A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte

September 13, 2017 | Autor: Gustavo Ferraz | Categoria: Arte, Percepção, Produção De Subjetividade
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia GUSTAVO CRUZ FERRAZ

A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte

Rio de Janeiro 2010

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Gustavo Cruz Ferraz

A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia

Orientador(a): Prof ª Drª Virgínia Kastrup

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Gustavo Cruz Ferraz

A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Psicologia Rio de Janeiro, 29 de março de 2010

_________________________________________________ Prof ª Drª Virgínia Kastrup - orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro _________________________________________________ Prof ª Drª Márcia Oliveira Moraes Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Prof ª Drª Liliana da Escóssia Melo Universidade Federal de Sergipe ___________________________________________________ Prof. Dr. André do Eirado Universidade Federal Fluminense _________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho Universidade Federal do Rio de Janeiro

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F381

Ferraz, Gustavo Cruz. A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte / Gustavo Cruz Ferraz. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. 172f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia / Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2010. Orientador: Virgínia Kastrup. 1. Arte - Psicologia. 2. Percepção. 3.Experiência Estética. 4. Política. I. Kastrup, Virgínia. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. CDD: 701.15

v AGRADECIMENTOS

à Virgínia Kastrup, por ter ao longo destes anos de estudo compartilhado comigo sua leveza, que só os grandes de espírito possuem. a meus pais e minha irmã, pelo acolhimento infinitamente generoso. à Arthur, Amândio, Bianca, Clarice, Danilo, Fernanda, Maria, Mariana, Laura e Ystatille, que aceitaram lançar-se sobre estas linhas, fazendo com que essas pudessem por sua vez se lançar para além de onde eu as poderia ter levado sozinho. a todos aqueles amigos, cujo afeto traz a marca da perenidade que é a presença na ausência. à Lú, pelo companheirismo. à Mariana e Camilo, pelos vinhos, virtudes e uma vida em Paris. aos professores Eric Lecerf e Plínio Prado Jr, pela atenciosa acolhida em Paris. aos companheiros de grupo de pesquisa, em especial Beatriz Sancovisch, por compartilhar não só conceitos mas também angústias e alegrias a Augusto Mello, Guilherme Monsanto e Dominique Grandi pela prontidão afetuosa na ajuda da difícil arte de traduzir. aos amigos feitos na França, mas cuja amizade não mais conhece fronteiras. à Ana, pelo suporte sempre atencioso e carinhoso Ao CNPq e à Capes, pelo apoio financeiro que tornou possível a realização deste trabalho.

vi RESUMO A percepção em experimentação: uma dimensão política da experiência com a arte. O objetivo deste trabalho é investigar e sublinhar a dimensão política que a percepção estética – mobilizada e cultivada na experiência com a arte – abarca, situando-nos na fronteira entre arte, psicologia e política. Nosso fio condutor, o qual se configura como ponto de convergência entre esses três campos, é a percepção. Analisamos, privilegiadamente, a questão do encontro com a obra, a fim de escapar das armadilhas nas quais esbarram as abordagens psicológicas tradicionais da arte, centradas na discussão acerca de determinantes subjetivos como motivações pessoais, projeções de desejos e outras variáveis emocionais, sejam do artista, sejam do espectador. Trata-se de destacar a dimensão política que está sempre em jogo na percepção estética, para além dos efeitos políticos de uma arte engajada. Primeiramente, examinamos algumas contribuições da psicologia e da filosofia sobre aspectos referentes à percepção, à arte e à vida, buscando delinear a descrição da experiência com a arte e explorar a singularidade do funcionamento cognitivo implicada em tal experiência, assim como o alcance de seus efeitos. Partimos de uma análise do gestaltismo, dando relevo à noção de campo e apontando os limites deste movimento da psicologia no que diz respeito ao conceito de equilíbrio e ao modelo da redução de tensão. Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon caracterizam-se como referências centrais nesta etapa de nosso percurso. Visando marcar o entendimento da arte como captura de forças, como experimentação, e articular este entendimento à análise do gestaltismo, trazemos considerações de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Procurando pensar as relações entre arte e vida por meio do conceito de experiência, recorremos ao pensamento de John Dewey e indicamos suas possíveis aproximações com aquilo que Henri Bergson desenvolve acerca dos vínculos entre arte e percepção. Numa segunda parte, dedicada às temáticas da política e da estética, outro plano de análise é contemplado. Seguimos o que elabora Jacques Rancière quanto às relações entre arte, política e estética, ressaltando o conceito de partilha do sensível e a distinção entre a ordem da política e a ordem da polícia. Essa apreciação serve-nos de base para o debate acerca de uma política da arte e para a reflexão sobre a crítica desse autor a um ‘modelo pedagógico’ de política da arte. Finalmente, estabelecemos ligações entre as colocações de Rancière e a inflexão dada por François Zourabichvili à questão da ‘reviravolta estética’. As noções de suspensão e de dissenso são aí trabalhadas, uma vez que ganham considerável importância neste contexto político da arte. Tais noções, ao permitirem pensar o rompimento com a ordem do sensível enquanto evidência, possibilitam que se compreenda a percepção como regime de experimentação.

