A PERCEPÇÃO DA INFLUÊNCIA DO APOIO SOCIAL DE FAMILIARES E AMIGOS NA CONVIVÊNCIA DIÁRIA DE CASAIS HOMOAFETIVOS MASCULINOS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE CURSO DE PSICOLOGIA

RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

A PERCEPÇÃO DA INFLUÊNCIA DO APOIO SOCIAL DE FAMILIARES E AMIGOS NA CONVIVÊNCIA DIÁRIA DE CASAIS HOMOAFETIVOS MASCULINOS

EMERSON FERREIRA DA COSTA LEITE BOLSISTA PIBIC-CNPQ

ORIENTADOR: PROF. DR. PLÍNIO DE ALMEIDA MACIEL JUNIOR

BARUERI AGOSTO/2014

RESUMO

A literatura dedicada ao estudo do desenvolvimento de indivíduos homossexuais e de seus relacionamentos interpessoais aponta que a ideologia heteronormativa e a cultura heterossexista têm importante impacto sobre o cotidiano de vida dessas pessoas, tanto no que se refere às violências das quais são alvo constante quanto em termos do sofrimento pessoal implicado. Entre as estratégias e condições de enfrentamento da homofobia, o apoio social de familiares e amigos tem ganhado destaque nos estudos da área. A presente pesquisa teve por objetivo avaliar, sob a perspectiva do desenvolvimento humano, como o apoio social recebido por familiares e amigos, ou a ausência dele, interfere no cotidiano de arranjos homoconjugais, especialmente no enfrentamento da homofobia. Foi adotada a estratégia metodológica do estudo de caso, utilizando como instrumentos de coleta dos dados o mapa da rede social, a linha do tempo e entrevistas semiestruturadas. A análise dos dados indicou que a construção de uma rede de apoio social sólida e suportiva é um dos fatores fundamentais no enfrentamento da homofobia, mas o recebimento de apoio social é mutável e complexo, coexistindo simultaneamente movimentos de suporte e não-suporte por parte das redes de relações proximais, o que também depende da transformação ativa destas pelos participantes que, assim como seus familiares e amigos, ora enfrentam e ora não enfrentam os preconceitos e as atitudes e condutas violentas decorrentes da ideologia heteronormativa que pauta as relações sociais. Considerando que os entrevistados são pessoas que conseguiram maior grau de independência financeira em suas vidas, atentamos para a necessidade de investigação em estudos futuros sobre a forma como esses processos se dariam em outros perfis populacionais da comunidade LGBT, para os quais a participação da família e amigos seja uma condição mais crítica para seu desenvolvimento palavras-chaves: união homoafetiva; homofobia; apoio social; rede social. Agência de fomento: PIBIC-CNPq

1. INTRODUÇÃO O tema da pesquisa aqui proposta está relacionado aos impactos da cultura heterossexista1 sobre as vidas dos indivíduos homossexuais. É fato que o cotidiano de muitos homossexuais, certamente da maioria, está envolto por experiências de preconceito e marginalização, com consequentemente estigma. Educadores e pesquisadores em geral, incluindo aqueles que ensinam e produzem Psicologia nas universidades, têm sido desafiados a incluir essas questões nas propostas pedagógicas, e isto envolve uma revisão dos conteúdos curriculares para que contemplem a discussão sobre temas como orientação sexual, desenvolvimento e dilemas da vida dos homossexuais (Miskolci, 2012). Segundo a literatura específica sobre o tratamento psicoterapêutico com homossexuais2, ainda que estes apresentem essencialmente os mesmos tipos de problemas que os heterossexuais (mais comumente dificuldades de relacionamento e com o trabalho), há temas peculiares no atendimento a esta população que estão claramente relacionados à cultura heterossexista e heteronormativa3 e ajudam a minar a sua autoestima: tornar pública a orientação sexual (“sair do armário”), lidar com a homofobia social e a homofobia internalizada, especificidades do relacionamento afetivo entre casais do mesmo sexo, exercer a paternidade/maternidade e lidar com a família de origem (Hancock, 2000; Ritter e Terndrup, 2002).

1

Heterossexismo é a atitude de preconceito, discriminação ou ódio contra toda sexualidade não

heterossexual. 2

Apesar de poder gerar entendimento dúbio em sua conotação, a expressão “tratamento psicoterapêutico

com homossexuais” é utilizada na literatura específica da área para referir-se à terapia realizada com pessoas que possuem tal orientação sexual, e, por essa razão, enfrentam problemas relativos à heteronormatividade presente na sociedade. Difere, portanto, do tratamento da homossexualidade, no sentido de compreender a orientação sexual como patologia/desvio e buscar-se, assim, uma “cura” para a mesma, prática condenável cientificamente e proibida pela Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia. Optou-se por não utilizar termos como “acompanhamento” e “orientação” por terem significados distintos de psicoterapia na literatura da Psicologia Clínica. 3

Heteronormatividade se refere a uma ideologia que promove uma perspectiva convencional das relações

de gênero e da heterossexualidade, e uma visão tradicionalista da família, como a maneira correta das pessoas viverem. (C. Ingraham. The heterosexual imaginary: feminist sociology and theories of gender. In: S. Seidman (ed). Queer Theory/Sociology. Cambridge, MA: Blackwell, p. 168-193, 1996) [apud Oswald, Blume & Marks, 2005].

Dentre estes, o tema das relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo tem se destacado na mídia e no cotidiano dos brasileiros por conta do reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal no dia 04 de maio de 2011. Desde então, o número de casais que busca os cartórios para registrar suas uniões cresce. Segundo o Portal G1 (www.g1.globo.com) do dia 10 de junho de 2012, somente na cidade de São Paulo, entre maio de 2011 e junho de 2012, cerca de 1.500 casais haviam registrado a união em cartório. Na verdade, as uniões homoafetivas têm sido motivo de discussão no campo jurídico e político em vários países. Na Europa, países como a Bélgica, a Espanha e a Holanda aprovaram leis dispondo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto França, Alemanha, Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Islândia, entre outros, permitem a união civil entre lésbicas e entre gays. Em julho de 2003, a cidade de Buenos Aires foi a primeira da América Latina a reconhecer a união estável para casais homoafetivos, ainda que com algumas restrições. Já nos Estados Unidos, o estado de Massachusetts aprovou em maio de 2004 o casamento entre as pessoas do mesmo sexo (Mello, 2005), e atualmente a Suprema Corte Americana está analisando os argumentos sobre o casamento gay, tema que, inclusive, foi motivo de debate na última campanha presidencial do país. No último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pela primeira vez houve possibilidade de registro sobre casais homossexuais, certamente expressando a preocupação do Estado em conhecer esta realidade no nosso país (IBGE, 2010). No entanto, à época da divulgação dos dados, demógrafos chamaram a atenção para o evidente risco de subnotificação neste caso, dado que o entrevistado poderia ou não declarar se vivia com uma pessoa do mesmo sexo, ou ainda se mantinha um relacionamento homoafetivo sem viver necessariamente no mesmo domicílio do companheiro. Os resultados apontam que as relações homoafetivas correspondem a 0,1% do total de unidades domésticas, algo em torno de 58.000 no país, sendo que 52,6% estão concentradas na região sudeste (IBGE, op. cit., p. 72). Ao contrário da reflexão feita por Mello (2005), segundo o qual há uma desconstrução parcial da “imagem perversa” e “pouco humana” dos homossexuais em virtude das transformações pelas quais passam os relacionamentos homossexuais nos

últimos anos, com a linguagem da ternura e da preocupação sentimental, a hipótese aqui defendida é a de que a expressão pública de afetos entre dois indivíduos do mesmo sexo, bem como o incremento dos casais e famílias homoafetivos, favorecem o aumento do preconceito e da violência contra homossexuais no Brasil. Se for verdade que os arranjos conjugais homoafetivos contribuem para a quebra de tabus quanto a uma “verdadeira família”, isto é, aquela formada por um casal heterossexual com seus filhos, este é exatamente um dos motivos pelos quais os casais do mesmo sexo sofrem preconceito e repúdio. Muitos ainda consideram a conjugalidade homoafetiva como um risco para a sociedade, o que revela o impacto significativo da cultura heteronormativa sobre os indivíduos. Portanto, conforme o exposto, mudanças ideológicas e sociais apontam para novas formas de relacionamento conjugal, sendo que as conjugalidades4 homoafetivas têm se tornado cada vez mais visíveis e contribuído para o incremento da pluralidade de significados do casamento na atualidade, inclusive no Brasil. Partindo destas considerações, o tema abordado nesta pesquisa é o da conjugalidade homoafetiva masculina, sua inserção no meio social com as consequentes reações preconceituosas ainda presentes em nossa sociedade, e o apoio social propiciado por familiares e amigos dos parceiros desta união. Como afirma Defendi (2010), a assimilação e a legitimação social destes arranjos conjugais não ocorrem rapidamente e sem conflitos e resistências. Eles remetem à necessidade de reflexão sobre o direito de viver um relacionamento amoroso independentemente da orientação sexual. As resistências à aceitação destes relacionamentos estão baseadas em estruturas que organizaram as sociedades humanas ao longo dos três últimos séculos, como a repressão sexual e a heterossexualidade compulsória “naturalizada” (Mello, 2005). Portanto, é no contexto destas resistências e dos preconceitos delas decorrentes que os casais do mesmo sexo constroem hoje suas vidas e relações, o que transforma 4 Cabe ressaltar que, neste projeto, serão utilizados de modo intercambiável termos como “conjugalidade homoafetiva”, “união consensual de pessoas do mesmo sexo”, “arranjo conjugal homoafetivo”, “casamento gay”, entre outros, uma vez que ainda não se identifica o predomínio de um deles na literatura sobre o tema.

este processo num desafio constante para o casal e requer dele condições e estratégias de enfrentamento que provavelmente são desenvolvidas também com o apoio de familiares e amigos. O presente trabalho teve por objetivos principais identificar quais as principais funções de apoio social exercidas pelos familiares dos membros de casais homossexuais e amigos que compõem a rede social do casal e avaliar em que medida elas os auxiliam no enfrentamento das situações cotidianas de preconceito. Em outras palavras, pretendeu-se responder à seguinte questão: Como os parceiros de um casal homoafetivo masculino percebem a influência do apoio social (ou a falta dele) de familiares e amigos em sua convivência, especialmente no que diz respeito ao enfrentamento cotidiano das manifestações de preconceito que experimentam? Para tal, partiremos de um referencial teórico fundamentado na concepção de desenvolvimento humano. O conceito de desenvolvimento humano vem evoluindo no sentido de defender o papel ativo do indivíduo na construção de seu processo de desenvolvimento, quer o influenciando diretamente, por exemplo, pela realização de escolhas ao longo da vida, quer indiretamente, quando cria ou transforma os contextos nos quais se processa esse desenvolvimento (Fonseca, 2007). Sob esta concepção, o ser humano é concebido como “um sistema altamente complexo, onde se interligam dimensões de ordem biológica, cognitiva, emocional, relacional e social” (Fonseca, op. cit., p. 278). Apesar de estar sujeito a uma evolução regular e progressiva, esse sistema não está limitado a uma meta desenvolvimentista pré-determinada. Esta visão enfatiza sobremaneira o papel da interação dinâmica e recíproca de diversas variáveis no processo de desenvolvimento humano: há o reconhecimento de que nossas ações sofrem influência dos pensamentos, crenças, valores, ações e reações daquilo e daqueles que nos cercam (Moraes, 2004). Dialogamos também com os dados de pesquisas científicas nas áreas de Psicologia e Ciências Humanas interessadas em questões da sexualidade e de gênero sob diferentes perspectivas, com ênfase em trabalhos sobre homoconjugalidades, homofobia e as relações dos arranjos homoconjugais com suas redes sociais. A seguir apresentamos conceitos, questões e reflexões a respeito dessas literaturas que nos auxiliarão na análise dos dados coletados.

1.1 A construção da identidade homossexual5 A existência de pessoas cujo desejo sexual está orientado a pessoas do mesmo sexo é um fato presente em diferentes épocas na história da humanidade. Mas, longe de tratar-se de uma condição universal dada de maneira atemporal, a experiência afetiva entre pessoas do mesmo sexo é construída historicamente, como problematizam Lomando e Wagner (2009) ao retomarem os termos e conceitos envolvidos nessas relações ao longo de parte da história da humanidade. Os autores, ao colocarem esses termos em uma perspectiva histórica, apontam que a existência de diferentes nomes para essas relações, e os diferentes julgamentos científicos e morais dados a elas, estão relacionados à necessidade de se produzir discursos sobre esses sujeitos desviantes à norma. As considerações desses autores são relevantes no sentido de que a utilização dos termos para designar as relações entre pessoas do mesmo sexo está relacionada a determinadas lógicas de pensar tais relações e, simultaneamente, produzem significados e realidades a respeito das mesmas. Os termos homossexualidade, homoafetividade, homoerotismo, entre outros, guardam diferenças sutis em seus significados, diferenças essas que devem ser consideradas ao se tratar sobre o tema. Ao realizarem tais reflexões, Lomando e Wagner (2009) chamam a atenção para o fato de o termo “homossexualidade” ser relativamente novo na história. Os autores apresentam os diferentes tratamentos dados às relações entre pessoas do mesmo sexo desde o século XVII, quando o indivíduo que tinha seu desejo sexual assim orientado 5

As expressões “identidade homossexual” e “identidade sexual” estão sendo utilizadas no presente

trabalho para designar a síntese de um processo de desenvolvimento no qual os indivíduos homossexuais, em sua trajetória de subjetivação, lidam com questões próprias de quem não apresenta orientação sexual heterossexual. Esse processo de construção da identidade homossexual implica em encontrar caminhos, os mais variados possíveis, para a integração, vivência e expressão de sua atração afetivo-sexual por pessoas do mesmo sexo. Não deve ser confundido, portanto, com os termos “papel sexual”, “identidade de gênero”, entre outros, que se referem a outros processos. A perspectiva de gênero, ou teoria de gênero, utiliza o conceito de identidade compreendendo-a como uma construção mutável, constantemente negociada pelo indivíduo com o mundo em que vive. Nesse sentido, é o caráter mutável, de construção e negociação da identidade que deve ser o elemento definidor desta no presente trabalho, o que justifica sua escolha e não de outro termo.

era visto como um pecador pela religião, um sodomita, e um criminoso para o Estado em dissonância ao que ocorrera em sociedades da Antiguidade, onde tais relações faziam parte da cultura, passando pelo século XIX, quando as classificações médicopsiquiátricas passaram a rotular não mais os atos homossexuais, mas o sujeito, que nesse momento teve sua sexualidade diagnosticada como anormal/perversa e patologizada (a partir do termo homossexualismo), deixando de ser um reincidente e passando a ser uma espécie, até o século XX, quando ocorreu a despatologização da homossexualidade em diversas organizações mundiais e nacionais nas décadas de 70 a 2000 (CFM, OMS, CFP) e outros termos como homoerotismo (Costa, 1992 apud Lomando e Wagner, 2009) e homoafetividade (Dias, 2003 apud Lomando e Wagner, 2009), surgiram no cenário social progressivamente, questionadores da lógica de crimepecado-doença em que estavam inseridos os sujeitos não heterossexuais. Lomando e Wagner (2009) apontam ainda outros termos que surgiram com os movimentos de lutas sociais como a sigla LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e suas variações ao longo do tempo, e aqueles termos que serviram ao mercado capitalista como a sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Além desses, outros termos geralmente ocultados nas considerações acadêmicas, e que são pautados pelos autores, estão os termos pejorativos, como “viado, sapatão e gilete”. Ainda sobre esses termos e os conceitos subjacentes a eles, Lomando (2008) afirma: É a mudança dos conceitos por detrás dos termos que gera a produção subjetiva social. Os termos são metáforas que transportam estas amálgamas; são usados como táticas argumentativas, podendo proporcionar duas fontes de poder: o controle social e reflexão crítica (Lomando, 2008, p.35).

Outra importante linha de pesquisa que tem sido realizada sobre as homossexualidades, e de especial interesse nesse trabalho, refere-se ao processo de subjetivação dos indivíduos que têm seu desejo orientado a pessoas do mesmo sexo. Segundo autores como Rostosky et al. (2004), o indivíduo homossexual pode vivenciar, em seu processo de subjetivação, constantes conflitos em relação aos desejos que sente a medida que os percebe como dissonantes do esperado socialmente. Esse é um processo atravessado por fatores como os contextos em que está inserido, as relações

que

estabelece,

os

desafios

normativos

do

desenvolvimento,

e,

simultaneamente, os desafios específicos advindos da percepção de uma diferença em relação à cultura heteronormativa. Autores como Cass, 1979; Coleman, 1982; Ritter e Tendrup, 2002, citados por Frazão e Rosário (2008), e Plummer (apud Weeks, 1987), citado por Saggese (2009), sistematizaram as experiências vividas por esses indivíduos no sentido de encontrar regularidades no percurso da construção das identidades homossexuais. Essas propostas, entretanto, foram criticadas por outros autores, como Rasmussen, 2004; SavinWilliams, 2001ª; 2005; D’Augelli, Patterson & Schneider, 2001; Diamond, 1998; 2000, também citados por Frazão e Rosário (2008), e Weeks (1987), citado por Saggese (2009), que enfatizam que as trajetórias dos indivíduos homossexuais não podem ser enquadradas nas teorias formuladas, uma vez que as fases descritas não ocorrem necessariamente da mesma forma para todos os sujeitos. A despeito de tais controvérsias na literatura, uma constante nos estudos que se dedicam ao tema do processo de subjetivação de pessoas homossexuais é a experiência do revelar a própria orientação sexual para si mesmo e para os outros – embora existam diferenças importantes na maneira como os diversos autores compreendem tal revelação, seja como um passo importante na construção da identidade homossexual, ou como um processo contínuo de enfrentamento à heteronormatividade. É muito comum o uso de termos como coming out (Frazão e Rosário, 2008; Saggese, 2009), revelação (Defendi, 2010), saída do armário, assumir, entre outros para referir-se à essa vivência. Aqui utilizaremos o termo coming out para nos referirmos à experiência do falar sobre a própria homossexualidade publicamente, que, segundo Frazão e Rosário (2008), é a versão reduzida de “coming out of the closet”, versão anglo-saxônica para “sair do armário”.

1.2 O Coming out na construção da identidade homossexual Alguns trabalhos se dedicam a uma abordagem mais política e social do coming out, no sentido de apontar o seu significado no contexto de uma sociedade heteronormativa como, por exemplo, o trabalho de Saggese (2009), em que o autor contextualiza a noção de “sair do armário” durante a década de 1960, com os

movimentos do feminismo e de contracultura, e o episódio de Stonewall, marcando o Dia Internacional do Orgulho Gay e a liderança de Harvey Milk. Seidman et al. (1999), citados de maneira indireta por Saggese (2009), explicitam melhor a relação entre a dimensão privada do coming out e a sua dimensão político-social mais ampla: A literatura política que sucedeu o episódio de Stonewall parecia apontar diretamente para o problema, sugerindo a existência de um “armário” onde muitos homossexuais ainda se escondiam a fim de evitar represálias da sociedade. Essa mesma literatura apontava para a necessidade de sair dele (o coming out) como a única forma de legitimar as demandas por direitos e reconhecimento público (Seidman et al., 1999 apud Saggese, 2009, p.32).

O que se pretende com esses apontamentos é explicitar a noção de que o privado é político, e a forma como se dá a experiência do coming out na vida concreta dos indivíduos homossexuais é indicativa do estado das coisas na sociedade, como se pudesse ser também uma “fotografia” do local em que estamos na luta pelos direitos daqueles que se diferenciam da heteronormatividade. Um exemplo disto é a progressiva diminuição da idade em que ocorre o coming out, fato encontrado pela literatura da área (Frazão e Rosário, 2008), indicando uma maior aceitação para essa vivência em comparação com décadas anteriores (o que não significa dizer, obviamente, que os homossexuais mais jovens da contemporaneidade não encontrem dificuldades e sofrimento nesse e em outros momentos da construção de sua identidade). Sobre esse aspecto, afirma Saggese (2009): Não obstante tais considerações, acredito que o problema de “estar dentro” ou “estar fora” do “armário” tenha permanecido fundamentalmente o mesmo. Embora o contexto social do Ocidente tenha sofrido grandes transformações desde Stonewall, calcular riscos, sofrer rechaços e optar por revelar ou esconder a homossexualidade ainda são preocupações muito presentes (Saggese, 2009, p.73).

Explicitada a dimensão política do coming out, nos concentraremos em expor as características mais comuns dessa experiência, encontradas na literatura, bem como em apontar particularidades e especificidades que nem sempre são vividas pela maioria dos homossexuais.

Por exemplo, é notório nos trabalhos que se dedicam à investigação do coming out (Coleman 1982 apud Saggese, 2009), a existência de um período anterior, entre a descoberta do desejo homossexual e o seu compartilhamento público, em que o indivíduo passa a se autonomear como homossexual, ou, em outras palavras, passa a assumir seu desejo para si mesmo. Esse momento, muitas vezes denominado précoming out (Coleman, 1982), tolerância e/ou aceitação (Cass, 1979), citados por Frazão e Rosário (2008), parece constituir um período preparatório para a revelação pública da própria homossexualidade, no qual o indivíduo passa a aceitar melhor a ideia da diferença, pode eleger critérios para decidir quando, como e para quem revelará essa diferença, e passa a refletir sobre seu lugar no mundo considerando sua diferença. Saggese (2009) explicita os conflitos próprios desse período: Quando um gay ou uma lésbica se vê diante de uma situação em que existe a possibilidade de fazer seu coming out, não é incomum que seja tomado por um sentimento ambivalente em relação à “confissão”. Afinal, lidar com a diferença em um mundo onde aprendemos desde cedo a assimilar valores hegemônicos é uma tarefa que exige um esforço de “desaprendizagem”, ainda muito penoso para grande parte das pessoas. Por outro lado, “falar de si” sempre é, de um jeito ou de outro, uma demanda por reconhecimento, e em muitas das vezes, uma tentativa de maior aproximação daquele para quem se fala (Saggese, 2009, p. 35).

O autor ainda aponta para o interessante fato de que alguns colocam “em xeque o próprio ato de revelação: deve-se contar que se é homossexual? Quando e para quem fazê-lo?” (Saggese, op. cit., p. 35), o que de maneira indireta expressa as relações de poder envolvidas no coming out, no sentido de que à interpretação subjetiva da autodescoberta da diferença da heteronormatividade liga-se uma percepção particular da discriminação, aceitação e revelação. Isso significa dizer que o contexto em que vive o homossexual interage com a percepção que tem de si mesmo, especialmente a esfera familiar onde a gestão da homossexualidade aparece como problema central (Saggese, 2009). Dito de outro modo, a seleção de critérios para escolher como e com quem será realizado o coming out, processo de negociação que é denominado por Saggese (2009) como passing, como revelam as entrevistas realizadas pelo autor, depende de um contexto mais ou menos reprodutor das narrativas heteronormativas, tendo o coming out a propriedade de ser, como afirma o autor, contexto-dependente.

O mesmo autor aponta ainda que o que está em jogo muitas vezes é “tirar o peso da mentira”, se afirmar como alguém digno de respeito, ou conquistar uma maior proximidade afetiva das pessoas ao redor, mesmo que o risco da rejeição se faça presente. Nunan (2003), citada por Saggese (2009), faz considerações importantes sobre os casos em que o coming out é encarado pelas pessoas para quem o indivíduo revela sua diferença como uma prova de confiança: Não obstante uma possível reação negativa, do ponto de vista de quem recebe a notícia, o coming out pode ser visto como uma prova de confiança e de compromisso mútuo, inclusive fortalecendo relações preexistentes caso o familiar ou o amigo se mostre receptivo à nova identidade do sujeito. As possibilidades de isto ocorrer são ainda maiores se a revelação for feita de forma sensível, gerando uma conversa franca sobre homossexualidade (Nunan, 2003, pp. 128-129).

Não se deve tomar esses casos, entretanto, como regra geral, uma vez que, como expõem as mesmas entrevistas realizadas por Saggese (2009), “aceitação” e “respeito” aparecem muitas vezes no discurso dos indivíduos homossexuais como categorias dissociadas, o que indica provavelmente que uma atitude não violenta diante da revelação não é automaticamente equivalente à uma atitude de apoio e aceitação, existindo entre uma coisa e outra as possibilidades de negação, indiferença e até mesmo um pacto implícito no qual, uma vez tendo sido realizada a revelação, “não se fala mais nisso”. Considerando as exceções à regra, é importante colocar que, ainda que muitos dos trabalhos observem a sequência auto-aceitação e coming out, não é de se estranhar que uma progressão automática entre essas etapas, culminando em uma “autoaceitação” como destino final, não seja verificada. Saggese (2009), por exemplo, ressalta a possibilidade de que um indivíduo homossexual não tenha a oportunidade de gerenciar o seu coming out, quando a sua orientação sexual é acidentalmente descoberta ou é exposta por um terceiro aos seus familiares, amigos, ou colegas de escola/trabalho. Ou ainda o coming out pode se dar de maneira espontânea e gradual, sem que uma revelação pontual tenha ocorrido, o que o autor denomina como “outing”. Autores adeptos à Teoria Queer, como Sedgwick (2007), apontam ainda que a experiência do coming out trata-se mais de uma dinâmica do que um momento específico e pontual na vida do sujeito homossexual, envolvendo, segundo a autora, “uma série de negociações de ordem simbólica e prática, podendo ocorrer em diversas

etapas, e talvez nunca completamente”. Sobre isso, Yoshino, (2006), citado por Saggese (2009), afirma: Mesmo estando tão fora do armário, eu ainda fazia barganhas. Escondido, eu micro-manejava minha identidade gay, pensando sobre quem sabia e quem não sabia. Quando saí do armário, fiquei exultante por não ter mais que pensar acerca da minha orientação. Essa comemoração se provou prematura. Era impossível sair do armário e estar tudo acabado, pois cada nova pessoa erguia um novo armário ao meu redor. Mais sutilmente, até mesmo indivíduos que sabiam que eu era gay impunham uma nova lista de demandas para que eu me conformasse à heterossexualidade (Yoshino, 2006, pp. 16-17, tradução do autor).

De maneira semelhante, Sedgwick (2007) alerta:

Mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays, há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas [...] Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposição [...] O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora (Sedgwick, 2007, p. 22).

Deve ser considerada ainda a contribuição dos estudos do coming out também no que se refere às pessoas com as quais o sujeito compartilha sua identidade homossexual. Os estudos têm verificado um fenômeno denominado pelos autores como “coming in”, que se trata do movimento dessas pessoas, principalmente familiares, de “entrada no armário” logo após a homossexualidade de um membro do sistema ter se tornado pública, fazendo-se necessária uma nova “saída do armário”, no sentido do enfrentamento da heteronormatividade e inclusão da diferença, revelada nas relações cotidianas da família mais extensa, do bairro, da comunidade, amigos da família, etc. Segundo Frazão e Rosário (2008), é comum que as primeiras reações da família sejam:

[...] formular explicações lineares que assentam na culpabilização de uma pessoa ou de acontecimentos da infância, sentimento de vergonha que passa pelo receio de que a sociedade considere que a homossexualidade do seu filho seja fruto de uma parentalidade inadequada, sentimentos de perda em relação à idealização de um futuro heterossexual para o filho que passaria, nomeadamente, pelo casamento e pela parentalidade, [...] ideia de que está isolada, sem que ninguém possa compreender verdadeiramente a realidade por ela vivida (Frazão e Rosário, 2008, p. 35).

Ainda segundo esses autores: Muitas vezes, existe um afastamento emocional entre os pais e filhos motivado pela dissonância que os pais sentem entre as mensagens homofóbicas que interiorizaram da sociedade e o seu amor pelos filhos. Esta dissonância entre os sistemas cognitivo e emocional faz com que os pais se sintam retirados das atividades rotineiras, da exposição social e da participação na vida dos seus filhos. Tais fatos geram a sensação nos pais de que estão desligados dos seus filhos (Saltzburg, 2004). As reações negativas dos pais baseiam-se também num conjunto de medos em relação aos seus filhos, nomeadamente que estes os excluam da sua vida quando entrarem no mundo gay, que sejam rejeitados pelos pares ou vítimas de violência, que sejam excluídos da congregação religiosa, que se envolvam em atividades promíscuas, que contraiam SIDA, ou que não encontrem um parceiro com quem possam estabelecer uma relação duradoura (Cianciotto & Cahill, 2003; Ford & Priest, 2004; Herdt & Koff, 2002; Saltzburg, 2004 apud Frazão e Rosário, 2008, p. 35).

Encontram-se como “fatores de ajustamento”, em oposição aos “fatores de crise” citados anteriormente: [...] o estabelecimento de regras para discutir a homossexualidade; procura de informação sobre homossexualidade junto da comunidade gay e de fontes aceitantes do mundo gay; questionar a sexualidade de outros membros da família ou da comunidade; exposição a gays e lésbicas vivendo “vidas de gays e lésbicas”; tornar a homossexualidade menos exótica; inclusão de amigos gays e lésbicas no interior a família; lidar com as instituições e convenções do mundo heterossexual; trabalhar os sentimentos de tristeza, perda e culpa; a família efetuar o seu próprio coming out; desenvolver visões alternativas do futuro; gerir o estigma; e desenvolver uma coerência narrativa sobre todo o processo de coming out (Frazão e Rosário, 2008, p. 36).

No contexto dessa construção das identidades homossexuais, insere-se também o envolvimento em relacionamentos amorosos, e a conjugalidade propriamente dita, e, aliados a isso os desafios próprios dos relacionamentos homoafetivos.

