com parecer negativo da polícia política, surgiu no dealbar da chamada “Primavera Marcelista”, momento marcado na esfera cultural pelo esforço de José Hermano Saraiva em captar para os organismos culturais do governo um conjunto de intelectuais desafectos ao regime. É nessa leva de renovação que é nomeada a Comissão de Reforma do Conservatório. A nomeação de João de Freitas Branco para o São Carlos terá deixado para trás outros concorrentes possíveis, como Ruy Coelho e José Serra Formigal. Antes de a nomeação se concretizar, Freitas Branco escreveu, na revista Arte Musical, de Fevereiro de 1970, um resumo da temporada que acabara de passar. Num panorama geral em que o Festival Gulbenkian se destacara de todos os outros eventos, foi a situação da ópera em Portugal que lhe mereceu prosa maior. A situação, que apresentava aspectos inequivocamente positivos, parecia estagnar. O São Carlos mantinha-se “fiel ao programa-tipo lançado há um quarto de século, com o ulterior aperfeiçoamento das repetições, no Coliseu, de alguns espectáculos”; no Trindade, onde se definira “em bases estáveis, uma companhia portuguesa de ópera126 (…) a insistência num reportório tradicional estrangeiro compreende-se, até certo ponto, porque assegura uma considerável probabilidade de êxito junto do público.”127 O desequilíbrio na distribui125. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1971, p. 3. 126. João de Freitas Branco, Arte Musical, Fevereiro de 1970, p. 115. 127. Ibidem, p. 115.

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ção da produção musical levou Freitas Branco a considerar que não existia “uma autêntica vida musical portuguesa” mas, “em poucos milhares de habitantes de Lisboa e Porto, o hábito de assistir a espectáculos musicais”.128 A democratização musical estava adiada porque “os melhores agentes de captação, junto de pessoas desprovidas de qualquer gosto pela música séria, são o concerto sinfónico e a récita de ópera: precisamente aquele que só por milagre se desloca aonde mais falta está fazendo.” A modificação de tal panorama cabia ao Estado, que devia assegurar, sem qualquer “dirigismo asfixiante”, “os meios eficientes de educação musical, estendida a todo o País e a todos os graus de ensino, para que não continue desaproveitado um dos melhores meios de elevação mental e de preenchimento de tempos livres de uma nação”, o que implicava “a reorganização do ensino profissional em conservatórios e outras escolas, para formação de professores, compositores e executantes.”129 No seu quinto número, em Março de 1970, a revista Ópera130 publicou a primeira entrevista131 com o novo director do São Carlos. João de Freitas Branco pretendia ampliar a actividade do teatro, acrescentando às temporadas já existentes conjuntos de espectáculos protagonizados por companhias portuguesas ou estrangeiras. Considerava importante a criação de uma nova orquestra sinfónica “que fizesse as temporadas de ópera e de bailado do São Carlos e do Trindade e que, nos restantes meses, percorresse, em tournée a província.”132 A possibilidade de profissionalizar o coro do São Carlos, para “que os seus elementos possam viver dessa actividade”133, era outro dos seus objectivos. João de Freitas Branco desejava ainda a criação de uma relação profícua com o Conservatório, ao qual, afirmou, compete a formação de cantores. O novo director do São Carlos esperava reformar os reportórios, dando especial atenção às obras contemporâneas e descentralizando a origem geográfica das ópe128. Ibidem, p. 116. 129. Ibidem, p. 116. 130. A revista Ópera nasceu em Novembro de 1969. A sua lógica redactorial insere-se com perfeição nos objectivos de popularização do género lírico firmados pelo Trindade. Em termos de concepção de espectáculo, nos tempos que decorriam, em que a figura do encenador ombreava com a do compositor na análise dos espectáculos, a ópera remete-se a uma postura mais tradicional centrada na figura do cantor. Como dizia o seu articulista Sebastião Cardoso, logo no primeiro número: “Teremos portanto de admitir ser o cantor o elemento catalisador desta composição heterogénea, não só por se tratar da entidade que dá expressão e conteúdo à representação, como até por ser ele quem, mercê do talento ou capacidade interpretativa, ou também devido à carência destes predicados, pode consagrar ou comprometer todo o espectáculo e a obra do autor, seja ela per si medíocre ou excelente.” Ópera, n.o 1, 11/1969, p. 12. 131. Entrevista de João de Freitas Branco a Ferrão Júnior, Ópera n.o 5, Março de 1970, pp. 10-11. 132. Ibidem, p. 10. 133. Ibidem, p. 10.

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ras. As óperas inglesas, por exemplo, as de Henry Purcell e Benjamin Britten, americanas, com George Gershwin, e as obras de outros países, como a Checoslováquia, foram algumas das nomeadas para desfazer o monopólio italiano, francês e alemão, que reinava no São Carlos. No que respeita às óperas portuguesas, havia que intensificar a sua presença no São Carlos, desde que a qualidade fosse assegurada. A todas estas medidas fundamentais há que acrescentar outra de importante valor simbólico: João de Freitas Branco decidiu abolir a obrigatoriedade do traje de cerimónia134. Um mês depois, José Serra Formigal concedeu uma entrevista à mesma revista. A cumplicidade com o projecto de João de Freitas Branco parecia evidente: Com efeito gostaria que se considerasse a existência de uma Companhia Portuguesa de Ópera, cujos elementos pudessem ter contratos anuais ou bi-anuais, que seriam renovados, segundo o interesse de ambas as partes, passando os cantores a ser considerados como pertencentes aos dois teatros, que os utilizariam conforme as necessidades de reportório o exigisse, tanto mais que as respectivas temporadas não coincidem.135

Criar-se-ia, assim, o enquadramento institucional para o processo de profissionalização dos cantores que, entretanto, já decorria: Ambiciono conseguir que, em breve, sejam distribuídas as primeiras carteiras profissionais de artísticas líricos, pois até agora estes têm sido considerados amadores. Passam, então, a descontar para a caixa de previdência respectiva, assegurando assim os problemas de reforma. Sobre este assunto já conversei também com o director do S. Carlos e sei que ele está igualmente na disposição de envidar os seus esforços para vir a conseguir benefícios semelhantes para os cantores portugueses e elementos do coro que pertencem àquele teatro.136

134. Mário Vieira de Carvalho refere as propostas que João de Freitas Branco apresentou na lei orgânica por si elaborada: 1) Criação de uma companhia residente que actuaria em alternância com companhias estrangeiras; 1.1 – Essa companhia só faria reportório que pudesse verdadeiramente dominar; 1.2 – Esse reportório deveria consistir em obras cénicas do período compreeendido entre Monteverdi e Mozart, bem como de autores contemporâneos e portugueses; 2) Criação de uma orquestra privativa do TSC; 3) Criação de um Departamento de Dramaturgia; 4) Descentralização da actividade do TSC para a província, onde a companhia residente deveria dar espectáculos regulares; 5) Alargamento da actividade a sectores culturais à margem da ópera, dos concertos e do bailado, como, por exemplo, colóquios, exposições, etc.; 6) Ligação ao Conservatório, para facultar a estudantes finalistas estágios na companhia residente ou na orquestra. Mário Vieira de Carvalho, Pensar é Morrer ou o Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias”, INCM, Lisboa, 1993, p. 257. 135. Entrevista de Serra Formigal à revista Ópera, Ópera, n.o 6, Abril de 1970, p. 14. 136. Ibidem, p. 14.

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Na mesma entrevista, Serra Formigal estimou em 2.300.000$00 o contributo anual do São Carlos para as temporadas do Trindade.

11. Pela segunda vez, uma temporada de ópera no Trindade não apresentou nenhuma obra portuguesa. A ausência de obras nacionais, em dois anos consecutivos, demonstrava o afrouxamento de imposições exteriores e um consequente fortalecimento da autonomia do empreendimento. Serra Formigal arriscou apresentar, na abertura da temporada de 1971, uma obra inesperada: o Orfeo e Eurídice, de Gluck. Procurava-se continuar a “seguir o critério de enriquecer o reportório da Companhia Portuguesa de Ópera com algumas obras significativas da dramaturgia lírica.”137 Quase todos os cronistas, antes de se referirem à representação do Trindade, detiveram-se sobre a importância histórica da obra. João Paes, nas páginas d’O Século, referiu que o Orfeo e Eurídice “marcou uma data padrão na História da ópera, momento de reforma no sentido de uma reivindicação, para o drama musical, da sua essencial verdade dramática, algo esquecida então, em benefício de outros aspectos mais superficiais do espectáculo.”138 Edmundo Oliveira, na Vida Mundial, acentuou a importância paradigmática da obra porque “com ela é desferido um duro golpe na proverbial prepotência e ‘falso orgulho dos cantores’(…) Alteravam, abreviavam, recusavam, impunham, compunham, punham e dispunham a seu bel-prazer, sem qualquer espécie de consideração por aquilo a que hoje se chama a vontade do autor.”139 A autonomia das formas impunha-se pelo emergir da figura do autor, e, na obra de Gluck, contra a “pomposa roupagem barroca”140, pelo papel da palavra e do libreto como materialidade artística fundamental, porque a “música faz-se em função da letra, e o cantor em função destas”; depurava-se a obra, acabando com as “cedências a virtuosismos fáceis”, criando-se “uma atmosfera de sabor clássico, solene sem redundâncias, 137. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1971, p. 13. 138. João Paes, O Século, 6/5/1971, p. 11. 139. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1670, 11/6/1971, p. 42 140. Ibidem, p. 42.

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religiosa sem lamechices” em que “os personagens são reduzidos ao mínimo”, o “coro reencontra o magnífico papel que lhe reservara a tragédia grega”, o “bailado deixa de servir pretextos fúteis para se integrar na acção” e “tudo tende para o máximo aproveitamento de meios”141. Gluck é uma figura-chave da história da ópera. A sua arte reflecte a decadência do absolutismo às mãos dos valores ideológicos do iluminismo burguês.142 O compositor alemão é ainda uma referência na luta pela autonomia da criação artística. A ousadia do Trindade ao apresentar uma obra de tal significado soou, a alguma crítica, como um acto pretensioso e algo contraditório. A conquista de uma credibilidade artística não estava isenta de riscos. Por um lado, existia o perigo do enfraquecimento da eficácia social dos espectáculos. Por outro, se alguns críticos não se coibiam de tratar mal o São Carlos, poucos pruridos tinham em desfazer as aventuras de um pequeno teatro, tolerado por ser inofensivo. A orquestra da Emissora Nacional, que nunca fora bem tratada pelos especialistas, sofreu reparos consideráveis, extensíveis à direcção do maestro italiano Sérgio Magnini: “O agrupamento que actua no Trindade sob a designação de Orquestra de Ópera da Emissora Nacional está longe de atingir aquela qualidade desejável, sobretudo tratando-se de uma partitura como a de Gluck, toda ela exigindo transparência sonora, plasticidade, euritmia de estilo.”143 O crítico Edmundo Oliveira144 achou inqualificável terem atribuído o papel de Orfeo a uma mulher, e João Paes145 foi mais contundente, visando sobretudo o trabalho do encenador Jean-Louis Cassou. Apenas Nuno Barreiros, apesar das várias considerações negativas, acabou por referir a importância do repertório mais antigo ter saído das “paragens aristocráticas e aristocratizantes do S. Carlos”146. Só Ruy Coelho descurou comentários mais apurados, considerando que tudo esteve bem.147 141. Ibidem, p. 42. 142. Mário Vieira de Carvalho refere que a obra de Gluck exprimia o desejo de abolição de todas as formas líricas que sustentassem, através do seu modelo comunicativo, a estrutura da hierarquia absolutista, e que tornavam a arte um mero pretexto para a representação de uma pedagogia social. Nesta viragem iluminista, inspirada por Rousseau, a ópera devia ser a expressão das emoções humanas, gerar a identificação do público com o drama, com a palavra acentuada musicalmente, enfim, com a acção. Mário Vieira de Carvalho, “Da Ópera à Telenovela”, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Relógio D’Água, Lisboa, 1999, pp. 47-50. 143. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/7/1971. 144. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1670, 11/6/1971, p. 42. 145. João Paes, O Século, 6/5/1971, p. 11. 146. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/7/1971, p. 4. 147. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 6/5/1971, p. 5.

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A Lucia de Lammermoor fez o comboio voltar aos trilhos: Depois da entrada em falso desta temporada de ópera do teatro da Trindade, que foi a pretensiosa e sensaborona representação do Orfeo, de Gluck, esta Lucia de Lammermoor veio repor as coisas mais no seu lugar. O espectáculo teve imperfeições, é certo – outra coisa seria milagre –, mas teve virtudes que conseguiram, ao fim e ao cabo, prevalecer.148

João Paes fez desfilar os adjectivos que julgava consentâneos com as tímidas ambições de um teatro de segunda: “honestidade”, “salutar modéstia”, “autenticidade sensível”, “globalmente agradável”. Edmundo Oliveira ficou surpreendido com a forma como os cantores portugueses tinham conseguido o “milagre de criar qualquer coisa de muito digno e apreciável, jogando abertamente com toda a própria soma de qualidades e limitações num invulgar testemunho de autenticidade artística e humana (…) Foi nesta perspectiva que todos os ridículos se diluíram e se aceitaram de boa mente todas as fraquezas.”149 O Elixir do Amor, O Barbeiro de Sevilha, La Bohème e Andrea Chénier completaram um reportório dentro do espírito do Trindade, cujo capital de êxito era reconhecido apenas dentro dos limites do seu lugar periférico na hierarquia da qualidade artística. Entretanto, Serra Formigal viu reabertas feridas antigas. Entre 1 de Setembro e 18 de Outubro de 1971, trocou uma série de cartas com Ruy Coelho.150 Primeiro, informando-o das suas intenções de incluir, como estava acordado desde 1966, a sua ópera Inês de Castro no reportório do Trindade para a temporada de 1972. A obra seria dirigida, por compromissos estabelecidos havia muito tempo, pelo maestro Silva Pereira. Coelho anuiu, pedindo, contudo, onze mil escudos por récita (num total de seis), relativos a direitos de autor e material. Formigal afirmou que não pode dar mais do que três mil escudos, o nível a que tem pago as óperas estrangeiras. Coelho acedeu. Mais tarde, no entanto, proporcionou-se à Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade rea148. João Paes, O Século, 14/4/1971, p. 12. 149. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, 28/5/1971, p. 59. 150. Troca de cartas entre Serra Formigal e Rui Coelho. 1.a, de Formigal a Coelho, 4/9; 2.a, resposta de Coelho, 8/9; 3.a, resposta de Formigal, 14/9; 4.a, resposta de Coelho, 16/9; 5.a, carta de Coelho, 6/10; 6.a, resposta de Formigal, 12/10; 7.a, resposta de Coelho, 18/10. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971.

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lizar uma representação portuguesa no Teatro de Ópera de Barcelona – que nunca se chegou a concretizar.151 Formigal ponderou e decidiu que a Inês de Castro não cumpriria bem a função. Para não sobrepor ensaios, substituiu a obra de Ruy Coelho por A Vingança da Cigana, ópera mais trabalhada pela companhia e susceptível de garantir um melhor espectáculo, propondo ao compositor português a transferência da Inês de Castro para a temporada de 1973. Coelho, ofendido, recusou. A Vingança da Cigana acabaria por ser a terceira ópera da temporada do Trindade, apesar dos problemas com as cedências dos seus direitos, na posse do maestro Filipe de Sousa.152

12. O reportório apresentado pelo Trindade, num contexto em que a nova direcção do São Carlos imprimia um cunho modernista à programação do teatro nacional de ópera, era cada vez mais o alvo preferencial das críticas efectuadas por especialistas do meio musical erudito. Em Outubro de 1971, o director do Trindade, na revista Rádio e Televisão153, respondeu ao conjunto de críticas apontadas por Mário Vieira de Carvalho aos espectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera, por ocasião de um inquérito publicado pela mesma revista no dia 14 de Agosto. Vieira de Carvalho, citado por Formigal, considerou o reportório do Trindade de um italianismo “comum e rotineiro”, afirmando, ainda, que os “empresários gostam de falar e pensar pelo público e confundem os seus gostos pessoais com o gosto do público. Como são os empresários que têm nas mãos a forma de fazer chegar ao público determinado tipo de arte, é deles que depende a formação ou deformação do gosto do público.”154 O director do Trindade, inventariando as óperas que passaram pelo Teatro, concluiu que das 33 óperas que constituíram o reportório em 151. Já em Julho de 1969, Serra Formigal escrevera ao director Juan Pamias, perguntando-lhe acerca das possibilidades da sua companhia representar em Barcelona a Condessa Caprichosa, de Marcos de Portugal, para assim “continuar o bom nome deixado pela Serrana”. Na mesma carta, e em jeito de introdução, Formigal informa Pamias da condecoração que recebera do Presidente da República na presença de altas figuras do regime. Carta de Serra Formigal a Juan Pamias, 23/7/1969, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta Correspondência. 152. Carta de Filipe de Sousa a José Serra Formigal, 8/11/1971, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971. 153. Carta de Serra Formigal à revista Rádio e Televisão, Rádio e Televisão de 2/10/1971, pp. 36-37. 154. Ibidem, p. 36.