Palavras chave: Arte, percepção, experiência estética, política

vii ABSTRACT Perception in experimentation: a political dimension of the experience with Art. The target of this essay is to investigate and highlight the political dimension that the aesthetic perception – mobilized and cultivated in the experience with Art – embraces, placing ourselves in the border between art, psychology and politics. Our guideline, which configures itself as a convergent point among these three fields, is perception. We focus our analysis on the question of the encounter with the work of art, aiming to escape from the traps in which the traditional psychological approaches of art fall, centring themselves on the discussion about the subjective determinants such as personal motivation, projection of desire and other emotional variables, being these from the artist or the spectator. Our target is to detach the political dimension, that always plays a role in the aesthetical perception, and displace it beyond the political effects from an art compromised with politics. Firstly, we exam some contributions from psychology and philosophy about aspects concerning perception, art and life, aiming at delineating a description of experience with art and exploring the singularity of the cognitive functioning implied in such experience, as well as the reach of its effects. The starting point is an analysis of the Gestaltism, emphasizing the notion of field and pointing out at the limits of this psychological movement in what concerns the concept of equilibrium and the model of tension reduction. Rudolf Arnheim and Gilbert Simondon characterize themselves as central references at this stage of our work. Aiming at reinforcing the understanding of art as a capture of forces, such as experimentation, and articulating this understanding to the analysis of Gestaltism, we bring herewith considerations from Gilles Deleuze and Félix Guattari. In an effort to think the relations between art and life by means of the concept of experience, we call upon John Dewey’s thoughts and indicate possible approximations amid these and what Henri Bergson develops about the bonds between art and perception. The second part is dedicated to political and aesthetical themes, where another analysis plan is contemplated. We follow what Jacques Rancière elaborates towards the relations between art, politics and aesthetic, highlighting the concept of partitions of the sensible and the distinction between the order of politics and the order of the police. This appreciation gave us a base for debating on an art’s policy and the reflexion about this author’s criticism about a ‘pedagogical model’ of an arts’ politics. Finally, we establish relations between Rancière statements and the inflexion given by François Zourabichvili to the question of ‘the Aesthetic Turn’. Here the notions suspension and dissensus are developed, once they gain considerable importance in this political context of art. Such notions, while allowing the thinking on the rupture between the order of the sensible as evidence, they also make possible for perception to be understood as an experimentation regime. Key words: Art, perception, aesthetical experience, politics

viii SUMÁRIO INTRODUÇÃO

1

PARTE I: PERCEPÇÃO, ARTE E VIDA

8

1.

A coexistência de formas e forças

9

1.1

O gestaltismo em sua dupla face

9

1.1.1 Caracteres fisionômicos e expressão 1.1.2. Complefixificando o equilíbrio: as leituras de Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon

13 22

1.2

Percepção e experimentação: arte como captura de forças segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari

45

2.

Arte e vida: experiência estética, conversão da atenção e a possibilidade de uma abertura

63

2.1.

Arte como experiência em John Dewey

63

2.1.1. A dimensão receptiva do ato de criação

72

2.1.2 A dimensão ativa do ato de recepção

75

2.2.