1.3 Homoafetividades e homoconjugalidades: as relações amorosas na construção da identidade homossexual Conforme aponta Defendi (2010), as conjugalidades estão em constante transformação. O casamento, entendido pelo autor como instituição social, influencia e é influenciado por transformações históricas, sociais, econômicas e políticas, que o modificam e são modificadas por ele. Considerando tais influências, observa-se na contemporaneidade a coexistência de uma ampla diversidade de conjugalidades possíveis, o que implica também em uma redefinição de responsabilidades domésticas e tarefas dos casais, na necessidade de uma redistribuição do poder nas relações de gênero, na convivência conflituosa de demandas coletivas e necessidades pessoais, na separação entre sexualidade e reprodução, na legitimação do divórcio, na valorização das relações afetivo-sexuais e pessoais do casal, e no surgimento de arranjos conjugais variados, para citar algumas das mudanças atuais apontadas pelo autor. Nesse contexto, também se encontram novos desafios para os casais: a consideração da individualidade de cada um dos membros, a definição das identidades por meio das vivências amorosas, os ajustes sobre as expectativas externas e do casal em relação ao projeto conjugal, a necessidade de posicionar-se diante das novas concepções de casamento existentes (casamento legal, religioso, escolha afetiva, projeto pessoal), o que está imerso no confronto de diferentes ideologias (cristã, romântica, moderna, pós-moderna). Defendi (2010) enfatiza que, tratando-se das conjugalidades, o tradicional coabita com o novo. Tais considerações nos possibilitam compreender que a homoconjugalidade, ou seja, a conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo, esteja sendo absorvida e legitimada ao lado das novas conjugalidades. Isto não ocorre, entretanto, sem desafios para os casais de homossexuais. Conforme aponta Defendi (2010), estudos têm identificado estressores específicos da conjugalidade homossexual, tais como a ausência ou precariedade das sanções legais (direitos e deveres) para esses casais, a dificuldade de aceitação da família e da sociedade, a ausência de modelos de casais homossexuais, rituais ou

normas disponíveis, os estereótipos de promiscuidade e a dicotomia latina de gênero masculino-feminino como modelo para as relações homossexuais. Tais dificuldades, aponta o autor, se intensificam quando dois homens resolvem morar juntos. David Greenan e Gil Tunnell (2003), citados por Defendi (2010), baseando-se na Teoria Estrutural de Salvador Minuchim, teórico pioneiro da Terapia familiar e de casal: [...] expõem que uma das principais tarefas do casal homossexual masculino é criar fronteiras para a construção e diferenciação de sua identidade enquanto casal, tanto para os próprios membros da díade como para os outros, [...] que se proteja das interferências de outros sistemas e consiga avaliar o grau de permeabilidade e flexibilidade da relação conjugal com o meio social mais amplo, incluindo aí os estressores específicos que cerca [sic.] a vida desses casais”. [...] A legitimidade da identidade para o casal se faz com o suporte da comunidade, portanto casais homossexuais são em grande escala prejudicados quanto comparados com os níveis de suporte social que existem para os casais heterossexuais. [...] que não se preocupam em “autenticar” sua identidade como casal, pois vários rituais sociais já os [sic.] dão o status de casal (Defendi, 2010, p. 45-46).

Apontam ainda que a revelação por parte do casal é duplamente difícil por envolver o revelar a orientação sexual e a relação conjugal, quando comparada ao coming out do homossexual solteiro. Nesse contexto, eles também destacam que a fragilidade ou ausência de redes de suporte e a falta de espaços de pertença para os casais terão grande impacto, algo que se relaciona à cultura homofóbica. Os autores ainda completam: Outros aspectos importantes a se considerar [...] são: a ambiguidade relacional, a falta de parâmetros de construção de identidade conjugal, pois muitas vezes os próprios homossexuais têm internalizado a crença de que um relacionamento conjugal só pode ocorrer entre um homem e uma mulher, criando o sentimento de que suas conjugalidade são inferiores e pouco funcionais, enfim que “não podem” ou “não devem” construir um relacionamento afetivo por serem homossexuais (Defendi, 2010, p. 45-46).

Poderíamos destacar ainda, considerando a discussão a respeito do coming out como etapa ou passo importante na construção da identidade homossexual, que a revelação ou ocultamento da sexualidade ou de aspectos da sexualidade (como, por exemplo, a expressão pública de afetos) é também uma questão dos casais homossexuais, e dela deriva combinados e contratos para lidar com o preconceito, bem como pode ser fonte de desentendimentos e diferenças.

Nesse sentido, destaca-se, novamente, a importância do conceito de heteronormatividade, aspecto constitutivo da organização social e que atravessa as relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo, cuja existência desafia os preconceitos difundidos por essa ideologia. A seguir refletiremos mais detalhadamente sobre esse aspecto.

1.4 Homofobia e heteronormatividade Conforme apontam Rios (2007) e Fernandes (2011), homofobia é um termo legitimado como categoria teórica na Psicologia desde a década de 1970, e que foi cunhado pelo psicólogo norte-americano George Weinberg para referir-se aos “traços de personalidade homofóbica” de indivíduos, condensando o termo “homossexualphobia”. Outro teórico que trabalhou nos primórdios do conceito foi Smith (1971), citado por Fernandes (2011), cujas hipóteses de que a homofobia nos indivíduos seria explicada pelo “medo do igual” não foram confirmadas em seus trabalhos. Fernandes (2011) também enfatiza que, embora a legitimação científica do termo homofobia pela Psicologia tenha ocorrido na década de 1970, o uso popular do mesmo nos anos 1960 já acontecia. Desde então, diversos usos têm sido empregados para a palavra homofobia, o que, segundo os dois autores citados no início, merece ser analisado de maneira mais criteriosa. Fernandes (2011) aponta enfaticamente em seu estudo a importância de historicizar o conceito de homofobia no mundo contemporâneo, especialmente pela “explosão discursiva” sobre o assunto desde a década de 2000, desde quando se tem falado e produzido mais sobre o assunto. Uma das questões resultantes da consideração histórica, segundo o autor, é que não deveríamos, como se faz no senso comum, tomar a categoria homofobia como dada, autoexplicativa, ou um referente a algo concreto, mas, pelo contrário, refletir sobre a mesma “em sua historicidade e posições teóricas como categoria analítica” (Fernandes, op. cit., p. 65). O autor ressalta que, ao longo de sua história, a categoria homofobia emergiu no campo de conhecimento específico da Psicologia e migrou ao lado de fatos históricos e sociais como a Revolução Sexual, o advento da AIDS em 1980 e 1990, o surgimento das perspectivas interdisciplinares, dos estudos de gênero e dos estudos gays e lésbicos,

tornando-se progressivamente uma “categoria híbrida teórico-política” ou “polifônica”, o que, do ponto de vista teórico, pode significar desafios, o que é claramente expresso no trecho a seguir: A Homofobia é uma categoria que tem ocupado no Brasil um lugar central em três distintos campos políticos que dialogam entre si (anos 2000): movimentos sociais, políticas públicas e pesquisas acadêmicas. Seus múltiplos usos sociais e políticos e os Estudos de Gênero, Feministas, Queer e Gays Lésbicos brasileiros, bem como as áreas disciplinares que nela investiram nos últimos anos (Educação, Psicologia, Antropologia e História), ainda não foram capazes de sistematizar as teorias e campos científicos que a circunscrevem enquanto categoria analítica ou política (Fernandes, 2011, p. 66).

Por essa razão, o autor localiza a categoria como contestável, contextual, contingente, devendo-se falar em “homofobias”, no plural. Para exemplificar isso, apresenta “eixos” em torno dos quais se organizam teses que envolviam o conceito de homofobia analisadas por Fernandes, Pedro e Grossi (2009), citados por Fernandes (2011). Entre esses eixos, podemos observar uma grande amplitude de fenômenos com os quais se pretende lidar: políticas públicas e movimentos sociais, escola e materiais didáticos, representações sociais sobre a homofobia, aspectos jurídicos relacionados à legislação protetiva para homossexuais, violências e crimes de ódio. O autor ainda destaca que bandeiras como a do “combate à homofobia” revelam a ambivalência do conceito, já que não expressa, em si mesmo, se a luta é contra sujeitos homofóbicos ou contra práticas homofóbicas (poderíamos acrescentar ainda a possibilidade de se estar falando de práticas homofóbicas de indivíduos ou de práticas sociais homofóbicas). Apoiando-se nas ideias das Teorias Pós-coloniais e nos achados de La Dehesa (2007)6 sobre interpretações locais do conceito de homofobia, outro aspecto identificado por Fernandes (2011) como problemático é tomar esse conceito como dado e autoexplicativo, uma vez que a categoria foi produzida na América do Norte e Europa e circula mundialmente de maneira heterogênea, tendo, encarnado, portanto, uma grande diversidade discursiva e de práticas atravessadas por relações de poder e marcadores sociológicos de cada cultura particular.

6

De La Dehesa, Rafael. Global communities and hybrid cultures: early gay and lesbian electoral

activism in Brazil and Mexico. Latin American Research Review, v. 42, n.1, 2007.

Outra questão que se coloca é que desde os movimentos de 1960 nos EUA, com a geração de Stonewall, durante os quais operou-se a construção da “identidade homossexual”, marcada pela opressão e perseguição social, passando pelas rebeliões em 1969 no bar Greenwich Village, e a formação de uma luta política identitária dos sujeitos das homossexualidades, inspirados nos movimentos feminista e negro, por direitos e pela despatologização da homossexualidade, até o momento atual, diversas transformações ocorreram na maneira como o conceito de homofobia foi e é compreendido. Udiskessler (1996), citada por Fernandes (2011), adotou o conceito de bifobia, alertando para o fato de que mais do que a homossexualidade, a bissexualidade era desestabilizadora da rigidez e fixidez do binarismo hetero-homo e do binarismo de gênero masculino-feminino (questionado pelos andróginos e transgêneros), binarismos produzidos em uma lógica bifóbica como constitutivos da sexualidade humana. Fone (2000), por sua vez, também citado por Fernandes (2011), apresenta a abordagem de Young-Bruehl para a homofobia como uma das peças constituintes do que chamou “preconceitos primários”, sendo eles, além da homofobia, o sexismo, o racismo e o antissemitismo. Essa forma de compreender a homofobia é, segundo Fernandes (2011), o cerne do conceito nos anos 2000. Percebe-se, a partir de tal recuperação histórica, que em grande medida o significado

do

conceito

de

homofobia

oscila

entre

um

aspecto

do

comportamento/personalidade dos indivíduos versus um sistema de valores da cultura ocidental. Sobre essa segunda perspectiva, Fernandes (2011) cita o trabalho de Borillo (2001), no qual o autor europeu e do campo do Direito, entende a homofobia como um conceito mais amplo, que, assim como o sexismo, está vinculado à questão da masculinidade (dominação da virilidade heterossexual). Compreender as bases das duas perspectivas de compreensão da homofobia apresentadas anteriormente é uma tarefa necessária e uma possibilidade de realizá-la é, como faz Rios (2007), abordando as filiações científicas das teorias causais da homofobia, que são divididas pelo mesmo autor em teorias psicológicas e teorias sociológicas da homofobia, no sentido de que essas enfatizam, respectivamente, aspectos individuais/subjetivos e culturais/sociológicos para explicar o fenômeno, ainda que possam considerar ambos os fatores.

As teorias psicológicas, de maneira sintética, explicariam a homofobia a partir de dinâmicas subjetivas dos indivíduos que apresentam comportamentos/sintomas homofóbicos. Essa maneira de compreender a homofobia, como aversão fóbica à homossexualidade (e, em muitas das teorias psicologizantes aversão fóbica à própria homossexualidade rejeitada, o que o autor denomina como tese projecionista) é chamada por Rios (2007) de “homofobia clínica”. Por outro lado, o autor apresenta as teorias sociológicas da homofobia como uma alternativa às teorias psicológicas, uma vez que busca explicitar as “raízes sociais, culturais e políticas desta manifestação discriminatória, dada a institucionalização [explícita e implícita] da heterossexualidade como norma”. Rios (2007, p.31) afirma, entretanto, que nos casos em que o termo homofobia é assim compreendido, a sua substituição pelo termo “heterossexismo” seria mais adequada. Tal institucionalização do heterossexismo, segundo o autor, se manifesta em instituições culturais e organizações burocráticas, tais como a linguagem e o sistema jurídico, garantindo privilégios “a todos que se adequam a tal parâmetro [...] e opressão e prejuízos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e até mesmo a heterossexuais que porventura se afastam do padrão heterossexista imposto” (Rios, 2007, p.33). Segundo esta perspectiva, o binômio heterossexualidade/homossexualidade é “critério distintivo para o reconhecimento da dignidade dos sujeitos e para a distribuição dos benefícios sociais, políticos e econômicos” (Rios, 2007, p.33). Ainda em uma perspectiva sociológica, Borillo (2000), citado por Rios (2007), aponta quatro discursos homofóbicos, ao lado da homofobia clínica, que sustentam o heterossexismo e compõem o que o autor denomina “homofobia laica ou não-teológica” (Rios, 2007, p.34): a homofobia antropológica, que “funda-se na crença de que a evolução das sociedades caminha rumo à consagração da conjugalidade heterossexual monogâmica, e vê na homossexualidade o risco e a manifestação da desintegração da sociedade e da civilização” (Rios, op. cit.); a homofobia liberal, que “considera as manifestações da homossexualidade matéria estritamente privada, e não provê homossexuais de proteção jurídica no espaço público, considerando este domínio natural e exclusivo da heterossexualidade” (Rios, op. cit.); a homofobia stalinista que “considera comportamentos homossexuais um sintoma da decadência moral capitalista, e condena-os em nome do humanismo proletário"(Rios, op. cit.); e a homofobia nazista,

que “vale-se das bases biológicas e morais para condenar e conduzir pelo menos 500.000 homossexuais à morte nas prisões” (Rios, op. cit.). Rios (2007) complementa os apontamentos de Borillo (2000), ressaltando a existência de outras ideologias que sustentam a norma de heterossexualidade compulsória, baseadas em visões de mundo religiosas, além da estreita relação entre sexismo e homofobia como evidência da derivação entre heterossexismo e homofobia. Segundo o autor: De fato, a literatura dedicada à homossexualidade dialoga constantemente com a noção de gênero. O binarismo classificatório, entre masculino e feminino, analisado nos estudos de gênero, de novo se apresenta no âmbito da sexualidade, agora através do par heterossexualidade / homossexualidade (Rios, 2007, p. 34).

Partindo dessas premissas, um posicionamento em relação aos imperativos heterossexistas e sexistas/machistas, implicados no que chamamos de combate à homofobia se faz necessário. Trata-se de ir além dos paradigmas criticados pelo feminismo (“normalidade” da dominação masculina e do sexismo), e criticar a própria heterossexualidade como padrão de normalidade, superando tal normalidade (Rios, 2007). O autor identifica que existem duas respostas a esses imperativos, que ele classifica como resposta radical e resposta moderada diante da homofobia. Segundo o próprio autor: A resposta radical pode ser estruturada como um dilema: a superação da homofobia incita à desconstrução do binômio hetero/homossexualidade, uma vez que a homofobia pressupõe a afirmação da heterossexualidade por meio do repúdio à homossexualidade [...] para atacar a homofobia em suas raízes, é preciso suplantar a heterossexualidade e a homossexualidade como identidades sexuais. Tal resposta pode soar, aos ouvidos de muitos, como "suicídio identitário": acabar definitivamente a homofobia pela abolição da própria homossexualidade. Uma crítica deste já seria improcedente: ela pecaria por não perceber que o vencimento do heterossexismo, levado às últimas consequências, é que está em causa. A resposta moderada, por sua vez, pode redundar em um paradoxo: como sustentar a igualdade entre as orientações sexuais (e, por conseguinte, suprimir a homofobia), se, como sustenta Katz (1995), a heterossexualidade se define precisamente pela negação e

desvalorização da homossexualidade? [...] cuida-se de tentar conciliar o inconciliável” (Rios, 2007, p. 37, grifo nosso).

Esses diferentes posicionamentos podem ser distinguidos no que se refere a mais de um ponto, o que também é abordado por Miskolci (2012), ao diferenciar a perspectiva queer7, da qual esse autor é adepto, de uma perspectiva de luta pelos direitos homossexuais (luta pró-homossexualidade, como denomina o autor). Segundo ele, as duas propostas (homossexual e queer) se distinguiriam em, pelo menos, quatro aspectos: regime de verdade que combatem, luta política que defendem, perspectiva almejada e concepção de poder subjacente a seus ideais. A tabela a seguir, esquematizada pelo próprio autor, expõe de maneira sintética essas diferenças: Tabela 1: Esquematização das diferenças entre uma proposta pró-homossexualidade e uma proposta queer. (Miskolci, 2012, p. 27).

Regime de verdade Luta política Perspectiva Concepção de poder

Homossexual Binário hetero-homo Defesa da homossexualidade Diversidade Repressora

Queer Normal-anormal Crítica aos regimes de normalização Diferença Disciplinar/controle

O que se evidencia é a oposição entre uma luta contra um poder opressor da homossexualidade (o heterossexismo ou heteronormatividade) por liberdade (entendida como a possibilidade de convivência igualitária entre as identidades sexuais, o que se denomina de diversidade sexual), e uma luta para desconstruir as normas e convenções culturais que nos constituem como sujeitos (Miskolci, 2012), sendo, portanto, uma luta pós-identitária. Nas palavras do autor: O queer busca tornar visíveis as injustiças e violências implicadas na disseminação e na demanda do cumprimento das normas e das convenções culturais, violências e injustiças envolvidas tanto na criação dos “normais” quanto dos “anormais”. Quer alguém seja 7 A título de esclarecimento, a Teoria Queer refere-se a um grupo heterogêneo de pensadores que começou a formar-se no final dos anos 1980 e que têm centralizado seus esforços na crítica pósestruturalista da identidade, bem como na desconstrução do discurso heteronormativo, tido como organizador da sociedade em seus diversos aspectos (Gamson, 2006). Apesar de este trabalho não estar lidando diretamente com tal perspectiva, considerou-se de extrema importância inseri-la nas reflexões teóricas iniciais como maneira de entrar em contato com provocações feitas por esses pensadores. Tais provocações constituem mais um pano de fundo para a presente pesquisa, do que propriamente um conjunto de afirmações a serem defendidas ou refutadas.

completamente ajustado e reconhecido socialmente, quer seja alguém marcado, humilhado, as normas e convenções operaram sobre os dois e ambos são capazes de reconhecê-las. Claro que os humilhados e ofendidos, os relegados à vergonha e à abjeção, sofrem mais e são os que denominamos esquisitos, mas não é tão raro, em nossos dias, encontrar pessoas que mesmo dentro dos modelos socialmente impostos reconheçam seu caráter compulsório, violento e injusto (Miskolci, 2012, p. 26-27).

No que tange aos temas mais específicos do presente estudo, podemos refletir sobre como essas diferentes concepções de combate à homofobia compreendem, por exemplo, a luta pelos direitos civis do casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção de crianças por casais homossexuais. O que se problematiza é que, se por uma perspectiva a aceitação desses direitos para os homossexuais na sociedade pode ser vista como uma conquista no combate à homofobia, pela outra perspectiva o que se conseguiu até agora foi a adequação dos relacionamentos gays aos modelos hegemônicos da heterossexualidade, como se esses pudessem, em mãos de um contrato, se camuflar e passarem despercebidos como gays, uma vez que são dignos, discretos e se casaram como qualquer pessoa normal faz. Castañeda (2007), citado por Farias (2010, p.112), considera que “a aceitação social do casal homossexual está aumentando na sociedade, porém não é a homossexualidade que está sendo aceita, ela é tolerada desde que o modelo de relação afetivo-sexual seja o mesmo modelo ideal vigente do casal heterossexual, monogâmica, estável, ‘bem-comportado’”. Pode-se problematizar ainda, como já fizemos na introdução deste trabalho, que embora a legalização do casamento para casais homossexuais pareça indicar uma desconstrução parcial da “imagem perversa” e “pouco humana” dos homossexuais em virtude das transformações pelas quais passam esses relacionamentos nos últimos anos com a linguagem da ternura e da preocupação sentimental, como reflete Mello (2005), a hipótese que defendemos é que, uma vez que arranjos conjugais homoafetivos contribuem para a quebra de tabus quanto à “verdadeira família” (formada por um casal heterossexual com seus filhos), a expressão pública de afetos entre dois indivíduos do mesmo sexo, bem como o incremento dos casais e famílias homoafetivos favorecem o aumento do preconceito e da violência contra os mesmos no Brasil, sendo estes repudiados e considerados um risco para a sociedade.

Um dado interessante nesse sentido é a fala de um dos entrevistados de Saggese (2009) que ganhou a primeira revista gay de sua própria mãe, uma mulher liberal, da geração “flower power”, que sabia que o filho tinha romances com meninos e que, todavia, sentiu-se desconfortável e contrariada quando o mesmo apresentou a questão propriamente dita de ser homossexual, fazendo o seu coming out. Essa mãe, segundo o entrevistado, apresenta o mesmo desconforto aproximadamente trinta anos depois, o que só é amenizado pelo fato de o filho ter um relacionamento heterossexual com uma atriz (com quem divide outro homem). Outro

aspecto

a

ser

considerado

em

relação

à

homofobia

e

à

heteronormatividade é o seu poder de controle dos corpos e da sexualidade, uma vez que é constituinte do processo de subjetivação dos indivíduos, tornando-se uma marca da qual não se pode escapar, muitas vezes nem mesmo quando se está distante das pessoas e instituições que representam as normas heterossexistas.

1.5 Covering, (in) visibilidade e homofobia internalizada Considerando as ameaças que significam a revelação e apropriação da homossexualidade

no

contexto

de

uma

sociedade

com

as

características

heteronormativas abordadas no subitem anterior deste relatório, podemos prever que tentativas por parte de indivíduos que se identificam como homossexuais para escamotear sua diferença e recolher-se ao espaço da invisibilidade não são incomuns. Abordamos a seguir como se dão tais tentativas no cotidiano dos homossexuais e, posteriormente, abordaremos o que se tem entendido na literatura como homofobia internalizada. Conforme apresenta Saggese (2009, p.71) citando Eribon (2008, p.41), “um homossexual pode participar do “mundo gay” sem perder seu lugar no mundo heterossexual”. O autor se refere com essa afirmação às “estratégias de negociação, manipulação e cálculo de riscos que podem agir de modo a preservar esse sujeito e permitir uma melhor integração de sua homossexualidade em determinados espaços” (Saggese, 2009, p.71). Tais estratégias, de caráter defensivo em relação à homofobia, são denominadas pelo autor como “covering”.

Trata-se do fato de que, ao manipular o próprio comportamento, ao vestir-se e falar propositadamente de maneira mais masculinizada, etc., esses indivíduos estão, como efeito da opressão sofrida diante das expressões hegemônicas de sexualidade e gênero, assimilando-as, o que é visto dentro da lógica heteronormativa como necessário ou desejável. O autor cita como exemplo os casos em que, mesmo estando em um contexto onde todos sabem sobre sua orientação sexual, o sujeito se priva de mostrar afeto ao seu companheiro em público como forma de evitar críticas. Nas palavras do autor, “o indivíduo não se esconde, mas também não se distingue” (Saggese, 2009, p. 74). A existência dessas estratégias de covering, segundo Saggese (2009) explicitando as ideias de Yoshino (2006): [...] revela a opressão sofrida por uma minoria face ao mainstream (isto é, a “corrente dominante” que mantém os valores hegemônicos de determinado grupo social), na medida em que torna quase obrigatório um comportamento de assimilação (Saggese, 2009, p. 74).

No mesmo trabalho Saggese (2009) chama atenção, entretanto, para o fato de que a noção de um mainstream, como apontam os teóricos queer, deve ser relativizada, no sentido de que “não é normal ser totalmente normal”, e de que, em certo grau, todas as pessoas acobertam partes de si que buscam auto-expressão. Além disso, ressalta que a possibilidade dos homossexuais de expressarem a própria identidade sexual é uma constante e gradual negociação com o meio que o circunda, sendo que o covering pode ser uma estratégia intermediária entre a negociação e a expressão de fato (cita como exemplo a difícil negociação que um de seus entrevistados fez com a família para que pudesse se despedir do seu namorado com um beijo, negociação que não foi necessária no caso de sua irmã heterossexual). Outros autores, como Oswald (2002), baseando-se no conceito de resiliência, também apontam estratégias concretas e simbólicas que os homossexuais e seus familiares empregam para lidar com adversidades (embora não defina essas adversidades claramente em termos da lógica heteronormativa). Entre essas estratégias estão a construção de uma “família de escolha” (geralmente formada por amigos), a mudança para outra localidade de moradia, distante da família de origem, a parentalidade, a associação com outras minorias, o

gerenciamento da revelação de sua identidade sexual nos diferentes lugares que frequenta, a construção de uma comunidade (os chamados guetos, ou comunidades organizadas), a ritualização simbólica (Parada do Orgulho LGBT, por exemplo), a luta por direitos civis (legalização do casamento e da adoção por casais homossexuais), a politização em geral, a renomeação do mundo e das relações, a participação em movimentos de integração/inclusão dos homossexuais a partir da reinterpretação de normas e doutrinas (igrejas inclusivas, por exemplo) e o planejamento de uma família. Apesar da visão otimista proposta por essa autora, não podemos negligenciar as discussões feitas pelos teóricos queer e militantes dos movimentos anti-identitários (e observadas nesse trabalho quando abordamos a questão das diferentes perspectivas de combate à homofobia), de que muitas dessas estratégias citadas são, na verdade, tentativas dos gays de enquadrarem-se nos modelos binários heteronormativos, de maneira semelhante ao que Saggese (2009) descreveu ao referir-se ao termo “covering”. Ao mesmo tempo em que revela o caráter de conformidade com o mainstream, a ideia de covering pode ser entendida em termos do medo da violência e de sentimentos ambivalentes em relação à homossexualidade. Em relação a esses aspectos, Saggese (2009) faz uma cuidadosa análise do que denomina “mapas de segurança” e “mapas corporais”, constructos que auxiliam na compreensão das estratégias de proteção no diaa-dia de homossexuais. Segundo o autor, em um contexto em que convivem a possibilidade de circulação pública e demonstrações de afeto por parte dos homossexuais (visibilidade) e a possibilidade da violência, muitas vezes física, os indivíduos homossexuais se veem em uma situação conflituosa. Saggese (2009) apresenta a visibilidade homossexual como uma armadilha, porque ao lado dela observa-se dispositivos de regulação das sexualidades que estão sendo constantemente vigiadas (referindo-se às ideias de sociedade de vigilância e panoptismo de Michel Foucault). Considerando esse conflito entre se mostrar e se esconder, o autor apresenta o conceito de “mapas de segurança” de Mason (2002) que “se baseia em duas questões principais: a percepção subjetiva de risco e a negociação que daí advém, de modo a construir “mapas de segurança” que possibilitem o trânsito pelos diversos espaços da esfera social” (Saggese, 2009, p.80). Quando refere-se à percepção subjetiva de risco, o

autor aborda a questão em termos do limiar de tolerância do outro, tendo o mapa de segurança: [...] o objetivo de reduzir ao máximo a possibilidade de vitimização pela violência homofóbica, mas da mesma forma que a negociação de limites nos espaços mais restritos ao âmbito privado, funcionam também como uma ferramenta de demarcação de fronteiras (Saggese, 2009, p. 82).

De maneira ainda mais profunda, Saggese (2009) apresenta como o corpo se torna, ele próprio, outro modo pelo qual o risco da violência passa a ser calculado, de maneira que “a apresentação de si, moldada pela sua aparência, controle de gestos e um maior ou menor grau de “afetação” ou “masculinidade”, além da questão racial” se tornam os caracteres constitutivos dos “mapas” chamados pelo autor de “mapas corporais”. Diferente do que ocorre com os “mapas de segurança”, o mapa corporal é uma estratégia de cálculo do nível de risco eminente que não se baseia no limiar de tolerância do outro, mas na capacidade do próprio indivíduo de assimilar e imitar as normas sexuais hegemônicas, o que pode gerar uma intensa sensação subjetiva de desconforto, uma vez que, como afirma Saggese (2009, p. 83) “Se por um lado existe a possibilidade de passar despercebido, por outro, não há como saber se e nem quando se está sendo observado, tornando o controle em relação à própria imagem uma necessidade constante aqui”. Depreende-se daí o fato de que o indivíduo, ao “mapear o próprio corpo” como maneira de proteger-se, nunca sabe se está sendo observado, mas sabe que pode estar sendo, tornando-se assim o seu próprio vigia perseguidor. Como aponta Saggese (2009), essa é a finalidade última do panoptismo descrito por Foucault. Outro ponto de especial importância é que, embora alguns entrevistados de Saggese (2009) tenham aderido a essas estratégias de assimilação de maneira deliberada ou tenham se colocado conscientemente em oposição a elas como maneira de enfrentar a homofobia, o autor alerta para o fato de que “muitas vezes a preferência por adotar um comportamento mais “conformado” não ocorre de forma consciente, ou pelo menos, não completamente”, o que deve ser considerado com cautela no discurso dos

indivíduos os quais se disponibilizam como informantes de uma pesquisa que resvale nesses aspectos. Outro fenômeno com o qual temos de nos relacionar ao abordarmos a questão da homofobia é o que tem se chamado na literatura por homofobia internalizada (Pereira e Leal, 2005). Meyer e Dean (1998), citados por Pereira e Leal (2005, p.323), definem homofobia internalizada como a “canalização para o self do próprio homossexual de todas as atitudes de valor negativas, levando à desvalorização desse self, resultando em conflitos internos e pouca autoestima”. Tal definição destaca que, para além de ser uma estratégia defensiva/adaptativa como as estratégias assimilatórias de covering, mapas de risco e mapas corporais, discutidas anteriormente, a homofobia internalizada consiste em uma atitude de ataque a si mesmo associado à orientação sexual não heterossexual. Sobre esta diferença, Pereira e Leal (2005) reconhecem que em contextos comunitários, familiares e de amizades isolados e altamente homofóbicos, onde os indivíduos homossexuais não têm acesso ao que denominam “infraestruturas sociais afirmativas”, a não revelação da própria homossexualidade cabe como um processo adaptativo. A homofobia internalizada, cujos aspectos discutiremos aqui se distingue de uma preocupação com a autopreservação, se aproximando muitas vezes a uma tendência autodestrutiva e de intolerância consigo mesmo. Com o objetivo de padronizar para a realidade portuguesa um instrumento métrico que aferisse o grau de homofobia internalizada nos indivíduos homossexuais, o trabalho de Pereira e Leal (2005) recuperou algumas das propostas anteriores que existiram nesse sentido, argumentando que tal construto é de especial importância na área da Psicologia em geral, e especificamente da Psicopatologia, Psicoterapia e Psicoprofilaxia. As propostas comentadas pelos autores são as propostas de Ilan Meyer, Nungesser, e Ross e Rosser. Para o objetivo do presente estudo nos concentraremos em descrever os aspectos considerados em tais propostas e na proposta de Pereira e Leal (2005) ao proporem os instrumentos, o que nos auxilia no aprofundamento a respeito do conceito de homofobia internalizada, não abordando os aspectos psicométricos alvo de investigação dos autores citados.