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nove anos de actividade, onze não eram italianas. Afirmou ainda que das óperas italianas apresentadas, pelo menos três eram contemporâneas – Amélia al Ballo, de Menotti, Il Gobbo del Califa, de Casavola, e o Segredo de Susana, de Wolf Ferrari. Das 33 óperas referidas, apenas treze pertenciam ao reportório italiano tradicional. Por fim, Formigal recorreu ao Boletim Lírico Internacional, elaborado por Robert Deniau para os anos de 1969/70, para provar que o quarteto Rossini, Donizetti, Verdi e Puccini obtivera 1600 representações em 76 dos principais teatros da Europa, número que excluía os italianos, para não suscitar preferências. Adiantou ainda que, no mesmo universo teatral, Luigi Dallapicola, Alban Berg, Schönberg e a dupla Weil-Brecht, alguns dos autores que Vieira de Carvalho considerava como boas hipóteses para o Trindade, representavam apenas 4 por cento do número de espectáculos de ópera conseguidos pelos mestres italianos. A origem do debate, todavia, não passava tanto pela discussão da nacionalidade das óperas, ou da sua datação, embora a tradição operática a isso convide. As divergências entre Formigal e Vieira de Carvalho assinalavam diferentes concepções de modelo artístico, para além das óbvias divergências políticas. A maior parte das óperas não pertencentes a um património italiano clássico representadas no Trindade integrava-se, tendo em conta o que envolvia a sua apresentação no Trindade, num mesmo modelo de relação entre a produção e a recepção das obras. Foi o caso das óperas francesas de Massenet, Gounod e Bizet, e mesmo das portuguesas A Serrana, Condessa Caprichosa ou A Vingança da Cigana. A argumentação da contemporaneidade também não introduz uma profunda alteração na comunicação, algo que se aplica aos exemplos italianos que Formigal adiantou. Noutro momento, Vieira de Carvalho afirmara que as óperas do Trindade eram apresentadas “dentro de uma concepção tradicional pouco esclarecida, apagando o significado cultural e ideológico profundo que essas óperas têm.”155 A resposta de Serra Formigal consistiu na apresentação do comentário sobre La Traviata, presente no programa da Ópera Nacional de Cuba. O programa cubano caracterizava a obra como um “ininterrumpido curso de las bellas melodias que Verdi habia escrito, junto 155. Ibidem, p. 37.

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al emocionante impacto de un argumento romántico, basado en auto-sacrifício, la querella de los amantes apasionados y su tardia reconciliación.” Posto isto, perguntou Formigal: “Argumento romântico, belas melodias, auto-sacrifício, querelas de amantes apaixonados… que dirá a isto o Dr. Carvalho? Certamente pensará que este Conselho Nacional de Cultura está rotineiro, escapadista e sem temática válida.”156 Os termos em que Mário de Vieira de Carvalho colocara a questão não eram, no entanto, puramente políticos. Se o modelo de teatro lírico proposto pelo musicólogo era politizado, esta vertente de intervenção não assentava em qualquer tipo de populismo cultural. A sua tomada de posições políticas e sociais através da arte era mediada por modelos estéticos e formais decorrentes da própria autonomização do campo da arte.157 Nas fronteiras deste campo, as batalhas políticas travavam-se com armas que lhe eram inerentes; aos espectadores externos, embora fossem personagens presentes, por não dominarem o código, escapava a dimensão destas lutas. O facto de o controlo da produção cultural ser responsável pela formação, e deformação, do gosto público, não invalida que existam predisposições, resultantes das socializações hegemónicas, que conduzem a uma maior propensão para consumir determinados produtos culturais. Serra Formigal, à imagem de qualquer empresário, explorou, no Trindade, um património de formas culturais que o público a atingir estava habilitado a reconhecer sem esforço. Grande parte das críticas ao Trindade feitas por pessoas situadas na oposição ao regime não reconheciam, acreditando nas possibilidades transformadoras dos seus modelos de vanguarda, que a “cultura popular” estava bem mais próxima da concepção do empresariado, e que este fosso que separa as suas propostas das massas é, em grande medida, o mesmo que separa as classes sociais. Neste afeiçoamento ao gosto, necessário tanto para uma captação pedagógica como a um efeito ideológico baseado na satisfação, assentou precisamente o êxito considerável da ópera da FNAT.

156. Ibidem, p. 37. 157. Pense-se na sua predilecção por Bela Bartok, Luigi Nono, Jorge Peixinho e Fernando Lopes-Graça.

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13. As novas condições que estruturavam o campo operático nacional são essenciais para compreender a informação que Serra Formigal escreveu, em 27 de Janeiro de 1972, ao presidente da FNAT.158 O assunto focava o futuro da Companhia Portuguesa de Ópera. Salientando o papel fundamental que a organização da FNAT desempenhou no fomento do género lírico em Portugal, o director do Trindade começou por expor a importância que o investimento público representava na institucionalização de uma ópera sustentada, que facultava aos variados agentes envolvidos condições para desenvolver a sua actividade sem percalços financeiros, à semelhança do que se fazia “na Alemanha, Áustria e Estados da Cortina de Ferro”159. Ao contrário, em Itália, a pátria da ópera, o género decaía às mãos de “direcções políticas” e “explorações comerciais incompetentes”160. O trabalho desenvolvido no Trindade, objectivado no número dos seus espectáculos, pela adesão permanente do público, pela participação e formação dos artistas, permitia que Formigal encarasse o futuro da companhia de forma diferente. As relações institucionais entre o Trindade e o São Carlos possibilitavam uma transformação no desenvolvimento da ópera em Portugal: Parece pois que a Companhia Portuguesa (…) atingiu um grau de desenvolvimento e profissionalismo que aconselha a que seja revista a sua posição no enquadramento orgânico que lhe deve caber dentro da planificação e sistematização das actividades culturais do País. O mesmo pensamento ocorreu, com inteira razão, ao Ilustre Director do Teatro Nacional de S. Carlos, ao declarar pùblicamente, há dias, pretender constituir uma companhia lírica portuguesa para actuar no Teatro Nacional de S. Carlos.161

João de Freitas Branco terá sugerido, num programa de televisão, a transposição da companhia que actuava no Trindade para o São Carlos, preenchendo os meses em que o teatro nacional de ópera não estava 158. Informação de José Serra Formigal ao presidente da FNAT sobre a Companhia Portuguesa de Ópera, Arquivo Serra Formigal. 159. Ibidem, p. 1. 160. Ibidem, p. 1. 161. Ibidem, pp. 2-3.

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ocupado com as temporadas internacionais. Os artistas portugueses seriam profissionalizados, passando a fazer parte dos quadros do São Carlos. Serra Formigal explicou, então, que os objectivos perseguidos com a formação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade reuniam, enfim, condições de concretização. Ficou explícito, de certa forma, o modo instrumental como o director do Trindade utilizou a oportunidade que o Ministério das Corporações e Previdência Social lhe concedeu para efectuar um trabalho cultural, justificado institucionalmente pela sua relevância social, política e ideológica. Seguem-se, na íntegra, as explicações do director do Trindade: a) A FNAT só produziu a obra hoje existente no sector, por o S. Carlos não a ter feito nem estar, ao tempo, interessado em fazê-la pois que sempre pensou que o Teatro Nacional de Ópera era e é a instituição própria e o quadro natural para tal actividade se desenvolver e expandir. Deve notar-se, porém, que a única forma de o público trabalhador ter podido assistir, nomeadamente na província, a espectáculos de ópera com preços muito acessíveis, consistiu na organização da Companhia Portuguesa de Ópera. b) Desde que a Companhia Portuguesa atingiu grau suficiente de desenvolvimento e o Teatro Nacional de S. Carlos a julga digna de ser recebida no quadro normal das suas actividades, o nosso parecer é de que tal será a melhor solução para os artistas líricos nacionais, por os situar na instituição que, na verdade, lhes pertence, com melhores possibilidades de promoção profissional e imunes de futuras discussões sobre o seu justo enquadramento orgânico. Tal solução, para a FNAT, constitui, aliás, o melhor galardão para o seu labor de 10 anos neste sector. c) Parece-me, outrossim, importante a posição actual da Direcção do Teatro Nacional de S. Carlos, orientada no sentido de a Companhia Portuguesa realizar não apenas espectáculos «especiais» que, quase sempre, não podem dar a verdadeira medida das possibilidades dos cantores, mas também e normalmente, “óperas de repertório” embora em temporadas populares, além das habitualmente realizadas por companhias estrangeiras. d) Tal procedimento produzirá a almejada e necessária democratização do Teatro como acontece na generalidade dos teatros da Alemanha, Áustria, França e cortina de ferro. E a prova em grandes salas está feita quanto à Companhia Portuguesa, nas sucessivas temporadas no Coliseu do Porto e récitas dadas no congénere de Lisboa: casas sempre cheias e êxito total. O que é preciso é que as récitas sejam cuidadosamente preparadas, o que certamente ainda melhor se conseguirá no Teatro de S. Carlos e que os preços sejam baratos; o erro consistiria em cobrar o mesmo preço para se ouvir uma companhia de celebridades internacionais e a Companhia Portuguesa. É uma questão de senso e realismo. Dado o exposto e após ter ouvido o parecer da Direcção da FNAT que foi favorável, julga-se que, se o Teatro Nacional de São Carlos obtiver a concordância superior para dar sequência ao seu plano de incorporação da Companhia Portuguesa

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De teatro de ópera de segunda, o Trindade passava a exemplo histórico edificador. O Teatro de São Carlos, dirigido por João de Freitas Branco, integraria, segundo Formigal, uma Companhia Portuguesa de Ópera; iria produzir temporadas populares a preços acessíveis para grupos sociais afastados do São Carlos, espectáculos que não se quedariam apenas pela capital.

14. Aquela que parecia ser a última temporada da Companhia Portuguesa de Ópera no Trindade começou, ambiciosamente, com A Flauta Mágica, de Mozart. Ruy Coelho163, não reflectindo nas suas apreciações jornalísticas os problemas que tinha com a direcção do Trindade, rejubilou com a tradução da ópera alemã para o português, afirmando que era essencial que a obra lírica fosse entendida pelo público. José Atalaya afinou pelo mesmo diapasão. As presenças no camarote de Américo Thomaz e do ministro das Corporações e Previdência Social, Baltazar Rebelo de Sousa, reforçavam, segundo este maestro, a demanda de uma arte nacionalista, para a qual era essencial “a difusão da cultura operática nas camadas populares através de sucessivas edições, na nossa língua, das obras-primas do teatro lírico.”164 Atalaya aproveitou a ocasião para afirmar que se assistiu, naquela noite, a “um bom espectáculo – e 162. Ibidem, pp. 3-5. 163. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 18/5/1972, p. 5. 164. José Atalaya, O Século, 20/5772, p. 8.

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não apenas digno ou válido (como é agora moda dizer-se).”165 Defendeu ainda o enorme interesse em popularizar a ópera, tornando-a um vector essencial da cultura popular, pois o “impacto provocado na plateia que segue uma determinada acção teatral, valorizada e sublimada pela música (…) faz da ópera um espectáculo tão popular como o teatro de revista, uma “realidade evidente que não interessa às nossas camadas de ‘elite’.”166 A tradução de A Flauta Mágica, embora tenha constituído um momento importante da Companhia Portuguesa de Ópera, mereceu alguns reparos do crítico da Vida Mundial. Edmundo Oliveira167, reconhecendo que a “delicadeza de uma semelhante operação nem sempre surte às primeiras tentativas”, apontou problemas “de ordem vocabular, rítmica, vocálica e conceitual” para explicar um espectáculo menos conseguido. José Atalaya aproveitou a estreia de A Vingança da Cigana, ópera “fraquinha” com um final “extremamente perigoso, porque tende a deslizar para a palhaçada”, para insistir na importância dos espectáculos do Trindade no “sentido de encaminhar para a ópera e a opereta determinadas camadas até aqui obedientes, apenas, à graça, tantas vezes grosseira, do mau teatro ligeiro (também há bom teatro ligeiro).”168 A reposição da ópera portuguesa sugeriu a Edmundo Oliveira uma análise mais larga das temporadas do Trindade.169 Numa apreciação genérica, concluiu que a situação estagnara. Embora o número de 451 apresentações, de 34 óperas diferentes, fosse aceitável, a lisboetização dos eventos – “Lisboa absorveu 85,6 por cento dos esforços da FNAT”170 –, e a contínua permanência das participações artísticas eram sinais de alarme e reflectiam o problema da falta de renovação dos elencos e da centralização da actividade operática. Em relação aos cantores, o articulista registou uma dolorosa continuidade, sem o surgimento significativo de novos talentos. O cantor espanhol Mário Rodrigo foi o protagonista, ao lado de Elisete Bayan, da Lakmé, de Leo Delibes. A temporada fechou com a ope165. Ibidem, p. 8. 166. Ibidem, p. 8. 167. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1722, 9/6/1972, p. 52. 168. José Atalaya, O Século, 17/6/1972, p. 4. 169. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1728, 21/7/1972, p. 49. 170. Ibidem, p. 49.

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reta de Franz Lehar, A Viúva Alegre. Edmundo Oliveira, notando, com algum desdém, a rapidez com que o público esgotou as seis récitas da opereta, afirmou que valia “a pena dobrar o número de representações porque o público acorrerá sempre com sofreguidão nunca satisfeita.”171 Observou ainda que, além do sucesso português, a opereta “continua sendo uma das valentes atracções turísticas da Viena estival dos nossos dias”, significando isto que a “frivolidade – fraquinho europeu, ao que parece, não exclusivo do século xviii –” sempre se pagara bem. Na categoria opereta cabia tudo: “Será que o respeitável instinto público estará a sugerir um tipo de programação que o não esqueça na satisfação e respeito pelas suas qualidades básicas? Franz Lehar, com a sua A Viúva Alegre, estreada em Viena, em 1805, operou um curioso consórcio: o do ‘can-can’ com a valsa.”172 A análise de Oliveira, preocupada com o abastardamento do género lírico, transformado, através da opereta, num serão músico-dramático ligeiro de baixa qualidade, é contrariada por um Ruy Coelho, conquistado pela ópera para as massas, mesmo se, por aquela, nenhuma lição de espiritualismo nacionalista ou pedagogia doutrinária se conseguisse vislumbrar. Os “milhões de direitos de autor” que Franz Lehar arrecadara não eram suficientes para pagar “os tesouros do bom humor, da boa disposição, da graciosidade, da alegria” que “valem muito mais, não têm preço. O pensamento leal dessa música é simples, claro, não engana.”173 A defesa da opereta serviu para Ruy Coelho manifestar mais uma vez o seu antimodernismo militante, reverberando contra os produtos culturais de pequenos grupos de intelectuais que querem impor ao “povo” a sua forma de ver o mundo, seja do ponto de vista artístico ou, pior ainda, político ou ético: A opereta é a linguagem em superfície brilhante. Os dois géneros, nas suas muitas diferenças, só são irredutíveis por excesso de intelectualismo e excesso de crítica. E quanto se ouve, como há pouco no teatro da Trindade, esta opereta de Lehar, não se pergunta porque se gosta – gosta-se, como não se pergunta porque se vive – vive-se.

171. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1731, 11/8/1972, p. 59. 172. Ibidem, p. 59. 173. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 25/7/1972, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas (…) Esses rápidos momentos de simpatia da comunhão de todos – obra, intérpretes, público – estabelecem uma compreensão mais rápida do que infindáveis comentários.174

A apreciação e consumo da arte eram, para Ruy Coelho, idênticos à apreciação da vida: “não se pergunta porque se gosta – gosta-se, como se não pergunta porque se vive, vive-se.” Para desgosto de quem esperava da arte uma contribuição para uma nova mentalidade esclarecida, a lógica enunciada por Coelho tinha um vasto património social para explorar. Neste contexto, não foram apenas aqueles situados numa posição política crítica, colocada à esquerda, que perderam, foram também todos os que, sem discutir porque se gosta, como se não discute porque se vive, achavam que a “cultura popular” poderia ser transformada em algo mais consentâneo com o seu gosto cultivado.

15. Em Julho de 1972, a direcção da FNAT redigiu um extenso documento que diagnosticava os problemas da organização e apresentava algumas soluções que deveriam ser postas em prática entre 1974 e 1979, período do quarto Plano de Fomento governamental. Na rubrica respeitante ao Teatro da Trindade e às suas várias actividades, o autor, provavelmente Serra Formigal, acentuou que o objectivo da FNAT de “programar espectáculos de carácter elevado”, presente desde a aquisição do Teatro da Trindade em 1962, se mantinha incólume.175 Do conjunto da programação do Trindade resultara uma grande conquista: a Companhia Portuguesa de Ópera. Batendo-se com bastantes dificuldades, a iniciativa do Trindade prosperara com o tempo, constituindo-se, na altura, uma realidade inquestionável da ópera em Portugal. O carácter prospectivo do documento indicava que a hipótese de dissolução da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, decorrente da sua transferência para o São Carlos, já não se colocava. O texto destacou, além das récitas no Trindade, a importante actuação na província, 47 récitas, traba174. Ibidem, p. 5. 175. Documento da direcção da FNAT que traça um diagnóstico geral das actividades da Fundação, 1972, Arquivo Serra Formigal, p. 36.

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lho pioneiro, que o São Carlos não pudera fazer, dados os enormes encargos financeiros que as companhias estrangeiras acarretavam; “julgamos ser esta a principal e única razão”, afirmou o autor com alguma ironia.176 Algumas lacunas continuariam a marcar a iniciativa. O documento aponta duas essenciais: a profissionalização do artista do teatro lírico e as colaborações orquestrais. A primeira, apesar de estar em vias de resolução, obrigava a um desfecho pronto. A contribuição orquestral estava, à época, em vias de se extinguir. A formação da Orquestra Filarmónica Municipal de Lisboa “roubou” os instrumentistas de arco à Orquestra da Emissora Nacional. O facto impedia esta de se desdobrar, como até à data sucedia, numa orquestra de ópera, e participar nos espectáculos do Trindade. Quanto à profissionalização dos artistas de ópera, foram referidos o aumento das remunerações e a inscrição dos artistas na Caixa de Previdência dos Espectáculos como duas primeiras medidas importantes. No entanto, era impossível o Trindade encetar o processo ideal, que seria o modelo seguido na “Alemanha, França e Países da Cortina de Ferro”, ou seja, a contratualização anual ou bianual dos artistas, recebendo estes um vencimento mensal que lhes asseguraria a desejada estabilidade. Por manifesta insuficiência financeira do Trindade, tal procedimento seria executado, como havia sido várias vezes sugerido, em colaboração com o São Carlos. Revelaram-se, nesse momento, as razões que obviaram o prosseguimento das intenções de Formigal em transportar para São Carlos a sua companhia de ópera: Em anteriores conversações com o director do Teatro Nacional de São Carlos, este manifestou a opinião de que, reflectindo sobre o assunto, considerava um erro grave o desaparecimento da ópera no Trindade, realização já cimentada e com experimentação para os jovens artistas líricos e revelação de novos valores, em condições muito mais favoráveis do que num teatro com as tradições e o público do Teatro Nacional de São Carlos.177

João de Freitas Branco concluíra que a solução ideal consistia “na formação de uma Companhia Residente com os melhores elementos por-

176. Ibidem, p. 38. 177. Ibidem, pp. 41-42.

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tugueses e alguns estrangeiros, que assegure um nível elevado, pois que, actualmente, o Teatro do Estado apenas dispõe de um coro, sendo todas as companhias que ali actuam contratadas em regime de emprezariado.”178 Apesar da diplomacia, Serra Formigal estava agastado. Embora alguns dos seus artistas estivessem em vias de fazer parte de uma companhia residente do São Carlos, todas as outras propostas estruturais, depois da reflexão de João de Freitas Branco, pareciam ter sofrido um revés. A divergência entre as duas direcções foi também evidente no que respeita ao problema com a orquestra. A Câmara de Lisboa, por razões não avançadas no documento, indispunha-se a ceder a sua nova Orquestra Filarmónica Municipalizada. A alternativa, sugerida pela própria Câmara Municipal, seria a criação de uma terceira orquestra para a ópera no São Carlos e no Trindade, e para três meses de opereta no São Luís. Acontece que a direcção do Teatro de São Carlos, segundo o documento atrás citado, “pretende ter a sua orquestra privativa e com inteira autonomia.”179 Os problemas humanos e materiais típicos de um meio musical pouco institucionalizado arriscavam-se a ser os agentes da extinção da ópera no Trindade. No momento em que parecia mais sustentada, a Companhia Portuguesa de Ópera revelou as fraquezas do estatuto de parente pobre do meio operático nacional.180 Os objectivos da companhia, apesar dos problemas, foram elaborados para os seis anos considerados. Quatro pontos marcariam a actividade até 1979: a) continuação da lógica até então assumida, incrementado o número de espectáculos cantados em língua portuguesa; b) profissionalização progressiva dos artistas líricos nacionais; c) encomenda de óperas a autores nacionais; d) incremento da acção na província.181 A obrigatoriedade de a FNAT, em conjugação com o quarto Plano de Fomento, programar as suas actividades até 1979 parecia garantir que a Companhia Portuguesa de Ópera, independentemente da questão da profissionalização dos artistas líricos e da sua hipotética integração nos quadros do São Carlos, continuaria a sua actividade. No entanto, notava-se 178. Ibidem, pp. 41-42. 179. Ibidem, p. 42. 180. Serra Formigal chegou a afirmar, para efeitos comparativos, que se cada récita do Trindade custava sensivelmente 100.000$00, no São Carlos a simples presença de uma vedeta internacional implicava o dispêndio de 140.000$00. Ibidem, p. 40. 181. Ibidem, p. 43.

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a marginalização do projecto por parte dos vários interesses situados no interior do meio operático. A situação parecia sugerir que se o apoio estatal, via Ministério das Corporações, por qualquer razão, fosse posto em causa, o projecto morreria sem qualquer possibilidade de resistência.

16. Depois de aturadas negociações, foi acordada a colaboração da Orquestra Filarmónica de Lisboa para a totalidade da temporada. Os eixos desta colaboração foram firmados numa carta de Serra Formigal182 à direcção da FNAT, enunciando o acordo entre a Câmara Municipal de Lisboa, o Teatro de São Luís, e o director da orquestra, o maestro Ivo Cruz. A organização de um núcleo de ópera inserido na Filarmónica de Lisboa implicava a contratação de dez músicos de arco, estrangeiros, e de alguns de sopro, exteriores à Filarmónica. O Trindade pagaria a importância habitual de 500.000$00, e a Câmara Municipal de Lisboa suportaria o contrato dos músicos externos à orquestra, num valor estimado em 500.000$00. No momento da redacção da carta, o acordo não tinha ainda existência formal, embora tudo estivesse acertado. A temporada de 1973 contou com seis obras.183 Na introdução ao programa dos espectáculos, Serra Formigal denunciava a situação periclitante da ópera do Trindade. A FNAT não tinha competências para dar o passo essencial, a institucionalização de uma Companhia Portuguesa de Ópera: “A profissionalização integral e o ensino adequado e completo do artista lírico são funções do teatro nacional de ópera e das escolas oficiais de música.”184 O director do Trindade aproveitou para confrontar João de Freitas Branco com as suas declarações públicas, “escritas e televisionadas”, em que afirmara as suas intenções de reformar o meio operático nacional, criando uma Companhia Portuguesa de Ópera. 182. Carta de Serra Formigal à direcção da FNAT, intitulada: “Apontamentos sobre as conversações relativas à colaboração da Orquestra Sinfónica na temporada de ópera popular da FNAT no Teatro da Trindade”, Arquivo do Teatro da Trindade, (sem data), pasta 1973. 183. Em carta encontrada nos arquivos do Teatro da Trindade, dirigida aos detentores dos direitos da ópera de Modeste Mussorgsky, Boris Godunov, ficava expressa a vontade do director do Trindade de apresentar uma tradução portuguesa desta obra russa na temporada de 1973. Contudo, o processo nunca se veio a desenvolver. Carta de José Serra Formigal a W. Bessel & Cie., 23/6/1972, Arquivo do Teatro da Trindade. 184. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1973, p. 6.

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Ruy Coelho viu a sua ópera em um acto, Rosas de Todo o Ano, ser representada juntamente com o clássico de Mascagni, Cavalleria Rusticana. Inês de Castro ficou de fora da programação. Massenet ocupou um terço das representações: Werther, em repetição, e a estreia de Dom Quixote. A Viúva Alegre tentava repetir o sucesso de público conquistado na época transacta. Acrescentou-se a este conjunto A Sonâmbula, de Bellini, e o espectáculo de estreia, O Matrimónio Secreto, de Domenico Cimarrosa. Álvaro Cassuto dirigiu a ópera, que fora estreada em Viena, em 1792. Ruy Coelho e João Paes, por razões diferentes, consideraram a escolha acertadíssima. Coelho aludiu à “prudência e sentido prático”185 que o Trindade tem demonstrado na escolha dos reportórios: “não se tem corrido o risco, tantas vezes inútil, de dar ao público óperas que sejam charadas ou meras palavras cruzadas.”186 Para o compositor, a obra da FNAT “implanta-se naquele princípio educativo de Garrett, quando disse que a verdadeira educação é a que é eminentemente nacional.”187 João Paes concordava com a representação da obra de Cimarrosa porque era adequada a um Trindade que desistira das ousadias: “Operazinha notável (…) que pode vir a conquistar mais gente do que as versões deficientes de obras consagradas, que não se acomodam facilmente de soluções de compromisso.”188 A representação do Werther, de Massenet, obra que, afirmou o articulista do Diário de Notícias, “contém todos aqueles elementos de expressividade, de intensidade dramática, de romantismo exacerbado em que música e drama se casam tão intimamente e se projectam na cena com a força imanente das coisas irreprimíveis e chegam ao espectador com todo o seu domínio e convencimento”189, causou forte efeito no público do Trindade: “O público bem sentiu aquele tão aliciante e sugestivo clima de natureza romântica em que a obra vibra, se desenvolve e afirma, e aquela tonalidade permeável ao sonho e à realidade, ao amor e ao sofrimento, à vida e à morte que dela se desprende: este um dos méritos do drama lírico.”190 185. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 1/5/1973, p. 5. 186. Ibidem, p. 5. 187. Ibidem, p. 5. 188. João Paes, O Século, 4/5/1973, p. 4. 189. N. Diário de Notícias, 20/5/1973, p. 5. 190. Ibidem p. 5.

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A Sonâmbula, de Bellini, com a presença de Américo Thomaz no camarote, acentuou a lógica de continuidade da temporada, que teria no Dom Quixote, de Massenet, o seu ponto alto. João de Freitas Branco, que deixara de fazer crítica de ópera desde o momento de chegada à direcção do São Carlos, abriu uma excepção para comunicar aos leitores d’O Século a satisfação proporcionada pelo espectáculo do Trindade.191 A melhor encenação de Bechi com uma extraordinária actuação de Álvaro Malta. A categoria do espectáculo, comungada pela generalidade da crítica, serviu para Ruy Coelho acentuar o seu efeito de “regeneração auditiva saudável”, num contexto musical em que havia “demasiadas poluições musicais que estabelecem demasiados equívocos”, e que apesar de “enriquecerem a paleta sonora” criaram uma “atmosfera absurda que leva alguns ouvintes a somente acharem genial o incompreensível”. Como exemplo do estado a que chegaram as coisas, Coelho referiu “a curiosa experiência de dar um concerto em que a orquestra simulou ler os seus papéis, mas tocando cada executante aquilo que muito bem quisesse. Não havia, portanto, nem partitura, nem obra, mas os aplausos do público foram formidáveis. (…) felizmente que essa espécie de ouvintes, segundo uma estatística recente, é de três pessoas em relação a um público de seis mil.”192 Ruy Coelho não suportava a ideia de que um espaço tão ordenado e hierárquico como o da orquestra, ou como, noutro âmbito, o da sociedade portuguesa, se tornasse, de repente, num universo de ruptura com a tradição. O compositor não se inibiu de fazer a crítica à ópera de sua autoria, Rosas de Todo o Ano. As palavras de Coelho, além de um inusitado auto-elogio193, reflectiam a discussão interna que vinha travando com Formigal: A direcção (…) do teatro incluiu assim uma ópera portuguesa, em português, na sua temporada deste ano, e uma ópera actual, porque quando se eliminam as óperas do nosso tempo, isso certamente criará o equívoco, o que levará a erradamente se concluir que, em Portugal, nada se criou de novo, tendo-nos que limitar às óperas do 191. João de Freitas Branco, O Século, 27/6/1973, p. 4. 192. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 27/6/1973, p. 17. 193. No final do artigo de Ruy Coelho, depois de o seu nome encerrar a crítica, surge um pequeno parágrafo, não assinado, dizendo o seguinte: “Antes de começar a Cavalleria Rusticana, o público que encheu o teatro, vendo entrar na sala o maestro Ruy Coelho, dispensou-lhe aplausos prolongados e entusiásticos, manifestando o franco agrado com que ouviu a sua ópera Rosas de Todo o Ano.” Diário de Notícias, 13/7/1973, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas passado. Neste caso não verdadeiro, o que deixaríamos como herança espiritual ao futuro, seria coisa nenhuma.194

A direcção da ópera escapou a Ruy Coelho. O maestro brasileiro David Machado assegurou a direcção da orquestra. A encenação esteve a cargo de Couto Viana, considerado por Ruy Coelho um “encenador sério, um mestre do teatro, sem recorrer a artifícios inúteis ou falsos.”195 A defesa do “Trindade popular”, pela pena de homens como Ruy Coelho, José Atalaya ou Blanc de Portugal, contrastava cada vez mais com a crítica mais vanguardista e politizada, bastante cáustica em relação ao reportório e às encenações do Trindade. A direcção de João de Freitas Branco conseguiu dinamizar o São Carlos: transformou o seu reportório e diversificou as encenações.196 Face a este cenário, o Trindade parecia cada vez mais convencional. A Viúva Alegre fechou a temporada de 1973. Foi o último espectáculo que decorreu na vigência do Estado Novo. A temporada de 1974 começou em Maio, já depois da queda do regime.