Arte e conversão da atenção segundo Henri Bergson

82

2.3

O regime da experiência estética: interesse x desinteresse

89

PARTE II: POLÍTICA E ESTÉTICA

93

1.

Jacques Rancière: a partilha do sensível e as condições de um debate acerca de uma política da arte

94

1.1

Os três grandes regimes ocidentais de identificação da arte: regime ético das imagens, regime representativo ou poético das artes, e regime estético

98

1.2

A crítica a uma política da arte fundada no modelo pedagógico

106

2. A Reviravolta estética e a suspensão como política da arte

117

2.1 Uma nova relação com o sensível: arte, filosofia e resistência

118

2.2 Dissenso e política: rompimento do sensível com a ordem da evidência

124

CONCLUSÃO

151

REFERÊNCIAS

162

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“Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível” FOUCAULT,1996

INTRODUÇÃO

Gostaríamos de começar o presente trabalho expondo precisamente o ponto em que pretendemos situar nossa análise. O ponto a partir do qual o conjunto de autores e questões estudadas, assim como os objetivos que nos levaram a estudá-los, ganhasse seu sentido, sua justificação e sua potência. Mas após meses de insônia e páginas e mais páginas desperdiçadas, pudemos duramente constatar que isto seria começar pelo final. Começar pelo trabalho já pronto. E nenhum trabalho que valha a pena pode começar já pronto. Caso contrário, qual seria então a necessidade de fazê-lo? Assim, cabe apenas nesta Introdução seguir os caminhos que as idéias trilharam em nós, com seus pontos de bifurcação, de impasse e de abertura. Algo como uma música, que tem suas variações dinâmicas, suas modulações, seus movimentos de criação e resolução de tensão. E durante este percurso tomar o cuidado de não deixar perdido o leitor. Ao menos não mais do que nós mesmos durante este trajeto. Procuraremos nos colocar na fronteira entre arte, psicologia e política. A linha sobre a qual caminharemos e que marcará a convergência destes três campos é a percepção. O objetivo de nosso trabalho é então mostrar como a percepção estética, enquanto um regime cognitivo singular mobilizado e cultivado na experiência com a arte, possui uma dimensão política. Na verdade, traçar esta experiência de seu interior é traçar ao mesmo tempo seu sentido político, na medida em que o contato com a obra lança a percepção em um regime de experimentação. Desta forma, entrar em uma sala escura de cinema, parar diante de pinturas onde figuram reis e rainhas de séculos passados ou ainda apenas naturezas mortas, !! !

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acompanhar por horas movimentos musicais, reservar tardes para leituras, etc., não significa de forma alguma se esquivar do mundo, mas sim abrir-se à possibilidade de renovar os laços com este. A nosso ver, esta forma de colocação do problema que persegue a linha que liga arte e política tendo como fio condutor a questão da percepção nos possibilita escapar de duas armadilhas. Do ponto de vista das relações entre arte e política, e aqui seguimos uma indicação de Jacques Rancière (2005b,2008a, 2008b, 2008c) assim como uma inspiração presente em Deleuze e Guattari (DELEUZE, 1976; DELEUZE e GUATTARI, 1975, 1980), evitamos situar a questão nos limites do problema da ‘arte engajada’, onde se trabalha a partir de uma lógica representativa e de antecipação dos efeitos, o que parece constituir uma distorção e mesmo um empobrecimento da potência da arte e de seu alcance político. Em segundo lugar, do ponto de vista do entrecruzamento entre arte e psicologia, nossa forma de colocação do problema permite que ultrapassemos uma dicotomia segundo a qual falar da obra de arte implicaria abrir mão de sua dimensão significativa e afetiva. Esta questão se articula ainda a uma outra: a que coloca esta dimensão significativa ou afetiva sob o signo de um sujeito, seja ele o artista ou o espectador. Segundo este pensamento dicotômico tudo se passa como se tivéssemos sempre uma escolha a realizar: ou falamos do aspecto formal e objetivo da obra, abrindo mão do plano da experiência; ou nos restringimos aos significados e efeitos da obra, o que nos remeteria às intenções ou motivações do artista e às expectativas e preferências do espectador. Na verdade não seria exagerado afirmar que grande parte dos estudos psicológicos voltados para a arte se limitou a este segundo aspecto, referido aos determinantes subjetivos. Isto se faz presente desde os trabalhos situados sob a égide da !! !