Um primeiro aspecto a ser considerado é que, segundo Pereira e Leal (2005), o conceito de homofobia internalizada (HI) não se equivale ao conceito de homossexualidade ego distônica (HED) oriunda da Psiquiatria e presente no Diagnostic Statistical Manual of Disorders até a sua terceira edição, se diferenciando por ser o primeiro uma etapa primária dentro de um processo de desenvolvimento, e o segundo uma condição estática. Do ponto de vista interventivo essas duas perspectivas levariam à tentativas de auto-aceitação ou de “reversão da orientação sexual”, respectivamente. Outro ponto de interesse é no tipo de itens utilizados pelos estudiosos para aferir o grau de homofobia internalizada. Esses itens presentes nas escalas desenvolvidas expressam com clareza o tipo de pensamentos, crenças, sentimentos e atitudes presentes em indivíduos com altos níveis de homofobia internalizada. Alguns exemplos são: “Sinto muitas vezes que é melhor evitar um envolvimento pessoal ou social com outros homens gays ou bissexuais”, “Já tentei deixar de me sentir atraído por homens em geral”, “Se me dessem a oportunidade de ser completamente heterossexual, eu aceitaria”, “Quem me dera não ser gay/bissexual”, “Sinto que ser gay/bissexual limitame a nível pessoal”, “Gostaria de arranjar ajuda profissional para poder mudar a minha orientação sexual de gay/bissexual para heterossexual”, “Homens homossexuais obviamente efeminados fazem-me sentir desconfortável”, “Prefiro ter parceiros sexuais anônimos”, “Situações sociais com homens gays fazem-me sentir desconfortável”, “Não gosto de pensar na minha homossexualidade/bissexualidade”, “Quando penso em homens homossexuais/bissexuais, penso em situações negativas”, “A maioria das pessoas tem reações negativas à homossexualidade” (Pereira e Leal, 2005, p. 324-325). Podemos observar pelo trabalho de Pereira e Leal (2005), que se considera com frequência as atitudes dos indivíduos face à própria homossexualidade, à homossexualidade per se, e o conforto com os outros que conhecem a sua homossexualidade. Ross e Rosser (1996), citados por Pereira e Leal (2005), por exemplo, sugeriram quatro dimensões relevantas para o construto de homofobia internalizada, sendo elas: identificação pública como sendo gay, percepção do estigma associado ao ser gay, o grau de conforto social com outros gays, e crenças em relação à aceitação religiosa ou moral da homossexualidade. Os autores observaram que suas medidas têm alta correlação com variáveis como afiliação à comunidade, relações duradouras e satisfatórias e abertura pessoal e local no trabalho.

Algumas problematizações podem, entretanto, serem feitas em relação ao tratamento que se dá ao conceito de homofobia internalizada. A primeira delas, é que raramente encontramos estudos na literatura que se debrucem sobre os processos pelos quais a lógica heteronormativa é internalizada pelos indivíduos a ponto de esses passarem a exercitá-la contra si mesmos. Esse tópico é de significativa relevância uma vez que o conceito de homofobia internalizada, se encarado de maneira semelhante ao conceito não superado de homossexualidade ego distônica, abre a possibilidade de patologizarmos o indivíduo que passou a agir de maneira homofóbica consigo mesmo e travarmos com este uma batalha, quando, na verdade, a luta na qual deveríamos nos concentrar é contra a própria lógica heteronormativa na qual se apoia o exercício da homofobia que incidiu sobre esse indivíduo ao longo do seu processo de subjetivação e constituição de sua identidade. Outra problematização refere-se ao fato de que os estudos psicométricos citados avaliam posições conscientemente declaradas pelos participantes em relação à homossexualidade própria e per se, bem como em relação ao conforto/desconforto que sentem nos espaços sociais hetero e homossexuais. Mas, do ponto de vista psicológico, não parece descabido pensar que tais posições podem não estar claramente discriminadas para os indivíduos que, em seu processo de subjetivação, internalizaram os valores negativos de uma cultura homofóbica, e que esses atuem inconscientemente esses valores contra si mesmos ainda que um discurso de auto-aceitação seja observado. O que se pretende apontar aqui é que crenças, atitudes e sentimentos homofóbicos podem engendrar-se sutilmente nas interações de um indivíduo homossexual consigo mesmo e com o mundo, de maneira quase imperceptível para si, mas com os mesmos efeitos de sofrimento e limitação de suas relações.

1.6 Redes de apoio social, casais homoafetivos e suas relações sociais A partir do que foi exposto nos subtítulos anteriores, e de estudos da literatura direcionada ao estudo da relação entre homossexuais (ou casais homossexuais) e sua rede de relacionamentos (Defendi, 2010; Saggese, 2009; Lomando e Wagner, 2008; Frazão e Rosário, 2008; Rostosky et al, 2004), podemos observar claramente a

influência dos contextos em que estão inseridos os homossexuais na vivência dos desafios próprios de sua identidade sexual em uma cultura heteronormativa, destacandose, nesse contexto, a família [de origem e/ou construída] e os amigos como relações significativas para esses indivíduos. Muitos dos trabalhos que abordam esse aspecto das vivências de casais homossexuais têm se utilizado do conceito de “apoio social”, ou “social support” nos estudos estrangeiros, para compreender as relações estabelecidas entre homossexuais e suas famílias, e entre casais homossexuais e suas famílias. Esses estudos frequentemente se posicionam teoricamente como partindo de uma perspectiva sistêmica de compreensão dos fenômenos, ou de teorias ecológicas do humano. Outros termos como “apoio social/familiar percebido”, “apoio emocional”, e “rede [network] de apoio social”, também são comuns, evidenciando um ou outro aspecto em particular. Dada essa pluralidade na conceituação de apoio social, consideramos especialmente importante situar o que estamos entendendo sob esta rubrica. Como aponta Lomando e Wagner (2008), é importante distinguir os conceitos de Rede Social, Apoio Social e Rede de Apoio Social. Os autores retomam a história do conceito de Rede, que foi estabelecido pelo movimento da Cibernética e posteriormente incorporado à Teoria Eco-Sistêmica, para “compreender uma inter-relação multivariada e aberta de elementos que estão em constante interação” (Lomando e Wagner, op. cit., p.42). Elkaim (1989), citado por Lomando e Wagner (2008, p.42), definiu a Rede, no final dos anos 80, como um “processo de construção ininterrupta no nível coletivo e individual”. Apoio Social diferencia-se, por sua vez, segundo Lomando e Wagner (2008, p.43), citando Rangel e Sarriera (2005), por ser “uma das funções criativas da rede social”, enquanto que a Rede de Apoio Social seria “a junção das relações significativas que uma pessoa tenha e que desempenham estas funções de apoio”. No trabalho de Defendi (2010), o autor localiza a definição desses conceitos no contexto das ciências humanas, e mais especificamente, dialoga com autores do campo da Psicologia que utilizam o conceito de Redes Sociais aplicado ao trabalho psicológico com indivíduos, casais, grupos sociais e comunitários.

Dabas (1993), por exemplo, citada por Defendi (2010), entende a rede social como um sistema aberto, e que por meio de um intercâmbio dinâmico entre seus membros e integrantes de outros grupos sociais possibilitam o enriquecimento e potencialização dos recursos. O autor ainda aponta o caráter de totalidade complexa e organizada que esses pressupostos conferem ao mundo e às relações deste em que os eventos que ocorrem nos sistemas afetam um ao outro constantemente. Outro autor com que Defendi (2010) dialoga, e cuja definição de Rede Social é a que adotamos no presente estudo, é Sluzki (1997), para o qual há uma distinção entre o universo relacional de um indivíduo, constituído de contextos culturais e subculturais, históricos, políticos, econômicos, religiosos, idiossincrasias regionais, etc. em que esse está imerso, e entre o nível mais microscópico de relações, que o autor denomina Rede Social Pessoal, que, pode ser definida, segundo o mesmo como sendo: [...]a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como significativas ou define como diferenciadas da massa anônima da sociedade [...] e que contribui substancialmente para seu próprio reconhecimento como indivíduo e para sua auto-imagem [...] para a experiência individual de identidade, bem-estar, competência e agenciamento ou autoria, [...] hábitos de cuidado da saúde e a capacidade de adaptação em uma crise (Sluzki 1997, p.41-42).

A partir de tal proposta conceitual, Sluzki elaborou um registro pelo qual podese acessar a rede mínima de apoio social de uma pessoa, ao qual denominou mapa da rede ou mapa mínimo, o qual será melhor explorado na seção de Método do presente relatório, mas que aborda as características estruturais (tamanho, densidade, composição/distribuição, dispersão, homogeneidade/heterogeneidade) e funcionais da rede (presença ou ausência das funções de companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e conselhos, regulação social, ajuda material e de serviços, acesso a novos contatos e possíveis apoios não listados). Além disso, considera-se na análise do mapa mínimo da rede social os atributos de cada um dos vínculos (função predominante, multidimensionalidade,

reciprocidade,

intensidade/compromisso,

frequência

dos

contatos e história do vínculo). As definições de Rede e de Apoio Social, citadas anteriormente, tendem a enfatizar o papel do contexto como um fator significante no desenvolvimento humano e estabilidade do indivíduo e de suas relações, o que, para o interesse do presente trabalho, significa dizer que para os casais, heterossexuais ou homossexuais, familiares

e amigos são importantes fontes de apoio para o enfrentamento dos dilemas da conjugalidade. Rostosky et al. (2004) apontam, entretanto, que no caso dos casais de pessoas do mesmo sexo, esses precisam negociar sua conjugalidade com sua rede de relações inseridos em um contexto de “heterossexualidade compulsória”, sendo influenciados como indivíduos, como casal e como membros da família que investem (em maior ou menor grau) na reprodução da narrativa heterossexista dominante. Esses e outros autores (Defendi, 2010) apontam como decorrência desse desafio particular aos casais que se constituem de maneira desviante à heteronorma (que não se restringem aos casais homossexuais, obviamente) o fenômeno das famílias de escolha e/ou construídas, estratégia que se mostrou eficaz no sentido de consolidar a relação conjugal, a despeito da aprovação dos familiares por meio da distância geográfica em relação à família de origem. Defendi (2010) aborda esse aspecto em termos das vantagens e desafios de se compreender as conjugalidades homossexuais e sua inserção em um mundo formado por infinitas redes de significação, sendo uma delas a possibilidade de considerar a complexidade das relações entre as pessoas que precisam conviver com as diferenças. Segundo o autor: Assim como a rede propaga ideologias que afetam diretamente as pessoas em seu cotidiano, ao falarmos de homofobia, heteronormatividade, heterossexismo, estamos falando de posições ideológicas que são sustentadas e propaladas por pessoas em relação, com suas redes sociais, que ajudam a manter visões preconceituosas que não contribuem para inclusão de casais homossexuais no âmbito social. [...] Como o indivíduo encontra-se inserido em sistemas ou redes, que vão desde seu convívio imediato (familiares, amigos, trabalho), até os macro-sistemas que são formados pelas ideologias, leis, costumes, pode-se perceber que no caso da homossexualidade e das conjugalidades homossexuais, o sistemas ideológicos (homofobia, heteronormatividade) em nível macro sustentam os dilemas, conflitos, paradoxos da convivência da pessoa e do casal gay com suas redes sociais mais significativas e próximas (Defendi, 2010, p. 60-61).

Referindo-se a essa mesma concepção de conjugalidades homossexuais em rede, Murphy (1989), citado por Rostosky et al (2004), ainda alerta para o fato de que o apoio familiar varia no tempo, ou seja, não é uma condição única e fechada, e está também subordinada ao contexto. Poderíamos ainda discutir que se referir ao apoio familiar sem

discriminar de que membros da família ele vem ou não vem é ignorar que famílias são sistemas complexos e multifacetados, e que as relações familiares são constantemente negociadas. Rostosky et al (2004) destacam ainda que o apoio social dado pela família aos casais homossexuais envolve a história, identidade e outras relações desses casais, e que os estudos podem/devem explorar como esses casais constroem ativamente e negociam sua conjugalidade com as famílias de origem (do que também pode depender uma desconstrução parcial dos discursos heteronormativos ou a sua manutenção e enrijecimento). Os resultados obtidos por Lomando e Wagner (2011) em seus estudos quantitativos nos quais trabalharam com a noção de rede e apoio social apontam na direção de que altos níveis de coesão e adaptabilidade, apoio percebido da família e amigos, estabilidade conjugal, indicam que um relacionamento aberto para família e amigos favorece a estabilidade do casal, além de haver uma correlação entre o apoio de familiares e amigos, o que, a nosso ver, pode indicar que uma família cujo apoio se dê de maneira efetiva favorece o estabelecimento de amizades que também apoiem, ou que, inversamente, amigos que exercem apoio efetivo possibilitam modificações no sistema familiar que passa apoiar o casal. Defendi (2010), por sua vez, teve resultados qualitativos que apontam na direção de que a revelação da diferença em relação ao mainstream é fundamental para a construção da identidade homossexual, uma vez que, como ressalta o autor, a “personalidade” de alguém envolve também aspectos inter-relacionais; a construção e a comunicação/revelação da homoconjugalidade para a rede social envolve aspectos muito complexos relativos à história de cada um dos membros da díade (como cada um se desenvolve quanto homossexual, não havendo uma única forma de fazê-lo), experiências positivas e negativas nesse processo, contexto em que ocorre e importância do mesmo para o casal. O relato dos entrevistados por Defendi (2010, p.118) ainda permitiram ao autor concluir que “revelar não é imprescindível ou condição importante para a formação da conjugalidade, porém [...] o apoio e incentivo da família de origem confere aos casais um lugar visível e de pertença junto a esse grupo social”. Expostas todas essas considerações, podemos hipotetizar que além de contribuir para a construção da identidade sexual dos indivíduos homossexuais (abordada no primeiro subtítulo dessa seção do relatório), o apoio social de familiares e amigos

também pode interferir positivamente nas vivências dos desafios próprios de um casal homossexual, e, mais especificamente, no enfrentamento de situações de preconceito pela orientação sexual/ discriminação homofóbica contra os membros do casal individualmente, mas também contra o casal como uma díade que enfrenta diretamente a lógica heteronormativa que dita o modelo de relacionamento amoroso hegemônico heterossexual.

2. MÉTODO Para compreender como os parceiros de uma união homoafetiva percebem a influência do apoio social de familiares e amigos sobre sua convivência diária,

especialmente quanto ao enfrentamento das situações de preconceito vividas por eles, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa e interpretativa, uma vez que se busca a compreensão de uma realidade particular na sua complexidade (Fraser e Gondim, 2004).

2.1 Estratégia metodológica O delineamento e a estratégia metodológica utilizados na pesquisa é o estudo de caso. O estudo de caso tem como objetivo reunir informações pormenorizadas e ordenadas sobre um fenômeno, com foco na compreensão da dinâmica do contexto no qual ele se desenrola (Yin, 2005). Como não é possível a compreensão do caso em toda sua complexidade, o pesquisador deve alcançar a singularidade do mesmo, envolvendose em um estudo profundo e exaustivo do mesmo, de modo a permitir seu amplo e detalhado conhecimento (Gil, 2009). As características essenciais do estudo de caso foram apontadas por Gil (2009): é um delineamento de pesquisa; preserva o caráter unitário do fenômeno pesquisado; investiga um fenômeno contemporâneo; não separa o fenômeno do seu contexto; é um estudo em profundidade; requer a utilização de múltiplos procedimentos de coletas de dados. Nesta pesquisa será utilizado o estudo de caso instrumental, caracterizado por Stake8, citado por Gil (2009), como aquele que é escolhido porque o pesquisador admite que seu estudo pode auxiliar na ampliação do conhecimento de determinado tema ou na contestação de uma generalização amplamente aceita.

2.2 Participantes

8 STAKE, Robert E. The art of case research. Thousand Oaks, CA: Sage, 1995.

A escolha dos participantes foi feita por intermédio da rede social do pesquisador e do coordenador da pesquisa, e a indicação de outros casais foi feita pelos próprios participantes entrevistados. Esse processo de cooptação dos participantes é conhecido na literatura de pesquisa como “bola de neve” (snowball sampling): trata-se de uma técnica utilizada em pesquisas sociais na qual os participantes iniciais de um estudo indicam novos participantes que, por sua vez, indicam outros e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto. Este é atingido quando os novos entrevistados passam a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas com participantes anteriormente entrevistados, sem o acréscimo de informações relevantes à pesquisa (Baldin e Munhoz, 2011). Estabeleceu-se como critérios para a participação nesta pesquisa, que os entrevistados:

a) Se considerassem homens homossexuais; b) Se considerassem envolvidos numa união como um casal; c) Estivessem juntos há pelo menos três anos (não necessariamente morando na mesma casa, mas se relacionando por no mínimo três anos e se considerando um casal); d) Deveriam ter idade entre 25 e 40 anos;9 e) Residissem nas regiões Oeste ou central de São Paulo, para facilitar o contato com o aluno-pesquisador. O primeiro critério (critério a) foi estabelecido com o objetivo de isolar especificidades de gênero que poderiam estar envolvidas em uma pesquisa que incluísse

9 Este critério foi reformulado em relação ao estabelecido no projeto inicial (de 30 a 40 anos), devido à dificuldade de encontrar casais disponíveis em participar da pesquisa que atendessem conjuntamente a este e aos demais critérios estabelecidos inicialmente. No primeiro casal entrevistado, um dos membros da díade estava com 27 anos e o outro com 31 anos à época da entrevista. No outro casal, os parceiros tinham 29 e 36 anos, respectivamente. O coordenador da pesquisa entende que a mudança de critério da idade mínima de 30 para 25 anos não é relevante sob a perspectiva do desenvolvimento humano.

também casais de lésbicas, além de garantir que os entrevistados estivessem envolvidos em uma relação homossexual e não heterossexual. O critério subjetivo de conjugalidade (critério b) visou garantir que casais de diferentes tipos pudessem participar do estudo. Com esse critério, tanto casais com documentos de casamento oficial ou união civil, quanto casais que se considerassem um casal sem que tivessem registrado a união pela perspectiva da jurisprudência (morando ou não sob o mesmo teto), poderiam dar seus depoimentos para a pesquisa. Desse modo, levamos em consideração a realidade de significativa parcela de casais homossexuais que não buscaram a oficialização da união por diferentes motivos. O período de relacionamento (critério c) foi estabelecido, considerando que, com três anos de convivência, duas pessoas em um relacionamento amoroso já tiveram tempo para constituir uma identidade de casal.10 O critério d (idade), por sua vez, foi adotado com o objetivo de isolar variáveis geracionais, o que é extremamente relevante quando falamos em sujeitos homossexuais, uma vez que a literatura apresenta mudanças sociais em relação à comunidade de gays e lésbicas nas últimas décadas. A mudança do critério da idade mínima (30 para 25 anos) não se confronta com esta premissa.

2.3 Instrumentos e procedimentos Para obtenção das informações que permitirão responder o problema de pesquisa, foram utilizados os seguintes instrumentos: entrevista semiestruturada, mapa da rede social pessoal e linha do tempo.

2.3.1 Entrevista semiestruturada A opção pela técnica da entrevista é justificada pela afirmação de Duarte (2004, p. 215): 10 Apesar de ser um critério baseado na literatura sobre conjugalidades, a presente pesquisa não se furta de reconhecer que tal literatura baseia-se principalmente em dados coletados com casais heterossexuais, o que deve ser problematizado em estudos futuros sobre homoconjugalidades.

Entrevistas são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados. Nesse caso, se forem bem realizadas, elas permitirão ao pesquisador fazer uma espécie de mergulho em profundidade, coletando indícios dos modos como cada um daqueles sujeitos percebe e significa sua realidade e levantando informações consistentes que lhe permitam descrever e compreender a lógica que preside as relações que se estabelecem no interior daquele grupo, o que, em geral, é mais difícil obter com outros instrumentos de coleta de dados. A entrevista semiestruturada tem por foco um assunto sobre o qual se confecciona um roteiro com perguntas principais, complementadas por outras inerentes às circunstâncias da realização das entrevistas. Para além da coleta de informações básicas, o roteiro funciona como parâmetro de organização para o pesquisador na sua interação com o entrevistado (Mazzini, 2003). O roteiro de entrevista utilizado foi o que segue (em tópicos), acompanhado de algumas questões-exemplo que poderiam ser feitas, de acordo com o discurso do sujeito:  Dados de identificação do casal: nome, idade, escolaridade, profissão, religião, tempo de relacionamento, tempo que residem juntos, tipo de contrato/registro da união (se houver), residência própria ou alugada.  Percepção do desejo homossexual Quando e como começou a perceber que sentia atração por pessoas do mesmo sexo? Sentia-se diferente dos outros meninos?  Identidade homossexual – apropriação e revelação pública (família, amigos) Quando e como nomeou esses sentimentos/desejos? Quando disse para si mesmo que era homossexual? Quando e como falou disso para outras pessoas? Que critérios usou para selecionar as pessoas para quem contar? Como os seus pais ficaram sabendo? E entre os amigos como foi?  Processo de construção da conjugalidade – significado, revelação, decisões e negociações do casal; Como se conheceram? Como contaram para as famílias dos dois que estavam juntos? Como foi a decisão de morarem juntos (se o casal morar na mesma casa)? Que tipo de

negociações fizeram para lidar com o preconceito (fazem ou não fazem algo específico em algum local ou com certas pessoas?)  Redes sociais – familiares e amigos – como é o relacionamento com estas pessoas, tipos de contatos estabelecidos no cotidiano (encontros sociais, atividades realizadas, reciprocidade); Que tipo de atividades fazem com a família? E com os amigos? Fazem juntos ou separados? Frequentam/são convidados para eventos sociais juntos? Convidam essas pessoas para eventos que organizam juntos? Frequentam a casa das famílias? Como? Quando? Com que frequência? Como é?  Percepção dos episódios de discriminação e preconceitos – como lidam com eles; posicionamento dos amigos e familiares em relação a eles. Como acha que seus familiares e amigos rede se posicionam diante do preconceito? Pensando na sua linha do tempo, algum amigo e/ou familiar te deu apoio em alguma ou várias daquelas situações? Como foi? Como se sentiu? Para completar as informações das entrevistas com vistas à possibilidade de uma análise de profundidade, própria do estudo de caso, estão sendo utilizados também o Mapa da Rede Social Pessoal e a Linha do Tempo.

2.3.2 Mapa da rede social pessoal Mapa da Rede é um recurso de pesquisa que permite o acesso a importantes informações sobre as características estruturais e as funções da rede, bem como a atributos específicos do vínculo com cada pessoa nela implicada (Sluzki, 1997). O mapa inclui todas as pessoas com quem o indivíduo interage e costuma ser sistematizado em quatro quadrantes: família, amizades, relações de trabalho ou escolares e relações comunitárias, de serviço ou de credo. Sobre esses quadrantes inscrevem-se três áreas: um círculo interno de relações íntimas, um círculo intermediário de relações pessoais que comportam menor compromisso por parte do indivíduo e um círculo externo de pessoas conhecidas com as quais a pessoa mantém relações ocasionais. Na página a seguir apresentamos uma miniatura do instrumento.

Durante o encontro com os participantes, o entrevistador solicitou que os mesmos preenchessem o instrumento com a inicial das pessoas de sua rede de relações, explicando o significado de cada quadrante e de cada uma das três áreas, considerando que o próprio participante ocupasse o lugar do ponto central. Simultaneamente, o pesquisador anotou o nome, a idade e a função na rede das pessoas inseridas pelo participante, com o objetivo de facilitar a compreensão dos dados posteriormente. Preenchido o mapa, o entrevistador solicitou aos participantes que falassem das pessoas que inseriu no mesmo, sobre o apoio que recebia e dava a essas pessoas, as características desse apoio e a importância deste para sua vida.

AMIGOS

FAMÍLIA

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

TRABALHO/ESCOLA

2.3.3 Linha do tempo Linha do Tempo constitui-se numa forma de organização de fatos, datas e acontecimentos importantes na vida de uma pessoa ou casal. Em psicologia pode ser utilizada como intermediário para a organização de dados biográficos e da história de vida (Alleotti, 2004). Solicita-se que o indivíduo utilize uma linha horizontal ou vertical

para indicar as vivências mais significativas ao longo de sua vida, em ordem cronológica. Terminada a linha, a pessoa é convidada a falar de cada evento indicado. Podem-se fazer perguntas de esclarecimento, o que permite uma compreensão de como aquela pessoa vivenciou cada evento, o significado dado a eles, seus reflexos na história de vida, bem como o tipo de imagem que fazia de seus recursos psicológicos na época. Nesta pesquisa, o recurso da linha do tempo foi utilizado para pontuação das experiências mais marcantes de preconceito vividas pelos participantes. Dessa maneira, solicitou-se que os mesmos traçassem uma linha em uma folha de sulfite branca e que pontuassem, de maneira cronológica, situações vividas e/ou presenciadas de preconceito e discriminação por orientação sexual. Por vezes, quando o “título” da situação, escrito pelo participante, pareceu vago, orientou-se o mesmo a pensar em situações mais pontuais/específicas.

3. ANÁLISE E DISCUSSÃO Apresentamos a seguir a análise e discussão dos dados obtidos com os casais entrevistados, Marcos e André, e Pedro e Bruno, separadamente. A análise de cada díade consistiu na reunião das informações obtidas com as entrevistas semidirigidas, e com os instrumentos do Mapa da Rede Social de Sluzki e da Linha do Tempo. De acordo com a sequência do procedimento descrito da seção Método deste relatório, o objetivo dos procedimentos do Mapa da Rede Social e Linha do Tempo era aproximar o pesquisador da realidade dos entrevistados em termos de sua rede de relações proximais, especialmente familiares e amigos, e em termos de suas experiências com a homofobia de maneira genérica. Por esta razão, a ordem de apresentação será a seguinte: análises realizadas dos dados obtidos com os dois instrumentos para os membros do primeiro casal, e análise comparativa das entrevistas do primeiro casal. Em seguida, análise do mapa e linha do tempo dos membros do segundo casal, e análise das entrevistas do mesmo. Os inquéritos realizados após o preenchimento do Mapa da Rede Social pelos participantes encontram-se em anexo no presente relatório para serem consultados na íntegra. A análise dos Mapas da Rede Social, confeccionados por cada participante, baseou-se no Capítulo 2 do livro “A Rede Social na Prática Sistêmica – Alternativas terapêuticas” de Carlos E. Sluzki, escrito em 1997. Nesse texto, o autor apresenta o instrumento, e sugere as categorias de análise a serem utilizadas em avaliação, explicitadas nas seções de Introdução e Método do relatório. Os Mapas da Rede (e também as Linhas do Tempo) foram reproduzidos o mais fielmente possível aos preenchidos pelos entrevistados, e a tabela que os acompanha foi construída no sentido de facilitar a leitura dos mesmos, acrescentando informações a respeito dos membros da rede (idade, função familiar ou profissão quando necessário, indicação da orientação sexual, quando não se tratava de orientação heterossexual, e indicação de que a pessoa era travesti/transexual quando não se tratava de pessoas cisgênero). Em seguida, analisamos o material das entrevistas semiestruturadas, por casal, atentando para os pontos em convergência e divergência no discurso dos entrevistados quando responderam às perguntas feitas pelo entrevistador. Tal análise foi subdividida de acordo com categorias de análise definidas a posteriori, com a leitura sistemática da

síntese das entrevistas, em anexo no final deste relatório para serem consultadas na íntegra.

3.1 Casal 1 – Marcos e André Marcos, de 36 anos, com Ensino Médio Completo, candomblecista, é coordenador da diversidade sexual em um município do Estado de São Paulo, e André, 29 anos, com Ensino Superior Incompleto em Logística, agnóstico, é recepcionista em um laboratório de medicina e também designer gráfico. Estão juntos há 9 anos e moram em residência própria, cedida pela família de André. O casal não possui contrato ou registro da união. Esses dados de identificação encontram-se listados no material anexo de cada participante. 3.1.1 Mapa da Rede Social A) MARCOS Figura 1. Mapa da Rede Social do participante Marcos.

FAMÍLIA

-A -B -

AMIGOS

pai -A -G -D -

-B

-M

-I -F -D -A -J

-F -A -J -D -L

-R -R -B -E -G -L -A -R -F -M

S*

G* G* RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

RELAÇÕES DE TRABALHO

* Pessoas cujo lançamento no mapa foi alterado para garantir o sigilo das informações (o participante colocou a primeira sílaba dos nomes). Os traços imitam o lançamento realizado pelo participante, por isso ocorrem em algumas iniciais e não em outras, bem como ocorrem na ausência de iniciais.

Tabela 2. Dados de identificação do Mapa da Rede Social de Marcos. AMIGOS I, 43  homossexual F, 43  homossexual A, 37*

FAMÍLIA

B, irmã, 17 E, irmã, 28  homossexual G, sobrinha, 5

J, 40* D, 30*  homossexual M, 37  homossexual A, 22  homossexual G, (idade não perguntada)

R, sogro, 50 R, sogra, 50

B, prima, 39

D  não se lembrou do nome desta pessoa A, 28  homossexual

A, pai, 60

B, 39* RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

RELAÇÕES DE TRABALHO

F, psicólogo, 50  homossexual

L, 35

A, advogada, 37

A. 35

J, advogado, 40

R, 32

D, conselheiro estadual LGBT, 30  homossexual

F, 30  homossexual M  não se lembrou do nome desta pessoa

L, presidente de organização LGBT, 28  homossexual

S, 40

G, coordenador nacional LGBT, 40  homossexual

G, 40

* Pessoas inseridas em mais de um quadrante

Do ponto de vista das características estruturais, o mapa da rede social pessoal confeccionado por Marcos apresenta um tamanho considerável, uma vez que é composto por quantidade visível de pessoas. Com as devidas limitações para definirmos o que seria uma rede numerosa, média ou pequena, entende-se que no mapa de Marcos não há excessos ou vazios de pessoas na rede. Uma rede média é aquela que Sluzki (p.45) define como mais efetiva no apoio. Em relação à densidade da rede, observa-se a presença de subsistemas mais e menos coesos. Não foram observados durante o inquérito indícios de que a rede pressione Marcos para uma adaptação ou de que coteje

informações a respeito da necessidade de apoio por parte do entrevistado. A composição ou distribuição da rede é mais localizada no círculo central (relações mais próximas), mas foram inseridas pessoas em todos os quadrantes e círculos, indicando uma rede com distribuição mais ampla, o que significa mais opções quando se procura por apoio, diferentemente do que seria uma rede com poucas pessoas mais próximas e muitas pessoas distantes.