17. A situação da ópera em Portugal foi, em Outubro de 1973, alvo de uma posição política crítica sobre a sua evolução recente. O denominado Grupo Sócioprofissional de Músicos do Movimento CDE de Lisboa, Comissão Democrática Eleitoral do Movimento Democrático Português, próxima do Partido Comunista Português na clandestinidade, publicou um opúsculo intitulado Pela Música em Portugal.197 Considerado pelos seus redactores como um documento inédito no meio artístico português, este pequeno texto procurava unificar a posição dos músicos perante as transformações que a massificação da arte em 194. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 13/7/1973, p. 5. 195. Ibidem. p. 5. 196. Na direcção de Freitas Branco, Lopes-Graça apresentou no São Carlos a sua ópera D. Duardos e Flérida, estreando-se ainda, entre outras, Lulu, de Alban Berg, Il Prigioneiro, de Dallapiccola, Médée, de Darius Milhaud, Erwartung, de Schoenberg, The Rake’s Progress, de Stravinsky, The Turn of the Screw, de Britten, Porgy and Bess, de Gershiwn. 197. O Grupo Socioprofissional dos Músicos da CDE de Lisboa foi constituído a propósito da campanha eleitoral de 1973. Congregava instrumentistas de várias orquestras, membros do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, compositores, cantores de ópera, coralistas e críticos musicais. Na sua base terá estado uma célula de músicos criada por elementos do PCP. Este documento incluía um prefácio de Fernando Lopes-Graça e um anexo final da autoria de Jorge Peixinho, textos que não estavam assinados. Mário Vieira de Carvalho, “Música erudita”, Fernando Rosas, J.M. Brandão de Brito (org.), Dicionário de História do Estado Novo, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 653.

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Portugal impunha nas relações entre compositor, intérprete e público, no que respeita à música erudita. A posição do grupo relevava a função social da música no progresso histórico e humano, contrariando todas as suas apropriações turísticas e empresariais; adoptando uma postura classista, defendia que a música devia estar ao serviço das massas e não, como na generalidade do mundo ocidental, tornar-se um instrumento das classes dominantes. A utilização da música como produto industrial comercializado convivia, em Portugal, com a intolerável supressão de liberdades fundamentais, o que acentuava as hierarquias sociais e, por outro lado, impedia a organização dos profissionais da música em grupos que defendessem os seus interesses.198 Das considerações gerais sobre a democratização da vida musical portuguesa foi destacado um caso paradigmático: a ópera. Arte de indiscutível feição popular, a ópera devia ser democratizada, abolindo-se “a hierarquia de salas e a hierarquia de qualidade artística em função das salas e dos públicos”199. O São Carlos carecia de mais subsídios “para que deixe de ser propriedade privada da alta finança e dos últimos abencerragens da aristocracia e se transforme num verdadeiro teatro nacional, com a sua companhia de ópera, o seu coro profissional e a sua orquestra próprios, irradiando para todo o país, aberto permanentemente a todas as classes sociais.”200 O Trindade, por seu turno, consagrava a “distinção entre classes (…) Neste aspecto o governo é muito coerente: vai ao ponto de gastar muito mais dinheiro com a “cultura” destinada às classes dominantes (que frequentam o S. Carlos). Ao contrário, as verbas destinadas ao Trindade saem efectivamente da bolsa dos trabalhadores (via Ministério das Corporações…) e, ao fim e ao cabo, nem sequer revertem em favor da cultura destes, pois, na generalidade, o público que frequenta aquele teatro é essencialmente constituído por estratos da pequena burguesia.”201 198. Entre as propostas adiantadas para a alteração do panorama da música em Portugal constavam: a intenção de intervir em todos os graus de ensino, no sentido de considerar a música como parte de uma formação geral; uma democratização da vida musical, com um mais justo acesso à carreira musical e a descentralização social e geográfica das actividades musicais; colocação dos media ao serviço da música; desenvolver o movimento associativo e recreativo popular e expandir o movimento coral. Para melhorar a situação do músico profissional em Portugal, “um músico de corte numa sociedade burguesa-fascista”, propunha-se uma imediata correcção salarial, melhorias das condições de trabalho, a formação de orquestras autogeridas e autónomas, abolição dos regimes de exclusividade e elaboração de um contrato colectivo de trabalho. Grupo Sócio-Profissional de Músicos do Movimento CDE de Lisboa, Outubro de 1973. 199. Ibidem, p. 12. 200. Ibidem, p. 12. 201. Ibidem, pp. 12-13.

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O diagnóstico terminou com a ideia de que, nas condições antidemocráticas prevalecentes, não se justificava a existência de dois teatros de ópera em Lisboa. O documento tem significado acrescido, devido aos acontecimentos que transformariam, em breve, o sistema político português.

18. Ainda antes do final de 1973, Serra Formigal redigiu uma informação acerca da profissionalização de um núcleo da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT.202 No documento estão traçados os critérios que presidiram à selecção do conjunto de cantores a ser profissionalizado. A informação de Serra Formigal contém, como antecâmara do assunto fundamental, uma introdução histórica que faz recuar o leitor 180 anos, ao momento da inauguração do Teatro Nacional de São Carlos. Ao fim de todo este tempo, e onze anos depois da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT actuar, consecutivamente, no Teatro da Trindade, foram criadas as condições para uma profissionalização gradual do artista lírico português: Com efeito desde os fins do século xviii, pode ver-se na História do Teatro Nacional de S. Carlos de Fonseca Benevides que, se foram, em número considerável os artistas portugueses que cantaram no Teatro Nacional de S. Carlos, fazem-no quase sempre como comprimários, ou então, os muito poucos que desempenharam 1.os papéis, já tinham geralmente conquistado celebridade no estrangeiro. Depois da reabertura do Teatro, em 1940, e à parte as óperas portuguesas, sobretudo de Ruy Coelho, interpretadas pelos nossos artistas, o mesmo panorama se depara com poucas variantes.203

O Trindade da FNAT fora, segundo Formigal, na sequência desta longa permanência histórica, o agente da ruptura; pela primeira vez, artistas portugueses tiveram a oportunidade de representar com regularidade papéis líricos principais. Deveu-se ainda ao Teatro, mercê das condições de enquadramento criadas, designadamente o Centro de 202. Informação de Serra Formigal acerca da Profissionalização de um Núcleo da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT, 19/12/1973, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1974. 203. Ibidem, p. 1.

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Aperfeiçoamento dos Cantores Líricos, o apuro da qualidade dos cantores. Os artistas portugueses alcançaram ainda importantes condições para a estabilização da sua carreira. Faziam parte do Sindicato Nacional dos Músicos e descontavam para a Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculos. Os progressos declarados não superavam, no entanto, a pouca credibilidade artística que largos sectores do meio operático lhe atribuíam. Assistiram às apresentações da Companhia Portuguesa de Ópera, até ao final da temporada de 1973, 470 mil espectadores.204 A consolidação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, que muito devia à relação que conseguira estabelecer com o público, mantinha-se bastante frágil. Os problemas com a orquestra pareciam, apesar de tudo, sanados, dado que o São Carlos estava disposto a ceder ao Trindade uma formação própria, a ser criada em breve. A profissionalização do coro do Teatro Nacional de Ópera facilitaria, também, a carreira a vários cantores. O Trindade continuaria a exercer o seu papel de etapa de formação dos talentos líricos, porque só actuando “em teatros de menor responsabilidade para, depois, com o treino, experiência e calo conseguidos, se poder abalançar a enfrentar públicos mais exigentes que pagam muito caro os seus bilhetes nos teatros de maior projecção.”205 Depois de alguma indefinição, o Trindade assumia o seu paralelo com os “teatros de Zarzuela” espanhóis, com os “teatros líricos de província” franceses e com as inúmeras companhias residentes que funcionam em países como a Alemanha, Holanda, Finlândia e países de Leste. O estado da ópera portuguesa, dominado por um único teatro lírico, “tem constituído um facto naturalmente limitativo para os nossos artistas, com excepção daqueles raros que previamente alcançaram celebridade internacional.”206 O Trindade conformava-se com o degrau mais baixo da ópera nacional: “(…) em qualquer país onde o espectáculo lírico tenha algum desenvolvimento, é mister pensar que exista uma pluralidade de teatros de hierarquia artística diferente, de forma a permitir que os artistas possam fazer realmente carreira.”207 204. Ibidem, p. 3. 205. Ibidem. 206. Ibidem, p. 4. 207. Ibidem.

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A profissionalização dos artistas portugueses garantiria a estabilidade de uma dedicação exclusiva, com óbvias repercussões na qualidade individual dos intérpretes. Restava, então, determinar quem estava em condições de representar o primeiro conjunto de artistas profissionalizados, sabendo-se de antemão ser impossível que todos os cantores do Trindade acedessem a essa nova condição. Os critérios de selecção foram explicitados por Serra Formigal. Alguns cantores, pela sua situação profissional há muito exercida, e pela idade que apresentavam, ficariam de fora do núcleo de profissionais. Encontravam-se neste grupo: Álvaro Malta, Luís França, João Rosa, Armando Guerreiro, Carlos Fonseca, João Veloso, Manuel Leitão e Vasco Gil. A eles juntavam-se Ana Lagoa e Zuleika Saque, que, apesar de colaborarem com o Trindade, estavam radicadas no estrangeiro. O primeiro critério importante era o de excluir do núcleo inicial aqueles que, por outros modos, tinham meios para assegurar a sua estabilidade. Posto isto, “deverá ainda ter-se em conta que só devem profissionalizar-se os elementos verdadeiramente valiosos”.208 Este segundo critério, aplicado a quem não tinha sido excluído pelo primeiro, garantiu a profissionalização às sopranos, Elizette Bayan, Elsa Saque e Helena Pina Manique; às meio-sopranos, Helena Cláudio e Maria Ramos; aos tenores, Fernando Serafim, Guilherme Kjölner, Luís Bruner e João Victor Costa; ao barítono, Hugo Casais. Os cachets variavam entre os 8.000$00 e os 12.000$00 mensais. Criou-se ainda a categoria de estagiário. O contrato de profissionalização constava de cinco pontos principais: a) exclusividade da profissão artística com absoluta prioridade para a FNAT, embora considerando também a carreira global dos artistas; b) prazo de validade contratual de dois anos, prorrogáveis; c) delimitação de períodos de trabalho diários ou semanais com vista a uma ocupação plena, mas sem prejuízo da integridade artística do cantor; d) garantias sociais (situação sindical e da previdência, férias remuneradas, pagamento de trabalho suplementar em dia de descanso semanal); e) disciplina.209 Perspectivava-se que a natureza da situação contratual dos novos profissionais – ligação directa ao Trindade e à FNAT – sofresse uma alte-

208. Ibidem, p. 7. 209. Ibidem, p. 9.

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ração quando, como tinha sido anunciado, o São Carlos constituísse a sua companhia residente, na qual seriam integrados, em regime de parceria com o Trindade, os artistas portugueses. A solução reduziria as despesas da FNAT com a Companhia Portuguesa de Ópera. A reacção dos artistas profissionalizados às alterações na estruturação das suas carreiras foi positiva. Ficava patente, todavia, que o número de artistas profissionalizados deixava muita gente de fora e não fazia prever a constituição de uma nova Companhia Portuguesa de Ópera. Em entrevista à revista Autores, de Março/Abril de 1974, o cantor Fernando Serafim, um dos artistas profissionalizados, referiu-se às importantes mudanças que transformaram as carreiras dos artistas portugueses.210 Segundo Fernando Serafim, sem a acção de Serra Formigal e da FNAT, os intérpretes portugueses nunca teriam conseguido a profissionalização. O facto de o número de profissionalizados estar longe de proporcionar a formação de uma Companhia Portuguesa de Ópera deveu-se, segundo o cantor, à política cultural inadequada das sucessivas direcções do São Carlos, “mesmo com um director como João de Freitas Branco”211. Os projectos anunciados pela nova direcção do Teatro Nacional de Ópera, a criação de uma companhia de ópera residente, com orquestra própria, e a participação activa dos cantores portugueses em temporadas anuais e espectáculos na província, nunca se chegaram a realizar. Na sua opinião, exigia-se, no São Carlos, uma ruptura, porque, “tal como funciona, serve uma elite endinheirada, ultraconservadora, que não sente a música como fonte de energia, como mensagem de forte emoção, mas sim como espectáculo de gozo puramente visual.”212 Do trabalho de Freitas Branco, o cantor reteve dois pontos positivos: abertura das portas do Teatro aos estudantes do Conservatório e abolição da obrigatoriedade do traje de gala. A legitimidade cultural do projecto do Trindade deixava a iniciativa dependente do Ministério das Corporações e Previdência Social. A política cultural e educativa do regime garantia apenas a existência de um Teatro Nacional de Ópera, cujos moldes foram, e continuavam a ser, condicionados pelas preferências artísticas de grupos sociais restritos, 210. Entrevista de Luís Filipe Pires a Fernando Serafim, Autores, Março/Abril de 1974, n.o 73, pp. 16-17. 211. Ibidem, p. 16. 212. Ibidem, p. 17.

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apesar das suas reconfigurações sociais e actualizações estéticas. Parte importante do público de ópera da FNAT era constituído por grupos sociais com escasso poder reivindicativo junto das instâncias estatais, nem qualquer representatividade no interior do campo operático. A existência de uma ópera popular só podia ser assegurada, a prazo, se, por um lado, se continuasse a considerar a sua acção social importante, no âmbito de um Ministério como o das Corporações e Previdência Social, ou, por outro, se a política cultural do Estado assumisse o projecto como um bem importante para o país, subvencionando-o no quadro de um Ministério da Educação ou de um futuro Ministério – ou Secretaria de Estado – da Cultura. A ópera da FNAT continuaria desde que as condições do seu nascimento se mantivessem: a relação de um ethos artístico, encarnado pela figura de Serra Formigal, e consubstanciada num conjunto de condições existentes no campo, com as instâncias corporativas que financiavam o projecto sob a condição da sua eficácia política e social. Fora deste contexto, dado que era inviável uma hipotética via comercial, a iniciativa sobreviveria apenas pela acção de um governo disposto a investir na ópera popular. Perante o Estado e os seus órgãos decisórios, parte dos consumidores do Trindade não possuía poder reivindicativo. A ópera popular, fora das relações de poder socialmente situadas, não era considerada um objecto cultural nobre.

19. O orçamento213 do Teatro da Trindade relativo ao ano anterior revelara as mesmas situações de dependência. A expectativa para o volume de rendimentos próprios era de 350.000$00, o que, num total de receita prevista de 6.150.000$00 representava 5,69 por cento. A contribuição da FNAT atingia os 4.500.000$00, aumentando 800.000$00 num ano, e as restantes receitas dividiam-se pelos 600.000$00 da JAS, os 200.000$00 da Gulbenkian, e os 150.000$00 do Ministério da Educação. Acrescente-se a estes números 350.000$00 da previsão de receitas 213. Orçamento Ordinário da Receita e Despesa para o ano de 1973, Arquivo do Teatro da Trindade.

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diversas. Se retirarmos o subsídio da Gulbenkian e o do Ministério da Educação, todo o restante financiamento é suportado pela máquina corporativa, o que significa 82,9 por cento do total. Dos 6.150.000$00 estimados para a despesa, a ópera foi responsável por 63,3 por cento do total, ou seja 3.897.800$00. A este número acresceram 1.721.200$00 de custos administrativos, 27,9 por cento do total. Foram despendidos 481.000$00 em despesas extraordinárias: as tournées da companhia de ópera. A restante actividade artística ficou-se pelos 90.000$00: 50.000$00 para o teatro declamado, concedido, no momento, à empresa Rey Colaço-Robles Monteiro, e 40.000$00 para os concertos sinfónicos, o que, no total, perfazia 1,46 por cento. A execução do orçamento revelou a falibilidade das previsões. A despesa do Teatro chegou aos 7.960.649$10. Os encargos com o coro e a orquestra aumentaram 1.048.000$00 em relação à época anterior. O subsídio da FNAT para tournées chegou aos 745.000$00. Os preços dos bilhetes, que subiram 40 por cento, ajudaram a equilibrar o orçamento. O Trindade conseguiu ainda, na rubrica receitas diversas, 1.293.000$00. Deste montante, destaca-se o resultante da concessão do Teatro à Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, 296.294$00, e o pagamento da Câmara Municipal, respeitante à utilização da Filarmónica de Lisboa, 487.191$00.214 A situação geral não oferecia dúvidas: o Teatro da Trindade, transformado em teatro de ópera, dependia cada vez mais do Ministério das Corporações. Num contexto em que algumas actividades da FNAT iam dando lucro, a área da cultura, de que o Trindade era parcela importante, revelava uma persistente dependência.