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estética experimental inicialmente desenvolvida por G. T. Fechner, como os de Charles Lalo (1908) e Robert Francès (1979), passando ainda pelas propostas mais amplas de Denis Huisman (1961), René Huyghe (1961, 1993) e J-P. Weber (1965), até aqueles trabalhos de cunho mais psicanalítico, dentre os quais os mais célebres são os de Freud (1976a, 1976b), mas que tem nos trabalhos de Charles Mauron (1968, 1969), Ernest Jones (1970) e Otto Rank (1989) ainda outros exemplos. O caminho a ser realizado aqui, busca seguir uma outra via.Não se trata de renunciar seja à objetividade da obra, sua potência própria, seja à sua relação com o plano da experiência, contanto que se vislumbre o que está em jogo quando falamos em objetividade e experiência. Situando-nos numa linha de fronteira, e não trabalhando com a distinção entre as diversas modalidades artísticas, não temos a pretensão de esgotar seja o tema da percepção, seja sua inserção geral no campo da política, seja no da arte. Nossa aposta é a possibilidade de abordarmos a dimensão política da experiência com a arte, fazendo justiça à singularidade desta experiência, ou seja, conferindo-lhe seu matiz e alcance próprios. Buscamos realizar este trajeto em dois momentos. Na parte I trabalharemos, a partir de algumas contribuições da psicologia e da filosofia, questões referentes à percepção, arte e vida. O propósito é seguirmos mais de perto a descrição da experiência com a arte, explorando a singularidade do funcionamento cognitivo que nela está implicada, assim como o alcance de seus efeitos. Como afirma Rudolf Arnheim "temos negligenciado o dom de compreender as coisas através de nossos sentidos. O conceito está divorciado do que se percebe, e o pensamento se move entre abstrações” (ARNHEIM, 1991, p.1). A discussão em torno da percepção estética se revela importante uma vez que caminha no sentido de reativar !! !

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uma certa dimensão da experiência, de fazer reviver uma potência de certa forma renegada da percepção, fazendo-a encontrar suas próprias forças e limites. Podemos dizer que se em uma primeira instância os materiais trabalhados pela arte são cores, formas e sons, há também uma dimensão suplementar do trabalho artístico na qual a matéria trabalhada é a própria percepção. No primeiro item fazemos uma análise do gestaltismo, pelo fato de tratar-se de um movimento na psicologia que operou importantes transformações nos estudos da percepção. A noção de campo é aqui de grande importância pois permite pensar a percepção enquanto um conjunto de relações dinâmicas no qual há correlação e reciprocidade entre parte e todo. Uma outra razão que motivou nosso interesse foi o fato do gestaltismo ser um sistema psicológico e uma teoria da percepção que sempre atraiu a atenção dos teóricos da arte e dos próprios artistas. A razão parece consistir na possibilidade que abre para que se possa falar da composição e da percepção da obra sem recair em um discurso subjetivista, que enfatiza tanto as motivações do artista quanto as projeções do espectador. Em nossa investigação, procuramos analisar sua contribuição sem, no entanto, deixar de atentar para seus possíveis limites, principalmente no que concerne ao conceito de equilíbrio e ao modelo da redução de tensão. As leituras de Rudolf Arnheim e Gilbet Simondon serão aqui de grande importância uma vez que possibilitam ir mais longe do que a versão mais tradicional e reconhecida do gestaltismo. Na sequência, trazemos a contribuição de Deleuze e Guattari para o entendimento da arte como captura de forças, explorando algumas proximidades com as questões acima indicadas, principalmente no que concerne às contribuições de Gilbert Simondon, e buscando levá-las adiante para a compreensão do justo alcance que assume a arte enquanto experimentação.