A dispersão da rede é variada, existindo pessoas que vivem

geograficamente muito próximas, e pessoas que vivem muito longe do participante. Os meios de comunicação via Internet apareceram como uma forma de acessibilidade entre Marcos e relações comunitárias da capital do país, por exemplo. Como acompanhamos no inquérito, existe uma heterogeneidade na rede de Marcos em diversos aspectos (gênero das pessoas, idades, nível de escolaridade). No que tange os interesses do presente trabalho, observa-se que as relações de amizade e comunitárias são predominantemente de homossexuais e simpatizantes, em sua maioria militante do movimento LGBT. No trabalho, os heterossexuais são maioria, ainda que trabalhem em atividade que envolve a luta pelos direitos dos homossexuais e transexuais. Na família existe apenas uma pessoa homossexual (irmã). De acordo com o inquérito, a família parece ser o subsistema da rede social de Marcos onde as questões relativas à orientação sexual do participante podem ser fonte de tensão e estresse, quando comparada a outros setores da rede, mais suportivos em relação à homossexualidade. Do ponto de vista das funções da rede, predominaram as relações de companhia social e guia cognitivo e de conselhos, principalmente por parte de amigos, relações comunitárias e parte das relações de trabalho. No inquérito foram indicados alguns casos de ajuda com serviços, oriundos das relações comunitárias. Com exceção de um amigo, não foram relatadas relações com função de apoio emocional. Também não foram dados exemplos em que um membro da rede promovesse o acesso a novos contatos, o que mereceria maior investigação. No que se refere aos atributos dos vínculos inseridos no mapa, de acordo com o inquérito, Marcos conta mais com o apoio de amigos e relações comunitárias, e ainda assim, tal apoio é predominantemente restrito a uma ou duas funções. Isso significa que se trata de vínculos pouco versáteis no número de funções que podem exercer para Marcos. A característica de reciprocidade surgiu para esses contatos, pois Marcos

também pode exercer tais funções para essas pessoas. Na família, entretanto, Marcos se percebe muito mais como alguém que apoia (referindo-se mais especificamente ao núcleo de relações fraternas) do que é apoiado, indicando não haver reciprocidade neste subsistema. Em relação à frequência dos contatos, com exceção de alguns membros de relações comunitárias e do pai, inserido no terceiro círculo do centro para fora no quadrante da família, a frequência com que Marcos vê essas pessoas é considerável, tendo ele relatado atividades juntos e visitas frequentes. A intensidade, durabilidade e compromisso dessas relações, conforme indica o inquérito apontam na direção de que a rede de Marcos, em termos mais genéricos, é composta por relações mais duradouras, com certo grau de previsibilidade por parte do entrevistado. Sobre a intensidade dessas relações, não foi possível identificar, a partir do inquérito, trocas mais afetivoemocionais, sendo as relações mais pautadas pelo trabalho e luta política. Marcos claramente utilizou o grau de importância das pessoas em sua vida para inseri-las próximo ou distante do centro no mapa da rede. O inquérito revelou que a rede de relações proximais de Marcos se alterou significativamente com o falecimento de sua mãe há 5 anos, de quem afirmou ter “apoio total” (sic.). Com esse evento, teve de escolher entre viver com as irmãs na casa da família de origem ou com o companheiro em outro lugar, uma vez que outros familiares não aceitavam a relação conjugal entre ele e André e também pelo fato de a casa onde vivem não ser grande o suficiente para que as irmãs fossem morar com eles. As irmãs foram apontadas como contatos mais significativos de sua família atualmente, mas nessas relações Marcos tem sido mais uma fonte de apoio do que tem sido apoiado de maneira propriamente dita, especialmente porque uma das irmãs é uma pessoa com deficiência e depende de seu apoio, inclusive financeiro, de maneira mais presente. As redes de amigos e relações comunitárias foram fontes de apoio importantes nesse processo de transição, o que é especificado no inquérito. Os amigos são, em maioria, pessoas envolvidas com o movimento LGBT, misturando-se momentos de lazer, companhia social, e apoio para a conquista de direitos de uma maneira mais ampla. Esse subsistema da rede de relações sociais foi destacado por Marcos como fonte de apoio e fortalecimento mútuo: “Quando um começa a esmorecer o outro vai lá e levanta, e assim caminha...” (sic.). A pessoa que Marcos destacou na rede foi D., amigo e inserido no quadrante de relações comunitárias, importante fonte de conselhos e também atuante no movimento LGBT.

Sobre as relações de trabalho, demonstrou ter pessoas aliadas nesse âmbito, no sentido de apoiarem seus ideais no trabalho (que envolve a militância LGBT no município onde trabalha), e pessoas com as quais esses ideais entram em conflito. O casal frequenta e é frequentado pela maioria das pessoas da rede de Marcos, tanto individualmente quanto juntos, o que é menos verdadeiro para as relações familiares. Uma análise mais global do mapa da rede social de Marcos pode nos levar a pensar que diante de um círculo familiar pouco suportivo de maneira genérica (não são citados como o auxiliando na vida) e também em relação à sua orientação sexual, ou, pelo menos, à conjugalidade homossexual, além de ser um grupo de relações que demanda seu apoio (as irmãs especificamente), Marcos pautou a construção de sua rede de relacionamentos na aproximação com pessoas que, em sua maioria, fossem iguais a ele, ou simpáticas à sua orientação sexual. Mais que isso, criou relações de amizade, comunitárias e de trabalho com pessoas envolvidas na causa LGBT de maneira mais direta, o que constitui uma importante fonte de apoio mútuo. Tais estratégias são frequentemente relatadas na literatura (Oswald, 2002; Rostosky et al., 2004). O falecimento de sua mãe foi um evento decisivo em sua história por marcar mais claramente quais pessoas de sua rede o apoiavam, quais não o apoiavam e quais pessoas precisavam de seu apoio, tendo que escolher assim onde e como viver com o companheiro, o que pode ser interpretado como um efeito direto de o apoio, até então, ter dependido mais desta relação que fora perdida. Esse é um evento que exemplifica a relevância das relações sociais de apoio na vida dos indivíduos homossexuais discutido pelos autores da área (Defendi, 2010; Saggese, 2009; Lomando e Wagner, 2008; Frazão e Rosário, 2008; Rostosky et al., 2004) e o impacto da perda deste apoio em seu cotidiano. De modo geral, tal característica permanece na rede de Marcos, uma vez que predominaram funções de apoio de companhia e guia cognitivo e de conselhos, principalmente de amigos e relações comunitárias, em relações previsíveis porém não descritas com grande carga afetivo-emocional. Essas conclusões obviamente estão limitadas pelo fato de esta ter sido a primeira entrevista com o participante, o que poderia ter levado a uma resistência em falar dessas relações em um foro mais íntimo. Apesar desse limite, a hipótese não pode ser invalidada uma vez que as dimensões da militância e do trabalho fazem parte das relações abordadas por Marcos.

Podemos destacar também o fato de o pai de Marcos ter sido inserido no terceiro círculo de dentro para fora no quadrante da família, mas não pela inicial de seu nome, e não ter sido citado espontaneamente pelo participante durante o inquérito. Talvez isso indique que esse pertença a sua rede, mas que a relação envolva aspectos difíceis de ser verbalizados em uma entrevista desta natureza, o que foi obviamente respeitado pelo pesquisador.

B) ANDRÉ Figura 2. Mapa da Rede Social do participante André.

L E

AMIGOS

N P

U W

F D M D A D R M U R J L J V J J S R

FAMÍLIA

N

E A

S A

LLNZL JED

R IATFAJ D MSRF M¹ T SJT LFA VRRDA SWAR M

C N A T Q

RELAÇÕES DE TRABALHO

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

¹ Alterado considerando o sigilo dos participantes

Tabela 3. Dados de identificação do Mapa da Rede Social de André (continua na próxima página). AMIGOS I, 42  homossexual A, 29  homossexual T, 25  homossexual F, 50  homossexual A, 40 J, 40 M, 40  homossexual

FAMÍLIA

R, mãe, 50 D, pai, 50 M¹, companheiro, 36  homossexual

S, 30  homossexual R, 32  homossexual F, 30  homossexual T, 19 S, 20-25 J, 20-25 V, 20-25 R, 20-25 R, 20-25 D, 20-25 A, 20-25 S, 20-25 W, 20-25 A, 20-25 R, 20-25 J, 30  homossexual J, 25  homossexual M, 28  homossexual A, 29  homossexual M, 29  homossexual D, 28  homossexual F, 30  homossexual U, 50  homossexual E, 40  homossexual E, 21  pesquisador (homossexual) L, 50  homossexual J. L., 50  homossexual U, 50  homossexual D, 28  homossexual RELAÇÕES COMUNITÁRIAS L, cabeleireiro, 50  homossexual* F, psicólogo, 50  homossexual* A, psiquiatra, 65  homossexual (vazio) (vazio) ¹ Alterado considerando o sigilo dos participantes

L, tia, 55 L, tia, 50 N, tia, 40 Z, tia, 55 J, prima, 25 H, prima, 28 D, primo, 30  homossexual L, primo, 50  homossexual

N, tia, 60 N, tia, 60 P, prima, 28 C, prima, 40 N, prima, 40 A, primo, 30  homossexual T, primo, 28 R, prima, 25  transexual

RELAÇÕES DE TRABALHO T, 19 S, 20-25*, J, 20-25*, V, 20-25 *, R, 20-25*, R, 2025*, D, 20-25*, A, 20-25*, S, 20-25*, W, 20-25*, A, 20-25*, R, 20-25* M, 40 (vazio) (vazio)

* Pessoas inseridas em mais de um quadrante

Quanto às características estruturais, a rede de André é mais numerosa do que a do companheiro, o que, segundo Sluzki, pode significar não efetividade do apoio baseada na pressuposição de que “alguém já está cuidando do problema” (p.46). A densidade (ou coesão entre as pessoas da rede) parece, pelos dados do inquérito, se organizar de acordo com os quadrantes, não havendo ligações importantes entre os membros da família e dos amigos, por exemplo. Dessa forma, ainda que os subgrupos possam ser coesos e pressionar André para uma adaptação, este conta com diferentes opções em sua rede. Por outro lado, a troca de informações sobre André entre os subsistemas pode ser fraca ou inexistente. Combinada a esses dois aspectos, a composição da rede é mais restrita do que a do companheiro, uma vez que, apesar de ser maior, a rede de André se concentra basicamente entre amigos e familiares. Há relações

de trabalho, todas consideradas pelo entrevistado muito próximas, mas o inquérito indicou que tal proximidade reflete muito mais a frequência do contato do que a profundidade desses. Por outro lado, uma compreensão qualitativa dessa composição pode sugerir que muitas das pessoas com quem André mantém contato são consideradas por este como amigos (e não relações comunitárias ou só de trabalho, por exemplo), o que explicaria o tamanho e distribuição da rede. Fato interessante foi o participante ter inserido o pesquisador em seu Mapa da Rede Social, ainda que mantenham contatos extremamente casuais em eventos destinados à militância LGBT (algumas vezes por ano). No que tange à acessibilidade aos contatos, André relatou que acessa a maioria dos membros de sua rede com facilidade, e não surgiu durante o inquérito nenhum comentário sobre contatos morarem geograficamente muito distantes dele. A rede de relações significativas de André é predominantemente composta por homossexuais, o que, na análise do aspecto homogeneidade e heterogeneidade, indica uma tendência a se aproximar de pares, sendo que o contato com pessoas diferentes ocorre frequentemente quando não existe possibilidade de escolha (membros da família de origem, e pessoas do trabalho que também foram consideradas amigos), o que pode constituir uma maneira de lidar com o preconceito, como apontam Oswald (2002) e Rostosky et al. (2004). Os contatos são ora duradouros, à medida que André se referiu, no inquérito, a relações bastante antigas, ora mais superficiais, uma vez que inseriu em dois quadrantes diferentes as pessoas com quem trabalha, mesmo tratando-se de um emprego recente. Diferentemente do companheiro Marcos, André relatou maior variedade de funções de apoio exercidas pelos membros de sua rede social, tais como companhia social, guia cognitivo e de conselhos, ajuda material e com serviços e apoio emocional. A função de acesso a novos contatos não foi espontaneamente relatada na entrevista de inquérito. Sobre os atributos dos vínculos, pareceu que diferentes pessoas exercem diferentes funções, embora tenha concentrado o apoio que recebe em dois vínculos: o companheiro e a mãe. Em se tratando da reciprocidade no apoio, André relatou situações em que serve como companhia social para sua rede, mas não se referiu especificamente a outras funções de apoio. Os critérios de André para inclusão de pessoas na rede não ficaram completamente claros. Em alguns momentos refere-se claramente ao grau de intimidade

com as pessoas como critério para inseri-las perto ou distante do centro. Em outros momentos é a frequência do contato que parece estar em jogo. O inquérito mostra que a família é, para André, uma possível fonte de apoio, pelo menos no que se refere às pessoas mais próximas (companheiro e pais). Destaca as mesmas como fontes importantes de apoio que procura para qualquer situação difícil. O restante dos familiares pode ser tanto de pessoas cuja função é de companhia social, quanto pessoas de quem tem algum apoio no sentido de conversar sobre si. Em geral avaliou poder “ser quem é” na presença dos familiares, referindo-se à sua orientação sexual. Tal avaliação vai na contramão do conflito frequentemente vivido por parte de indivíduos homossexuais entre o modo de ser com algumas pessoas e com outras, o que é descrito por Saggese (2009) como importante fonte de sofrimento. Os dados obtidos com os outros instrumentos devem corroborar ou enfraquecer tal interpretação. Os amigos de lazer e militância, os que mais vê, foram inseridos no círculo dos mais próximos, seguidos por amigos do emprego que ainda era recente na época da entrevista, e pelos amigos com menor frequência de contato, no terceiro círculo, mas com quem, paradoxalmente, se sente mais à vontade para se comportar como quiser. O critério para distribuir os amigos foi claramente distinto do critério que usou para os familiares. André não discriminou especificamente alguém do quadrante de amigos com quem conta mais. As relações comunitárias citadas pelo participante, ainda que fossem amigos e familiares, foram escolhidas mais pela função profissional que desempenharam (de saúde e estética) do que por apoiá-lo na vida cotidiana de maneira mais propriamente dita. Grande parte da rede é composta por homossexuais (com exceção das relações de trabalho), até mesmo na família, onde inseriu no mapa três primos homossexuais (de 12 homossexuais ao total), e uma prima transexual. Os contatos ocorrem tanto na casa do casal quanto na casa das pessoas da rede (exceto relações de trabalho), e podem ser com ele sozinho ou acompanhado por Marcos. O companheiro tem amplo contato com sua família também. Em síntese, a rede de André se diferencia marcantemente da de Marcos em três aspectos principais: a família do participante é apresentada pelo mesmo como uma teia de relações onde pode circular com mais tranquilidade e facilidade, o apoiando individualmente muito mais do que demandando apoio e incluindo seu companheiro de maneira mais efetiva do que a família do mesmo faz com André; as relações de

trabalho, ainda recentes, não envolvem pessoas homossexuais ou que trabalham com temáticas LGBT, o que não significou em problemas específicos para o participante até o momento da entrevista, mas também não fornece suporte para ele no que se refere ao tema desta pesquisa; e as relações comunitárias são menos expressivas do que no mapa do companheiro, constituindo relações que contribuem com serviços. Assim como ocorreu com Marcos, as relações estabelecidas por André podem ter sido filtradas também pela orientação sexual das pessoas com quem mantém contato, mas, diferente do companheiro, isso não se estendeu para a atividade profissional, considerando o limite dos dados obtidos. Dessa maneira, André possui uma rede que, embora se concentre em familiares e amigos, é diversificada em número de pessoas, em funções de apoio desempenhadas e onde as relações mais íntimas (pais e companheiro) constituem importantes fontes de suporte. A família se destaca da do companheiro na maneira como apoia, e sua própria composição é mais heterogênea em termos da orientação sexual dos componentes, o que, obviamente, deve ter impacto na forma como o sistema lida com a homossexualidade.

3. 1. 2 Linha do Tempo

A) MARCOS

Jandira

Trabalho

Escola

Figura 3. Linha do Tempo do participante Marcos.

Três foram os eventos de preconceito/discriminação destacados por Marcos em sua linha do tempo, sendo dois deles vividos por ele mesmo, e o outro um episódio de agressão cujos efeitos foram presenciados por ele. Descrevemos sinteticamente, a seguir, do que se trataram tais episódios, bem como apresentamos as considerações feitas pelo entrevistado ao refletir sobre a linha construída.

Escola- “Na escola é sempre complicado, né?” (sic.), essa foi a frase que iniciou o discurso de Marcos no inquérito da Linha do Tempo, quando recordou das “piadinhas de mau gosto, professor finge que não vê, direção da escola muito menos” (sic.). Apesar disso não lembrou de nenhuma situação específica, ou que considerasse “tão grave” (sic.). Marcos disse que, na época, nunca chegou a contar para alguém o que acontecia. Trabalho- O mesmo foi relatado em relação ao ambiente de trabalho, no qual existiram “piadinhas e risadinhas” (sic.), que significam algo sério para Marcos: “se você não tem uma estrutura psicológica bacana, você acaba se desmontando, né?” (sic.). Diante disso, o participante diz que se posiciona como “dono de si” (sic.), não ligando, filtrando o que ouve, ainda que reconheça ficar chateado. Diferencia sua reação a de pessoas que se abalam, comparando-se com as pessoas que se suicidam por conta de episódios contínuos de discriminação. O entrevistado também esclareceu que trabalhou em muitas atividades diferentes, e que, até hoje, em todas elas escutou e escuta “piadinha” (sic.) de colegas de trabalho. Ao mesmo tempo apontou que nada de pontual aconteceu [como alguém “bater” (sic.) nele ou “xingá-lo,” (sic.) “esculachá-lo” (sic.)], mas que ocorrem “rodinhas” (sic.) nas quais “eles deixam claro para você perceber as coisas” (sic.). Após um longo silêncio, Marcos disse que nunca ligou para isso. Nessas situações que ocorreram no ambiente de trabalho, ele contava sobre o que acontecia para algumas pessoas com quem tinha certo vínculo, mas, segundo ele, “não era num tom de desabafo” (sic.), uma vez que não se considera “bitolado” (sic.), coisa que as pessoas que são preconceituosas desejam que seja e “pire”, o que o faz não “dar bola” para esses eventos. Jandira - O terceiro ponto colocado na linha do tempo de Marcos foi uma situação específica: em 2011 foi contatado para que fosse à cidade de Jandira para auxiliar no caso de um menino morto em crime de ódio por conta de sua orientação sexual. Marcos relatou sentimento de impotência no sentido de que poderia fazer pouca coisa uma vez que o garoto estava morto, e de horror, por conta da cena com a qual se deparou ao chegar ao local para falar com a tia do rapaz, a mãe e o padrasto. Esperava que a polícia científica e o “rabecão” (sic.) tivessem retirado o corpo antes que chegasse, mas deparou-se com o mesmo tal como ficou na hora do crime: “bateram nele brutalmente, depois enforcaram, e o corpo ainda estava no local; então, para mim é uma cena que me marcou, e até hoje eu lembro disso!” (sic.). Marcos considera que o crime foi com ele próprio, no sentido de que para o entrevistado qualquer tipo de violação

contra LGBTs o atinge. Mesmo tendo acompanhado muitos outros casos dessa natureza, Marcos ficou especialmente tocado com esse pelo fato de que pela primeira vez teve esse contato direto com o estado em que ficou a vítima: “Isso pra mim é marcante! Pegaram estilete, escreveram no peito dele, “viado safado”, esse tipo de coisa... Fiquei chocado com a situação.” (sic.). O apoio partiu de sua rede mais envolvida no movimento LGBT, pessoas com quem entrou em contato naquele momento, e conversou sobre o que estava acontecendo, inclusive para pedir por apoio à família da vítima. Apesar do impacto que Marcos disse ter sentido nesse episódio, ao falar de sua reação em relação ao preconceito nessa situação seu discurso foi mais racional, dizendo que já participava desde os 15 anos de outros trabalhos sociais (junto aos movimentos negro e de pessoas com deficiência), o que o obrigou a ver muitas atrocidades, o fez ir “endurecendo um pouco” (sic.), estratégia que adquiriu para “dar conta, não pirar” (sic.). Ao ser perguntado sobre que considerações faria em relação a forma como reagiu ao preconceito nos três contextos citados na Linha do Tempo, Marcos reconheceu que todas as pessoas pensam “poderia ter feito diferente” (sic.) em relação a algo, mas se mostrou resistente em dizer o quê, especificamente, mudou em sua atitude diante do preconceito, dizendo que não há como voltar atrás ou se arrepender, que são situações passadas e que as escolhas que deram errado em sua vida serviram como bagagem, maturidade, e o tornaram quem é atualmente. Quando isso foi investigado de outro modo, pedindo que descrevesse a forma como reagia na escola (quando criança), e depois, Marcos disse que “ficava mais na sua”, deixava as outras crianças falarem, “como se fossem o banco lá do refeitório” (sic.), o que foi apontado pelo entrevistador como parecido à reação que o entrevistado teve com as piadas no trabalho posteriormente, interpretação com a qual o mesmo concordou: “Não muda. Só muda as pessoas, os atores... as piadinhas, elas continuam a mesma coisa. Acho que as pessoas tem que ter essa mesma reação, porque o que as pessoas querem é ibope. Se você der ibope você fortalece, se você deixa pra lá, não faz nada... Se passar das piadinhas, aí sim né, uma agressão verbal, física, aí acho que você tem que tomar as providências cabíveis. Mas enquanto está só na piadinha acho que não...”. Marcos acrescentou que agressões mais sérias como as que citou nunca ocorreram com ele. A própria participação no movimento LGBT foi apontada pelo entrevistador, em forma de questão, como uma possível forma de lidar/reagir ao preconceito (como é

defendido por Oswald, 2002 e Rostosky et al., 2004), ao que Marcos respondeu afirmativamente, enfatizando o esclarecimento, maturidade e a informação como uma forma de garantir uma melhor condução de situações de preconceito, de não “acabar fazendo besteira” (sic.). Paralelamente a esse amadurecimento para lidar com, foi relatada pelo participante uma tristeza que o acompanha no sentido de que ao mesmo tempo em que a consciência dos direitos permite que não tenha “rompantes de briga, mão pra cima” (sic.), é difícil observar que esses direitos não são respeitados na prática. Marcos explora essa tristeza como uma consequência direta do fato de ser mais consciente em relação às diferenças no acesso aos direitos, à heteronormatividade, à marginalização dos LGBTs. No discurso de Marcos fica claro que é como se tudo isso não existisse quando não sabia de seus direitos, e, portanto, não havia sofrimento (nem ação política adequada). Notou-se que a luta política ocupa grande espaço da vida de Marcos, assunto sobre o qual o participante falou extensamente a respeito. Discorreu acerca da situação dos LGBTs no Brasil, de matérias que assistiu na televisão, dos problemas com a Presidência da Comissão de Direitos Humanos em 2013, dos problemas da Educação no que se refere à diversidade sexual, e na pouca participação dos LGBTs na militância, sobretudo da juventude LGBT. Apesar da riqueza indiscutível de suas contribuições, compreendemos que descrevê-las aqui levaria a perda de foco do presente trabalho, indicando que pesquisas futuras podem e devem debruçar-se sobre as opiniões de LGBTs sobre esses temas.

B) ANDRÉ

Agressão

Pai

L. na rua

Trabalho

Família

Primário

Figura 4. Linha do Tempo do participante André.

A linha do tempo de André foi mais variada em número de situações vividas, e em todas elas ele foi o protagonista. O participante relatou geralmente situações específicas, ainda que falasse de um preconceito generalizado nesses contextos. A

seguir apresentamos breve descrição de cada um dos episódios inseridos no instrumento. Primário - Referiu-se ao primário, recordando-se de apelidos e piadas como “a bichinha” (sic.) por ser diferente da classe, o que acredita ocorrer com a maioria dos gays. Mais especificamente lembrou-se de uma situação em que as outras crianças abaixaram a sua roupa “para saber se tinha pinto ou não” (sic.) por ser “muito afeminado” (sic.). Esse episódio atesta a análise de autores (Rios, 2007; Fernandes, 2011) de que o binômio heterossexual-homossexual está atrelado ao binômio masculino-feminino, sendo impossível dissociar as categorias orientação sexual e gênero na análise da violência homofóbica, derivada do sexismo e heterossexualidade compulsória. André justificou o comportamento dos colegas de turma como “normal, coisa de criança” (sic.), apontando a figura da professora como uma das fontes de apoio nesse episódio, além da mãe; Família - Na família, a diferença começou a ser percebida na comparação com um primo, o que gerou comentários das tias para que o levassem no psicólogo (como se fosse um problema que exigia a interferência de um psicólogo) e a mãe, que se opôs, uma vez que já havia homossexuais na família, aos quais credita o mérito de terem o antecedido, “abrindo as portas” (sic.), o que acredita ter mostrado para a sua mãe que não adiantava levá-lo ao psicólogo, e “que se tivesse que alguém ir no psicólogo seria ela e meu pai, não eu” (sic.). Essa situação toda foi percebida pelo participante, que disse que, conforme foi crescendo, foi “resolvendo isso por si mesmo” (sic.). As tias inseridas no segundo círculo do quadrante família foram todas apontadas como fonte de apoio nessa situação, quando a mãe “estava confusa” (sic.); Trabalho - André relatou que em seu primeiro emprego ouviu claramente que não foi promovido porque é homossexual, o que, além de ser um ato discriminatório em si, gerou comentários com seu nome na empresa em que trabalhava. Nessa situação, André sentiu-se apoiado e reconhecido pelos colegas de trabalho e sua gestora, exceto pelo gestor da área relativa à vaga para a qual poderia ser promovido, que não aceitava a homossexualidade. André relatou como negativo o fato de não ter, na época, os conhecimentos sobre leis que tem atualmente, pois teria processado a empresa, uma vez que acredita que as pessoas seriam suas testemunhas, o que atesta o apoio sentido. Ainda assim, acredita que essa foi uma situação de preconceito resolvida, que acabou;

L. na rua - Situação em que André e o ex-namorado, ainda adolescentes, estavam na casa de uma amiga que cedeu o espaço para “ficarem”, pois não “tinham onde ficar” (sic.), e os “moleques na rua” (sic.) perceberam que estavam sozinhos na casa, invadindo a mesma para agredir André e o ex-namorado. Diante desse fato, André chamou a polícia e, quando esta chegou, os agressores se dispersaram. Nesse momento decidiram sair do local, mas foram surpreendidos pelo grupo que correu atrás do casal, mas não conseguiu alcançá-los. Ambos se refugiaram o resto da noite na casa de L., uma amiga travesti que morava próxima ao local do incidente. A. e D. foram amigos que também apoiaram André na situação, sendo que o primeiro foi para quem o participante deu notícias na noite do episódio, e com quem falou no dia seguinte; Pai - (Acrescentado por último) André descreveu o momento em que começou a namorar pela segunda vez, o que não foi aceito pelo pai. Segundo o entrevistado, o primeiro namoro já não havia sido aceito por ele, mas o segundo relacionamento produziu represálias maiores, chegando a dizer para a mãe de André que escolhesse entre ele ou o filho. Na ocasião, a mãe do participante respondeu ao marido que podia sair, pois escolhia o filho. Ao escutar tal discussão entre os pais, André “foi pra cima dele”, e pai e filho “pegaram-se no tapa” (sic.). O resultado dessa briga foi a saída de André da casa dos pais, alguns dias depois, o que durou por dois ou três meses, segundo ele. Mesmo com o seu retorno, André e o pai ficaram 8 meses sem se falar, “até o dia que ele veio chorando pedir desculpas, que eu era o único filho, bla bla bla” (sic.) A partir desse momento, André passou a observar maior respeito de ambas as partes, mas diferencia esse respeito de uma aceitação [assim como observamos na análise de Saggese (2009) a respeito da reação das famílias ao coming out], caracterizando o respeito como limitado a “bom dia, boa tarde e boa noite” (sic.). Seis meses depois André decidiu que “não dava pra continuar daquele jeito” (sic.) e foi morar junto com Marcos, com quem já estava se relacionando. O participante sentiu-se apoiado por toda a sua família e amigos que estavam próximos nessa ocasião, acrescentando que tal apoio veio em forma de conversas dos mesmos com o seu pai em defesa do participante. Acredita que tal apoio teria resolvido a situação em seu início, mas que o fato de ele e seu pai terem “opinião” (sic.), implicou na resolução apenas 8 meses depois. Agressão - Essa foi, segundo André, a primeira e única agressão física que sofreu efetivamente (há aproximadamente 5 anos), e ocorreu quando estava caminhando em uma rua conhecida por ter vários bares, atrás de uma universidade em sua cidade,

onde se encontraria com amigos. O participante relatou que os agressores (quatro ou cinco homens), ao verem-no com uma camiseta do arco-íris (símbolo da luta LGBT), abriram um círculo para que André tivesse que passar no meio. Quando o mesmo passou “numa boa” (sic.), dez passos depois os agressores gritaram “pega o viado” e bateram nele pelas costas, deixando-o machucado na calçada. Um taxista o ajudou, levando-o até em casa. André acredita que esse foi o episódio marcante e mostrou uma cicatriz deixada em seu rosto nesse dia. O apoio nesse momento também foi percebido como advindo principalmente de sua mãe e do companheiro, Marcos, que estavam mais próximos naquele momento (e que o receberam quando chegou ferido, fizeram os curativos), e de amigos nos dias seguintes (ligações telefônicas para saber se estava bem). Ao ser perguntado, André disse que não procurou a polícia na ocasião por não conhecer sobre leis e seus direitos na época, porque acreditava que só serviria de estatística fazer o boletim de ocorrência, e também acreditava que serviria de piada e não seria bem atendido pelos agentes da lei. Também não foi necessário procurar os serviços de um hospital, pois teve apenas um corte. André disse ter tomado um remédio por dois dias para as dores corporais e para não ter uma inflamação (não sabia se havia se cortado no chão, com vidro...). A mãe contou a história para algumas tias também, mas André enfatiza que o apoio foi oriundo de sua mãe e de Marcos, sendo que “das outras pessoas era só: – “Cuidado quando sair de novo!” – “Só isso.” (sic.) André, voltou ao local na semana seguinte para comemorar o aniversário de um amigo, fazendo outro caminho, com alguma apreensão [“fiquei meio...” (sic.)], e mais vigilante [“eu fiquei o tempo todo na porta olhando, pra ver se eu reconhecia alguém” (sic.)], sempre acompanhado de alguém. Tal reação por parte do entrevistado está em consonância com o que Saggese (2009) denomina “mapas de segurança”, constituindo uma estratégia assimilatória de defesa em relação ao preconceito. Foi a última vez que foi ao local, pois o bar que frequentava fechou. André sente que teve apoio de sua mãe em todas as situações de preconceito relatadas, o que foi constantemente dito por ele no inquérito da linha do tempo. A análise da Linha do Tempo de Marcos e de André indica que a escola, o trabalho e a rua são espaços em que o preconceito e a discriminação se expressaram contra eles ou contra outros que presenciaram, sendo esses espaços públicos. Para André, a homofobia se expressou na rua em forma de agressão física direta, o que nunca ocorreu com o companheiro. Considerando as discussões feitas por Rios (2007),

Fernandes (2011) e Miskolci (2012), poderíamos nos perguntar se esse fato estaria relacionado ao acaso, ou se, pelo contrário, a diferença entre os membros do casal em relação

aos

comportamentos

de

gênero,

mais

exploradas

nas

entrevistas

semiestruturadas, teriam sido um fator importante na forma como André foi violentamente agredido. Esteve em consonância nas duas entrevistas, a forma como o preconceito se apresenta na maioria das vezes (piadas, apelidos, comentários), embora no caso de André, um maior número de formas tenha sido apresentado: boicote de sua promoção no emprego, ausência de local para se relacionar com o namorado quando era adolescente, e tentativa de agressão física e agressão física propriamente dita. Marcos e André divergiram no que se refere a relatarem situações específicas ou sentimentos mais difusos de preconceito/discriminação, associados a locais ou pessoas específicas. Essa segunda forma de narrar vivências de preconceito, mais frequente no discurso de Marcos, nos remete a questão de esses eventos serem dolorosos para os indivíduos entrevistados, sendo difícil uma narrativa que os recupere em seus detalhes. Tal interrogação seria um interessante nicho de pesquisa. Outro ponto de divergência foi André apontar a família, e mais especificamente o pai, como contextos em que o preconceito e a discriminação foram vivenciados, sendo esses espaços mais privados na vida dos indivíduos. Esse fato é ainda mais interessante se pensarmos que a análise do Mapa da Rede Social, somado às entrevistas semidirigidas, nos levaram a crer que a família de André é mais suportiva do que a de Marcos no que se refere à homossexualidade e homoconjugalidade atualmente. André foi, inclusive, o membro deste casal que mais se referiu ao apoio de amigos e familiares após cada uma das situações vividas, desde a primeira delas, tendo solicitado ajuda quando precisou dela (da professora, da mãe, de amigos e amigas). Essa análise está em consonância com os achados de Rostosky et al. (2004), que indicam que a aceitação da homossexualidade por parte de membros da rede social é um processo que se transforma ao longo do tempo. Marcos, por sua vez, compartilhou as experiências vividas a partir da segunda situação (trabalho), quando já era adulto, e solicitou ajuda propriamente dita quando se tratou de preconceito violento contra outra pessoa, estando ele na posição de fornecedor de apoio nessa ocasião.