20. A revolução de Abril de 1974 implicou mudanças imediatas na direcção da FNAT. Foi nomeada uma comissão administrativa liderada por Rogério Paulo, conhecido actor de teatro. A organização da temporada de 1974 estava já há muito programada. O secretário do Teatro, Francisco de Oliveira Santos, escreveu ao director, informando-o das sucessivas 214. Documento que justifica e descreve as Contas do Teatro da Trindade em 1973, Arquivo do Teatro da Trindade.

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faltas dos artistas e dos atrasos na entrega das folhas de presenças.215 Esta situação, sentida desde 1973, não foi alheia ao incómodo causado na companhia pela profissionalização de parte dos cantores. No dia 30 de Abril, o Rigoletto subiu ao palco do Trindade. Ruy Coelho, que continuava a escrever no Diário de Notícias, gostou do espectáculo e salientou o prosseguimento da actividade meritória da FNAT. Notaram-se, porém, algumas transformações no seu discurso. A defesa dos princípios da nação deu lugar a um prudente apoio “à divulgação da ópera para o bem da cultura geral, o que é uma acção de civilização.”216 Francine Benoit, que escrevia no semanário Expresso, perdera as contemplações. A situação política e social acentuava as deficiências do projecto da Companhia Portuguesa de Ópera: Entretanto a presente temporada terá de seguir o seu curso – com ou sem interesse cultural em prosseguir no rame-rame de um pequeno repertório de êxito assegurado, em que o público perdoa as insuficiências de qualidade, num palco de poucas condições, sob uma orientação que deixa a desejar; e, por último, até se desistiu de apresentar uma partitura portuguesa.217

As Bodas de Fígaro regressaram pela terceira vez ao palco do Trindade. Nos jornais é difícil vislumbrar análises críticas aos espectáculos. Em relação à terceira apresentação do ano, a dupla Amelia al Ballo, de Menotti, e Il Tabarro, de Puccini, Ruy Coelho prosseguiu a apologia da importância civilizacional da cultura. Depurado de um sentido político directo, o seu discurso empenhava-se na defesa da cultura, esse “processo de educar os ouvintes, um movimento de civilização para todos. Só não existe cultura artística onde não há elementos preparados tecnicamente e esteticamente para a reclinar, e onde o público não sinta a necessidade de a conhecer (…)”218 Embora a situação política do país tornasse os espectáculos do Trindade num acontecimento marginal, as críticas que saíam demonstravam que o projecto da FNAT perdera um certo património de legitimação. 215. Carta de Francisco Oliveira Santos ao director do Teatro acerca das folhas de serviço diárias, no que concerne ao período entre 1 e 31 de Maio, 13/6/1974, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta Correspondência. 216. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 31/5/1974, p. 5. 217. Francine Benoit, Expresso, 8/6/1974. 218. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 4/7/1974, p. 5.

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A queda dos constrangimentos políticos e sociais libertava a palavra. O que se submetia a uma ordem de análise perdera todo o sentido. Os pontos positivos da Companhia Portuguesa de Ópera, que foram cantados durante doze anos, pareciam insignificantes. A palavra e o raciocínio seguiam uma racionalidade contextual.219 Francine Benoit, no resumo da temporada feito para o Expresso220, afirmou que a temporada lírica popular do Trindade “foi lançada sem nada ter a ver (já o dissemos) com a reconstrução do país em que estamos empenhados”. O seu público, formatado por onze anos de espectáculos “morre por ouvir Verdi e Puccini – o Rigoletto e a Butterfly em primeira linha, por questão do acrisolado amor que também lhes dedicam os protagonistas. E, hoje em dia, ‘parece mal’ não acender uma vela a Mozart no altar operático, e a um pozinho de modernismo”. O país precisava de uma Companhia Portuguesa de Ópera, mas tal companhia “não existe – existe, sim, a Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade de Lisboa (FNAT)” que nem “para opereta satisfaria um público que se equiparasse ao nível do público das salas de cinema. Qual a diferença entre precisar-se de ver bem um écran, e de ver bem um palco onde ‘se passam coisas’?” Para Francine Benoit, todo o ambiente do Trindade não era digno da nova situação portuguesa, expressando uma falsa cultura; impunha-se, então, a procura de uma “verdadeira cultura”. A ideia levava ao encerramento da ópera da FNAT. Eliminava-se a hierarquia operática. No futuro, a cultura não necessitaria de espaços como o Trindade, já que a democratização se faria, como indicava o documento publicado pela CDE, pela fasquia alta.

21. O futuro da Companhia Portuguesa de Ópera dependia da natureza dos objectivos do novo regime e da forma como a transição da política se reflectiria na FNAT. A função social dos espectáculos, como instru219. O período revolucionário é um óptimo objecto de estudo comparativo da evolução das representações, para uma confrontação estabelecida com a época anterior (como para todo o período posterior até à actualidade). 220. Francine Benoit, Expresso, 17/8/1974.

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mento de regulação social, preconizada pelo anterior regime, estava, nos momentos que se seguiram à revolução, desadequada. As instituições que sustentavam e enquadravam o poder político e económico tornaram-se, com intensidade diferente consoante a sua natureza, ilegítimas. Sobrava ao Trindade o património real, conquistado no apoio aos artistas portugueses, porque mesmo a retórica democratizadora da ópera para trabalhadores já não colhia perante movimentos que entendiam a democratização cultural como um processo regulado por parâmetros diferentes. Outras questões, não menos importantes, congregavam-se para dificultar o futuro do Trindade como teatro de ópera. A economia mundial vivia tempos de crise, marcados pelas consequências recentes do choque petrolífero. O período de relativa prosperidade, cujos efeitos positivos em Portugal contribuíram para um sucesso relativo da FNAT, cessara. O contexto carenciado coexistia com mudanças profundas no universo das políticas sociais do país, guiadas agora pelo propósito da criação de instrumentos de justiça social existentes noutras realidades europeias. Tendo em conta estes novos horizontes, a existência de um teatro gerido pelo antigo Ministério das Corporações e Previdência Social, com um orçamento preenchido quase na totalidade pelas actividades de uma companhia de ópera, era um óbvio anacronismo político e cultural. Apenas o futuro dos cantores portugueses urgia resolver antes da inevitável extinção do projecto. Tendo em conta que existiam contratos assinados, a temporada de 1975 ainda se realizou.

22. Já em 1975, não sabemos em que data, Rogério Paulo escreveu à direcção do Teatro Nacional de São Carlos a seguinte carta: O INATEL “herdou” da FNAT a Companhia Portuguesa de Ópera, com contratos individuais firmados até aos finais de 1975. Acontece que a reestruturação do INATEL não prevê que este organismo seja entidade empresarial, mas sim promotora da criatividade das massas operárias e camponesas. Quarenta e poucos espectáculos de Ópera, e o encerramento da Sala do Teatro da Trindade durante largas semanas, não justificam o dispêndio de cerca de seis mil contos anuais. Além de que a concessão de verba tão

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A Ópera do Trindade avultada para uma Companhia de Ópera permanente, impede-nos a atribuição de quantias substanciais para o incremento da música e sua divulgação junto dos trabalhadores. Não podemos ainda esquecer que o Trindade nunca poderá oferecer as condições técnicas necessárias ao desenvolvimento de uma autêntica companhia de ópera portuguesa com a formação de quadros, quer artísticos quer técnicos, que a sua existência justifica. Parece-nos que deverá ser o Teatro Nacional de S. Carlos a entidade a assumir a manutenção de um conjunto operático Nacional, quer utilizando artistas portugueses em espectáculos maioritariamente estrangeiros, quer – o que nos parece muito mais importante – conservando e desenvolvendo uma Companhia de Ópera Portuguesa visando a divulgação de autores nacionais e fomentando o aparecimento de novos valores. Parece-nos, pois, urgente, que o Teatro Nacional de S. Carlos tome uma posição em relação aos cantores e artistas que ficarão sem trabalho, logo que caducarem os seus contratos com o INATEL. (…) Pedimos, pois, uma solução urgente respeitante à situação dos artistas da Companhia Portuguesa de Ópera, de molde a garantir a sua sobrevivência e a continuidade e melhoramento da própria companhia.221

O destino da Companhia Portuguesa de Ópera estava traçado. Dependia, agora, da política do São Carlos e dos objectivos culturais das instâncias estatais responsáveis, o tipo de transição a realizar.

23. Ao Trindade chegavam, entretanto, propostas que reflectiam a nova situação política e cultural. Ainda em 1974, no dia 20 de Novembro, Rogério Paulo autorizou o aluguer do Trindade para a comemoração dos 30 anos da Associação de Amizade Portugal-Albânia222; em Fevereiro de 1975, foram Luiz Vilas-Boas e Duarte Mendonça que pediram informações quanto à possibilidade do Trindade receber o Cascais Jazz223; em Junho, foi o Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias – que pediu a cedência do espaço para efectuar o seu congresso.224 221. Carta de Rogério Paulo à direcção do Teatro Nacional de São Carlos, 1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975. 222. Carta da Associação de Amizade Portugal Albânia à Comissão Administrativa da FNAT, 20/11/1974, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975. 223. Carta dos promotores do Cascais Jazz à Comissão Administrativa da FNAT, 18/2/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975. 224. Carta do Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias ao INATEL, 9/6/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975. Pedido recusado, sob o pretexto de que “o INATEL não cede a sua sala de espectáculos a partidos políticos, visto a mesma se destinar somente a iniciativas de âmbito cultural.” Carta do INATEL ao Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias, 17/6/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.

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Era necessário, entretanto, organizar a temporada de 1975. Giovanni Voyer, que dirigia a comissão gestora da Companhia Portuguesa de Ópera escreveu, em 30 de Janeiro, a João Paes, novo director do Teatro São Carlos, para combinar a cedência do coro e do ensaiador Mario Pellegrini. Em Abril, depois de uma assembleia geral de cantores realizada no dia 17, Francisco José de Lima de Brito e Cunha foi eleito para substituir o Maestro Silva Pereira, suspenso da sua actividade na Emissora Nacional e no INATEL, decorrendo nesse âmbito um processo disciplinar.225 Da temporada de 1975 fizeram parte as óperas Ida e Volta, de Hindemith, o Telefone, de Menotti, e La Cambialle de Matrimonio, de Rossini, todas integradas no mesmo espectáculo estreado em 17 de Maio. A transformação no reportório serviu de pouco para a credibilização do projecto. A ópera seguinte foi A Flauta Mágica, estreada a 7 de Julho. Numa temporada sem qualquer unidade temporal, seguiram-se A Serrana, em 25 de Outubro, e La Bohème, a 14 de Novembro, ópera que encerrou as actividades da Companhia Portuguesa do Trindade. Com a extinção da Companhia Portuguesa de Ópera, a questão dos artistas portugueses suscitava um desenlace rápido. A solução encontrada, como estava concebido, passou pela integração de um núcleo de artistas profissionalizados nos quadros do Teatro Nacional de São Carlos. Nunca se chegou a criar, como em tempos foi pensado, uma Companhia de Ópera residente. O modelo do São Carlos, variando a sua oferta cultural consoante a evolução das sensibilidades das suas direcções e do pequeno público que o acompanhava, continuou, depois da revolução de Abril, a seguir um modelo de funcionamento que, nos seus eixos essenciais, se manteve inalterado. Depois do 25 de Abril, nenhuma tentativa foi feita para criar, por iniciativa do Estado, um teatro de ópera com algumas das características presentes nas temporadas do Trindade. Os seus objectivos sociais implícitos e os constrangimentos impostos à concepção das temporadas não obviaram a que, numa série de questões fundamentais, tais como a abrangência social e geográfica dos espectáculos, e o efeito que tiveram no meio profissional, o Trindade tenha realizado um trabalho pioneiro. Passando a regulação social,

225. Carta da Comissão Gestora da Companhia Portuguesa de Ópera do INATEL à Comissão Administrativa do INATEL, 22/4/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.

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em regime democrático, para universos de mediação cultural mais vastos e eficazes, o contexto artístico do Trindade soçobrou por ser o elo mais fraco de um meio onde as questões de origem e percurso social continuavam, independentemente do regime político, a ditar as leis.

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Conclusão No estudo das temporadas da Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade, organizadas pela FNAT entre 1963 e 1975, procurámos desenhar o processo no qual se desenvolveu um conjunto de relações políticas, institucionais, culturais e artísticas. Os parâmetros que caracterizaram a concepção do modelo artístico do Trindade, no modo como se sintetizaram os mecanismos de produção com as formas de recepção idealizadas, estiveram relacionados com os objectivos políticos e ideológicos da instituição que criou e suportou o projecto. As organizações de ocupação de tempos livres, à semelhança de outros mecanismos institucionais, foram instrumentos activos na mediação entre os interesses do Estado (normalizando as relações sociais num enquadramento moderno da divisão social do trabalho) e as necessidades da sociedade civil. Em Portugal, a FNAT, um dos eixos da política social do Estado Novo, exerceu um efectivo papel regulador da vida social portuguesa, nomeadamente quando as condições do quotidiano se mostraram adequadas a essa função. O crescimento material e humano da FNAT, a partir da década de 50, comprova o seu progressivo envolvimento na sociedade civil. A conotação da FNAT com um tipo de acção política endoutrinadora, que caracterizaria univocamente as instituições do regime, não permite vislumbrar o seu carácter moderno. Subavalia-se, então, os efeitos de uma tecnologia social que penetra a infraestrutura e que, para ser eficaz, não necessita de ser despótica ou pedagogicamente doutrinária, mas actuar através das fórmulas, às quais, recuperando as palavras de Quirino Mealha, “as classes trabalhadoras se mostram mais permeáveis”. Na área da cultura, a intervenção do Estado no Trindade rompe com a imagem de uma política central totalmente mobilizada num esforço de legitimação de uma “cultura popular” de tendência ruralista e nacionalista. A tarefa de “desproletarização” social exigia uma nova concepção de “cultura popular”, suficientemente atraente para consolidar o estatuto de pequenas burguesias em processo de mobilidade ascendente e 201

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cujas aspirações a estrutura económica não podia satisfazer no que respeita aos proveitos materiais. A progressiva visibilidade dos canais de mobilidade social generalizava a aspiração à mudança, aumentando as expectativas dos indivíduos quanto à sua posição na sociedade. A impossibilidade estrutural de satisfazer, materialmente, tais aspirações, conduziu a uma política que actuava sobre variáveis simbólicas de status, procurando, deste modo, neutralizar prováveis frustrações relativas. A programação que a FNAT, pela mão de Serra Formigal, impôs no Trindade, além de indicar um reposicionamento da política cultural do regime face às finalidades da política social, redimensionou a estrutura do campo operático em Portugal. Estes dois efeitos foram responsáveis por várias tensões. A reformulação da definição de “cultura popular” contrariava os insistentes resquícios de uma velha “política do espírito” 202