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No segundo item da primeira parte buscamos trilhar um caminho que se volta para as relações entre arte e vida, a partir das contribuições de John Dewey e Henri Bergson. Na proposta de John Dewey ganha especial importância o conceito de experiência, por meio do qual é pensada a articulação entre arte e vida. O que está em jogo é o caráter processual e rítmico presente “nos processos normais do viver” (DEWEY, 2005, p.9) e que se faz presente na arte. Falar em experiência implica falar na relação ativa e aberta dos seres vivos com o mundo, em um movimento rítmico que envolve ação e recepção, acumulação e expansão, e no qual há uma mobilização e uma reorganização das forças. Por isso Dewey afirma ser a experiência vitalidade potencializada. O que Dewey busca também reforçar, e que valorizamos aqui, é o fato de que aquilo que um artista cria são experiências (DEWEY, 2005), já que a forma artística comporta em si essa dinâmica de variação interna e o jogo constante entre ação e recepção. Será importante neste aspecto sua análise crítica da distinção entre o artístico (relacionado tradicionalmente à ação) e o estético (relacionado à recepção). Em um segundo momento nos voltamos para as considerações de Henri Bergson acerca das relações entre arte e percepção. É certo que não há em Bergson propriamente uma teoria da arte, pois esta não se configura como preocupação central de nenhuma de suas grandes obras e não possui uma delimitação conceitual própria. No entanto, acompanhando o percurso bergsoniano pode-se perceber como a arte possui uma posição privilegiada no conjunto de sua filosofia. Em diversos momentos de sua obra o trabalho filosófico é aproximado daquele da arte (esta chega a ser colocada como uma “metafísica figurada”, BERGSON, 2006a), assim como a extensão das faculdades de perceber, caracterizada como “conversão da atenção”, é aproximada do método filosófico bergsoniano por excelência, a intuição (BERGSON, 2006b). Embora estas questões que ligam arte e filosofia, e mais especificamente a conversão da atenção e a intuição, sejam de extrema importância, não as !! !

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seguiremos aqui, dado os limites e propósitos do presente trabalho. Nosso interesse se volta para os desdobramentos da colocação bergsoniana de que a arte permite uma ‘extensão das faculdades de perceber’ (idem), ao mobilizar uma percepção ‘desinteressada’, ou seja, não mais pautada pelas necessidades adaptativas da vida prática. É neste contexto que comparece a questão da conversão da atenção, que buscaremos explorar a partir da aproximação com a noção de reconhecimento atento, ressaltando sua dimensão criadora. Examinaremos a partir daí os possíveis pontos de cruzamento com as questões trazidas por Dewey. Na segunda parte de nosso trabalho, Política e estética, trabalharemos sobre um outro plano de análise. Seguiremos basicamente, ainda que não exclusivamente, o trabalho de Jacques Rancière e sua discussão acerca das relações entre arte, política e estética. Neste sentido, é de extrema importância o conceito de partilha do sensível, que remete ao “sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2005a, p. 15). A estética deixa aqui de ser pensada como uma disciplina autônoma voltada para as questões da arte, mas constitui a dimensão de base de toda política. E a política por sua vez, não é pensada no plano institucional de leis ou de luta pelo poder, mas sim como processo dissensual de consituição deste regime de partilha. Será importante, neste contexto, sua distinção entre a ordem da política e a ordem da polícia. É a partir destes laços que Rancière estabelecerá as bases para o debate acerca de uma política da arte. Inicialmente seguiremos sua apresentação dos diferentes modos históricos de inserção das práticas artísticas nestes regimes, para em seguida, analisar sua crítica ao que ele chama de um ‘modelo pedagógico’ de política da arte. Este modelo possui uma dupla face: !! !

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por um lado, a pressuposição de que o espectador, enquanto tal, é aquele que se encontra no plano da aparência e da alienação, pois ver é o contrário de saber e de agir; por outro lado, a idéia de que realizar ou colocar em funcionamento uma política da arte seria tranformar este quadro, e para isso dever-se-ia ‘arrancar’ o espectador desta condição, seja por meio de uma tomada de consciência, seja por meio de uma ação direta.Tem-se aqui uma lógica de antecipação dos efeitos, que liga as intenções de um artista àquilo que percebe o espectador. A crítica deste modelo visa a desconstruir a lógica que o sustenta, e aí se colocam importantes questões acerca das relações com o sensível e seus desdobramentos políticos. Como diz Rancière, não se trata de retirar o espectador de sua condição de quem percebe, mas de colocar a percepção sob um novo regime, desfazendo a lógica da antecipação dos efeitos. No último item analisaremos como se cruzam as colocações de Rancière e a inflexão dada por François Zourabichvili à questão da ‘reviravolta estética’, que marca um momento histórico a partir do qual se abre uma nova via de relação com o plano da sensibilidade e que permite o estabelecimento de um novo regime de articulação entre a arte, a filosofia e a questão da resistência, entendida aqui como sendo “da ordem da dissidência imprevisível, e não da oposição frontal” (ZOURABICHVILI, 2007, p. 105). É neste sentido que ganham importância política as noções de suspensão e de dissenso, a serem, por fim, analisadas.