Interessante notarmos que na escola, quando ainda não eram assumidos, um dos membros solicitou apoio de sua professora (André), mas o outro não (Marcos). Isso pode estar relacionado à gravidade da situação vivida por cada um, mais marcante no caso de André, ao estilo das famílias na lida com a diferença do filho, e também aos padrões de vinculação e relacionamento que cada um desenvolveu ao longo de sua via, o que constitui apenas hipóteses. Fato que também merece ser mencionado é que a procura pela polícia não foi uma opção para André quando foi agredido na rua do bar que frequentava, mas foi em uma ocasião em que chamou os policiais pelo telefone, de maneira mais distanciada. Isso parece estar relacionado, como apontou o próprio participante, ao fato de o atendimento por parte desses profissionais ainda poder ser ameaçador aos homossexuais, uma vez que se trata de uma profissão marcada pelos padrões heteronormativos de conduta. No relato de André também é importante notar que em muitas das situações comentadas, a algum aspecto de si foi atribuída a discriminação: com os coleguinhas de primário foi o gênero (se era afeminado, teria ele pipi?), com o pai foi o fato de estar no segundo relacionamento (o que atestaria sua homossexualidade de uma vez por todas), com os agressores na rua do bar foi a camiseta do arco-íris [uma prova irrefutável de que era “viado” (sic.)]. Esses marcadores parecem constituir um alvo de discussão relevante a medida que esbarram na discussão dos mapas de segurança e mapas corporais abordados por Saggese (2009), e mais amplamente às estratégias assimilatórias de covering, discutidas pelo mesmo autor. André, por exemplo, retornou apreensivo e especialmente atento ao bar em uma data posterior. Imagina-se que seu comportamento “afeminado” (sic.) quando criança, e o próprio fato de estar em um relacionamento homoafetivo, poderiam ser aspectos que, com esses eventos, ganhassem contornos negativos em sua percepção de si e do mundo, constituindo áreas proibidas em seus mapas de segurança e mapas corporais, que deveriam ser hipervigiadas. A forma como Marcos falou de seus próprios recursos psicológicos para enfrentar o preconceito foi de uma postura mais tolerante, ao dizer que não dá atenção ao preconceito de diversas áreas de sua rede de relações, desde que não constituam agressão verbal ou física “mais pesada” (ainda que possamos refletir que agressões menores podem evoluir para agressões “mais pesadas”, em uma espécie de escalada da

homofobia). Também refletiu, com a ajuda do pesquisador, que a participação no movimento LGBT é uma forma de lidar com o preconceito, em consonância com as interpretações de Oswald (2002) e Rostosky et al. (2004). Apesar disso, a consciência a respeito da desigualdade de direitos pela qual passam os LGBTs é, para ele, fonte de sofrimento. André, por sua vez, justificou sua atitude em relação ao preconceito na maioria das situações a uma ausência de consciência sobre seus direitos, sempre dizendo que se soubesse destes, teria pedido auxílio da justiça. Nesse sentido, a consciência dos próprios direitos aparece no discurso dos entrevistados como um fator importante ao tratarmos do enfrentamento do preconceito contra homossexuais. Nenhum dos membros do casal marcou de maneira enfática uma transformação nas formas de lidar com o preconceito, e Marcos, pelo contrário, foi enfático em dizer que isso não muda. Essa observação não significa que uma transformação na lida com o preconceito não tenha ocorrido de fato em suas vidas, Marcos, por exemplo, disse que “endureceu” (sic.) para suportar lidar com o preconceito, o que mostra que as mudanças não necessariamente se dão no sentido de uma pró-atividade do sujeito no enfrentamento deste tipo de situação. Outro aspecto que pode ser apontado é o de que, considerando esta díade, apesar da ativa participação de Marcos no movimento LGBT e ênfase dada a este em seu discurso, foi André que mais frequentemente solicitou ajuda em situações adversas, permitindo-se mais “ousadias” do que o companheiro, tais como chamar a polícia, ainda que anonimamente. Marcos, por sua vez, parece ser mais desconfiado em relação a solicitações de auxílio por parte de pessoas de sua rede pessoal ou mesmo de sistemas maiores.

3.1.3 Análise das entrevistas de Marcos e André As entrevistas realizadas com os participantes permitiram, em níveis diferentes: a) conhecer a respeito do processo de construção da identidade de cada membro da díade (percepção e apropriação do desejo homossexual, coming out), b) se inteirar desse mesmo processo com eles em conjunto (processo de construção da conjugalidade), c) complementar de maneira mais aprofundada os dados obtidos com os instrumentos utilizados na primeira etapa do procedimento (relações com a rede e homofobia).

As categorias de análise utilizadas foram obtidas com a leitura repetida das entrevistas, e se organizam tomando como linha de raciocínio os pontos mencionados acima. Quando alguma relação pôde ser estabelecida com os dados obtidos com os instrumentos, analisados anteriormente, esta foi inserida na análise proposta. Uma integração propriamente dita entre as interpretações realizadas em cada um dos três momentos de análise, entretanto, será encontrada apenas na seção de Considerações Finais do presente relato de pesquisa.

Percepção do desejo homossexual, apropriação e coming out A comparação das entrevistas com os membros da primeira díade indicou que a percepção do desejo homossexual ocorreu de maneira distinta para cada um. Enquanto para Marcos tratou-se de algo que iniciou na adolescência, aos 14 ou 15 anos, para André foi um processo que teve seu início localizado da infância, desde os seis ou sete anos. A forma como notaram a diferença em relação aos demais também passou por registros distintos: Marcos referiu-se a sensações corporais e sentimentos afetivos em relação a outros como indicadores do desejo homossexual, e que seus comportamentos de gênero eram mais próximos àqueles considerados masculinos, enquanto que André, além dos afetos, chamou a atenção para comportamentos de gênero considerados femininos que apresentava quando criança e para as experiências que teve brincando com outros meninos. Ambos recordaram esse momento de seu desenvolvimento como um momento conturbado ou confuso, embora para André tenha existido alguma segurança pelo fato de ter muitos primos homossexuais e mais velhos do que ele na família. Tais proximidades e diferenças no processo de percepção da homossexualidade apontam na direção de que “ser diferente”, como nos provocam os teóricos Queer, é uma experiência geradora de sofrimento em uma sociedade que opera para criar, desde a infância, “normais” e “abjetos” (Miskolci, 2012). Os meios pelos quais tal diferença é caracterizada e denunciada, como ilustram os participantes da pesquisa, são mais diversos possíveis. Para Marcos, a apropriação desse desejo se deu praticamente em sequência à percepção, como um continuum. Para André, entretanto, entre a percepção e a apropriação do desejo homossexual, de maneira a assumir em sua identidade o fato de ser gay, existiu um processo que durou, aproximadamente, sete anos. Tal apropriação

deu-se, portanto, para André, durante a adolescência, com 14 ou 15 anos. Essa distinção na maneira como se deu a apropriação (ou auto-aceitação) do desejo homossexual para os membros do casal apontam na direção discutida por Rostosky et al. (2004), Frazão e Rosário (2008) e Saggese (2009) de que, ainda que existam “tarefas desenvolvimentais” características no processo de subjetivação de indivíduos homossexuais, relativas aos conflitos decorrentes de perceber-se como diferente do que é anunciado de maneira heteronormativa, estas não se dão da mesma maneira para todos eles. Em relação ao momento do coming out, como defendem Frazão e Rosário (2008), ambos viveram a experiência da revelação pública pouco tempo depois de terem se apropriado do desejo homossexual, embora de maneiras muito distintas. Em sua trajetória Marcos viveu o segredo da sexualidade como um fardo, e via no coming out uma forma de “ser quem é”. Iniciou esse processo com uma prima transexual (que na época ainda assumia identidade de gênero masculina), para então compartilhar progressivamente com a mãe, amigos e parentes. O participante disse não ter estabelecido critérios para decidir com quem compartilhar sua orientação sexual, não ao menos conscientemente. Com André, esse processo se deu de maneira menos espontânea, ao menos no âmbito familiar, uma vez que foi sua mãe que encontrou em suas coisas uma foto de um namorado de escola, de maneira acidental e não controlada, como discute Saggese (2009). Nesta situação, André não chegou a confirmar para a mãe sua orientação sexual, mas acredita que esse momento foi decisório para que começasse a “dar nomes” para as pessoas com quem saía. Sobre a reação das pessoas ao coming out, Marcos disse que sua mãe reagiu com preocupação e medo das outras pessoas, em uma atitude mais protetiva. Apesar de não ter se aprofundado na reação da mãe, André enfatizou que o pai assumiu uma postura de não aceitação no início do processo, o que se tornou um problema para ele, que, de maneira mais defensiva, passou a ficar mais tempo fora do que dentro de casa. Tais atitudes das famílias estão entre as possíveis reações que Frazão e Rosário (2008) denominaram “fatores de crise” após o coming out. Com os amigos, ambos contaram experiências interessantes do ponto de vista da superação do preconceito por estes. Marcos tinha comportamentos de gênero considerados hegemonicamente masculinos, jogava futebol, por exemplo. O momento de realizar o coming out com os amigos do futebol foi sofrido porque muitos se

afastaram ao saberem de sua orientação sexual. Mas existiram relações de amizade que se mantiveram, e isso foi creditado por Marcos aos modelos incomuns de família desses amigos, com pai e mãe que trabalhavam fora de casa, por exemplo. No caso de André, este já havia realizado o coming out de maneira bem sucedida com amigas, e a experiência complicada se deu com um garoto que descobriu sua orientação sexual e achou estranho, se afastando inicialmente de André. Nesse caso foram as próprias amigas do participante que proporcionaram reflexão ao garoto, que passou a ter uma amizade mais próxima com André depois dessa superação do preconceito gerado pelo coming out. As mudanças observadas na rede após o coming out, de aproximação ou afastamento, condizem com as discussões realizadas por Saggese (2009) de que falar de si pode também ser uma solicitação por reconhecimento e uma prova de compromisso e confiança, mas que isso depende da percepção particular do quanto cada relacionamento reproduz a narrativa heteronormativa.

A construção da conjugalidade Narrando a respeito da construção da conjugalidade, os participantes relataram mais detalhadamente a forma como se conheceram, como começaram o namoro e, por fim, como foram morar juntos. Em síntese, um primeiro movimento por parte de Marcos para que tivessem maior intimidade foi alugar uma casa, já que antes morava com amigos, o que limitava os momentos a dois do casal. Em seguida André se mudou para essa nova casa. Essa mudança parece ter se dado de maneira gradativa e espontânea quando consideramos o relato de Marcos. Em seu discurso fica evidente que percebeu a mudança do companheiro de maneira progressiva, com o companheiro esquecendo suas coisas quando ia para dormir. No discurso de André a história factual não foi diferente, embora passe a impressão de que tais esquecimentos não foram totalmente acidentais, e que a postura do pai naquele momento também tenha contribuído para que desejasse sair da casa da família de origem para morar com o companheiro. André destacou o apoio material de sua mãe nesse momento, de diferentes maneiras (dinheiro, condução, alimentação). Esse pode ter sido um elemento importante para que o casal pudesse viver uma nova etapa em sua construção como tal. Nenhum dos membros do casal falou espontaneamente sobre a construção de uma rotina por parte do casal depois de terem ido morar juntos, e das formas como cada membro

foi se adaptando aos rituais e costumes um do outro, trazidos como bagagem de suas famílias de origem. Esta passagem das entrevistas revela como, sendo um casal homossexual, Marcos e André tiveram que lidar com questões para além daquelas comumente vivenciadas por casais em geral, em consonância com os apontamentos de Defendi (2010). O coming out da díade não se revelou no discurso dos participantes como um momento isolado no tempo e declaradamente conversado e programado pelo casal. Apesar de terem dito que a apresentação do relacionamento para as famílias se deu de maneira “tranquila” e que já haviam tido relacionamentos anteriores, ficou evidente que não houve um momento específico em que isto se deu. André apontou em seu discurso que eles não se apresentavam como casal, e que, em sua família, Marcos era tido como um amigo seu. Essa percepção por parte da família foi questionada pela presença da díade, sempre juntos. Estes relatos indicam o quanto o coming out do casal, especialmente para as famílias, pode ser uma das tarefas mais difíceis a ser realizada pela díade homoafetiva assim como apontam Hancock (2000); Ritter e Terndrup (2002), Greenan e Tunnell (2003), os três trabalhos citados por Defendi (2010). Por outro lado, também podemos entender que se trata do processo de outing, assim nomeado no trabalho de Saggese (2009), referindo-se ao processo pelo qual um indivíduo homossexual vai “saindo do armário”, sem que uma revelação pontual e propriamente dita ocorra em algum momento. Podemos entender que o mesmo tenha ocorrido com esta díade. Notou-se, portanto, que o coming out desta conjugalidade não passou, ao menos naquele momento, por um registro mais verbal, restringindo-se ao registro da rotina e da convivência. O discurso de Marcos, por sua vez, centralizou-se nas estratégias que o casal adotou para preservar as famílias, e, referindo-se mais propriamente à sua família, para não colocar a mãe em situações constrangedoras. Marcos deu ênfase à necessidade de um casal homossexual construir confiança junto às famílias de origem, esperar o amadurecimento destas pessoas e comportar-se de acordo com o contexto. Essas indicações dadas pelo participante referem-se diretamente aos processos de defesas assimilatórias do mainstream, ou estratégias de covering como chamou Saggese (2009), adotadas pelo casal como maneira de preservar e proteger a díade em determinados contextos.

A respeito da contribuição de relacionamentos anteriores à construção desta conjugalidade específica, apenas Marcos fez alguma consideração. Ainda assim, sua fala foi no sentido de que a contribuição estaria relacionada ao amadurecimento pessoal e respeito do espaço do outro, não se referindo ao enfrentamento dos processos de preconceito e discriminação propriamente ditos.

Relações sociais: família e amigos As relações com a rede de familiares foram descritas por ambos como mais fluidas e próximas com a família de André. Marcos disse se sentir bem com a família do companheiro, ainda que tome cuidado com algumas coisas (referindo-se à demonstração de afetos diante dessas pessoas), que frequenta a casa de familiares de André sozinho (o que não ocorre entre André e os familiares de Marcos), recebem visitas desses familiares em casa, e que se dá bem com o pai do companheiro. André, por sua vez, deu exemplos que atestam a opinião do companheiro, como programas que o casal e a sua família realizam juntos, como viajar ou dormir na casa dos pais (ainda que em camas separadas) e complementou dizendo que todos de sua família gostam do companheiro, acreditando que “teve mais sorte” em relação à reação da família. Ajuda em um nível mais pragmático também foi citada por André, referindo-se à ocasião em que se mudaram para uma parte da casa dos pais do entrevistado e receberam ajuda no transporte de seus pertences para a mudança. Ao falar da família de Marcos, André deu uma informação que não apareceu no discurso do companheiro, mas que, segundo ele, justificaria a distância maior no relacionamento com esta. Segundo o entrevistado, Marcos saiu de casa aos 15 anos porque não era aceito pela família. Ao falarem da família de Marcos, ambos a caracterizaram de uma maneira menos positiva. Marcos falou que André não teve muito contato com sua mãe antes que esta falecesse, mas que o companheiro tem uma boa relação com suas irmãs. Os tios foram apontados como um “terreno minado”, o que parece também estar relacionado à religião neopentecostal a qual pertencem os mesmos. André, com a mesma linha de significado, disse que as visitas que realizam na família de Marcos são rápidas, e que já no início do relacionamento não podiam dormir na casa da família de origem de Marcos por conta de sua avó que era contrária ao relacionamento amoroso entre dois homens. Apesar disso, André citou uma prima transexual de Marcos como uma exceção a essa

caracterização, dizendo que dormiu na casa da mesma quando a mãe do companheiro estava hospitalizada. Percebe-se claramente que há uma distinção no modo como, depois de muitos anos de conjugalidade, as famílias de Marcos e André lidam de maneiras diferentes com a homossexualidade e homoconjugalidade, no sentido de aceitação ou rejeição destas. Alguns indícios disso são as estratégias de covering adotadas especialmente no contexto familiar, em consonância com a característica contexto-dependente a que se refere Saggese (2009) ao abordar o tema do covering, e a frequência e características dos contatos. Fato interessante é o de que a parte da família considerada “terreno minado” pelos participantes é protestante neopentecostal, corroborando aquilo que afirma Rios (2007) sobre visões religiosas de mundo como uma das fontes de sustentação da homofobia. Como veremos adiante, outras variáveis também foram apontadas pelos participantes para discriminar quem das famílias é potencialmente uma fonte de preconceito/discriminação. Com os amigos, Marcos disse que o casal tem muitos amigos comuns, uma vez que moram juntos e os amigos de um acabam por se tornar amigos do outro. Além disso, como casal, fazem novos amigos que já são incluídos na rede de amigos de ambos automaticamente. As atividades realizadas com essa rede de amigos foram caracterizadas por Marcos como sendo predominantemente relacionadas à militância LGBT, na casa do casal ou dos amigos. André não caracterizou de maneira propriamente dita a forma como se dão as relações com a rede de amigos, provavelmente pelo tom da entrevista nesse momento que se centrava na questão do preconceito. Sobre o fato de terem muitos amigos em comum, Marcos fez considerações a respeito de como isto influencia no sistema conjugal e em cada um dos membros, individualmente, no sentido de que a privacidade de cada um e a intimidade do casal por vezes são afetadas por esta parte da rede. Isso pode ocorrer no sentido de que questões de um dos membros do casal podem, por meio da rede de amigos, chegar a outro membro, sem que o primeiro saiba. Ou, por outro lado, questões do casal podem ser expostas na rede sem que os dois estejam de comum acordo. Esses aspectos envolvem o manejo do sistema conjugal, nos termos defendidos por Defendi (2010), baseado em David Greenan e Gil Tunnell (2003), no sentido do quanto permeável e flexível é o

sistema, a ponto de não se deixar afetar ou se deixar afetar completamente por estressores externos ao casal. Talvez isso se reflita na diferença entre Marcos e André quando o assunto é solicitar ajuda por parte da rede. André costuma compartilhar seus problemas (inclusive os conjugais) com a mãe, o que na avaliação do companheiro pode ajudar, mas também pode piorar a situação. Marcos, por sua vez, tenta resolver seus problemas sozinho, tendo citado apenas um amigo específico como alguém pertencente à rede e que é acionado em alguns momentos. Retomando a análise do Mapa da Rede de Marcos e André, podemos dizer que esta esteve em consonância com as considerações a respeito do relacionamento dos membros da díade e do casal como unidade com as relações proximais indicadas na entrevista. As famílias são distintas na forma como lidam com o casal, e o par também age distintamente com as famílias, sendo a de André mais suportiva. Essas diferenças levam o casal a adotarem estratégias de covering diante das famílias, nos termos descritos por Saggese (2009), autor que analisa a propriedade contexto-dependente dessas estratégias. Os amigos, por sua vez, são em grande parte os mesmos, muitas dessas amizades sendo construídas pelo casal em sua trajetória. A forma como esses sistemas da rede interferem no sistema conjugal se apresentou como relativamente modesta, com conselhos restritos à solicitação dos membros da rede. Marcos mais especificamente apresentou preocupação com a intimidade e privacidade no relacionamento, assumindo a importância de que o casal, como sistema, também possa se fechar para a rede.

Preconceito, estratégias de defesa e estratégias de enfrentamento No que se refere à posição dos amigos diante do preconceito, André enfatizou que no subsistema de amizades de sua rede social não vê preconceito, uma vez que a maioria dos amigos é homossexual (apontou como exceção os amigos do trabalho, onde procura informar as pessoas para que não sofra preconceito, mas prepara-se com a lei caso ocorra). Discorrendo sobre o preconceito posteriormente, Marcos atestou a opinião de André, dizendo que o círculo de amizades trata-se de um círculo de relações escolhidas, e que o critério para inclusão dos amigos heterossexuais na rede foi o de eles

serem “bem resolvidos” quanto às questões homossexuais. Aproximar-se de outros LGBT e de pessoas simpatizantes surge, portanto, como uma estratégia de construção de uma rede de apoio e de defesa contra a homofobia social, em conformidade com os achados da literatura (Oswald, 2002; Frazão e Rosário, 2008). Sobre as relações entre a família e o preconceito, cada um dos membros da díade falou da própria família. Marcos analisou que na sua família o preconceito é maior entre os familiares mais velhos (aceitam, mas fazem piadas), e menor entre aqueles mais jovens (mais sossegados), indicando que variáveis geracionais são ainda muito relevantes na análise do fenômeno da homofobia.

André, de maneira diferente,

enfatizou o processo pelo qual a família passou, destacando que mudaram muito em relação ao preconceito, mas que ainda existem dificuldades a superar, citando a compreensão do pai em relação às pessoas transexuais como exemplo. Essa preocupação com as questões do gênero, atreladas com a orientação sexual, já apareciam desde o coming out do entrevistado, quando a família temia que se vestisse como uma mulher. André também disse que o distanciamento é maior entre os mais velhos, especialmente entre os homens, que não participam de conversas sobre homossexualidade, diferentemente das tias, que falam sobre o assunto e o apoiam. Podemos notar que, para além da questão geracional apontada pelo seu companheiro, André também nomeou o gênero como um importante aspecto que permeia as relações entre sua família e a orientação sexual homoafetiva, de modo que podemos perceber, assim como anuncia Rios (2007) e Fernandes (2011), que o sexismo ou a “dominação da virilidade heterossexual” (como fala o segundo autor), é uma das raízes da homofobia, se não a principal delas. Em relação às negociações feitas pelo casal como estratégias para defender-se em relação ao preconceito vivenciado, as falas de Marcos e André se complementam: Marcos apontou comportamentos que evitam apresentar em frente das famílias (como beijar), justificando isto pelo fato de estas não estarem preparadas, e, ao mesmo tempo salientou outros locais mais privilegiados para demonstrações de afeto pelos LGBT como as boates e os guetos. Marcos acredita que no espaço social, nas ruas e no trem, para usar seu exemplo, as coisas estão mudando, mas acredita que com a família é necessário ter mais paciência, esperar o tempo do outro. André também falou de demonstrações de afeto que não fazem em público ou na família (como dar as mãos, acariciar um ao outro), embora tenha apontado o círculo de amigos como um espaço em

que isso ocorre mais, mas não totalmente, justificando isso pelo fato de não terem esse costume, nem mesmo na própria casa quando recebem visitas. A fala de André também deixou claro, com um exemplo no trem, que tais estratégias não são voluntariamente planejadas pelo casal, mas se tratam de combinados implícitos que surgem de acordo com a necessidade nas situações de perigo. Esses depoimentos dados por Marcos e André são muito ricos do ponto de vista da análise das maneiras pelas quais lidam com a homofobia em diferentes espaços da vida cotidiana: na família, nos espaços públicos em geral e nos guetos LGBT. Trata-se de entender, nos termos descritos por Saggese (2009), como as estratégias de covering implicam em calcular riscos a partir do nível de tolerância dos outros e, com isso, ir criando “mapas de segurança” como maneira de defender-se. Por muitas vezes, essas estratégias envolvem a manipulação do próprio comportamento e uma vigilância constante para tentar distinguir quais situações oferecem perigo e quais situações não oferecem. Apesar de se tratarem de estratégias de defesa baseadas na assimilação de regras heteronormativas, de maneira desejável aos olhos da visão dominante, essas formas de “tornar-se invisível” em determinados contextos também podem ser entendidas como meios intermediários entre a negociação e a expressão mais livre da homoafetividade (Saggese, 2009), o que parece estar expresso no discurso de Marcos e André ao falarem em “ter paciência”, o que indica que esperam, em maior ou menor medida, alguma transformação na forma como podem ou não demonstrar afetos em público, e especialmente na família. Apesar de ser um casal com um tempo considerável de relacionamento conjugal (nove anos), e essas estratégias fazerem parte da identidade do casal, parece haver, para ambos, certo incômodo com isso, o que aparece no discurso de Marcos mais relacionado à família, quando diz que é necessário que se dê um “foda-se” em um momento, e na fala de André aparece de maneira mais generalizada, com a consciência e questionamento da diferença entre eles e os casais heterossexuais no que se refere à possibilidade de demonstrar afetos. A mudança na forma como o casal age em cada contexto foi chamada por Marcos de “máscaras”, o que também pode revelar algum desconforto ao usarem tais estratégias. Esses relatos apontam o quanto, ainda que protejam o indivíduo e o casal de agressões e críticas homofóbicas, as estratégias de

covering, e mais intensamente aquelas que envolvem a manipulação do próprio comportamento de maneira a imitar as prescrições heteronormativas, resultam, para esses indivíduos, em uma sensação de desconforto subjetivo (Saggese, 2009), indicando que são estratégias que, do ponto de vista clínico, necessitam ser superadas em algum grau e substituídas por estratégias de enfrentamento da homofobia. Sobre tal enfrentamento, devemos atentar também para o fato de que o posicionamento de ambos os membros do casal é bastante distinto em relação ao preconceito em alguns aspectos. Durante a entrevista, Marcos engajou-se em demonstrar como não se deixa afetar pelo preconceito, “não dá ibope” (sic.), enquanto André marcou uma posição mais agressiva em relação a esses processos, “batendo de frente” (sic.), “mais defensivo e armado”. André especificamente atribuiu essa diferença à diferença nas famílias dos dois. Além dessa relação, podemos ver que na história de André, tal posição de enfrentamento foi apoiada desde o coming out, quando fez uma amizade com um homossexual na escola e viu que juntos eram mais fortes contra o preconceito e discriminação de outros alunos. Em outro aspecto, Marcos e André se posicionam de maneira semelhante diante da homofobia: ambos participam ativamente do movimento LGBT. Em relação a isso, André apontou espontaneamente tal participação como algo que contribuiu para as mudanças em sua família. Marcos não apresentou interpretações dessa natureza sobre o assunto. Esse trecho exemplifica como a aproximação com outras pessoas da comunidade LGBT, a politização, associação com grupos políticos e sociais diversos são maneiras mais positivas de lidar com o preconceito (do ponto de vista da desconstrução da homofobia por parte de homossexuais). Tais estratégias são amplamente encontradas na literatura dedicada à lida com a homofobia por homossexuais e suas famílias (Oswald, 2002; Frazão e Rosário, 2008). Considerando uma síntese dos episódios descritos na Linha do Tempo dos participantes, notamos que os episódios de preconceito ocorreram para os membros do casal no início de suas vidas, mas também muito tempo depois de realizado o coming out e construída uma conjugalidade, indicando a homofobia como uma questão com a qual têm de se defrontar continuamente, assim como discutem os adeptos da, ainda em constituição, teoria Queer (Sedgwick, 2007; Miskolci, 2012). Tais episódios aconteceram no espaço público, mas também no espaço privado, sendo o pai um dos

praticantes da homofobia na história de André (ainda que apareça como algo atualmente superado). As considerações a respeito dessa família na entrevista e no inquérito do mapa da rede social revelam, entretanto, que as práticas homofóbicas estão sujeitas a transformação, e que André enxerga seus familiares, atualmente, como importante fonte de apoio social, em consonância com as considerações de Murphy (1989), citado por Rostosky et al. (2004). As diferenças na forma como ambos se defendem e/ou enfrentam o preconceito e a discriminação ora foram apresentadas como consequência de seu posicionamento diante das questões, e ora foram relacionadas às experiências de apoio ou exclusão que vivenciam em seu dia-a-dia. Essa interpretação feita pelos participantes, e os demais aspectos discutidos na presente análise, indicam como o apoio de familiares e amigos, ou a ausência dele, podem impactar a forma como os indivíduos homossexuais se protegem ou enfrentam o preconceito, ainda que isso não se dê de maneira linear, e que esses indivíduos podem encontrar estratégias de enfrentamento a despeito da aceitação familiar, por exemplo. O apoio oriundo da rede social, no entanto, aparece como fundamental à constituição da díade e ao enfrentamento da homofobia, ainda que não seja necessariamente oriundo da família e dos amigos, ou apenas dessas pessoas.