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que se tornava incómoda para a prossecução dos objectivos de uma regulação cultural moderna que se desejava eficiente. A contradição, já notada a propósito da participação do grupo de bailados Verde-Gaio nos espectáculos do Trindade, tornou-se paradigmática na polémica que Serra Formigal manteve com o compositor Ruy Coelho. “O Caso Ruy Coelho” representa, numa escala reduzida, o choque entre uma concepção nacionalista e endoutrinadora da cultura, que o compositor procurou legitimar na fidelidade que sempre demonstrara em relação ao regime, e uma iniciativa cultural de regulação social e económica cuja acção ideológica, fundamentada pela sociologia aplicada da época, era difusa e não apreensível de forma consciente. O debate entre Coelho e Formigal permitiu ainda definir a relação entre propósitos políticos e ideológicos e as formas artísticas que provavam ser mais eficientes para este exercício. A opção por determinado reportório de teatro lírico partiu da apetência do público, medida na pulsação do mercado, por determinado património músico-teatral clássico: a tradição da ópera romântica do século xix, designadamente a italiana e a francesa. Esta preferência evitava ainda preocupações censórias, a que outras artes não escaparam, como ficou revelado pelas considerações presentes nas Actas que o Conselho Consultivo do Teatro da Trindade redigiu a propósito da programação teatral. À transformação da ópera em instrumento da política social do Estado Novo não foi indiferente a posição que o género ocupava no interior de um campo artístico alargado. A ópera, produto cultural de excepção, além de remetida à capital, estava restringida ao círculo de relações sociais que gravitavam em torno do Teatro Nacional de São Carlos: espaço de referência representativo de um estatuto social. A apresentação no Coliseu de algumas récitas que faziam parte do programa de temporadas do São Carlos possibilitou, a partir de 1959, alguma “vulgarização” do género lírico. Será possível vislumbrar, nesta primeira abertura, o mesmo princípio de democratização regulada que caracterizará, quatro anos mais tarde, o Trindade. A raridade e a solenidade do espectáculo lírico tornavam-no num óbvio sinal de distinção, garantindo-lhe as características ideais para o exercício de uma política de “desproletarização” assente num projecto global de enobrecimento da “cultura popular”. A defesa do direito à cultura das classes mais desfavorecidas, o apoio aos grupos profissionais de 203

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artistas portugueses subalternizados pelas políticas oficiais, abriam ainda importantes frentes numa espécie de “mercado da contestação”, um espaço em que se tentava retirar de outros movimentos a representação dos mais fracos. O Trindade, como espaço aberto a todos, era o inverso do São Carlos. A injustiça da exclusão dava lugar a uma outra hierarquia, de desigualdade subtil e dissimulada, que autorizava, pelo menos, o acesso ao degrau mais baixo da oferta cultural do género. Independentemente das características políticas que enformavam a ópera no Trindade, a iniciativa teve um impacte importante no interior do universo do teatro lírico nacional. Neste processo há que relevar o papel de Serra Formigal. O director do Trindade, nomeado pelo ministro das Corporações e Previdência Social, Gonçalves Proença, ocupou o cargo pelos seus atributos políticos, mas também pela sua condição de elemento integrado em correntes de opinião que se posicionavam no interior do campo operático. A direcção de um projecto que tinha requisitos estruturais para a transformação significativa do panorama da ópera em Portugal transformou Serra Formigal num importante produtor cultural. A síntese entre a possibilidade de intervenção sobre o universo cultural e operático e o preenchimento dos objectivos da FNAT determinou o modo como Serra Formigal discutiu, argumentou e agiu no interior de determinados eixos de racionalidade que impunham limites aos seus movimentos e intenções. A luta pela institucionalização de uma Companhia Portuguesa de Ópera, pela criação de uma dinâmica de produção e formação sólida e estável, ambicionava, apesar dos limites institucionais, o reconhecimento da iniciativa no interior do campo operático. De forma concreta, o Trindade criou uma estrutura de oportunidades essencial para a carreira de uma série de agentes artísticos portugueses e iniciou uma incontestável democratização social e geográfica da ópera, retirando-a do quase monopólio do São Carlos. Foi evidente, porém, que apesar dos apoios que a iniciativa recebeu do interior do campo operático, o Trindade, à luz dos critérios de apreciação dominantes, nunca deixara de ser um “teatro de segunda”, bastante conservador – em especial, no que respeita à escolha do reportório e ao papel das encenações – quando comparado com o que as vanguardas iam fazendo pelo mundo. A autonomia do Trindade, suportada política e financeiramente, era muito frágil a 204

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nível simbólico. A única alternativa ao São Carlos que granjeara o respeito dos elementos dominantes do campo tinha sido o breve projecto do Grupo Experimental de Ópera de Câmara, vanguardista, inovador, recordado com apreço. O Trindade não possuía este património simbólico. Intrinsecamente ligada à política social do regime, a ópera do Trindade sobreviveu pouco tempo ao 25 de Abril. A nova direcção da FNAT, que continuou as suas funções sob a designação de INATEL, não quis manter uma actividade operática que preenchia a quase totalidade do orçamento do Teatro da Trindade. A companhia foi extinta com a justificação de que ao São Carlos cabia realizar o esforço até aqui produzido pelo Trindade. A ópera no Trindade caiu sem resistência. A sua subalternidade material e simbólica no campo do teatro lírico reduzia-lhe objectivamente a legitimidade de sobreviver através de uma iniciativa de política cultural ou educativa. O Estado considerou que o investimento no São Carlos preenchia a relevância cultural representada pelo género lírico. A abolição da contestada hierarquia entre ópera de primeira e ópera de segunda, em nome de uma outra nova “cultura popular”, acabou por suspender um mecanismo objectivo de vulgarização do género lírico. O público do Trindade não reivindicou a permanência dos espectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera. O seu consumo cultural, muito provavelmente, terá transitado para espectáculos mais ligeiros ou extinguiu-se numa pujança televisiva com outros efeitos sociais. Não houve, entretanto, qualquer tentativa de recriar uma Companhia Portuguesa de Ópera. Depois de treze anos no Trindade, a ópera deixou de ser um agente da política social do Estado. Neste período de tempo, participou das actividades de regulação social fomentadas pela FNAT e pelo Ministério das Corporações. Na esfera cultural, como em outras esferas, realizou-se uma intervenção estudada, reflexo de uma dominação ideológica subtil e dissimulada que exprime, no terceiro quartel do século xx, o desenvolvimento particular e condicionado da estrutura sócio-económica portuguesa e dos seus mecanismos de enquadramento ideológico.

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Posfácio Correspondendo ao amável convite do Autor, Mestre Nuno Miguel Rodrigues Domingos, alinharei gostosamente algumas considerações, à guisa de posfácio, sobre a importante obra agora publicada que constitui a sua Dissertação Final de Mestrado em Sociologia. Pela sua formação académica, pelo objecto deste trabalho sobre a CPO do Teatro da Trindade (FNAT), logo explicitado no seu título bem como ainda pela sua destinação, o Autor foca, fundamentalmente, o evento na sua vertente sociológica, embora a obra contenha também informação importante sobre os aspectos artísticos a que adiante nos referiremos. Além do aprofundado e amplamente documentado trabalho de investigação realizado, esta obra vale ainda, na minha opinião, pela posição assumida pelo Autor e mantida em toda a obra, de justo equilíbrio entre os princípios doutrinários enunciados e a realidade concreta que a investigação revelou. Na verdade, como refere o Autor, “depois de efectuada uma parcela importante da pesquisa empírica”, pareceu-lhe que “o universo do estudo apresentava particularidades que dificilmente poderiam ser enunciadas, em toda a sua especificidade, se reduzidas aos princípios teóricos que traçámos”. Antes, que “o entendimento do contexto dos espectáculos de ópera do Trindade organizados pela FNAT obrigava a entrelaçar um conjunto de relações que não poderiam ser bem compreendidas fora de um processo quotidiano que progrediu no tempo.” Pelo que “a explicação da dinâmica desse processo implica que todos os interesses, individuais, colectivos e institucionais, sejam colocados uns em relação aos outros.” E na reconstrução do processo, justifica o Autor a pertinência do método da construção narrativa pela mesma necessidade sentida de, “não abdicando dos eixos teóricos de análise”, ter entendido que “a explicação da acção tem uma origem contextual que deve ser considerada na abordagem dos movimentos dos actores sociais. O intrincado conjunto de relações 206

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institucionais e de posições individuais que caracterizaram o contexto das temporadas de ópera no Trindade sugeriram uma construção narrativa. É possível, assim, estabelecer uma relação, inerente ao contexto investigado, entre a autonomia relativa da acção individual e as fronteiras estruturais e conjunturais responsáveis pelos limites dessa autonomia.” E parece-me que o Autor conseguiu sempre o seu desiderato confessado de, como explicita, “evitar, deste modo, que os quadros teóricos violentassem parcelas do fenómeno social estudado que só podem ser devidamente explicadas a partir de uma compreensão dos contornos da acção de alguns actores sociais.” Pela minha parte, confesso-me como o autor social planificador e organizador de toda a acção da CPO, desde a apresentação da informação inicial à tutela até à elaboração da programação das temporadas líricas de 1963 a 1974, inclusive, compreendendo as récitas no Trindade e em descentralização, no mesmo período, quer na província, Madeira, Açores e Angola, quer no estrangeiro (Barcelona). Confesso-me ainda como tendo exercido as funções de director artístico da Companhia, designadamente, escolhendo os reportórios, os elencos e elaborando os calendários das óperas apresentadas. Coisa diferente é a consideração do mérito artístico que terá merecido a CPO, o qual resultou, obviamente, do trabalho individual e colectivo de todos os seus elementos: maestros directores e repetidores, mestres de canto e cena, encenadores, maquetistas, cenógrafos, figurinistas, técnicos de cena, além, naturalmente, dos cantores líricos que constituem o cerne de qualquer companhia de ópera. Devo ainda deixar claro que não fui sujeito a quaisquer constrições por parte da direcção da FNAT ou da tutela pois que os programas de actividades e os orçamentos que elaborei foram sempre aprovados bem como os respectivos relatórios e contas, sem quaisquer restrições. Nem sequer a minha acção concreta pontual foi alguma vez interferida pela Direcção da FNAT, cujo Presidente de então, o Dr. Bento Parreira do Amaral, aqui lembro com saudade, pelo apoio constante e grande amizade com que sempre me honrou. Já quanto às fronteiras estruturais e conjunturais exteriores, o livro dá conta de alguns dos limites postos à acção individual, embora deva reconhecer que foram conseguidas as indispensáveis colaborações, 207

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sobretudo do Teatro Nacional de São Carlos e da Rádio Difusão Portuguesa, então denominada Emissora Nacional. Os objectivos da CPO encontram-se expressos nas informações de serviço que subscrevi, algumas delas referidas neste livro, as quais se consubstanciaram em duas perspectivas, aliás, interdependentes, naturalmente, dentro das possibilidades financeiras e artísticas existentes: democratizar o espectáculo lírico, facultando o seu acesso às classes sociais menos possidentes, tanto em Lisboa como em acções de descentralização, com uma política de preços adequada a tal fim, e desenvolver, a título permanente e sistemático, acções de formação e treino profissional que permitissem não só a boa preparação das récitas das temporadas e o aperfeiçoamento dos cantores líricos já existentes, mas também que possibilitassem, como se verificou, a eclosão de novos valores. Para a concretização da segunda perspectiva, acima referida, foi fundamental o valioso e permanente trabalho do Centro de Preparação e Aperfeiçoamento de Artistas Líricos, que funcionou no Trindade, de 1963 até, pelo menos, 1974, inclusive, o qual foi sucessivamente dirigido por Tomaz Alcaide e Gino Bechi e que recebeu ainda as colaborações essenciais dos maestros Mário Pellegrini e Carlos Pasquale, Judith Lupi Freire, Giovani Voyer, Maria Antónia Saldanha de Azevedo e Jaime Silva (filho). O livro que agora se publica dá conta da medida em que os objectivos enunciados para a CPO foram conseguidos até à sua extinção pela direcção da FNAT, então presidida pelo actor Rogério Paulo, em 1975. Além da fidelização do público durante toda a duração da CPO, que justamente sublinha, o Autor refere ainda que “de forma concreta, o Trindade criou uma estrutura de oportunidades, essencial para a carreira de uma série de agentes artísticos portugueses e iniciou uma incontestável democratização social e geográfica da ópera, retirando-a do quase monopólio do São Carlos.” Parece, assim, que os objectivos sociais que acima enunciei foram razoavelmente conseguidos pela CPO, enquanto as circunstâncias exteriores lhe permitiram viver. E, como muito justa e lucidamente também acentua o Autor, “o contexto artístico do Trindade soçobrou por ser o elo mais fraco de um meio 208

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artístico em que as questões de origem e percurso social continuavam, independentemente do regime político, a ditar leis.” Deste modo, afigura-se-me clara a conclusão de que, ao nível da ópera, a alteração do sistema político, pesem embora as expectativas enunciadas, acabou por extinguir uma prática democratizante, fazendo prosseguir, sob outros moldes, uma cultura lírica de elite. Sob o ponto de vista artístico, penso que a informação constante desta obra, embora importante, dá uma imagem algo desfocada do mérito alcançado pela CPO. Deve-se, talvez, esta circunstância à insistência na transcrição de críticas de Ruy Coelho, em detrimento de citações de críticos não afectos ao regime político de então, com lugar justamente proeminente na cultura musical, e não só, como eram, designadamente, os casos de João de Freitas Branco, Blanc de Portugal e José João Cochofel. Estas personalidades, além de outras, igualmente de grande relevo na crítica musical, como Maria Helena Freitas, Nuno Barreiros, António Vitorino de Almeida, Manuela Araújo, sempre reconheceram o mérito artístico crescente da CPO, não se podendo alegar, a seu respeito, quaisquer considerações de apoio político. Neste contexto, considero importante e significativo transcrever um passo da crítica de Cochofel – personalidade que, aliás, nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente – datada de 29 de Junho de 1968, no Jornal do Comércio, em que afirma “(…) mas ainda bem que não perdi estas Bodas de Fígaro, que constituíram um grande triunfo para o grupo que parece hesitar ainda em adoptar definitivamente a designação de Companhia Nacional de Ópera, a que, em seis anos de porfiado esforço, ganhou incontestavelmente jus.” Também o Prof. Doutor Mário Vieira de Carvalho, hoje ilustre catedrático e, nesse tempo, jovem crítico musical e um dos importantes interventores na querela a que o próximo parágrafo se refere, reconheceu amplamente o mérito artístico da CPO na crítica que fez à récita de O Barbeiro de Sevilha, realizada em 31 de Agosto de 1968, no âmbito do Festival de Sintra desse ano. A querela sobre a CPO veio, afinal, não do seu desempenho artístico, regra geral digno e muitas vezes brilhante, na sua dupla dimensão musico-dramática, mas, antes, dos reportórios que, a certa altura do 209

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percurso, alguns jovens críticos vanguardistas consideraram de um “italianismo comum e rotineiro”, reportórios pelos quais, repito, fui, exclusivamente, o responsável. No entanto, reincido em não concordar com os epítetos acusados ao reportório italiano quando ele era constituído, na sua quase totalidade, por obras-primas de nomes indiscutíveis da literatura operática – Verdi, Puccini, Rossini, Bellini e Donizetti –, as quais persistem nos cartazes de todos os teatros líricos, após mais de cem anos de existência, as de Puccini, e mais de 150 anos, as dos restantes compositores citados, além de que continua também a sua incessante gravação em áudio e em vídeo. E continuo a reincidir, também, na opinião de que a preferência dada a tal reportório, aliás, não exclusivo, foi adequada não só por ajudar a consolidação da técnica vocal dos cantores, dada a exigência do canto legato que impõe, aliada à vocalidade da língua italiana, como ainda por razões sociológicas, tendo em atenção o público a que se dirigia e que se pretendia conquistar e fidelizar, geralmente não iniciado no espectáculo lírico nem nas modernas linguagens musicais do século xx. Quanto a estas últimas razões, certamente da maior importância, melhor e com maior autoridade se exprime o Autor da obra, uma vez mais em coerência com o rumo que se propôs, de justo equilíbrio entre os modelos teóricos e as soluções concretas, tendo em atenção as circunstâncias do caso. Termino, pois, com a seguinte citação do Autor, sobre a querela dos reportórios da CPO: “o facto de o controlo da produção cultural ser responsável pela formação, e deformação, do gosto do público, não invalida que existam predisposições, resultantes das socializações hegemónicas, que conduzem a uma maior propensão para consumir determinados produtos culturais. Serra Formigal, à imagem de qualquer empresário comercial, explorou, no Trindade, um património de formas culturais que o público a atingir estava habilitado a reconhecer sem esforço. Grande parte das críticas ao Trindade, feitas por pessoas situadas na oposição ao regime, não reconheciam, acreditando nas possibilidades transformadoras dos seus modelos de vanguarda, que a “cultura popular” estava bem mais próxima da concepção do empresariado, e que este fosso que separa as suas propostas das massas é, em grande medida, o mesmo que separa as classes sociais. Neste afeiçoamento ao gosto, necessário 210

