A outra margem de São Paulo

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A outra margem de São Paulo Rodrigo Bouillet Organizador do Cineclube Tela Brasilis [email protected] Texto do programa da sessão do Cineclube Tela Brasilis realizada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 24 de março de 2005. O filme Cidade Oculta (dir. Chico Botelho, 1986) foi antecedido do curta Clara Crocodilo (dir. Maria Cristina Santeiro, 1981).

O artista urbano, residente na paulicéia desde os anos 70, dialoga diretamente, e intensamente, com as duas obras. Em ambas, ele assina a trilha musical. No filme de Chico Botelho, ele atua e também é um dos roteiristas. Para o curta-metragem, ele empresta sua música, “Clara Crocodilo”, composta nos idos de 1970, para inspirar o filme da diretora e poetisa Maria Cristina Santeiro. Mas, por que se debruçar sobre o Cinema Paulista? Talvez porque desejemos mergulhar um pouco neste rio de águas turvas pouco exploradas pelo público carioca, pela crítica e pelos pesquisadores cariocas. Sem nenhuma busca pelo exótico, São Paulo nos oferece nomes como Chico Botelho e Wilson de Barros, entre outros desta geração, que muito têm a nos mostrar, revelando uma cidade diferente, desvelando um Cinema que vai muito além do mito da indústria cinematográfica, "materializado" nos estúdios da Vera Cruz. Mas, por que Arrigo Barnabé? Talvez porque, seu álbum “Clara Crocodilo”, lançado em 1980, signifique, do ponto de vista musical, e cultural, um olhar bastante peculiar sobre a cidade de São Paulo, reflexo de uma metrópole caótica que tudo engole, e que pela água, com frequencia, é engolida. E suas letras, com forte influência de HQs, de poesia concreta e literatura erótica podem ser visualizadas nas imagens produzidas por Maria Cristina, e, sobretudo, por Chico Botelho. Noites sujas de um dia qualquer, respira São Paulo, ofegante, ainda se refaz das últimas 24 horas, antes do surgimento dos primeiros raios de sol. Mas, não enxergamos seu brilho. Isto para nós não importa. A São Paulo do Ibirapuera num domingo ensolarado nem ao longe aparece nos planos de Chico Botelho. Estamos soterrados, incapazes de nos livrarmos do lamaçal do Rio Pinheiros. Paradoxalmente, é do leito do rio que vem a riqueza, o progresso, o crescimento e a produção. As margens, tidas como inócuas, estéreis, não se comunicam, permanecendo à margem, sendo tragadas pelo rio de influências que vez por outra transborda. A Cidade Oculta de Chico e Arrigo confunde-se. Ora é a boate SP Zero, ora é o abrigo do Anjo (Arrigo Barnabé), ora é o bairro japonês da metrópole.

Entremeada colcha de retalhos, ambientes que parecem aterrados (os planos de cobertura da cidade de São Paulo estão, em grande parte, em contra-plongée), convidam seus espectadores a uma breve visita ao subterrâneo. É sempre bom lembrar as evocações deste mundo marginal paulistano presentes, com bastante freqüência, nas letras e na música de Arrigo, como fica bastante claro na letra de "Clara Crocodilo". O oculto, o inóspito, o nada amigável mundo desenhado por Chico e Arrigo flerta com o Cinema Paulista, mais precisamente com o obscurantismo da indústria cinematográfica daquela cidade, nada haver com o sonho capitaneado por muitos na Vera Cruz. Trinta e seis anos depois, o cangaceiro urbano está com toda a muamba escondida, sem saber o quê fazer com ela, engolido pela cidade, pelo amor sem nenhum horizonte de futuro, tentando escapar do policial Rato (Sérgio Mamberti), o verdadeiro facínora. A bela da boate, Shirley Sombra (Carla Camurati), envolvida com o contrabando e o tráfico, transa com todos. Do Anjo ao Bozo, seu único objetivo na vida é se dar bem, seja na cama ou no palco, pelo menos enquanto a noite dure. Entre o Rato e o Anjo, ela fica com o palhaço, o chefe, aquele quem dita as regras nesta jogada internacional. Mas, nossa querida Shirley não é a mulher fatal, até porque só a vida na paulicéia é que é fatal. E à noite, "quando a sombra do barco rasga o coração da cidade", há pouco o que fazer.

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