3.2 Casal 2 – Pedro e Bruno Pedro, de 31 anos, com Mestrado em Psicologia, não religioso, é psicólogo, e Bruno, 27 anos, Doutorando, espírita, é químico. Estão juntos há 3 anos e 4 meses, e não moram sob o mesmo teto. Pedro mora em residência própria e Bruno mora com os tios. O casal, como se consideram, não possui contrato ou registro da união, mas pretendem. Esses dados de identificação encontram-se listados no material anexo de cada participante.

3.2.1 Mapa da Rede Social C) PEDRO

Figura 5. Mapa da Rede Social do participante Pedro.

FAMÍLIA

AMIGOS AMIGOS FACULDADE PÓS PAI

MÃE INFÂNCIA IRMÃOS SOGROS

PRIMOS TIOS

VIZINHOS TIOS NAMORADO ORIENTADORA

TERAPEUTA

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

AMIGOS DA PÓS AMIGOS DA VIDA

RELAÇÕES DE TRABALHO

Tabela 4. Dados de identificação do Mapa da Rede Social de Pedro. AMIGOS FAMÍLIA M, pai, 56  homossexual E, 34 A, mãe, 52 C, 45 J, irmão, 19 B, 30 A, irmã, 5 R, 32 E, sogra, 48 C, 33 V, sogro, 51 H, 30 R, tia-avó do namorado, 65 J, 26  homossexual M, tio-avô do namorado, 65 A, prima, 34 Amigos de faculdade D, prima, 30 T, 31  homossexual R, prima, 24 R, 40  homossexual J, primo, 22 E, 26  homossexual S, tia, 40 N, tia, 55 (vazio) (vazio) RELAÇÕES COMUNITÁRIAS RELAÇÕES DE TRABALHO V, orientadora, 60 (vazio) C, 43  homossexual B, 32 E, 45 L, terapeuta, 38 A, 31 M, 31 R, 33 (vazio) (vazio)

No que se refere às características estruturais da rede de Pedro, ainda que o participante tenha preferido agrupar as pessoas ao confeccionar o mapa, a tabela realizada a partir do inquérito indica que possui número considerável de pessoas quando comparada às redes já analisadas no presente trabalho, sendo provavelmente uma rede de tamanho médio. Em termos de sua densidade, embora não tenha sido explicitamente questionada, podemos inferir que os membros de cada quadrante estão conectados entre si independentemente de Pedro, mas isso não ocorre necessariamente com os sistemas de cada quadrante entre si, pelo menos não com grande intensidade. A composição ou distribuição da rede indica grande número de pessoas no círculo de maior proximidade, seguida do círculo de média proximidade. Não foram inseridas pessoas no círculo mais distante, o que, do ponto de vista da análise estrutural da rede, significa uma rede mais localizada, o que pode gerar menos opções e maior dependência de sistemas específicos. Apesar disso, se considerarmos o inquérito em que Pedro afirmou ser ele fonte importante de apoio para as pessoas de sua rede, se torna compreensível uma composição deste tipo. Em termos da dispersão, ou seja, do quão geograficamente distante estão as pessoas da rede, não foram mencionadas relações distantes, exceto os sogros que moram no interior de São Paulo, onde vive o entrevistado. A rede é heterogênea, se considerada como um todo, em nível de escolarização, idade, sexo,

origem do contato e orientação sexual dos membros. Como era de se esperar, em termos de idade a família é o sistema mais heterogêneo, enquanto amigos são mais heterogêneos em origem do contato. O grupo de relações de trabalho é o subsistema mais homogêneo na rede de Pedro, podendo ser, por esta razão, aquele que confere modelos mais consistentes do ponto de vista de como espera que se comporte. Em contraste com a análise dos membros homossexuais presentes na rede dos participantes anteriores, não se observou por parte de Pedro uma clara procura por relações com pessoas de mesma orientação sexual como critério para iniciar novos vínculos. Com exceção dos amigos de faculdade, predominantemente homossexuais, os demais homossexuais da rede parecem ter se tornado relações importantes para Pedro por outros motivos, ocasionalmente sendo da mesma orientação sexual como ele. Tratase de entender que, no caso de Pedro, a procura pelos pares não foi uma estratégia para a construção de uma rede mais suportiva, o que pode nos indicar que a forma como foi recebido pela rede que já possuía antes constituiu o apoio de que necessitava. Segundo o inquérito realizado, predominou como função da rede de Pedro a companhia social. Algumas pessoas específicas foram citadas como importantes fontes de guia cognitivo e de conselhos, e de apoio emocional. Pedro, por sua vez, avaliou que exerce as funções de apoio para os membros de sua rede com grande frequência, citando situações em que serve como companhia social, guia cognitivo e de conselhos, e apoio emocional. Não foram citados exemplos de ajuda com serviços e acesso a novos contatos. Do ponto de vista dos atributos dos vínculos, o pai foi aquele marcadamente mais versátil em número de funções que poderia ocupar, seguido da orientadora de mestrado, e dos tios do companheiro. As demais pessoas servem, em grande maioria, como companhia social, sendo vínculos pouco versáteis. Em temos de reciprocidade, como podemos concluir, Pedro apoia mais a rede do que o contrário, não havendo um equilíbrio horizontal (exceto nas relações com os tios do namorado e amigos da pósgraduação). Não se explorou muito a frequência dos contatos, sabendo-se apenas que Pedro vê os membros de sua rede periodicamente. Foram citados contatos com grande intensidade afetiva e outros superficiais (como os vizinhos), e também contatos antigos e duráveis (como amigos de infância) e outros mais recentes. Em termos gerais, parece

que Pedro sabe o que esperar de sua rede de apoio social, tendo certa previsibilidade em relação a esta. Como podemos analisar a partir do discurso deste e dos demais participantes desta pesquisa, o grau de previsibilidade que os sujeitos têm em relação ao apoio a ser oferecido pela rede de relações proximais parece ser uma característica importante a ser analisada, no sentido de que o fato de saber previamente, em certo grau, o que vai acontecer e como vai acontecer quando necessitar solicitar o apoio dos membros da rede é tão relevante quanto analisar a existência do apoio. A estabilidade das ações e reações da rede surge, portanto, como um aspecto a ser considerado. Os critérios de inclusão adotados por Pedro para inserir pessoas em sua rede não ficaram totalmente claros. O participante agrupou os membros (com exceção daqueles da família), falando deles separadamente no inquérito. O inquérito do mapa da rede social de Pedro nos permite dizer que, em termos gerais, Pedro se percebe muito mais como fonte de apoio para a sua rede, do que como alguém apoiado por esta, nos diversos sentidos em que o termo apoio apareceu em seu discurso. O pai, citado como alguém muito próximo e importante fonte de aconselhamento, com quem conversa sobre o trabalho, vida pessoal, relações e fonte de modelo em quem se espelha, foi uma exceção à essa regra. Os tios do companheiro, com quem Bruno mora, foram citados como relações “horizontais”, chamadas assim por Pedro por considerar que são relações em que as trocas são mais igualitárias. Com as demais pessoas da rede disse que é ele quem lhes dá suporte, citando exemplos disto na família. Pedro é o filho parental, existindo entre ele e os irmãos uma grande diferença de idade, e, além disso, a mãe dele é separada do pai dos irmãos (que não é seu pai). Nesse sentido, o participante é solicitado por esta parte da rede quando ocorrem problemas na família, inclusive na família extensa, sendo alguém cuja opinião é respeitada e considerada. Há também uma diferença no grau de escolarização de Pedro em relação a sua família, tendo sido o primeiro a graduar-se no Ensino Superior, o que, aponta ele, deve ser considerado como um dos fatores para o colocarem em tal posição. Essas peculiaridades, como veremos adiante, parecem ter impacto na maneira como sua rede de familiares lida com as questões relativas à orientação sexual e à homofobia.

Ao falar das amizades, Pedro disse que a posição de “ser aconselhador” também se estendeu para algumas dessas relações, especialmente as amizades de infância que manteve e com as quais viveu histórias parecidas e acompanhou desafios e conquistas. Com amigos da pós-graduação, as relações são percebidas como mais horizontais, nos termos que descreveu para os tios de Bruno, sem “gaps”. Já quanto aos vizinhos, inseridos no quadrante de amizades do mapa, essas relações se limitam ao convívio e lazer sem grande intimidade, ainda que mantenham contato constantemente. As relações de trabalho e comunitárias foram descritas como envolvendo limites que as tornam menos afetivas. No trabalho, “sair para tomar uma cerveja no final do ano” (sic.) foi um exemplo dado de quebra de protocolo, ou seja, não ocorre com frequência. Nas relações comunitárias, o terapeuta também foi inserido no círculo mediano de proximidade porque Pedro considera que a relação que mantêm juntos, embora íntima, envolve uma obrigação técnica. Já a orientadora da pós-graduação foi apontada como uma pessoa com quem compartilha experiências de vida, talvez indicando uma fonte de apoio para Pedro, embora sua função não esteja clara. O inquérito com Pedro também forneceu pistas sobre as relações entre a rede do entrevistado e as questões relativas à sua orientação sexual, bem como à heteronormatividade que regula as relações sociais como um todo. Pedro defende que sua rede lida bem com a homossexualidade, dizendo que não teve “dificuldades maiores” (sic.), quando se compara a outros membros da comunidade LGBT. Apesar disso, citou a faculdade de Administração como um dos contextos em que viveu experiências mais difíceis no início de seu enfrentamento, o que envolveu realizar o coming out para amigos de graduação. Essa revelação, ao invés de afastar, aproximou esses amigos, fazendo-os respeitar mais Pedro, assim como descreve Nunan (2003), citada por Saggese (2009) ao falar dos efeitos do coming out nas relações. Abordando as famílias dele e do namorado, na perspectiva do participante, sua família o aceita, mas não sabe diferenciar se isto está relacionado a uma atitude de aceitação com a homossexualidade em geral (e não discriminaria ninguém) ou se está relacionado ao respeito que familiares têm por ele, o que se sobreporia à dificuldade de aceitar, o que indica que não se pode descolar a atitude das pessoas que compõem as relações do homossexual diante da homossexualidade, da atitude dessas pessoas para com o indivíduo concreto do qual estamos falando. O recebimento de convites para

festas e jantares de família, e os convites que faz para a família, tudo isso na companhia do companheiro, foram citados como exemplos dessa aceitação. Os pais de Bruno foram caracterizados, por sua vez, como tendo mais dificuldades para aceitar o filho. Pedro relacionou isso ao fato de Bruno ser filho único, e deste ter sido o primeiro relacionamento amoroso apresentado pelo mesmo em casa, depois de ter realizado o coming out aos pais, o que poderia denotar os sentimentos de luto pelos quais passam os pais de homossexuais (apontados por Cianciotto & Cahill, 2003; Ford & Priest, 2004; Herdt & Koff, 2002; Saltzburg, 2004; citados por Frazão e Rosário, 2008). Tais dificuldades não foram empecilho para a relação conjugal, ainda que “questões a serem assentadas” (sic.) tenham exigido conversas entre ele e os sogros. Pedro falou desse processo distinguindo três etapas: a descoberta da homossexualidade do filho, a descoberta da homoconjugalidade do filho e a descoberta do desejo desse casal homoafetivo construir uma família adotando uma criança. Esse processo concreto pelo qual passaram os pais de Bruno e o casal participante é descrito na teoria sob diversas perspectivas, sendo o caráter de constante negociação e reflexão muito comum nos estudos da área (Rostosky et al., 2004; Sedwick, 2007). Também podemos dizer que as etapas comentadas por Pedro se relacionam com a hipótese principal deste trabalho, que a cada passo em direção à vivência mais completa da sexualidade não dominante, novos desafios se erguem ao redor dos indivíduos homossexuais. É importante ressaltar que Pedro trabalha profissionalmente com questões ligadas ao relacionamento das famílias com seus filhos homossexuais, o que não pode ser desconsiderado na análise dos dados fornecidos por esse participante. Uma análise mais global dos dados obtidos com o instrumento do mapa da rede de apoio social de Sluzki e o inquérito posterior nos leva a crer que o fato de Pedro ser o filho parental teve grande impacto na forma como lida, até hoje, com as pessoas de sua rede, colocando-se muito mais em posição de apoiá-las do que o contrário. Tal maneira de agir poderia até limitar o apoio recebido por Pedro, mas em seu discurso aparece muito mais como uma habilidade que o ajudou, tanto com sua família e rede de apoio social como um todo, quanto com os pais do companheiro, revelando que o grau de dependência por parte da rede em relação ao apoio do indivíduo também pode ser importante nesta análise, tanto quanto o grau de dependência por parte do indivíduo em relação ao apoio de sua rede.

Ficou mais do que evidente que a presença do pai constitui uma importante fonte de apoio, o que complementa os dados coletados nas fases seguintes do procedimento. De modo geral, Pedro não encontrou dificuldades no meio familiar e entre os amigos, sendo o contexto universitário mais desafiador. Os dados obtidos com a linha do tempo e com a entrevista semiestruturada poderão compor de maneira mais profunda essa análise.

D) BRUNO Figura 6. Mapa da Rede Social do participante Bruno.

FAMÍLIA

AMIGOS

M Z F D

U

R M

M

L

G C

E D

W

M

F P¹

D

M N

D F

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

¹ Alterado considerando o sigilo dos participantes

M

RELAÇÕES DE TRABALHO

Tabela 5. Dados de identificação do Mapa da Rede Social de Bruno. AMIGOS D, 27* M, 31* G, 31  homossexual M, 28  homossexual D, 29  homossexual C, 27,  homossexual F, 27  homossexual (vazio) RELAÇÕES COMUNITÁRIAS (vazio) (vazio) (vazio) ¹ Alterado considerando o sigilo dos participantes

FAMÍLIA P¹, namorado, 31 E, mãe, 50 W, pai, 54 R, tia, 61 M, tio, 62 L, tia, 60 F, primo, 38  homossexual M, tio, 70 Z, tia, 65 U, prima, 35 RELAÇÕES DE TRABALHO M, 31 D, 27 D, 55 N, 27 F, 27  homossexual M, 65

* Pessoas inseridas em mais de um quadrante

Do ponto de vista das características estruturais, a rede de Bruno possui tamanho médio, quando comparada a dos demais participantes. É uma rede mais densa nos quadrantes específicos, mas estes não têm acesso amplo às outras partes da rede. Há claramente mais pessoas significativas na família, seguida dos amigos e depois do trabalho. Não foram inseridas relações comunitárias. Essa distribuição pode significar menos opções de apoio. Com exceção do trabalho, os outros quadrantes possuem tanto pessoas geograficamente próximas quanto pessoas distantes a quem Bruno tem acesso mais restrito. Considerando que muitos amigos foram feitos no ambiente acadêmico, e que o trabalho de Bruno é nesse ambiente, a rede é bastante homogênea, sendo a família o subsistema no qual existe maior diversidade, ainda que não possamos especificar em que grau isso ocorre. Um adendo bastante relevante a esse respeito é o de que os casais participantes desta pesquisa apresentam algumas características comuns, mas estão envolvidos com atividades diferentes e têm origens familiares bastante distintas, especialmente Bruno, no sentido de que está inserido em uma família com nível de formação educacional mais elevado do que as famílias dos demais participantes. Assim como ocorreu com os participantes do primeiro casal entrevistado (mas aparentemente não ocorreu com Pedro, seu companheiro), Bruno buscou interagir principalmente com pessoas de mesma orientação sexual, tendo relações sociais com

pessoas heterossexuais predominantemente nos subsistemas em que as relações não são escolhidas por ele (família e trabalho). Esta associação com membros da comunidade LGBT (ainda que não ao movimento político LGBT, à militância) parece constituir uma estratégia para lidar com o preconceito, nos termos descritos por Oswald (2002) e Frazão e Rosário (2008). Entre as funções de apoio citadas pelo participante esteve companhia social e guia cognitivo e de conselhos. Não foram feitas referências à ajuda com serviços e acesso a novos contatos. De maneira menos explícita, o participante falou de situações em que pais e tios defenderam os homossexuais em conversas públicas. Essa poderia ser uma função de apoio emocional, ainda que não na forma de conversas, mas de uma atitude de proximidade [“estar por perto” (sic.)]. A relação com F, primo, que também é homossexual, também apareceu como importante fonte de apoio afetivo, no sentido de poder fala sobre diversos assuntos livremente. Os atributos dos vínculos podem ser caracterizados da seguinte forma: grande parte das pessoas citadas como significativas por Bruno podem exercer diversas funções de apoio, mostrando-se relações versáteis. Apesar disso, Bruno não falou de si como fonte de apoio para essas pessoas, o que pode significar que não sejam relações necessariamente recíprocas. Os contatos foram caracterizados como frequentes para a maioria dos membros da rede (principalmente trabalho), mas com parte da família e amigos o contato é esporádico ou via internet, dada a distância geográfica. Os contatos comentados por Bruno são duradouros, sendo que as amizades, por exemplo, têm todas no mínimo cinco anos. Bruno mostrou-se acanhado nesta primeira etapa do procedimento, não dando muitos indícios da intensidade dessas relações, e do quanto são previsíveis para ele em termos do apoio a ser recebido, aspecto que precisaria ser melhor explorado com o participante. A partir do inquérito do mapa da rede social com Bruno obtivemos maiores informações a respeito de seu relacionamento com as pessoas citadas no preenchimento do instrumento. O participante mostrou-se mais reservado no início do inquérito, dando respostas curtas ao comentar sobre as pessoas de sua rede, justificando tê-las colocado no mapa “por afinidade” (sic.). M. (amiga e relação de trabalho no primeiro círculo do centro para fora), D (orientadora), P (namorado), E (mãe) e G (amigo) foram citados como

aquelas pessoas a quem Bruno recorre quando necessita de apoio, discutir opiniões diferentes. Os pais foram citados como fonte de apoio financeiro e de conselhos. Bruno também acrescentou outras pessoas no mapa posteriormente, que não tinham grande frequência de contato, mas que eram muito queridas. Destacou F. (primo que é homossexual) como uma relação muito aberta, com quem consegue falar muitas coisas e cuja aproximação ocorreu há cinco anos. Meios de comunicação diversos não fazem parte da manutenção desses contatos inseridos posteriormente, limitando-se a encontros face a face esporadicamente. Interessante indicar que Bruno se preocupou em relacionar “apoio” ao tema central da pesquisa, apresentado anteriormente, no início do procedimento. Falou, portanto, do apoio, também como “aceitação da homossexualidade”, trazendo informações mais específicas do que os demais entrevistados, e muito interessantes do ponto de vista da presente análise. Esta reflexão por parte do entrevistado indica como a aceitação da orientação sexual pode ser uma questão predominante na vida de indivíduos homossexuais, e o quanto apoio, para estes, pode implicar tal aceitação. Em primeiro lugar, falou das relações de trabalho. Nesse subsistema de sua rede social, existem relações horizontais, com as quais realizou o coming out, pessoas escolhidas a partir do critério de proximidade. Com essas pessoas, o coming out teve efeito de maior aproximação e intimidade (Nunan, 2003, citada por Saggese, 2009). Também há relações verticais (professores, chefes de laboratório) para as quais não contou sobre sua orientação sexual, por não sentir tal necessidade. Destacou D. (primeiro círculo do centro para fora) e M. (terceiro) como pessoas que não sabem. Também falou, embora com menores detalhes, dos amigos (relações de no mínimo cinco anos) e família como subsistemas em que ocorre maior aceitação da sua orientação sexual, e apontou a existência de primos homossexuais em sua família. Além de explorar os critérios de passing (Saggese, 2009) pelos quais foi gerenciando (Oswald, 2002) sua orientação sexual no trabalho, Bruno nos permite observar, mais claramente que os demais entrevistados, como o coming out é uma dinâmica constante para os homossexuais, e não um fato isolado em algum ponto específico de sua trajetória pessoal. Assim como aponta Sedgwick (2007), trata-se de constante estabelecimento de fronteiras e exposições no espaço social a partir do cálculo dos riscos implicados em cada situação.

Bruno comparou espontaneamente os três quadrantes preenchidos (amizades, família e relações de trabalho), fazendo, de maneira resumida, a seguinte análise: amigos são aqueles com os quais se sente mais apoiado (no sentido da aceitação da homossexualidade, citado anteriormente), o que pode explica porque eles são sua família escolhida. Em seguida, na família demorou maior tempo para sentir-se à vontade, considerando que atualmente é equivalente ou mais apoiadora quando comparada aos amigos. As relações de trabalho são observadas pelo participante como mais difíceis, havendo, como chamou ele, um “microcírculo” de amigos do trabalho que o aceitam como é e com quem passa grande parte do tempo, e um “macrocírculo” em relação ao qual sente medo de sofrer preconceito caso revele sua orientação sexual, especialmente porque são as pessoas que o avaliam (não se trata, como salientou ele, de ter ou não apoio, mas de sofrer preconceito diretamente após a revelação). Apesar de considerar seu ambiente de trabalho (acadêmico) como mais tolerante, foi nele que encontrou maiores entraves, que soluciona fazendo uma separação entre vida profissional e pessoal, até o ponto em que uma não interfira na outra. As considerações de Bruno sobre as áreas de sua rede indicam, para além das características individuais desta, como relações vão sendo criadas pelos indivíduos homossexuais de maneira a encontrar suporte social contra a discriminação (Oswald, 2002; Lomando e Wagner, 2008), neste caso, especialmente enquanto outros subsistemas da rede, como a família de origem, não aceitava minimamente a homossexualidade. Por outro lado, além da estratégia do agrupamento com os semelhantes, que parece muito saudável do ponto de vista da inclusão do indivíduo em um meio social, Bruno também se refere a uma cisão entre estas áreas da vida (como discute Saggese, 2009), o que, em certa medida, pode ser problemático tanto para homossexuais quanto para não homossexuais que necessitem fazê-la de maneira radical por algum motivo. Ao tentarmos ampliar o inquérito e recuperar o sentido mais amplo de “apoio” no instrumento do mapa da rede, notamos que Bruno não faria uma divisão entre “apoio geral” e “apoio em relação à sexualidade”, no sentido de que se trata de aceitarem-no como é, havendo, para ele, uma relação direta de “se apoia a sexualidade, apoia o resto” (sic.). Tal consideração feita pelo participante talvez seja uma boa medida do quanto esta é uma questão central na vida dos indivíduos homossexuais, e do quanto realmente

encontram dificuldades específicas em seu desenvolvimento, conforme alguns teóricos afirmam (Hancock, 2000; Ritter e Terndrup, 2002). Uma análise mais geral da narrativa de Bruno a respeito de sua rede de relações e do apoio recebido desta, nos leva a compreender que tanto o entrevistado quanto as pessoas ao se redor passaram por transformações em decorrência da orientação sexual deste indivíduo. Diferentemente do companheiro, para Bruno a orientação sexual das pessoas é um marcador importante para se relacionar com estas, significando uma diminuição na probabilidade de que venha a sofrer preconceito/discriminação por parte dessas relações (Oswald, 2002). Isso está bastante evidente na análise que fez das regiões da rede, estabelecendo os amigos “família escolhida” como necessariamente apoiadores, e a família de origem e relações de trabalho como relações não escolhidas, e, portanto, que precisam de negociações e investimentos de ambas as partes para que se estabeleça uma convivência mais satisfatória do ponto de vista da aceitação da homossexualidade, o que, por vezes, não é possível ou interessante do ponto de vista da relação (como ocorre nas relações verticais do trabalho), o que indica que a aceitação por parte da rede varia com o tempo e sofre influências das ações dos indivíduos (Rostosky et al., 2004).

3.2.2 Linha do Tempo

C) PEDRO Figura 7. Linha do Tempo do participante Pedro.

+ intensos

0

4

8

16

22

30 31

Pedro, diferentemente dos entrevistados do primeiro casal, organizou sua linha do tempo a partir da idade em que ocorreram os episódios de preconceito/discriminação vividos ou presenciados. Apresentou um número rico de situações, sendo quatro delas vividas (e mais pontuadas) e as demais presenciadas, sobretudo em seu trabalho. As

anotações de Pedro em torno da linha foram mantidas por auxiliarem a compreensão da mesma. Desde seus 4 anos de idade, aproximadamente - Pedro disse que gostava de brincar com as meninas, e que por essa razão os garotos de sua rua o xingavam de “bicha” (sic.). Esse tipo de discriminação não foi uma situação pontual, mas que se iniciou com quatro anos e continuou em sua infância. Entre os 8 e 16 anos (época escolar) - Pedro localizou este período como o de discriminação mais intenso, com ameaças de agressão, sobretudo na escola, por parte de outros rapazes. Segundo ele, refugiava-se “sendo o melhor aluno”, o que, de certa forma, garantia apoio de professoras e da direção, uma vez que se tornou muito conhecido na escola e assim tinha suporte. Aos 22 anos - vivenciou episódios de preconceito na faculdade de Administração (relatado no inquérito do Mapa da Rede Social). Esse período foi aquele em que Pedro relatou ocorrerem processos de discriminação mais velados que aprendeu a identificar, não sendo explícitos como os anteriores. 30 anos - Semelhantemente sutil foi uma situação que viveu no Mestrado, aos 30 anos, quando, contando a um amigo que faria uma viagem ao Pará, esse amigo ofereceu a própria casa no Estado (de onde era natural) para Pedro “ficar com a namorada” (sic.). Ao esclarecer que era homossexual e tinha um namorado, Pedro identificou clara mudança no discurso do amigo, que passou a sugerir hotéis e pousadas no Estado. Adicionalmente, Pedro apontou o desprezo de muitos acadêmicos ao tipo de investigação que realiza (sobre temas LGBT) como uma maneira de discriminação velada pela orientação sexual. Sobre as considerações que faz de seus recursos psicológicos para lidar com essas situações, Pedro comentou que o “dar-se conta” da discriminação o acompanha desde a época de escola e o que mudou parece ser o refinamento com que isso se dá, notando cada vez mais facilmente o discurso heteronormativo em seu dia-a-dia. Também falou de lidar e defender-se, no sentido de que até os vinte e dois anos tinha o cuidado de não “deixar essas coisas me afetarem, me trazer prejuízos, não chegarem a mim” (sic.), e que depois disso passou a ter mais conhecimento de que “não tinha o direito de sofrer” (sic.), fazendo a busca por intermediação. Segundo o entrevistado, foi

após os vinte anos que ocorreu essa “apropriação do direito de não ser discriminado” (sic.). Nota-se no discurso de Pedro que as experiências de vida e a auto-aceitação ao longo de seu processo de desenvolvimento contribuíram para ele ficar mais sensível às sutilezas da heteronormatividade, como sistema de valores da cultura ocidental (Rios, 2007; Fernandes, 2011) e deixar de adotar estratégias que o escamoteassem enquanto homossexual (Saggese, 2009), passando a “buscar intermediações” (sic.), no sentido de encontrar meios de viver seu desejo com garantia de direitos. Apesar de não ter inserido na linha do tempo, Pedro relatou uma série de memórias em que não viveu o preconceito na própria pele, mas o testemunhou. Apesar de não ter comentado sobre seu posicionamento pessoal em todas essas situações de maneira mais direta, mantivemos esses relatos por serem exemplos de como a homofobia ainda é uma dura realidade para jovens LGBT, o que merece ser tema de investigações futuras. Esses relatos também são ricos no sentido de que muitos dos envolvidos nas agressões são pessoas que não se encontram na situação de vida dos casais entrevistados, que permite certa estabilidade em termos financeiros, relacionais, sociais, afetivos, etc. Esses outros segmentos da comunidade LGBT sofrem mais cruelmente as implicações de viverem em uma sociedade organizada de maneira heteronormativa (jovens, pessoas transexuais, homossexuais de camadas mais pobres da sociedade, nordestinos, etc.), por apresentarem outros marcadores sociológicos marginalizados, para além da orientação sexual não dominante, que devem participar desta complexa análise. A primeira delas foi em relação a um “rapaz afeminado” (sic.) da escola, que era, segundo o entrevistado, hostilizado e perseguido por todos. Isso se agravou quando o mesmo passou a travestir-se, momento a partir do qual a violência passou a ser não mais somente dos estudantes, mas da instituição como um todo. A essa violência institucional, disse Pedro, ela respondia como podia. Certa vez, por exemplo, um “cara loiro, branco, de olho azul, bateu nela, que revidou com uma surra no rapaz, que nunca mais apareceu na escola” (sic.). Para Pedro, aquele “rapaz afeminado” era “uma ilha cercada por violência” (sic.). Outras situações foram relativas ao mundo acadêmico. Primeiro com o colega da Administração que inventava ter namoradas (relatado no inquérito do Mapa da Rede Social inserido nos anexos do relatório), e depois, na faculdade de Psicologia, uma

“violência na formação” (sic.). Sobre essa segunda questão, Pedro afirmou que havia rapazes homofóbicos em sua turma. Quando temas relacionados à sexualidade eram debatidos, o preconceito dos mesmos “vinha à tona” (sic.), o que, em suas palavras, caracteriza a “Psicologia como reprodutora do senso comum” (sic.). Cita como exemplo situações frequentes em que os casos de supervisão de atendimentos envolviam crianças (meninos) que brincavam de boneca e a supervisão era no sentido de tirar a boneca porque isso influenciaria a identidade sexual da criança, o que, para ele era bastante violento. Este evento aponta para a necessidade premente de uma análise criteriosa por parte de psicólogos e educadores em Psicologia em geral, de como os conteúdos envolvidos no estudo da sexualidade humana, do gênero e da orientação sexual propriamente dita estão sendo inseridos nos currículos de formação do psicólogo, constituindo uma interessante linha de pesquisa para estudos futuros. A entrada de Pedro como psicólogo em um projeto voltado para a assistência ao público LGBT, sobretudo dos jovens LGBT, parece, pelo discurso do entrevistado, ter sido um marco em relação à sua experiência com o preconceito: a partir desse momento de vida foi mais confrontado com a violência [“vi a ‘cara feia’ mesmo, da violência” (sic.)]. Comentou brevemente quatro situações com as quais teve que lidar profissionalmente: A primeira era de uma menina que estava se descobrindo sexualmente (não sabia se era cissexual11 homossexual, ou transexual heterossexual), “brincando com as possibilidades de gênero” (sic.), e passou a ser chamada na escola de “aquela coisa” (sic.) por professores, direção, etc. Ela mudou de escola, mas não deu certo porque, apesar de um discurso de aceitação, não deixavam que usasse o banheiro dos meninos nem o dos professores, e os pais não queriam que usasse o banheiro das meninas. Segundo Pedro, “o cotidiano dela virou um inferno, ficou mudando de escola até que desistiu de estudar” (sic.). Acrescentou ainda que entre as escolas nas quais se 11

Cissexual ou cisgênero é uma categoria criada pelos LGBT para denominarem as pessoas em

que sexo biológico e identidade de gênero estão em conformidade, oposto ao que ocorre com as pessoas transexuais. Uma pessoa pode ser cissexual heterossexual ou homossexual, bem como transexual heterossexual ou homossexual, sendo gênero e orientação sexual duas categorias definidamente distintas.

matriculou estavam tanto escolas públicas quanto particulares. Outra situação referiu-se a um rapaz que, ao realizar seu coming out para a família, teve que lidar com uma reação muito violenta da mesma: “o pai saiu correndo atrás do namorado com um facão para matá-lo e a mãe ameaçou se jogar na rodovia”. Outra ainda foi a de um rapaz que levou uma surra com mangueira do chuveiro enquanto tomava banho. Nesse caso, o rapaz morava na região Nordeste do Brasil e refugiou-se em São Paulo, longe da família de origem. Pedro citou ainda que em muitos casos os pais tiram a comunicação do filho com o mundo, acreditando que dessa forma ocorrerá uma “cura” (sic.). A última situação relatada por Pedro foi que, enquanto fazia o Mestrado e estava bastante envolvido com notícias de ódio contra LGBTs, recebeu a ligação de uma amiga dizendo que um amigo de infância havia sido agredido a machadadas porque era gay.