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tanto para uma captação pedagógica como para um efeito ideológico baseado na satisfação, assentou, precisamente, o êxito considerável da ópera da FNAT.” Entre as várias questões a exigirem reflexão que a riqueza deste trabalho suscita, parece-me irrecusável a seguinte: partindo do princípio de que é socialmente importante a democratização da ópera, de forma a constituir um serviço cultural regular ao dispor da generalidade da população, e tendo em atenção as condições concretas do país que somos e temos, quais os meios e processos a implementar para, de uma forma adequada e realista, se atingir esta finalidade? José Manuel Serra Formigal

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Anexo Espectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade de 1963 a 1975 Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias 1963 . . . .Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio

A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Maio La Bohème, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27 de Junho Canção de Amor, de Franz Schubert (1797-1828) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Julho 1964 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Maio

L’Amico Fritz, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Maio La Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Junho La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1 de Julho A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Julho 1965 . . . .Tosca, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 de Abril

La Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Maio Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Junho L’Elisir d’Amore, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho A Condessa Caprichosa (La Donna di Génio Volubile), de Marcos Portugal (1762-1830)

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 de Julho

1966 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Maio

Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 de Maio Faust, de Charles Gounod (1818-1893) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Junho Inês Pereira, de Ruy Coelho (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Julho Rita, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho 1967 . . . .Tosca, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 de Abril

Don Pasquale, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 de Maio La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Junho

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Anexo

Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias

A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho Werther, de Jules Emile Massenet (1842-1912) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Julho 1968 . . . .La Sonnambula, de Vincenzo Belini (1801-1835) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio

Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio Il Segreto di Susanna, de Ermanno Wolf- Ferrari (1876-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Junho Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . .24 de Junho Manon Lescaut, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho Variedades de Proteu, de António Teixeira (1707-1769) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26 de Julho 1969 . . . .Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1 de Maio

Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Maio A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 de Junho Amélia al Ballo, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho Il Gobbo del Callifo, de Franco Casavola (1891-1955) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho Werther, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho La Cambiale di Matrimonio, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho Scala di Seta, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho Adina, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho 1970 . . . .Carmen, de Georges Bizet (1838-1875) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2 de Maio

La Rondine, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Maio Rita, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Junho Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Junho Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Julho Faust, de Charles Gounod (1818-1893) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Julho 1971 . . . .Orfeo ed Euridice, de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 de Maio

Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Maio L’Elisir d’Amore, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 de Maio Andrea Chenier, de Umberto Giordano (1867-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Junho Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30 de Junho La Bohème, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 de Julho 1972 . . . .A Flauta Mágica (Die Zauberflote), de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . .17 de Maio

Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 de Maio A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Junho Lakmé, de Leo Delibes (1836-1891) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho Viúva Alegre (Die lustige Witwe), de Franz Léhar (1870-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24 de Julho

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Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias 1973 . . . .Il Matrimonio Segreto, de Domenico Cimarosa (1749-1801) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30 de Abril

Werther, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio La Sonnambula, de Vicenzo Belini (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2 de Junho Don Quichotte, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 de Junho Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Julho Rosas de Todo o Ano, de Ruy Coelho (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Julho Viúva Alegre (Die lustige Witwe), de Franz Léhar (1870-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21 de Julho 1974 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 de Maio

Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Junho Amélia al Ballo, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho Il Tabarro, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22 de Julho O Conde de Luxemburgo (Der Graf von Luxemburg), de Franz Léhar (1870-1948) . .9 de Agosto 1975 . . . .Ida e Volta, de Paul Hindemith (1895-1963) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio

The Telephone, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio La Cambiale di Matrimonio, de Gioacchino Rossini (1792-1868) . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio A Flauta Mágica (Die Zauberflote), de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . .7 de Julho A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 de Outubro La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Novembro

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Fontes

Arquivos Arquivo do Teatro da Trindade > Pastas relativas aos anos de actividade da Companhia Portuguesa de Ópera (1963-1975). Arquivo do INATEL > Livros de Actas da Comissão Administrativa/Direcção da FNAT (1958-1975). > Relatórios e Contas da Direcção da FNAT (1958-1975). Arquivo do Ministério do Trabalho e da Solidariedade > Pastas 313, 314, 315. Arquivo do Museu do Teatro

Fontes Impressas Cardoso, José Pires, Uma Escola Corporativa Portuguesa, Gabinete de Estudos Corporativos, Lisboa, 1949. Costa, Jorge Felner da Costa, A Monotonia do Trabalho, FNAT, Lisboa, 1945. Dez Anos de Alegria no Trabalho: 1935-1945, FNAT, Edição fac-similada do INATEL, Lisboa, 1998. Graça, Luís Quartin, A Alegria no Trabalho nos Meios Rurais, FNAT, Lisboa, 1945. Grupo Sócio-Profissional de Músicos do Movimento C.D.E. de Lisboa, Outubro de 1973. Guedes, Marques, O destino das classes médias, Academia das Ciências de Lisboa (Separata das “Memórias” – classe de Letras – Tomo VI), 1956. Melo, Higino de Queiroz e, Colónias de Férias para Trabalhadores Portugueses e para os Seus Filhos, FNAT, Lisboa, 1944. O Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, FNAT, Lisboa, 1944. Programas das temporadas da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade (1963-1975). Reis, Rogério, “As Casas do Povo e a Valorização Rural”, Mensário das Casas do Povo, n.o 266, Agosto de 1968. Salazar, António de Oliveira, Salazar – Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevista (1909-1953), edição do SPN/SNI, Editorial Vanguarda, 1954. Vieira, Tomé, A Questão Social, Edições Biblioteca, Lisboa, 1943. Vinte Anos de Alegria no Trabalho: 1935-1945, Edição fac-similada do INATEL, Lisboa, 1998.

Legislação Decreto-Lei n.o 34.446 de 17 Março de 1945 (regulamentação dos refeitórios). Decreto-Lei n.o 37 836 de 24 de Maio de 1950 (estatutos da FNAT). Decreto-Lei n.o 43.777 de 3 de Julho de 1961 (referente às apostas mútuas). Decreto-Lei n.o 44 734 de 27 de Novembro de1962 (criação do lugar de novo vice-presidente da FNAT). Decreto-Lei n.o 46 649 de 17 de Novembro de 1965 (criação do lugar de novo vice-presidente da FNAT).

Publicações Oficiais Diário da Assembleia Nacional Diário da República

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Acervos Privados José Manuel Serra Formigal

Entrevistas (realizadas em 2000 e 2001) Álvaro Malta (cantor) Artur Ramos (cantor) Carlos Fonseca (cantor) Celeste Martins (bilheteira do Teatro da Trindade) Elizete Bayan (cantora) Elsa Saque (cantora) Fernando Serafim (cantor) Filipe de Sousa (maestro) José Serra Formigal (director da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade) Silva Dionísio (maestro)

Revistas, Jornais de Boletins Arte Musical, 1955-1975 Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (1958-1974) Brotéria, 1959-1975 Colóquio Artes, 1959-1975 Diário da Manhã, 1959-1975 Diário de Lisboa, 1959-1975 Diário de Notícias, 1959-1975 Gazeta Musical, 1955-1957 O Século, 1959-1975 O Tempo e o Modo, 1962-1975 Ópera, 1967-1969 Revista do Gabinete de Estudos Corporativos (1958-1974) Rumo, 1959-1975 Seara Nova, 1959-1975 Vértice, 1959-1975 Vida Mundial, 1959-1973

Bibliografia Baptista, Luís V., Cidade e Habitação Social, Celta, Oeiras, 1999. Benjamin, Walter, “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 1992. Boudon, Raymond, “La Logique de la Frustration Relative”, Effets Pervers et Orde Social, Quadrige/PUF, Paris, pp. 131-155. Bourdieu, Pierre, A Dominação Masculina, Celta, Oeiras, 1999. Bourdieu, Pierre, Distinction, Routledge, Londres, 1998. Bourdieu, Pierre, O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994. Brito, José Maria Brandão de, A Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965), o Condicionamento Industrial, Dom Quixote, Lisboa, 1989. Cabral, Manuel Vilaverde, “Sobre o Fascismo e o seu Advento em Portugal”, Análise Social, n.o 48, 1976, pp. 887-889. (873-915). Carvalho, Mário Vieira de, Pensar é Morrer ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maia, 1993. Carvalho, Mário Vieira de, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Relógio d’Água, Lisboa, 1999. Crehan, Kate, Gramsci, Cultura e Antropologia, Campo da Comunicação, Lisboa, 2004.

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Índice Remissivo A

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Academia de Amadores de Música, ........134 Acordo Monetário Europeu, .....................65 Alcaide, Tomás, ..................................87, 98, 122, 123, 126, 128, 129, 130, 138, 139, 143, 153 Alemanha nacional-socialista, ...................... ................................13, 43, 44, 45, 46, 47, 50 Almeida, Maria Teresa de, .........24, 98, 102 Amaral, Bento Parreira do, .........67, 80, 94 Angola, viagem a, ....................147, 148, 149 Araújo, Maria Manuela, ..........................102 Argerich, Martha, ....................................158 arte nacionalista, ................91, 105, 146, 178 Ary dos Santos, José Carlos, ...................139 Atalaya, José, .....................135, 178, 179, 187

Cabral, Fernando, ............................126, 136 Câmara Municipal de Lisboa, ..183, 184, 194 Campos, Raul, ...........................................95 Cândido, António, ....................................60 Cardoso, José Pires, ...................................63 Carvalho, Mário Vieira de, ................91, 92, 105, 124, 161, 162, 169, 171, 173, 174, 175, 187 Casais, Hugo, ................................................. ...............24, 98, 102, 118, 132, 142, 191, 202 Casas do Povo, ..........53, 59, 60, 64, 65, 69 Casas dos Pescadores, ........................65, 69 Casavola, Franco, ..............................161, 174 Cassou, Jean-Louis, ..................163, 164, 171 Cassuto, Álvaro, ...........................24, 25, 185 Castro, Maria Cristina de, .......................102 Centro de Alegria no Trabalho, .................... ....................................24, 62, 64, 69, 70, 71 Centro de Avviamento do Teatro Massimo de Palermo, ...............................................153 Centro de Estudos Corporativos da União Nacional, .....................................................51 Centro de Preparação e Aperfeiçoamento de Artistas Líricos, ........................................128 Centro de Recreio Popular, ....24, 64, 69, 70 Centro Português de Bailado, .................136 Chailly, Luciano, .......................................158 Cimarrosa, Domenico, ............................185 cinema, ...................................20, 21, 48, 52, 77, 80, 81, 82, 83, 88, 89, 120, 122, 125, 196 Cinemas > Chiado Terrasse, .....................................19 > Olimpia, ..................................................24 > Roma, ......................................................24 > São Luiz, ..................................18, 183, 184 Claudio Abbado, .......................................158 Cláudio, Helena, ......................................191 Cochofel, João José, ..................118, 126, 127 Coelho, Ruy, ..........16, 22, 86, 91, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 133, 135, 136, 141, 145, 146, 147, 154, 155, 156, 160, 161, 167, 171, 172, 173, 178, 180, 181, 185, 186, 187, 189, 195, 203 Coliseu do Porto, ......................................177 Coliseu dos Recreios, ...................21, 85, 90, 99, 101, 109, 117, 148, 158, 162, 167, 178, 203 Como, Franca, .........................................149 Companhia Portuguesa de Bailado, ........84 Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ... ...................................................................194

B bailado, .........................................82, 83, 84, 88, 89, 93, 103, 118, 125, 136, 168, 169, 171 Banco Mundial, ........................................66 Baptista, Luís V., ........................................34 Barbieri, Teresa, ......................................164 Barbosa, Vasco, ........................................102 Barcelona, viagem a, ..................82, 144, 173 Barreiros, Nuno, ................153, 155, 160, 171 Bayan, Elisete, ..........................150, 179, 191 Bechi, Gino, ....142, 143, 149, 153, 159, 161, 186 bel canto, ...........................123, 138, 141, 146 Bellini, Vincenzo, ......141, 146, 153, 185, 186 Benamor, Álvaro, ..............126, 135, 143, 159 Benoit, Francine, ........................................... .....134, 136, 137, 143, 147, 149, 150, 195, 196 Berg, Alban, ........................22, 158, 174, 187 Bizet, Georges, .................................163, 174 Boletim da FNAT Alegria no Trabalho, ....... ...........................................47, 56, 60, 61, 64 Boletim Lírico Internacional, .................174 Botelho, Afonso, ................................113, 115 Boudon, Raymond, ....................................34 Bourdieu, Pierre, ............112, 15, 30, 41, 124 Branco, João de Freitas, ................................ ...............22, 23, 84, 91, 102, 121, 128, 134, 135, 139, 140, 143, 149, 155, 156, 157, 158, 161, 167, 168, 169, 176, 178, 182, 183, 184, 186, 187, 192 Branco, Luiz de Freitas, ....................91, 105 Branco, Pedro de Freitas, ..........................82 Brecht, Bertolt, ...................114, 117, 145, 174 Britten, Benjamin, ....................22, 169, 187 Bruner, Luís, ............................................191

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A Ópera do Trindade concertos musicais, ......................21, 82, 83, 84, 88, 89, 90, 102, 103, 136, 159, 169, 194 Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, 16, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 203 Conservatório Nacional, ................................. ...........................127, 136, 167, 168, 169, 192 controlo social/regulação social, .......13, 29, 45, 60, 73, 77, 79, 90, 118, 197, 199, 203, 205 Coro da Gulbenkian, ................................118 Coro do São Carlos, .............93, 95, 127, 151, 152, 153, 168, 169, 171, 183, 188, 190, 194, 199 Costa, João Victor, ....................................191 Costa, Jorge Felner da, .....56, 57, 60, 61, 62 Crehan, Kate, .............................................29 Cruz, Ivo, ..........................126, 136, 159, 184 cultura popular, ................10, 21, 48, 53, 54, 55, 58, 59, 60, 64, 79, 82, 92, 93, 94, 98, 100, 102, 103, 104, 175, 179, 181, 201, 202, 203, 205 Cunha, Francisco José de Lima de Brito e, .. ...................................................................199

D d’Ávila, Humberto, ....................121, 150, 151 Dallapiccola, Luigi, ..................................174 Dall’Argine, Simona, ................................141 Debussy, Claude, ......................124, 139, 155 Delgado, General Humberto, ...................67 Delibes, Léo, ............................................179 Deniau, Robert, ........................................174 desproletarização, ...89, 90, 97, 131, 201, 203 Dias, Ferreira, .............................................55 Donizetti, Gaetano, ....................................... ............................141, 145, 146, 148, 149, 174 Dukas, Paul, ...............................................22

E EFTA-Associação Europeia de Comércio Livre, ....................................................65, 66 Elias, Norbert, ....................36, 37, 38, 39, 41 Emissora Nacional, ........................................ .......................18, 19, 62, 63, 81, 87, 113, 199 encenação, ......................81, 91, 11, 114, 120, 121, 122, 123, 125, 126, 135, 137, 138, 140, 141, 143, 149, 153, 156, 157, 159, 161, 164, 186, 187 Eisenstadt, S.N., ...................................49-57 Estatuto do Trabalho Nacional, ................44 estranhamento, ................................124, 125

F Falla, Manuel de, ......................................158 Federação das Colectividades de Cultura e Recreio, ................................................55, 121 Fernandes, António Júlio de Castro, .........51 Ferreira, Jaime, ...........................................51 Ferro, António, ............................91, 94, 105 Festival das Artes, ....................................147

