A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico.

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REVISTA PRAXIS, Mina Gerais, v. 11, 1999, pp. 155-57

Resenha de Mário Maestri

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FLORENTINO, Manolo & GÓES, José R. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro: 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

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Jamais houve acordo sobre as condições de vida nas senzalas. Escravistas perguntavamse por que os cativos fugiam numerosos das fazendas e das residências urbanas pois, como lembravam intelectuais do peso de um José de Alencar, eles viveriam melhor nas senzalas do que os próprios proletários ingleses da época. Ao contrário, abolicionistas descreviam um cotidiano servil verdadeiramente patético. Com a Abolição, esse debate transferiu-se da vida real para os livros. Em 1934, a polêmica desequilibrou-se quando Gilberto Freyre esposou brilhantemente a tese de uma escravidão nordestina patriarcal, com as relações entre escravizadores e escravizados adocicadas pelas trocas sexuais e amaciadas pelo espírito universalista cristão português. Três décadas mais tarde, pensadores brilhantes como, entre outros, José Alípio Goulart, Clóvis Moura, Benjamin Péret, Emília Viotti da Costa, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, desvelaram a essência brutal da produção escravista. Alguns desses autores enfatizaram a resistência do trabalhador escravizado como elemento explicador da dinâmica da sociedade escravista, enquanto outros descaracterizaram-no como personagem social e histórico significativo. Em 1978, na tese O escravismo colonial, Jacob Gorender apresentou uma explicação categorial-sistemática do modo de produção escravista colonial, que apoiou metodologicamente, por anos, pesquisas críticas sobre o passado negreiro brasileiro, desequilibrando a discussão, agora, em favor de leitura do cativeiro nacional desde a ótica dos produtores diretos. Nos anos 1980, o poderoso sopro ideológico da contra-revolução neoliberal varreu o mondo. Em um processo quase pendular, no novo contexto, sob a influência da refinada e conservadora historiografia estadunidense, iniciou-se uma bem articuladas modernização e extensão das teses de Gilberto Freyre sobre o escravismo patriarcal, já velhas de meio século. Primeiro, abandonou-se a pesquisa sobre a resistência e a exploração dos trabalhadores escravizados, enfatizando-se o estudo das alforrias e de auto-regulamentação da escravidão a partir de acordos sistêmicos entre escravizados e escravizadores que teriam determinado o devir histórico. Revisionistas extremados descreveram sociedade escravista onde os cativos trabalhavam pouco, comiam muito, apanhavam quase nunca. A seguir, passou-se ao estudo sistemático da chamada “família escrava”. A existência sistêmica de famílias escravizadas, estáveis e, no mínimo, semi-autônomas, comprovaria a improcedência das teses de alta exploração e de antagonismos estruturais entre cativos e proprietários. A existência do fenômeno provaria objetivamente a vigência de paz social, devido às amplas concessões dos escravizadores no que se referiam às condições necessárias à conformação e ao desenvolvimento sistêmicos de famílias no seio da escravidão e das senzalas. Lançado pela Civilização Brasileira, o livro A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico: Rio de Janeiro, 1790-1850, de Manolo Florentino e José R. Góes, até o presente, constitui, talvez, a mais ambiciosa e bem articulada tentativa de comprovar a hipótese da existência de sólida organização familiar entre a população escravizada. O trabalho baseia-se sobretudo em um amplo levantamento dos inventários post-mortem dos fazendeiros do norte fluminense, em um período em que, devido ao desenvolvimento da produção cafeicultora, o tráfico internacional acelerou-se significativamente. Além dos inventários, são utilizados alguns 1

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processos judiciários e outros documentos para capturar o perfil e as tendências das eventuais famílias escravizadas. Como sugerem os próprios autores, não são raros os estudos nos quais a argumentação e as conclusões contrariam a documentação apresentada. Nas ciências sociais, a adesão, consciente ou inconsciente, dos autores – e dos resenhadores desses últimos, é claro – a propostas epistemológicas e ideológicas interferem comumente nas conclusões chegadas a partir da documentação. Com a reunião e o estudo de pobres cacos de cerâmica, a arqueologia reconstrói os artefatos do passado e, na ponta final de suas análises, desvela tendências profundas das civilizações que produziram os objetares esfarelados pelo tempo. Apesar do consistente esforço argumentativo, no final de A paz da senzala: famílias escravas e tráfico atlântico, ao leitor mais atento, os autores apresentam apenas espécies de cacos, verdadeiro arremedos, de famílias escravizadas. Nas fazendas escravistas estudadas, as relações parentais constituíam quase formas sem conteúdos, se comparadas às relações familiares das famílias livres da época, ricas ou pobres. O que corroboraria a proposta de que, em geral, os cativos foram expropriados não apenas de enorme parte do produto de seu trabalho, mas também do direito de constituírem famílias minimamente estáveis e autônomas, portanto, capazes de garantirem sua auto-reprodução biológica. O que, diga-se de passagem, foi a grande razão da incapacidade da população escravizada brasileira de reproduzir-se naturalmente. A documentação estudada não desvela, jamais, a existência sistemática e significativa, de grupos familiares com mínimas estabilidade de residência e autonomia econômica, produzindo laços parentais, através dos anos, pela produção sistemática de filhos. O aparente paradoxo dos resultados obtidos nesse trabalho talvez se deva à análise de uma sociedade singular com categorias estranhas a ela. Em geral, nas sociedade pré-capitalistas, as famílias têm como função essencial a produção de suas condições de existência e a sua reprodução biológica, necessária à efetivação, em longo prazo, da primeira. Para que isso ocorra, importantes recursos sociais são alocados sobretudo no financiamento da reprodução da espécie: a maternidade e a criação das crianças são cercadas de cuidados e atenção materiais e imateriais atenções extras. Os pais não criam filhos apenas pelos belos olhos do pimpolho. Em Mulheres, celeiros e capitais, o africanista marxista Claude Meillassoux lembra que, em sociedades camponesas, como as européias, ou domésticas, como as africanas, trabalhando para seus pais quando jovens, ou sustentando-os quando velhos, os filhos repõem os investimentos que consumiram, quando plenamente ou parcialmente improdutivos. Por milênios, as crianças foram também uma forma de previdência social, tão ou mais segura do que o nosso INPS. A importância do controle da progenitura explica a importância do controle da sexualidade dos jovens e das mulheres férteis. É a apropriação da mulher, para controlar sua força de trabalho e, sobretudo, da produção e da distribuição das crianças, futuros produtores, que dá conteúdo aos laços parentais nas sociedades pré-capitalistas. Paradoxalmente, os fenômenos que acabamos de assinalar não ocorriam em forma sistemática ou significativa na sociedade escravista, quanto à população escravizada. Ao expropriar a família e a aldeia africana de jovens e de adultos sadios em idade produtiva, o tráfico economizava ao escravista o elevado custo de criação do produtor, sobretudo em uma época de alta mortalidade infantil, aumentado a rentabilidade da produção escravista, de baixa produtividade. Era a África, a grande mãe dessangrada que garantia a parte significativa da reprodução da população escravizadas nas Américas. No seu clássico estudo Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, o historiador estadunidense Robert Conrad assinala que, como proposto, a mulher escravizada jamais alcançou a contrabalançar a hecatombe 2