D) BRUNO Figura 8. Linha do Tempo do participante Bruno.

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Assim como o companheiro, Bruno pontuou as situações de preconceito a partir da idade que tinha quando ocorreram. As seis situações descritas por Bruno foram exploradas em detalhes pelo participante, que teceu conclusões sobre elas posteriormente. Os símbolos inseridos por ele na linha auxiliam na compreensão de seu raciocínio, e por isso foram mantidos e explicados na descrição dos eventos. Entre oito e nove anos - Bruno vivenciou “bullying” (sic.) na escola, ouvindo piadas por parte de outras crianças. Isso durou até os onze anos de idade, e estava relacionado ao fato de ter mais afinidade e brincar com as meninas, o que parecia incompreensível para o entrevistado na época [“na minha cabeça era ao contrário, se estava com meninas é porque gostava das meninas” (sic.)], embora ainda não tivesse “noção de sexualidade”, provavelmente referindo-se às distinções heteronormativas e

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sexistas, mas acredita que os demais já tinham tais noções. Bruno disse que nesse período sofreu as primeiras ações e viveu os primeiros sentimentos de preconceito. Com onze anos - disse que havia uma menina que o chamava de “Bruno viado” (sic.) na escola, o que resultou em uma briga entre os dois. A mãe de Bruno foi chamada até a escola na ocasião. Considera uma das situações mais escrachadas de preconceito. Por volta dos doze e treze anos - os episódios de preconceito e/ou discriminação tornaram-se constantes na escola. Contou especificamente o episódio em que dois gêmeos falaram “algo de viado” (sic.). Aos quatorze anos - Bruno foi apelidado na escola com um apelido que parece o ter marcado muito (falou numa articulação vocal de difícil compreensão pelo entrevistador). Após repetir o apelido, o entrevistador entendeu que se tratava do apelido “banga rosa”, embora tenha se sentido envergonhado em confirmar com o entrevistado mais uma vez por ser um assunto que, pelo constrangimento demonstrado por ele, o emocionou de maneira mais proeminente. Nessa época, Bruno relatou que tinha o apoio dos “amigos do fundão”, de quem até esperava mais ações de preconceito, o que não ocorreu. Na faculdade – “era mais na minha” (sic.), mas escutava declarações preconceituosas a respeito de outras pessoas que ele sabia que eram homossexuais. Existe, portanto, uma mudança: passa a ser um observador do preconceito até então diretamente experimentado. Na rua – contou de uma vez que alguém xingou algo que não se lembra muito bem, mas que iniciava com “ah, esses viados...” (sic.), além de outra situação em que, recentemente, com o namorado, ouviu um cara “falando coisas como, ‘viado tem que acabar’” (sic.) perto do portão de sua casa. Apesar do teor de ódio dessas situações, Bruno deixou implícito que poderia ser pior, que nunca havia acontecido “nada tão...” (sic.), provavelmente querendo dizer que nunca passou por situações de violência física, por exemplo. Quando perguntado sobre as situações em que recebeu apoio ou não, Bruno não falou especificamente de cada situação, mas informou dados interessantes. Iniciou fazendo uma linha na parte inferior da linha do tempo, a partir dos dezoito anos, para marcar que antes dessa idade não recebeu apoio de ninguém nas situações (ou, pelo

menos, não percebeu esse apoio), uma vez que ninguém sabia a respeito de sua orientação sexual. Depois dos 18 anos, quando se “assumiu” (sic.) para alguém é que, para ele, inaugurou a possibilidade de ser apoiado em relação ao preconceito e discriminação pela orientação sexual: “se for pensar em apoio, tenho que pensar nessa linha aqui” (sic.), indicando a importância do coming out na trajetória dos indivíduos homossexuais, sobretudo na construção de redes de apoio mais efetivas. Citou a família como fonte de apoio, desde os dezenove anos, quando contou que é homossexual para os pais. Esse apoio, entretanto, não foi especificado em uma ocasião, uma vez que, segundo o entrevistado, os pais nunca ficaram sabendo de um ato pontual de discriminação contra ele, o que demandaria apoio mais direto. Mas acredita que, se isso acontecesse, os pais “encarariam” (sic.), uma vez que “não ficam quietos” (sic.) quando alguém faz piadas para eles, “compraram pra eles” (sic.), no sentindo de adotarem uma atitude de não tolerância com o preconceito (o que indica uma superação positiva do processo de coming in que se segue ao coming out de um filho homossexual descrito por Saggese, 2009). O mesmo relatou sobre os tios, dizendo que o mesmo vale para outras formas de preconceito como racial e por classe social. Em relação aos amigos, disse que os mesmos o apoiam certamente, com exceção de M. e D. (no primeiro círculo do centro para fora), que são heterossexuais, com quem tem um trabalho ativo de desconstrução e construção de novas formas de pensar, por exemplo, quando ouvem uma “piada idiota” (sic.). Apesar disso, diz que se sente querido por esses amigos, e percebe neles abertura para pensar sobre esses assuntos. Em geral, Bruno disse se sentir apoiado de todos os lados, de amigos próximos, familiares, exceto por colegas de trabalho com quem não tem e não dá uma abertura muito grande. Falando de sua própria reação ao preconceito, Bruno disse que atualmente, se ouve uma “piada forte”, retruca e pergunta por que a pessoa está dizendo aquilo, o que é muito diferente do que fazia na época em que não havia falado sobre sua orientação sexual com ninguém, quando ria junto com as pessoas que faziam declarações homofóbicas e depois se sentia mal. Avalia que essa era a forma que tinha para defender-se, “mascarar-se” (sic.). Em casa, por outro lado, conseguia “dar indiretas” (sic.), quando, por exemplo, passava algo sobre homossexuais na televisão, dizendo aos pais que talvez as pessoas não tivessem escolhido essa condição. Considera que mudou sua postura no sentido de que construiu a maneira como quer viver, o que ocorreu com a maturidade, mas ao mesmo tempo visto como algo em

formação, um constante “fazer escolhas” (sic.). Ao invés de “viver uma vida que não era minha” (sic.), o participante disse que se abriu para as relações, deixando “entrar quem quer e ficar de fora quem quer” (sic.), não se sentindo mais obrigado a “fazer cara de paisagem para o que não gosto” (sic.). Vê-se muito mais na posição de alguém que questiona, faz refletir, proporciona informações, e diz “não entendi a piada” (sic.) como atitude de enfrentamento. Os últimos parágrafos referem-se a atitudes de enfrentamento do preconceito por parte de Bruno, que substituíram antigas estratégias de defesa menos elaboradas. Tais estratégias envolvem o questionamento, a reflexão, um trabalho ativo de construir e desconstruir preconceitos em sua rede, diferentemente da atitude de conivência que apresentava quando seus recursos individuais ainda não permitiam que negociasse com sua rede de outras formas. Sobre esta maneira conivente de lidar com os padrões heteronormativos, o trabalho de Maciel Júnior (2006) apresenta em minúcias como estas chamadas “masculinidades cúmplices”, e outras “masculinidades”, engendram-se no desenvolvimento de homens em geral. As mudanças em si mesmo, observa, acompanharam mudanças em pessoas ao seu redor, primeiro porque aquelas que não o aceitavam não mais fizeram parte de suas relações, depois porque aquelas que continuaram com ele, como seus pais, também foram desconstruindo seus preconceitos. Citou M. e D., os amigos heterossexuais citados anteriormente, como exemplos de pessoas que mudaram ao longo do tempo, mudança que ele mesmo tem construído junto aos amigos: “depois que me abri pra eles, levei uma série de questões para pensarem, refletirem sobre a homossexualidade” (sic.). O inquérito da linha do tempo confeccionada pelos membros desse casal nos forneceram informações importantes sobre a relação do casal com o preconceito. Pedro indica que essas vivências iniciaram muito cedo em sua trajetória, inicialmente a partir das marcas do gênero, e que se intensificaram na época escolar (8 a 16 anos) na qual a principal estratégia de defesa apontada foi “ser o melhor aluno”. A idade de 22 anos foi apontada pelo participante como um ponto de mudança, no sentido de que uma consciência de seus direitos e um posicionamento diferenciado diante do preconceito se iniciou a partir dessa fase de sua vida. Na trajetória de Bruno, por sua vez, o preconceito é relembrado principalmente na época escolar, com detalhes bastante elaborados. Na própria linha confeccionada Bruno marca isso, circulando a idade de 14

anos como aquela em que um episódio bastante marcante ocorreu. De maneira semelhante ao companheiro, pontuou uma idade específica como marco de transformação em sua atitude em relação à homofobia, relacionando essa mudança claramente ao seu coming out, como um passo fundamental na abertura da possibilidade de receber apoio quando vivencia situações de preconceito/discriminação. Como podemos observar, ambos os participantes relataram situações em que o preconceito ocorria em espaços públicos da vida, e não no círculo mais íntimo de amigos e familiares, sendo que, por vezes, esses foram fonte de apoio. A mudança das estratégias para lidar com o preconceito também foi um conteúdo dos inquéritos: Pedro deixou progressivamente de tomar providências para que o preconceito não o atingisse, e passou a lutar pelos direitos de LGBTs de maneira mais direta, buscando por “intermediação” (sic.), no trabalho, com os pais do companheiro, e na formação acadêmico-científica. Bruno, de maneira mais radical, ao fazer o seu coming out, deixou de ser conivente com a homofobia (contrariamente ao seu desejo) para defender-se dela, e, em um processo de auto-aceitação, passou a se posicionar mais firmemente em relação ao preconceito/discriminação. As estratégias de defesa foram sendo substituídas por em estratégias de enfrentamento que envolvem o questionar e fazer refletir. Tais transformações nele próprio acompanharam transformações em sua rede, afastando quem não o aceitava e modificando as opiniões de quem aceitou passar por um processo de desconstrução da homofobia junto com ele.

3.2.3 Análise das entrevistas de Pedro e Bruno Como ocorreu com o primeiro casal entrevistado, as entrevistas com Pedro e Bruno complementaram os dados de pesquisa com informações a respeito da trajetória dos membros individualmente e da díade, bem como adicionando informações sobre as relações destes com as respectivas redes e sobre os atravessamentos da homofobia em seu cotidiano de maneira mais elaborada. Os critérios e procedimentos de análise foram idênticos àqueles utilizados com Marcos e André.

Percepção do desejo homossexual, apropriação e coming out As entrevistas com Pedro e Bruno mostraram que a percepção da própria homossexualidade ocorreu em momentos diferentes do ciclo vital para cada um deles. Pedro localizou tal percepção em sua infância (aos quatro anos aproximadamente), tendo esta como algo difuso, que não sabe explicar, uma “ideia de algo diferente”, e que era nomeado pelos outros a partir dos comportamentos de gênero que apresentava. Bruno, por outro lado, começou a dar-se conta desta diferença na adolescência, com 12 anos aproximadamente, a partir das primeiras experiências de exploração do próprio corpo, da masturbação, e das fantasias que acompanhavam a atividade de descoberta da sexualidade em um sentido mais amplo. As diferenças na idade e no tipo de experiências do desenvolvimento pelas quais se percebe a diferença em relação à heterossexualidade compulsória (também observada no outro casal entrevistado) atestam o que dizem alguns autores, que as experiências do processo de subjetivação não ocorrem da mesma maneira para todos os sujeitos (Rasmussen, 2004; Savin-Williams, 2001ª; 2005; D’Augelli, Patterson & Schneider, 2001; Diamond, 1998; 2000, citados por Frazão e Rosário 2008; e Weeks, 1987, citado por Saggese, 2009). Como podemos observar, para Pedro tal percepção se deu na infância, de maneira difusa, e em relação ao gênero. Com Bruno o processo ocorreu na pré-adolescência e início da adolescência, com a exploração da sexualidade propriamente dita. Já a apropriação desse desejo como parte integrante da identidade foi uma síntese possível, para ambos, entre 16 e 17 anos, em uma fase mais avançada da adolescência. Para Pedro isso se deu por conta da adolescência em si, como processo, e dos relacionamentos afetivos (um deles com uma menina e outro com um rapaz). Bruno descreveu tal apropriação como fruto da própria continuidade do desejo que sentia, percebendo que não era “passageiro”. Como é possível notar, a apropriação do desejo homossexual ocorreu exatamente na mesma época para esses participantes, e um pouco antes para os participantes do outro casal, o que talvez indique que o movimento de auto-aceitação, de nomear-se homossexual de maneira propriamente dita, exija do indivíduo que esteja em vias de se tornar um adulto jovem, com certas responsabilidades e garantias que isso possa significar. Apesar de essa ser apenas uma hipótese, podemos dizer que os dados

foram na direção do que defendem Cass (1979), Coleman (1982), Ritter e Tendrup (2002), citados por Frazão e Rosário (2008); e Plummer (apud Weeks, 1987), citado por Saggese (2009), de que existem regularidades no percurso dos homossexuais. Com as diferenças e semelhanças na percepção e apropriação do desejo homossexual para si mesmos, Pedro e Bruno também narraram diferentes trajetos no que se refere ao coming out. Enquanto Pedro iniciou seu coming out com amigos próximos devido a pressões desses para que nomeasse o relacionamento, segundo ele muito importante, que estava tendo com um rapaz, a quem se referia até então como “pessoa que eu fico”, Bruno iniciou com uma amiga íntima como maneira de dividir o segredo, escolhendo uma amiga que provavelmente aceitaria a sua homossexualidade. Pedro citou principalmente um casal heterossexual de amigos com quem fazia teatro como os primeiros que ficaram sabendo de sua orientação sexual. O entrevistado relatou que sentiu muito medo que sua relação com os mesmos, muito íntima na época, se modificasse depois disso. Também teve medo que as famílias dos dois limitassem o contato, colocando restrições para a relação de amizade. Esses medos não se confirmaram e Pedro teve, ao contrário, apoio por parte dessas pessoas. Tais medos não foram diretamente enfrentados por Bruno, que, tendo contado para a amiga citada, afastou-se das demais amizades que mantinha na época para não ter que revelar sua orientação sexual. O início do coming out, embora envolva começar a compartilhar a orientação sexual com amigos nos dois casos, é muito mais marcado por pressões externas no discurso de Pedro e por pressões internas no discurso de Bruno, no sentido de que o pedido para que “nomeasse” um relacionamento amoroso vinha por parte dos amigos no caso de Pedro. No caso de Bruno, tratava-se de dividir um fardo, e de decidir quais seriam os critérios de passing (Saggese, 2009). Em Pedro também podemos notar o temor de que a revelação modificasse negativamente as relações com os amigos, o que, além de não se confirmar, provou-se contrário (Nunan, 2003, citada por Saggese, 2009). No caso de Bruno, este preferiu não arriscar e se afastou dos amigos antigos, criando nova rede de relações de amizade, estratégia semelhante à de construir uma “família escolhida” em substituição à família de origem (Oswald, 2002), mas, nesse caso, tratando-se de “amigos escolhidos”.

De maneira muito semelhante, uma vez realizado o coming out com amigos, Pedro e Bruno compartilharam a homossexualidade com as famílias de origem. Para Pedro isso pareceu ter se dado de maneira menos planejada: semanas ou meses depois da revelação para os amigos, em uma ocasião em que mãe, tia e primos preparavam uma festa de aniversário para um primo, Pedro foi questionado sobre quando teria filhos (esse questionamento, segundo ele, ocorria com frequência por ser o mais velho dos homens de sua geração), e, em meio a uma série de perguntas sobre as razões pelas quais não teria filhos, respondeu à mãe (e demais presentes) que era homossexual. A reação da mãe de Pedro ao seu coming out foi positiva, dizendo “OK, nós te amamos”. Tal reação, na concepção do entrevistado, deve estar relacionada a uma atitude franca que sempre manteve com as pessoas, não alimentando as fantasias da família por exemplo (de que se casaria e teria filhos à maneira heterossexual). Apesar disso, assim como ocorreu com o casal de amigos, esperava uma atitude mais dramática da mãe, o que não se confirmou e foi frustrante, ele brincou, uma vez que com amigos que haviam realizado seu coming out na época as coisas tinham tido proporções maiores. Com Bruno o coming out para os pais foi mais planejado, no sentido de que os escolheu para revelar e aguardou uma oportunidade para isso. Em uma conversa com a mãe encontrou tal oportunidade e falou. A reação de seus pais foi de preocupação com ele (de que sofresse com o preconceito e de que ficasse sozinho no futuro). A forma como se deu o coming out nas famílias de origem e a reação destas indicam que no caso de Pedro existiu uma aceitação mais clara e imediata da orientação sexual, e que a postura do participante diante da rede de familiares pode ter contribuído para tal, enquanto que no caso de Bruno os sentimentos de luto em relação à idealização de um futuro heterossexual para o filho (Frazão e Rosário, 2008), comumente descritos na literatura sobre pais de homossexuais, surgiram de imediato, o que pode estar relacionado ao fato de ser filho único, mas também pode não se apoiar somente nesse aspecto, uma vez que, à época de seu coming out, Pedro também o era. Nota-se, também, por parte da família de Bruno, o movimento chamado na literatura de coming in (Saggese, 2009), em que, quando um membro do sistema “sai do armário”, os outros membros entram nele. A revelação para outras pessoas também surgiu no discurso de ambos os entrevistados. Pedro falou do coming out para o irmão, quando este completou 15 ou 16

anos (Pedro é bem mais velho que o irmão), e para o pai adotivo. Bruno falou do coming out para a família extensa que mora em São Paulo, e a família extensa que mora em sua cidade de origem. Desses relatos destaca-se, no caso de Pedro, o coming out para o pai adotivo, que também é homossexual. Essa “revelação da orientação sexual”, se é que assim podemos chamar, se deu de maneira espontânea, como ocorre com rapazes heterossexuais: um dia Pedro disse ao pai que estava gostando de um rapaz e conversaram sobre isso nos termos que conversariam se estivesse gostando de uma moça. Esse é um ótimo exemplo que nos permite questionar o tratamento estigmatizado que se dá geralmente às questões vividas no desenvolvimento dos indivíduos homossexuais, esquecendo-se de que a necessidade de perceber-se como diferente, aceitar-se como diferente, dizer publicamente que é diferente, etc., decorre apenas do fato de que ainda vivemos em uma sociedade organizada de maneira tal que a heterossexualidade seja a norma. Uma perspectiva que considera o aspecto histórico da homossexualidade (Lomando e Wagner, 2009) nos permite análise mais avançada. Ao falar de sua afetividade com o pai, Pedro vivenciou uma amostra do que seria a trajetória dos indivíduos homossexuais em uma sociedade que não incentivasse a divisão dos indivíduos em “normais” e “anormais” (Miskolci, 2012) para depois distribuir entre esses os benefícios sociais, políticos e econômicos (Rios, 2007). No caso de Bruno foi interessante que, enquanto ele se responsabilizou em contar que é homossexual para a família de São Paulo, seus pais é que assumiram o papel de realizar o coming out de Bruno entre os familiares do interior (indicando a “saída do armário” por parte destes, após o movimento inicial do coming in). Outro ponto interessante em termos da análise aqui realizada e que surgiu no discurso dos participantes foram as relações entre o coming out e a rede de relacionamentos proximais. Do ponto de vista de Pedro, a possibilidade do coming out como aconteceu foi uma consequência de sua atitude sincera com familiares e amigos, além de uma “seletividade inconsciente” (sic.) em relação às pessoas que incluía em sua rede. A utilização do critério de intimidade e proximidade afetiva para escolher a quem contar também apareceu como forma de promover um processo menos árduo, o que se afina com as discussões sobre o passing feitas por Saggese (2009). Com Bruno, por sua vez, o coming out significou mudanças importantes na rede de relações. No que se refere aos amigos, o fato de se afastar destes para não ter que contar que é homossexual

implicou na necessidade de construir uma nova rede de relacionamentos a partir dos namorados que teve e de contatos via Internet. Na família, opostamente, o coming out realizado (por ele e por seus pais posteriormente) aproximou-o de um tio do interior com quem não tinha tanta intimidade até então, no mesmo sentido que aponta Nunan (2003), citada por Saggese (2009). Esses são exemplos de como as relações com a rede podem auxiliar ou limitar o movimento do coming out, e, inversamente, como a “saída do armário” pode provocar mudanças na rede, no sentido de aproximar contatos, afastá-los, inserir novos contatos e excluir contatos pré-existentes.

A construção da conjugalidade No tangente à construção da conjugalidade, Pedro e Bruno foram bastante descritivos em seus relatos. Contaram com detalhes como se conheceram, pela Internet, os momentos de intensa afinidade que se seguiram e como o relacionamento se transformou em um namoro em aproximadamente doze dias. Essa narrativa pode nos fazer pensar, entre outras coisas, na dimensão do tempo nas conjugalidades não dominantes, como é o caso da homoconjugalidade, nos fazendo questionar se os critérios adotados para a constituição de um casal devem ser estabelecidos com base nos estudos com casais heterossexuais. Essa é uma pergunta de investigação para estudos futuros na área de homoconjugalidades. Outro ponto ao qual deve ser dada atenção é o de que este não é um casal que vive sob o mesmo teto. Nesse sentido, alguns dos aspectos descritos pela literatura sobre conjugalidade não foram vividos pelos participantes (ou ao menos não foram comentadas durante a entrevista), envolvendo as combinações e adaptações aos rituais e à convivência a dois, considerando a necessidade desse período de transição devido ao conjunto de hábitos adquiridos nas famílias de origem de cada membro do casal. Nesse sentido, é possível que o casal ainda não tenha se deparado com tal necessidade por não morar junto, ou, ainda que tenha vivido experiências dessa natureza, elas não constituem, nesse momento, a tarefa mais marcante na construção desta conjugalidade. Problematizando esse aspecto, podemos pensar também que o fato de não terem comentado ter vivido os desafios descritos pela literatura sobre conjugalidades diz

novamente sobre as implicações de analisar os relacionamentos homoconjugais sob a ótica da literatura sobre casamentos heterossexuais. O coming out da díade, passo importante na constituição da conjugalidade, ocorreu de maneira bastante distinta para as famílias de origem de cada um dos membros do casal. A família de Bruno foi preparada com antecedência por ele a fim de evitar constrangimentos em sua defesa de mestrado (na qual o coming out se deu de maneira propriamente dita). O entrevistado falou com os pais antes e na ocasião apresentou Pedro. Do ponto de vista do companheiro, tal preparação prévia ficou implícita, não tendo sido combinada pelo casal, o que significou no fato de a apresentação dele ser uma surpresa (acreditava que estaria anônimo na ocasião). Apesar disso, Pedro sentiu-se acolhido pela família de Bruno, e sentiu-se ocupando o lugar de namorado na ocasião, sendo inclusive convidado para um churrasco com toda a família após a defesa. Dias depois o casal saiu com os pais de Bruno e fizeram atividades juntos. Com a família de Pedro o coming out do casal se deu de maneira menos planejada, em um encontro casual. Pedro acredita que isso se deva a diferenças nas famílias, sendo a sua “menos regrada e organizada nesse sentido” (sic.); por isso a revelação foi algo mais “jogado” (sic.). De maneira interessante, apesar da clara presença positiva da família de Bruno durante a primeira apresentação do casal, Pedro considera que a sua família seja mais tranquila do que a do companheiro no que se refere à aceitação da homossexualidade e homoconjugalidade. Pedro acredita que há uma diferença entre a aceitação no nível interpessoal (de tratarem-no bem, por exemplo) e a aceitação da homossexualidade do filho, mais complicada. O entrevistado colocouse como alguém que auxiliou/auxilia os pais do companheiro nesse processo de aceitação. Esse dado vai na contramão da literatura, a qual diz que a aceitação da díade homossexual é mais complicada do que a aceitação do indivíduo homossexual, no sentido de que o casal homoafetivo questiona com mais força os valores heteronormativos nos quais está alicerçada a sociedade (Defendi, 2010). Por outro lado, temos a interpretação de Castañeda (2007), citada por Farias (2010), a qual aborda a questão nos seguintes termos: não é a homossexualidade que está sendo aceita, os casais são tolerados à medida que assimilam o modelo de relação afetivo-sexual vigente

heterossexual, monogâmico, estável e “bem-comportado”. Os teóricos Queer discutem esta questão de maneira semelhante, dizendo que a discrição confere aos homossexuais o disfarce ou a camuflagem da normalidade. Sobre a importância de experiências com relacionamentos anteriores para a construção desta conjugalidade, assim como na entrevista com o primeiro casal, apenas um membro deste segundo casal falou a respeito, sendo ele Bruno. O participante disse que os relacionamentos anteriores estão envolvidos em sua maturidade e auto-aceitação, percebendo progressiva abertura para a constituição de uma conjugalidade de fato a cada relacionamento que viveu. É como se as transformações em si acompanhassem os relacionamentos afetivos que teve, e que o auxiliaram na aceitação de si como é, em consonância com o que diz Rostosky et al. (2004) a respeito da participação dos relacionamentos amorosos na construção da identidade homossexual.

Relações sociais: família e amigos As relações com a rede, seja ela de familiares ou amigos, não foi o tema mais explorado pela díade durante a entrevista semiestruturada, o que contrasta com o outro casal de entrevistados. No que se refere às famílias, Pedro descreveu tais relações como positivas em ambos os lados, e deu exemplos concretos que o fazem pensar assim: a frequência do contato é satisfatória para ele, fazem viagens juntos, ambos têm contato com as crianças das duas famílias, se sente inserido no contexto e como alguém que “conta” na família (está, por exemplo, na lista de emails da família de Bruno), recebendo ligações e mantendo contato individual com alguns dos familiares do companheiro. Bruno, em consonância com o namorado, especificou pessoas da família de Pedro com quem se dá especialmente bem (mãe, pai e irmã do companheiro), mas também disse, assim como Pedro, que houve acolhimento ao casal de todas as partes. Um fato interessante contado por Bruno na entrevista foi o de que os seus tios (com quem mora) têm contato com o pai de Pedro, sendo partes da rede inicialmente individual de cada membro do casal e que foram permutados para a rede um do outro, formando-se uma nova teia de relação. Esse tipo de intersecção entre as redes de apoio social pode ser interessante do ponto de vista de fortalecer o apoio e legitimação do casal (ou se ocorrer entre pessoas contrárias à conjugalidade, pode ser potencialmente

danoso), o que indica um aspecto a ser analisado com maior ênfase nos estudos que trabalhem na perspectiva do apoio social aos arranjos conjugais homoafetivos. Com os amigos a narrativa do casal foi um pouco diferente. Pedro comentou que ele e Bruno têm amigos em comum, e que todos esses se tratam de amizades construídas depois e não antes do namoro. Apesar disso, a grande maioria dos amigos de cada um dos membros do casal inseridos no Mapa da Rede Social não faz parte do círculo de amigos do outro membro. Diante disso, alguns conflitos surgiram, justificados por Pedro como fruto das diferentes formações acadêmicas de seus amigos (área das ciências humanas) e dos amigos do companheiro (área das ciências exatas). Bruno concorda com a visão de Pedro, de que há dificuldades, justificando isso a partir da preocupação de que o companheiro sinta-se a vontade com seus amigos, o que o deixa, ele próprio, desconfortável. Ambos concordaram também com a observação de que a relação entre Bruno e os amigos de Pedro seja mais fácil do que a relação de Pedro com os amigos de Bruno, e que isso se deveria ao fato de Bruno ser mais presente (nas palavras de Pedro) e Pedro menos sociável (nas palavras de Bruno). Por exemplo, nas atividades que fazem juntos, como jantares, é mais frequente que o casal convide os amigos de Pedro do que os de Bruno. O contato individual dos membros com os amigos do companheiro é mais limitado. Constitui uma hipótese cabível para a existência dessas dificuldades, que estas podem estar relacionadas com a própria questão da heteronormatividade. Tal inferência se sustentaria no fato de que a formação de Pedro, além de ser em Ciências Humanas/Sociais, envolveu diretamente a questão da orientação sexual, tendo, portanto, constituído amizades nesse meio que simpatizam com ou estudam esse tema (além de serem, por vezes, amigos homossexuais). Os amigos de Bruno, por sua vez, além de serem químicos e não terem uma formação dirigida para esses temas, nem sempre se tratam de pessoas homossexuais, pelo menos não que ele tenha conhecimento. Sendo assim, não seria descabido pensar que o “desconforto” sentido por Bruno quando ele e Pedro se encontram com os seus amigos, envolva, além de dificuldades relacionais comuns, também a diferença de que estão, nesses momentos, apresentando-se como casal a pessoas que talvez ainda não lidem bem com isso (ou porque não sabem como lidar, ou porque não sentem Bruno preparado para tal confronto). Tal hipótese carece, obviamente, de informações mais diretas dadas pelos participantes, mas não é

descabida, uma vez que o mesmo “desconforto” não foi relatado pelo participante quando encontra os mesmos amigos sozinho. Essas considerações feitas por Pedro e Bruno na entrevista complementam as informações obtidas com o mapa da rede social, no sentido de que exemplificam como as famílias e outras pessoas da rede participam do dia-a-dia do casal, legitimando a conjugalidade (necessidade apontada por Defendi, 2010), ao convidarem os dois para ocasiões como casal, por exemplo. As diferenças entre as famílias pareceram mais atenuadas na entrevista do que no encontro de aplicação do instrumento. Em relação às amizades, cada um falou destas individualmente durante o inquérito do mapa, sendo a entrevista uma oportunidade para integrar essas relações e colocá-las na perspectiva do casal. A análise de todos esses pontos nos leva a dizer que, em contraste com o primeiro casal, Pedro e Bruno têm como fontes de apoio muito mais sólidas as relações familiares do que as de amizade, sendo que não possuem muitos amigos significativos em comum. No caso de Marcos e André, é o quadrante de amigos (misturados às relações comunitárias) a principal âncora do casal, seguido da família de André. Essa diferença pode estar relacionada à diferença no tempo de relacionamento conjugal (nove e três anos, aproximadamente, para o primeiro e segundo casal, respectivamente). Também difere o fato de que o primeiro casal encontra na família de um deles (Marcos) uma potencial fonte de preconceito, enquanto que no segundo casal a família que poderia não aceitar o relacionamento passou por transformações importantes, parte das quais se relaciona com um esforço ativo por parte dos membros da díade.