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Festival Gulbenkian de Música, 23, 158, 167 Figueiredo, José de, ...........................91, 167 Filho, Jaime Silva, ....................126, 135, 146 Fonseca, Carlos, .......................................191 França, Luís, ..............................24, 191, 202 Freitas, Eduardo de, ...................................34 Freitas, Frederico de, ................135, 136, 144 Freitas, Maria Helena de, .........................153 Fundação Calouste Gulbenkian, .................. .................................................16, 22, 24, 83, 84, 86, 89, 118, 121, 144, 153, 159, 163, 193, 194 Fundo Monetário Internacional, .............66 Furiga, Alfredo, .........................................95 futebol, ................................17, 18, 39, 61, 85

G Gabinete de Estudos Corporativos, ..........63 GATT-Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, ..................................................66 Geertz, Clifford, ..........................................9 Gershwin, George, ..................................169 Giani, Mário, ..............................................45 Giddens, Anthony, ..............................39, 41 Gil, Vasco, .................................................191 Giordano, Umberto, .................................137 Gluck, Christoph Willibald, 22, 170, 171, 172 Gounod, Charles, .....145, 147, 163, 164, 174 Grácio, Sérgio, ...........................................34 Gramsci, Antonio, ........................29, 42, 43 Grazia, Victoria, .....................46, 47, 48, 49 Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, .......................................................187 Grupo Experimental de Ópera de Câmara, ..........16, 22, 24, 118, 119, 121, 127, 136, 205 Grupo Sócioprofissional dos Músicos do Movimento CDE, ....................187, 188, 196 Guedes, Armando Marques, .....................55 Guerreiro, Armando, ........................24, 191

H Haendel, Georg Friedrich, ......................158 Hetcher, Michael, .......................................15 Hicks, Alexander, ................................42, 57 Hindemith, Paul, .............................158, 199 Hitler, Adolf, ..............................................45 ideologia, ............................................10, 113, 14, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 48, 50, 55, 60, 64, 67, 78, 80, 110, 174, 175, 177, 203, 205

I INATEL-Instituto Nacional para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, ............................................... .................18, 26, 54, 69, 197, 198, 199, 205 Instituto de Alta Cultura, ...24, 153, 159, 163 Itália fascista, ....13, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50

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J Junta Central das Casas do Povo, .............59 Junta de Acção Social (JAS), .......................... ........36, 67, 77, 80, 81, 83, 113, 159, 163, 193 Juventude Musical Portuguesa, .......121, 136

K Keil, Alfredo, .............20, 98, 106, 144, 160 Keynes, John Maynard, .............................44 Kiser, Edgar, ...............................................15 Kjölner, Guilherme, ..........................98, 191 Kraft durch Freude, ..........26, 46, 47, 51, 53

L Lagoa, Ana, ........................98, 102, 158, 191 lazer, ........................................28, 32, 34, 37, 38, 39, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 55, 56, 58, 59, 89 Leal, António Silva, ..................................135 Léhar, Franz, .....................................20, 180 Leitão, Manuel, ..................................24, 191 Leoncavallo, Nicolo, ..................137, 143, 145 Linz, Juan, ............................................29, 35 Lopes, José Silva, .......................................65 Lopes-Graça, Fernando, ................................ ......................105, 124, 134, 137, 147, 175, 187 Lucena, Manuel de, 28, 44, 51, 59

M Machado, David, ...............................154, 187 Machado, Fernanda, ...........................24, 98 Machado, Júlio César, ...............................19 Magnini, Sérgio, .......................................171 Mahler, Gustav, ........................................139 Malaguerra, Isabel, ..................................164 Malta, Álvaro, ......24, 98, 102, 158, 186, 191 Manique, Helena Pina, ...........................191 Mann, Michael, ...................................30, 39 Martins, Celeste, ..............99, 100, 101, 102 Martins, Hermínio, ...................................58 Marx, Karl, .......14, 15, 37, 39, 40, 41, 42, 43 Mascagni, Pietro, ......................137, 143, 185 Mascarenhas, Domingos, ........................113 Massenet, Jules Emile Frédéric, ................... ..............22, 144, 149, 155, 161, 174, 185, 186 Mealha, Quirino, .......17, 18, 64, 67, 75, 201 Medeiros, Germana, ................................118 Mello, Higino de Queiroz e, .........51, 63, 64 Melo, Daniel, ..............................................55 Menano, Francisco, ..................................118 Menano, Manuela, ...................................118 Menotti, Gian Carlo, 22, 121, 161, 174, 195, 199 Messiaen, Olivier, ....................................158 Milhaud, Darius, ......................................187 Ministério da Educação, 84, 91, 166, 193, 194 Ministério das Corporações, ....................17, 18, 19, 24, 35, 50, 51, 75, 77, 80, 82, 87, 91, 97,

102, 104, 105, 106, 107, 108, 11, 136, 151, 152, 162, 166, 177, 184, 188, 192, 193, 194, 197, 205 modernização, ............................................... .......10, 29, 35, 36, 45, 52, 54, 57, 62, 66, 78 Monteiro, Armindo, ...................................33 Moore Jr, Barrington, ................................45 Moreira, António Leal, .............................135 Mozart, Wolfgang Amadeus, ........................ .............22, 134, 154, 155, 160, 169, 178, 196 Mussolini, Benito, .................26, 45, 46, 49 Mussorgsky, Modeste, .............................184

N Neves, José, ................................................47 Nunes, Adérito Sedas, ...............................34

O OECE-Organização de Cooperação Económica Europeia, ................................65 Oliveira, Edmundo, ..170, 171, 172, 179, 180 Ópera Nacional de Cuba, ........................174 Opera Nazionale Dopolavoro, ...................... ...........................................26, 45, 46, 47, 49 Óperas > Adina, ....................................................161 > Alcina, ....................................................158 > Amélia al Ballo, .....................161, 174, 195 > Amigo Fritz, O, .....................................137 > Andrea Chénier, ....................................172 > Arabella, ..................................................22 > Ariane, ....................................................22 > Barbe-Bleue, ...........................................22 > Barbeiro de Sevilha, O, .............................. .......20, 24, 108, 128, 134, 150, 157, 172, 202 > Bodas de Fígaro, As, .................................. ..............................22, 154, 155, 159, 164, 195 > Bohème, La, ...............................20, 22, 25, 108, 134, 137, 144, 150, 155, 157, 164, 172, 199 > Boris Godunov, .....................................184 > Cambiale di Matrimonio, La, ......161, 199 > Carmen, ........................................163, 164 > Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, ........106 > Cavalleria Rusticana, .................................. .....................143, 145, 153, 163, 164, 185, 186 > Condessa Caprichosa, A, ........................... .............................................144, 145, 173, 174 > Crisfal, ..................................................106 > D. Duardos e Flérida, ...........................187 > D. João IV, .......................................91, 105 > Dom Quixote, ...............................185, 186 > Domanda di Matrimonio, La, ..............163 > Don Pasquale, ......................................149 > Elixir do Amor, O, .........128, 143, 145, 172 > Erwartung, ............................................187 > Falstaff, ..................................................142 > Fausto, ...........................145, 147, 163, 164

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A Ópera do Trindade > Favorita, A, .............................................155 > Flauta Mágica, ......................178, 179, 199 > Gobbo del Califfo, Il, ....................161, 174 > Histoire du Soldat, .................................22 > Ida e Volta, ....................................158, 199 > Inês de Castro, ..............106, 172, 173, 185 > Inês Pereira, ..................145, 146, 148, 172 > Lakmé, ...................................................179 > Lucia de Lammermoor, 145, 146, 148, 172 > Lulu, ........................................22, 145, 187 > Madame Butterfly, ..18, 143, 163, 164, 196 > Manon, ............................................22, 155 > Mão Feliz, A, .........................................145 > Matrimóni, .............................................87 > Orfeo e Eurídice, .............22, 170, 171, 172 > Otello, ....................................................136 > Palhaços, Os, ....143, 145, 147, 153, 154, 155 > Peter Grimes, .........................................22 > Porgy and Bess, ....................................187 > Prigioneiro, Il, ......................................187 > Rake’s Progress, The, ....................22, 187 > Retábulo de Mestre Pedro, ...................158 > Rigoletto, ........137, 145, 146, 154, 195, 196 > Rita, ................................145, 147, 163, 164 > Rondine, La, .................................163, 164 > Rosas de Todo o Ano, ..........106, 185, 186 > Scala di Seta, La, ...................................161 > Segredo de Susana, O, ...........132, 153, 174 > Serrana, A, ......................................20, 82, 106, 108, 109, 110, 133, 144, 160, 173, 174, 199 > Simão Bocanegra, .................................155 > Sonnambula, La, ...................153, 185, 186 > Tabarro, Il, .............................................195 > Tannhäuser, ............................................22 > Telefone, O, ............................22, 121, 199 > The Turn of the Screw, .........................187 > Tosca, .....................141, 142, 143, 144, 149 > Traviata, A, .............137, 143, 159, 164, 174 > Trovador, O, ....................................22, 142 > Variedades de Proteu, As, 81, 155, 156, 157 > Vingança da Cigana, A, ............................. ..............135, 136, 137, 149, 150, 173, 174, 179 > Werther, ..........................149, 150, 155, 185 > Wozzeck, ...............................................145 opereta, ........................................................... .......20, 21, 23, 82, 83, 84, 88, 96, 106, 108, 109, 123, 128,129, 134, 164, 179, 189, 193, 196 Operetas > Canção do Amor, A, ......20, 106, 128, 134 > Sonho de Valsa, .....................................20 > Viúva Alegre, A, .............20, 180, 185, 187 Organização Internacional do Trabalho, ................................................................50, 51 Orquestras > Emissora Nacional, .................................... ................................18, 83, 126, 136, 171, 182

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> Filarmónica Municipal de Lisboa, ............ ..............................................171, 182 183, 184 > Gulbenkian, ...........................................118 > Sinfónica de Lisboa, .............................126

P Paes, João, ..........141, 170, 171, 172, 185, 199 Pais, Sidónio, ............................................141 Palha, Francisco, ........................................19 Parkin, Frank, ............................................41 Partido Comunista Português, 47, 161, 187 Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias, ......................198 Pasquali, Carlo, .................................95, 208 Patriarca, Fátima, ......................................28 Paulo, Rogério, ........................194, 197, 198 Pavão dos Santos, Victor, ..........................19 Peixinho, Jorge, .........136, 139, 145, 175, 187 Pellegrini, Mário, ......................95, 161, 199 Pereira, Maestro Silva, .................................. ..............................24, 126, 135, 136, 172, 199 Pereira, Nina Marques, ...........................102 Pereira, Pedro Teotónio, ............................51 Plano Marshall, .........................................65 políticas sociais, ............................................. ................9, 10, 26, 31, 32, 35, 36, 39, 41, 43, 44, 54, 48, 49, 51, 52, 55, 57, 80, 89, 104, 197 Portugal, José Blanc de, 2, 138, 139, 187, 209 Portugal, Marcos, ....................................144 Proença, João José Gonçalves de, ......19, 21, 27, 35, 36, 80, 81, 83, 94, 100, 106, 149, 204 profissionalização dos artistas/cantores portugueses, .....................119, 130, 131, 162, 163, 169, 182, 183, 184, 189, 190, 191, 192, 195 Puccini, Giacomo, ...........18, 20, 22, 25, 98, 134, 137, 141, 144, 157, 163, 164, 174, 195, 196 Purcell, Henry, 169

Q Quarteto de Lisboa, .................................103 questão social, .......28, 41, 45, 47, 55, 56, 59

R Ramos, Artur, ...............24, 81, 156, 157, 161 Ramos, Maria, ..........................................191 Rego, Carlos, ............................................164 revista, teatro de, .........20, 94, 129, 137, 179 Ribeiro, Fernando Moreira, ......................77 Ribeiro, Francisco, ...............................19, 21 Richter, Karl, ............................................158 Rodrigo, Mário, ........................................179 Rosa, João, 191 Rosas, Fernando, 13, 27, 187 Rossini, Gioacchino, ..................................... ......................98, 146, 155, 157, 161, 174, 199 Rostropovitch, Mstislav, ..........................158

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Índice Remissivo

S Salazar, António de Oliveira, .........27, 51, 61 Salieri, António, .......................................142 Santos, Joly Braga, .............25, 107, 121, 130, 133, 134, 135, 136, 142, 150, 154, 155, 160, 161 São Carlos, ...........16, 21, 22, 24, 25, 82, 83, 84, 86, 87, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 105, 108, 117, 122, 125, 126, 127, 141, 151, 152, 158, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 173, 176, 177, 178, 181, 182, 183, 186, 187, 188, 189, 190, 192, 197, 198, 199, 203, 204, 205 Saque, Elsa, ........................132, 153, 158, 191 Saque, Zuleika, ..........................148, 153, 181 Saraiva, José Hermano, ...........................167 Saviotti, Gino, ...........................................134 Schmitter, Phillipe, ...................................28 Schoenberg, Arnold, ........................145, 187 Schubert, Franz, .......................20, 108, 129 Sckocpol, Theda, ......................33, 40, 41, 45 Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), ...................................................21, 27 Secretariado Nacional da Informação (SNI), .........9, 16, 83, 92, 93, 94, 106, 113, 131, 136 Serafim, Fernando, ..................102, 191, 192 serões para trabalhadores, 64, 81, 82, 88, 103 Silva, António José da, .......................81, 187 Sindicato Nacional dos Bancários, .......50-51 Sindicato Nacional dos Músicos, ...136, 190 sindicatos, .................................24, 45, 53, 57 sociedade civil, ............................................... ...........30, 42, 45, 46, 47, 48, 50, 53, 57, 201 Somers, Margaret R., .................................15 Soumagnas, Jean, ....................................147 Sousa, Baltazar Rebelo de, ......................178 Sousa, Filipe de, ............................................ ......118, 119, 120, 121, 136, 137, 156, 173, 192 Stockhausen, Karl-Heinz, .........................23 Strauss, Richard, .......................................22 Stravinsky, ..................................22, 145, 187

T Taveira, Afonso, ........................................20 teatro (como arte), ......................................... 20, 21, 49, 82, 83, 84, 88, 89, 93, 98, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 126, 128, 137, 139, 159, 160, 162, 179, 187, 194

Teatro da Trindade > História, ................................19, 20, 21, 13 > Programação, .............................................. ...21, 73, 80, 82, 83, 85, 87, 88, 111, 181, 202 > Público, ....................................................... ....19, 82, 83, 85, 87, 88, 90, 94, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 108, 109, 110, 11, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 125, 126, 127, 134, 137, 143, 145, 147, 155, 157, 162, 166, 167, 173, 175, 177, 178, 185, 188, 190, 193, 195, 196, 203, 205 Teatro Ginásio, ..........................................19 Teatro Monumental, ...........................19, 24 Teixeira, António, ......................................81 Thomaz, Américo, ...........146, 153, 178, 186 Tilly, Charles, .............................................39 Toscanini, Arturo, ....................................125 Trio de Lisboa, ..........................................103

U União Europeia de Pagamentos, ..............58

V Valente, José Carlos, ...................................... ..............13, 26, 27, 28, 46, 47, 50, 53, 55, 78 variedades, ......................21, 82, 88, 89, 103 Vaz, Helder, ...............................................24 Veloso, João, .............................................191 Verde Gaio, bailados, .....21, 84, 93, 94, 203 Verdi, Giuseppe, ................................22, 98, 122, 123, 137, 138, 139, 141, 145, 154, 174, 196, Viana, António Manuel Couto, .................... ........................................19, 113, 116, 117, 187 Vieira, Tomé, .........................................47-55 Vitorino, Orlando, ..............................19, 113 Voyer, Giovani, ........................................199

W Wagner, ................32, 138, 139, 140, 141, 157 Wallenstein, Carlos, .................................121 Wandschneider, Fernanda, .....................102 Webern, Anton, ........................................158 Weil, Kurt, .................................114, 145, 174 Wolf-Ferrari, Ermanno, ............132, 153, 174

Z zarzuela, ............................................20, 190

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Revisão: Henrique Tavares e Castro Design: subbus:dESiGNERS Capa: rui[lúcio]carvalho Composição: Rita Lynce Fotografia da capa: Produzido e acabado por EIGAL Rua D. Afonso Henriques, 742 4435-006 Rio Tinto — Portugal

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