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populacional determinada pelas duríssimas condições de produção servil de existência, antes ou após 1850. Na escravidão, a mulher escravizada perdia uma função essencial que cumpria em outras formas-organizações de produção – a de produzir necessariamente produtores. Por isso, em geral, não recebia dos escravizadores a emulação e o apoio mínimos para parirem incessantemente e criarem filhos com um sucesso tal que permitisse reprodução ampliada da população escravizada. Em geral, a gestante não recebia uma melhor alimentação, não era colocada em trabalhos mais leves durante a gestação, etc. A mãe não era dispensada, total ou significativamente, dos trabalhos para cuidar dos filhos; não era remunerada pela criação da prole, etc. Sobretudo, na escravidão, as crianças nascidas sob o cativeiro, mesmo criadas com o esforço dos país biológicos, sobrecarregados já pelo trabalho feitorizado, quando alcançavam a idade produtiva, ainda que parcial, em torno dos oito anos, passavam a dever obrigações e respeito apenas ao pai sociológico – ou seja, o escravizador. A eventual entrega de parte da escassa remuneração – direta ou indireta – que eventualmente eles recebessem era prática não obrigatória e de pouco significado. A ordem escravista expropriava os direitos econômicos e sociais tradicionais dos pais naturais, deixando-lhes apenas eventuais e frágeis direitos simbólicos. Em A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico relata-se o caso de liberto que assassinou dois filhos pequenos, certamente indignado com o fato de serem cativos e, portanto, deverem trabalhar para o escravizador. A explicação do pai biológico para o crime registra a inconformidade com a expropriação do que considerada sua autoridade e seu direito paterno. Afirmou que matara as crianças “para não vê-las escravas do meu senhor moço”. Ou seja, indignava-se com o fato de que elas estivessem sob a autoridade despótica do escravista e não patriarcal do progenitor. Não se tratava, definitivamente, de insatisfação com a sorte dos filhos, já que ele próprio obtivera a alforria e, portanto, podia trabalhar para libertá-los. Os autores realizam outra leitura desse caso, ao apresentarem o crioulo filicida como exemplo de terrível transgressão do pacto familiar necessário entre pais e filhos que horrorizaria a população livre e escravizada. Porém, a documentação apresentada prova que o horror dos escravistas com a morte dos crioulinhos não fora grande. A justiça não o condenou à morte, apesar de fazê-lo invariavelmente com cativos que levantava o braço contra proprietários. Estudos mais detidos comprovarão certamente que a decisão feminina – consciente ou inconsciente – sobre as vantagens relativas da maternidade determinou profundamente os padrões da natalidade da população escravizada. E isso, ainda mais, devido a um outro importante fenômeno da sociedade escravista. Na escravidão, ocorreu uma real dissociação tendencial entre sexualidade e maternidade, pois o exercício da sensualidade podia emergir sem estar enquadrado, como nas sociedades camponesas ou domésticas, pela luta pelo controle da prole feminina, sobretudo por parte dos homens mais velhos do grupo social. Na escravidão, a dissociação entre sexualidade e reprodução talvez explica referências preconceituosas de cronistas coevos e historiadores atuais sobre as práticas sexuais dos cativos e cativas e o fato de que as mulheres feitorizadas, como apontam os dois autores, iniciavam sua vida sexual mais cedo e a terminavam mais tarde do que comumente na África e na Europa. E isso sem conhecerem taxas de natalidade iguais ou superiores às daquelas regiões. Nas sociedades camponesas, diminuir o tempo de exercício da vida sexual das mulheres púberes, retardando o seu início e antecipando a sua interrupção, é tradicional forma de controlar a natalidade. Trata-se de um anacronismo tentarmos projetar para o passado escravista colonial a moralidade sexual de nossa época e sociedade. Fenômenos profundos da sociedade escravista 3

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determinaram as relações interpessoais dos trabalhadores escravizados. Mais além do debate que certamente se abrirá sobre os dados e as conclusões apresentadas, esse instigante estudo de Manolo Florentino e José Roberto Góis deixa claro a necessidade da construção de categorias que expressem as formas singulares de relacionamento e de aliança interpessoais dos trabalhadores escravizados.

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