Preconceito, estratégias de defesa e estratégias de enfrentamento Falando a respeito do preconceito, e de como a sua rede lida com ele, Pedro disse que em sua avaliação a rede não fornece apoio nesse sentido, mas que não atribui culpa ou responsabiliza as mesmas por isso, uma vez que considera que estão pouco preparadas para lidar com a homofobia, e que não percebem as sutilezas desses processos. Nesse sentido, está certo de que se sofresse um ataque mais drástico, receberia apoio de sua rede. Essas considerações por parte de Pedro nos permite refletir a respeito do que tem se denominado “apoio” nas pesquisas que investigam esta categoria, indicando que se

trata de um conceito subjetivamente definido por cada entrevistado, que não há somente um único entendimento do que seja “apoiar”. Também indica que um entendimento em termos rígidos “apoia ou não apoia” pode ser reducionista, sendo mais apropriado investigar em que momentos e aspectos esse apoio ocorre e não ocorre por parte de uma mesma pessoa, como varia no tempo e qual é o prognóstico que pode ser feito pelos entrevistados. Essas são apenas reflexões, mas nos induzem a pensar que uma definição mais clara desses termos e conceitos se faz urgente. Por outro lado, concluiu existir um apoio indireto. Ao receberem-no, tratarem ele e seu companheiro como casal, inserirem-nos no contexto, incluírem-nos em última instância, estão fortalecendo o sentimento de união no sistema conjugal, e isso os ajuda no combate à homofobia, especialmente a homofobia internalizada. Um exemplo disso foi os pais do companheiro substituírem a cama de solteiro de Bruno (que não mora mais com eles) por uma cama de casal, para quando os visitassem. Essa interpretação do participante a respeito da maneira como recebe apoio de sua rede, e de como esta afeta em sua convivência em casal e no enfrentamento da homofobia (inclusive a internalizada),

está

em

consonância

com

a

literatura

de

apoio

social

e

homoconjugalidades (Defendi, 2010; Saggese, 2009; Lomando e Wagner, 2008; 2011; Frazão e Rosário, 2008; Rostosky et al, 2004), a qual aponta na direção de que a aceitação ou rejeição da rede têm impactos na vida do casal, do ponto de vista que legitima ou cerceia a díade, promove modelos e apoio de enfrentamento ou os força a assimilar regras heteronormativas e fazer uma cisão drástica entre sua vida conjugal (e com outras pessoas LGBT) e sua vida com as famílias, por exemplo, gerando estabilidade conjugal ou sofrimento para esses indivíduos. Podemos interpretar tais ações inclusivas da família como uma fonte de integração das vivências dos membros do casal individualmente e da díade, diferentemente da cisão que poderia resultar de uma rede menos suportiva. Tal interpretação está baseada na observação de que, com uma rede que age de maneira mais positiva, o casal tem maior liberdade para agir como tal, da mesma maneira que faze em outros contextos, bem como para experimentar novas formas de apresentar-se como casal. As redes onde tais atitudes sejam mais raras ou inexistentes exigem que o casal aja de uma maneira distinta da que comumente faz, o que implica em uma cisão dessas vivências, enfraquecendo a percepção de continuidade e permanência no relacionamento, causando sensação de estranheza, incerteza e insegurança ao lidar com

as pessoas da rede. Pedro acrescentou ainda que sua participação na militância LGBT pode ser algo que predispõe a rede a perceber o preconceito, embora, para ele, tal relação não seja direta. Bruno, por sua vez, trouxe outros elementos interpretativos ao falar do preconceito. Um deles foi a marca da territorialidade como um fator importante em tal análise. O entrevistado apontou o lugar onde nasceu como um complicador no desenvolvimento da identidade sexual, principalmente em seu coming out, uma vez que nesse local o preconceito “era mais descarado” (sic.), diferentemente das grandes metrópoles. Isso foi relacionado por ele também com limitações na construção da rede de relacionamentos proximais, uma vez que em uma cidade pequena há menos grupos para se optar conviver. A mistura entre a vida profissional e pessoal no espaço interiorano é outro fator que apontou como integrante de sua interpretação, o que permite pensar o quanto um subsistema da rede de relações sociais pode acessar outro subsistema e, desta forma, trocar informações que podem tanto ajudar o indivíduo como prejudicá-lo (quando envolve indivíduos que são socialmente discriminados). Bruno também falou do posicionamento de pessoas de sua rede diante da homofobia, do posicionamento dele diante da homofobia, e do impacto que essas formas de se colocar tiveram e têm na construção e manutenção da rede. Citou como exemplo da posição da família um episódio em que a mãe ajudou uma conhecida de sua prima que estava em depressão porque a filha revelou ser lésbica. O pai, segundo ele, defende os homossexuais quando conversa com outras pessoas e essas apresentam conceitos negativos sobre estes. Essas podem ser vistas como maneiras de apoio direto por parte do casal parental no enfrentamento da homofobia. Com os amigos foram citadas situações em que esses são mais abertos ao tema da homossexualidade e outras em que não. Quando esses apresentam movimentos homofóbicos (nos diversos graus em que isto pode ocorrer), Bruno usa a conversa como maneira de desconstruir essa maneira de pensar. Citou o caso de um amigo homossexual da internet que é bastante homofóbico e discute sempre com ele aquilo que “não soa bem” (sic.). Para Bruno trata-se de levar as pessoas à reflexão, necessidade que percebeu em si mesmo, ao comparar o seu antes e seu depois em termos do quanto foi homofóbico no passado, especialmente em relação aos comportamentos de gênero “mais femininos” por parte dos homossexuais e das transexuais, principalmente.

Um fato interessante, por não ter sido algo comentado pela literatura da área, foi o de Bruno reconhecer a ajuda de seu companheiro Pedro na transformação de seus conceitos mais atrelados à lógica heteronormativa em uma visão mais positiva da homossexualidade. Com a participação de uma interrogativa por parte do entrevistador, Bruno concluiu que o papel exercido pelo companheiro com ele, agora é exercido por si mesmo com outras pessoas. Outra atitude de Bruno, essa no sentido de evitar ou defender-se da homofobia, ao menos em seu círculo de relações proximais, é uma seletividade ativa dos membros que a compõem, usando como critério o grau de abertura destas pessoas para a homossexualidade. Acrescentou ainda que, ainda que o outro não mude de ideia sobre o assunto quando propõe reflexão, é importante para ele que o ouçam, em sinal de respeito, o que é essencial para manter as relações. Bruno também retomou a estratégia de ter se afastado dos amigos da cidade de origem para não ter que realizar o coming out com estes, mas desta vez fazendo uma autocrítica à estratégia, no sentido de que se privou de relações. Isso pareceu diferente da seletividade para inserir membros na rede, pois essas pessoas já faziam parte da mesma, e foram excluídas. Uma reconstrução da rede iniciou-se a partir daí. A capacidade de promover reflexão nos membros da rede ainda não era um recurso de enfrentamento nesta época, o que indica que, conforme os recursos de defesa e enfrentamento do indivíduo se modificam a partir do seu desenvolvimento, também se modificam as possibilidades e limitações nas relações com a rede de relações sociais. No caso de Bruno, entretanto, a modificação destes recursos parece ter dependido, previamente, de uma modificação na rede, indicando que as influências entre rede e recursos de enfrentamento/defesa do preconceito ocorrem em sentidos de mão dupla, em consonância com o estudo de Defendi (2010). A análise desta categoria, obtida a partir das entrevistas, esteve em consonância com a análise da Linha do Tempo anteriormente abordada. No caso de Pedro, o preconceito aparece como algo com o qual lida bem atualmente, mas com o qual sempre lidou mais sozinho (no sentido de não contar com apoio direto de outras pessoas), até que a consciência dos direitos o colocou em uma posição mais ativa de quem pretende desconstruir os valores heteronormativos. No caso de Bruno, o preconceito é sempre colocado na perspectiva das relações, ou porque recebeu apoio destas após uma situação

específica, ou porque se coloca nessas relações como um agente do fazer refletir, espelhando-se no jeito de fazer do companheiro. Para ambos, o preconceito apareceu mais nas situações públicas da vida (como as de estudo e trabalho), não sendo relatado no espaço íntimo da família como no caso de Marcos e André. As estratégias de covering citadas pelo primeiro casal foram menos enfatizadas pelo casal, e há um movimento constante de quebrar progressivamente as barreiras que encontram. Interessante notar, entretanto, que, quando colocados como casal, Pedro e Bruno parecem encontrar dificuldades no relacionamento com os amigos, o que pode ou não estar relacionado ao fato de ser um casal homoafetivo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa teve o objetivo de avaliar os impactos da cultura heterossexista sobre as vidas dos indivíduos homossexuais, especialmente no contexto das homoconjugalidades e, na perspectiva dos participantes, a importância do apoio social de familiares e amigos nesse contexto. Com este propósito, foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com dois casais, além da aplicação do Mapa da Rede de Apoio Social de Sluzki e da Linha do Tempo como instrumentos de coleta de dados. Pretendeu-se com isso identificar as funções de apoio exercidas por familiares e amigos desses indivíduos, e como este apoio (ou a ausência dele) impacta o cotidiano desses casais, especialmente no que se refere ao enfrentamento do preconceito. A hipótese defendida foi a de que, apesar do discurso de maior aceitação da união/casamento entre pessoas do mesmo sexo, a expressão pública de afetos entre esses indivíduos favoreceria o preconceito e o repúdio por constituir uma ameaça aos valores heteronormativos da “verdadeira família”, ou pelo menos levariam a conflitos e resistências e não a uma rápida assimilação e legitimação. Essas dificuldades levantadas pela exposição das homoconjugalidades implicaria na necessidade de condições e estratégias de enfrentamento, o que, por sua vez, envolve a participação de familiares e amigos. A análise dos depoimentos obtidos foi realizada tomando-se como referencial teórico a concepção de desenvolvimento humano como envolvendo o papel ativo do indivíduo em seu desenvolvimento a partir das escolhas que faz ao longo da vida,

criando e transformando os contextos em que se desenvolve (Fonseca, 2007) e os achados da literatura específica sobre homossexuais, seu processo de subjetivação, casais homossexuais, homofobia e redes de relações proximais dos indivíduos homossexuais. Tal análise nos levou à uma caracterização do panorama geral vivido pelos casais entrevistados, em termos de como vivenciaram e vivenciam situações de homofobia em seus cotidianos, e de como se defendem e enfrentam esses processos de preconceito. Também consistiu um alvo da análise a forma como suas redes de relações sociais apoiam ou agravam os processos de preconceito, a partir de sua atitude diante da homossexualidade, da homoconjugalidade e da própria homofobia. No que se refere às vivências de preconceito/discriminação, podemos dizer que os depoimentos referiram-se tanto a situações mais pontuais quanto ao sentimento difuso de discriminação e a vivências antigas e atuais, sendo as antigas mais frequentes nos relatos dos participantes, o que indicou que o amadurecimento pessoal, a autoaceitação e construção de uma rede de apoio social mais sólida e suportiva podem ser fatores fundamentais no enfrentamento da homofobia. Por outro lado, podemos pensar que situações recentes podem ser geradoras de ansiedade, e, por esta razão, não teriam sido relatadas com tanta facilidade por parte dos entrevistados. Terceira hipótese para a diminuição de situações específicas e aumento de uma percepção de preconceito difuso pelos participantes é a de que, como relataram, ao longo do seu desenvolvimento os mesmos adquiriam certo refinamento na maneira como percebem a homofobia ocorrer, ficando atentos a sinais cada vez mais sutis desta, o que aumenta sua capacidade de defesa e enfrentamento. As três hipóteses não são excludentes. Os contextos da escola e do trabalho foram citados com frequência como espaços em que ocorreram as primeiras vivências de preconceito dos participantes, e as ruas ou outros espaços públicos como locais onde a homofobia se manifesta mais comumente. A família e outros contextos privados/íntimos foram menos apontados como fontes de preconceito na vida dos participantes12, ainda que alguns relatos explorem a vivência de homofobia dentro dos lares por parte de outros LGBTs. Por 12

Sobre esse dado, cabe ressaltar que as famílias dos participantes do presente estudo não podem ser

tomadas como representativas da maior parte das famílias, que, segundo a literatura da área, ainda constituem um dos principais focos de preconceito contra homossexuais.

outro lado, práticas familiares não suportivas foram encontradas nas histórias de três dos quatro participantes, com maior ênfase em dois deles. Tais práticas permanecem na vida de um dos participantes e se transformaram nas outras duas famílias, que, atualmente, são percebidas de maneira mais positiva. Entre as formas nas quais a homofobia se apresentou na vida dos entrevistados, agressões verbais como piadas, comentários e apelidos foram mais frequentes, ocorrendo com absolutamente todos os participantes. A agressão física direta foi citada por um dos participantes durante a vida adulta na forma de ataque por parte de grupo homofóbico em uma rua de sua cidade, e por outro participante foi vivenciada na adolescência como consequência de uma briga que se iniciou com agressões verbais homofóbicas por parte de uma colega de escola. A não aceitação familiar mais generalizada ou episódios como familiares (como o pai ou os tios) foram citados pelos participantes,

embora

com

menor

frequência,

como

eventos

de

preconceito/discriminação, o que aponta na direção de que a percepção da marginalização de maneira mais ampla tem sido incluída no que denominam por homofobia, superando a ideia amplamente difundida em nossa cultura de que homofobia trata-se de algo extremo e que não atinge a todos os homossexuais. A homofobia, ou a lógica heteronormativa para ser mais preciso, apareceu como experiência constituinte na subjetividade dos entrevistados, sendo percebida desde muito cedo em suas trajetórias e um desafio constante ao longo de suas vidas. O coming out como momento decisivo de enfrentamento desta lógica, para um dos participantes claramente inaugurou a possibilidade de receber apoio por parte de sua rede e iniciar um processo de construção de sua vida de maneira mais integrada e satisfatória para si. Os demais participantes não fizeram tal relação entre coming out e a possibilidade de ser aceito pelas suas redes de relacionamentos proximais, mas referiram-se a um momento de conscientização de seus direitos (mais ou menos especificado cronologicamente a depender do participante) que inaugurou uma postura de maior enfrentamento e luta por direitos por parte dos mesmos. As narrativas também revelaram uma coexistência entre estratégias de defesa do preconceito/discriminação (estratégias de covering) e estratégias de enfrentamento na rotina dos participantes, sendo necessária constante negociação (explícita ou implícita) entre os membros do casal para decidirem (consciente ou inconscientemente) em quais

momentos se protegerão assimilando hábitos coniventes com o mainstream, e em quais momentos questionarão esses hábitos, se colocando como homossexuais e como um casal de fato. Entre as estratégias de defesa estiveram a não demonstração de afeto em público, a apresentação da díade como uma dupla de amigos, o rompimento de relações com a rede, a não aceitação de homossexuais com trejeitos femininos e a não realização do coming out com pessoas pertencentes à rede de relações proximais, algumas delas superadas e outras ainda praticadas pelos entrevistados. Entre as estratégias de enfrentamento apareceram principalmente a participação na militância LGBT, a pesquisa acadêmica e o trabalho profissional na assistência à comunidade LGBT, o questionamento de práticas homofóbicas em seus cotidianos, com pessoas de dentro e de fora da rede de relações proximais (seja no comportamento em geral, se apresentando como casal, ou propondo reflexão por parte dessas pessoas de maneira mais direta). Essa convivência entre o defender-se e o enfrentar atesta que se trata de dinâmicas complexas e contínuas na vida dos homossexuais, e não pontos estanques em seu desenvolvimentos a serem resolvidos de uma só vez; trata-se de uma construção contínua de suas identidades. Também se depreende dessas observações que ao invés de serem vistas como atitudes covardes diante do mainstream, as estratégias de defesa devem ser olhadas como ações que garantem a possibilidade de o indivíduo continuar se relacionando com o mundo enquanto aprende a transformá-lo, sem as quais ocorreria o rompimento completo com partes significativas de suas redes, o que impediria qualquer transformação por parte destas. São estratégias intermediárias entre a completa invisibilidade (se é que ela ocorre de fato para alguém) e a aceitação mais ampla por parte de seus relacionamentos familiares, de amizade e outros. Do ponto de vista das funções de apoio social exercidas pelos familiares (famílias de origem de cada um dos parceiros) e amigos que compõem a rede social pessoal dos casais, observaram-se diferenças marcantes entre os casais participantes. Os amigos (e relações comunitárias) surgiram como importante fonte de apoio e legitimação para o primeiro casal, ao lado da família de apenas um dos membros que passou a aceitar a homossexualidade com o tempo. Para o segundo casal, ambas as famílias são percebidas como a principal fonte de apoio e legitimação da díade, ainda que uma delas tenha passado por um processo de aceitação mais recente. Os amigos, por outro lado, ainda se apresentam como relações complicadas para a díade, sendo que só

constituem fontes de apoio aos membros individualmente, o que pode estar relacionado ao menor tempo de conjugalidade desta dupla. É importante ressaltar, no entanto, que afirmar categoricamente que os familiares ou amigos apoiam ou não apoiam os casais deve ser entendido com parcimônia redobrada, uma vez que ocorre frequentemente de alguns membros familiares serem mais significativos no apoio (ainda que os demais não rejeitem o casal), ou, em uma família menos suportiva, existir indivíduos isolados que apoiam e tratam a díade como um arranjo conjugal de fato e de direito. As formas concretas pelas quais ocorre o apoio foram variadas: conselhos individuais, espaço para conversas afetivas, diálogo sobre os problemas do casal, acolhimento após passarem por situações de homofobia, enfrentamento da homofobia em situações que essa ocorre com outras pessoas, convites para o casal, em conjunto, para ocasiões sociais, momentos de lazer e descontração incluindo a díade, convivência das redes de um membro com o outro membro do casal individualmente, intersecção entre as redes, apoio material (incluindo concessão de imóvel familiar para morarem juntos), auxílio pragmático em necessidades do dia-a-dia (como realizar uma mudança), tratamento da díade como casal (oferecendo uma cama de casal quando recebem a visita mais prolongada dos dois ou mandando convite de casamento em nome de ambos), defesa dos mesmos em situações em que outros membros da rede agem de maneira homofóbica, etc. O simples “estar junto” e incluir o casal nos contextos foi citado como importante forma de apoio, fazendo com que a dupla esteja coesa e forte para enfrentar situações discriminatórias. Em termos das funções de apoio social descritas por Sluzki (1997), observou-se maior predominância no discurso dos participantes das funções de companhia social, guia cognitivo e de conselhos, ajuda material e de serviços. Por vezes apoio emocional foi citado, sendo mais raro as entrevistas de inquérito terem ganhado um colorido mais afetivo enquanto falavam de suas relações proximais. A função de acesso a novos contatos foi claramente observada no discurso de um dos participantes (que recriou praticamente toda a sua rede de amizades ao iniciar seu coming out, partindo dos amigos de relacionamentos amorosos e de amigos da Internet para isso), o que não foi muito explorado pelos demais participantes. Não foram observados exemplos da rede exercendo a função de regulação social no discurso dos participantes.

Entre os movimentos menos suportivos das redes de apoio social, ou movimentos discriminatórios propriamente ditos, estiveram, como casos mais graves, discussões mais sérias entre participantes e membros da família que contribuíram para a saída de casa, e imposição de situação que forçasse o indivíduo a escolher entre morar com as irmãs e o cônjuge. Outros exemplos, menos drásticos, envolveram piadas por parte de parentes, ou colegas de trabalho e escola, e ex-amigos que se afastaram dos participantes. A maioria dessas ações e reações por parte de familiares e amigos foram descritas como algo superado, localizado no passado dos membros das díades, como experiências que não ocorrem mais atualmente. Parte da superação destas formas da rede de lidar com a homossexualidade e homoconjugalidade parece ter sido devida à postura dos entrevistados de questionar e enfrentar essas pessoas, ouvi-las, entendê-las e dialogar com os preconceitos que reproduziam a partir das narrativas heteronormativas que foram ensinadas a reproduzir. Tais tarefas de aprendizagem e reaprendizagem contaram com a participação ativa dos entrevistados, indicando que a relação entre apoio da rede e arranjo conjugal não é unidirecional, mas sim bidirecional, no sentido de que um casal capaz de modificar as ideologias que circulam em sua rede, também será mais apoiado por esta, o que, por sua vez, o coloca em situação de enfrentar ainda mais a homofobia dentro e fora da rede, em um círculo de retroalimentação do sistema e constante empoderamento dos indivíduos, do casal e da rede como um todo. A constante negociação entre limites da rede e necessidades do casal se faz presente, especialmente porque a rede é um sistema inserido em outro sistema maior, o qual se organiza de maneira heteronormativa. Dessa forma, as redes de apoio social dos participantes também sofrem com a homofobia social e internalizada. Fato interessante é que alguns dos entrevistados, se não todos, defenderam ser dos homossexuais o papel de apoiar a rede nessas dificuldades (com informação, conversas, paciência, maturidade, etc.). Isso ora apareceu como maneira de promover transformações nas pessoas da rede de maneira não agressiva, que desrespeite o limite destas, ora apareceu como meio de proteger essas pessoas, para que não sofram com os efeitos da homofobia que devem incidir sobre todos aqueles que, em uma sociedade homofóbica e machista, são coniventes com a homossexualidade de um ente querido. Ainda em relação à dupla direção do apoio, um aspecto que identificamos ser de fundamental questionamento pelos estudos que envolvem apoio social (não somente a homossexuais, mas a qualquer segmento social) é o grau de dependência da rede em

relação ao indivíduo, ou seja, o quanto esta solicita e depende do apoio do informante da pesquisa, uma vez que indivíduos mais respeitados e importantes para suas redes tenderão também a ser mais aceitos e receber aprovação por parte desta. Esse caso parece ocorrer com um dos entrevistados da presente pesquisa. Em síntese, os dados sobre a relação dos casais com as redes apontam na direção de que estas são mutáveis, complexas, muitas vezes ambivalentes, e que se modificaram dentro e fora do contexto da relação conjugal atual dos participantes. A própria entrada do cônjuge no sistema amplo da rede de apoio social como um todo provocou, para alguns entrevistados, rearranjos na forma como as redes lidam com a homossexualidade e homoconjugalidade. Por outro lado, a construção da conjugalidade perpassa pela forma como cada rede específica trata o casal, sendo que mesmo indivíduos que viveram relações amplamente apoiadas anteriormente, podem enfrentar dificuldades (embora com alguma atitude proativa resultante de experiências anteriores) ao entrarem em nova relação na qual a rede do companheiro não aceite/seja avessa à homoconjugalidade, o que ocorreu em pelo menos um dos casos estudados. Apontamento que se faz muito necessário é o de que o perfil de participantes deste estudo é de pessoas que conseguiram independência em diversos sentidos, sendo o impacto da família e de outras pessoas da rede, como sistema, mais atenuado por conta disso. Essas pessoas construíram suas próprias redes individuais e do casal, o que é um limite para a pesquisa. Outras pesquisas poderiam investigar como esses aspectos, aqui abordados, se dariam com pessoas em situações em que a participação da família e da rede como um todo seja mais crítica no desenvolvimento dos indivíduos em questão (por pertencerem a faixas etárias menores que as estabelecidas no presente estudo, ou por viverem com suas famílias de origem apesar de estarem em um relacionamento conjugal, casais recentes, casais onde um ou ambos os membros perderam absolutamente o contato com as famílias de origem, etc.). Ponto central neste apontamento é a participação de três dos entrevistados na militância LGBT há consideráveis anos, sendo que dois deles trabalham diretamente com a questão. O quarto participante, apesar de não envolvido na luta política LGBT, é do meio acadêmico, assim como o seu companheiro que é psicólogo e estuda esses temas na universidade. Novos estudos, com segmentos não tão politizados da comunidade LGBT, e com pessoas de nível de escolarização mais baixo, podem revelar realidades diferentes

do ponto de vista das vivências de homofobia, apoio social recebido, estratégias de defesa e enfrentamento, e consciência desses processos em suas trajetórias. Do ponto de vista metodológico, apesar de ter sido baseada em uma rica gama de informações fornecidas pelos participantes, a análise limitou-se em alguns aspectos por não se ter certeza se os participantes estiveram à vontade para falar de certos temas, principalmente aqueles mais mobilizadores do ponto de vista emocional. Isso pode estar relacionado ao fato de tratar-se de um homem entrevistando outros homens (especialmente sobre questões da intimidade), aspecto amplamente discutido por Maciel Junior (2006) como uma decorrência do sexismo em nossa sociedade e que tem implicação metodológica para pesquisas que envolvam a categoria gênero. Ao sexismo e à heteronormatividade também parecem estar relacionadas a especificidade da amostra adotada. Ao especificar que seriam casais masculinos, de 30 a 40 anos, e que convivessem por três anos, pelo menos, os pesquisadores não fizeram distinção em relação à participação na militância, grau de escolaridade, nível socioeconômico ou grau de dependência da família. Apesar disso, podemos fazer a reflexão de que o procedimento de bola de neve, utilizado na cooptação dos participantes, envolve um contato pessoal muitas vezes não desejável para indivíduos que, por suas razões, ainda escondem a homossexualidade. Nesse sentido, o perfil dos casais encontrados geralmente era o de pessoas cuja auto-aceitação e grau de independência em relação à família de origem era maior. Existiram raras exceções, é verdade, mas o contato revelou rápida desistência em participar da pesquisa, ou os indivíduos estavam muito distantes dos critérios adotados, que também merecem ser revistos por pesquisas futuras. A reformulação de tais critérios na presente pesquisa consistiu em uma estratégia para reduzir este problema de amostragem. Por último, consideramos interessante comentar a respeito das impressões dos entrevistados a respeito da pesquisa, aspecto amplamente dialogado com os mesmos ao final de cada encontro realizado, mas cuja transcrição não foi inserida no corpo deste relatório para ser analisada para que não se perdesse o foco da pesquisa. Consideramos que essas impressões têm valor para futuros pesquisadores, instigando novos problemas de pesquisa e dando contribuições para alternativas metodológicas a serem adotadas. Marcos atribuiu à pesquisa a importância de abordar o cotidiano concreto dos casais homossexuais. Enfatizou a importância de aplicação prática dos conhecimentos

produzidos na Academia e de estes serem apresentados como informação acessível à população, contribuindo para a transformação da realidade dos LGBT no país. Apontou questões importantes relativas à educação, política, religião e juventude que atravessam a temática LGBT e que, muitas vezes, não são abordadas pelas pesquisas por um viés mais pragmático. André, por sua vez, chamou a atenção para a necessidade de estender estudos dessa natureza às pessoas transexuais, ainda mais marginalizadas que os homossexuais se considerarmos os padrões heterossexistas. O participante chamou a atenção para a importância de tratar de temas como família, relações de amizade, trabalho, etc., por serem questões com as quais os homossexuais lidam em seu dia-a-dia. Pedro, também psicólogo, chamou atenção para aspectos metodológicos, como a necessidade de questionar os critérios de amostragem adotados: Por que três anos para considerar que o casal se constituiu? Isso está baseado em pesquisas com heterossexuais? Será que a dimensão do tempo é a mesma para um relacionamento gay? Quais teorias estão sendo utilizadas para me analisar? Essas e outras foram as perguntas de Pedro, e que contribuem diretamente para os estudos que envolvem os temas LGBT. Bruno chamou a atenção para os casos em que o entrevistado não está familiarizado com os métodos de pesquisa do entrevistador, e se vê no escuro, preocupado se está ou não dando as informações que este outro que o investiga precisa. Ainda que tranquilizado, tornava, com razão, a se preocupar com isso. Essa preocupação mostra o quanto o pesquisador qualitativo conta com os recursos de seus informantes para acessar os dados, e o quanto estratégias de estabelecer uma linguagem comum podem auxiliar na realização de pesquisas como estas, mesmo por pesquisadores iniciantes, como é o caso presente. O participante também indicou a necessidade de se realizar pesquisas com outros perfis de casais, o que já foi discutido ao longo desta seção. Para o pesquisador, ficou a impressão de que, enquanto os participantes falavam de suas trajetórias, tiravam conclusões sobre si e sobre aqueles que compõem a sua rede, estabelecendo relações, explicações para a forma como agem, a partir do próprio discurso ou de perguntas feitas pelo pesquisador. Isso foi muito evidente com o casal que, gentilmente, serviu de pré-teste no início do estudo, no qual ambos os entrevistados disseram que a confecção do Mapa da Rede Social e da Linha do Tempo, em si, já foi

uma maneira de organizar todas as informações que tinham a respeito de si, deixando as certezas que tinham sobre si e suas vidas mais organizadas e claras para si mesmos. Esses exemplos justificam, por si só, a necessidade de os estudos qualitativos inserirem em suas descrições as impressões de seus participantes, que, sob esta perspectiva, são vistos não como meros informantes, dos quais as informações são extraídas por um especialista, mas sim eles mesmos como verdadeiros especialistas em falar de si a partir do repertório interpretativo de que dispõem e que também pode e deve ser analisado, considerando a perspectiva metodológica dialógica adotada no presente trabalho.

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