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PARTE I PERCEPÇÃO, ARTE E VIDA

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1. A coexistência de formas e forças 1.1 O gestaltismo em sua dupla face O gestaltismo foi um dos grandes empreendimentos sistemáticos na psicologia. Sua contribuição maior se deu no campo dos estudos da percepção e grande parte de suas teses, que tem nos trabalhos de Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler sua expressão mais reconhecida, exerceu uma influência que extravasou o campo das investigações psicológicas. Tornaram-se também relevantes no campo da arte, como o comprovam os trabalhos teóricos de Rudolf Arnheim, nos EUA e os do crítico de arte Mário Pedrosa e da artista Fayga Ostrower, no Brasil. Cabe destacar também a explícita influência em movimentos artísticos como a poesia concretista1 brasileira, por exemplo. Grande parte da importância assumida pela teoria gestaltista no campo da arte, e porque não dizer também na psicologia, se deve a uma profunda transformação operada por ela no estatuto da percepção. Esta não é mais considerada o terreno da impressão passiva de dados elementares que seriam organizados subjetivamente. A profunda cisão entre o caos sensível e a ordem superior intelectual, advinda de uma longa tradição filosófica e herdada pela psicologia clássica, ganha novos contornos. O plano da percepção já possui ele próprio uma ordem. A sensação, como um dado elementar bruto e cujas propriedades derivariam exclusivamente do estímulo físico local correspondente, não é um momento inicial da percepção (tal como postulava a psicologia clássica), mas uma ficção construída a posteriori. Percebemos mais do que aquilo que se imprime na retina de nossos olhos (ou de forma mais geral, em nossas terminações periféricas). Percebemos relações, direções, movimentos, tensões. Todos estes componentes ‘invisíveis’ que fazem parte de nossa experiência eram !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1

A psicologia da gestalt é nominalmente citada no ‘Plano-piloto da poesia concreta’, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, 1958).

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classicamente atribuídos a uma atividade subjetiva superior e exterior ao domínio da percepção. Será então a partir das teses gestaltistas que estas fronteiras serão redesenhadas, de forma que nem todo invisível seja da ordem do inteligível. Segundo suas teses, nossa experiência perceptiva primeira não é um caos, mas uma totalidade organizada, cuja estrutura mínima é a distinção figura/fundo. Uma unidade se destaca de um fundo e sua organização não deriva, fundamentalmente, de nossos conhecimentos prévios. Desta forma não é preciso saber o que é um livro, por exemplo, para que se possa ver que ‘algo’ se destaca enquanto unidade no campo visual. A segregação das unidades perceptivas é anterior ao reconhecimento das formas e se coloca como condição do próprio reconhecimento. Uma série de experimentos realizados com figuras simples como pontos, linhas e figuras geométricas, e tendo muitas vezes animais como sujeitos experimentais, visavam mostrar que não é necessário postular qualquer tipo de recurso à experiência passada ou atividade intelectual superior para que se possa perceber unidades segregadas e suas relações. Foi a partir dos estudos de Christian von Ehrenfels sobre as gestaltqualitaten presentes na percepção da melodia que se abriu o caminho para que este novo campo de problemas fosse explorado,!Fica claro a partir deste momento que o aspecto qualitativo do percebido está mais ligado ao grau de articulação interna dos padrões de estímulo e às condições de atualização do campo perceptivo do que às propriedades dos estímulos locais. O exemplo da melodia é muito representativo pois se realizarmos uma transposição de tom, ou seja, alterarmos todos os seus elementos, ainda assim esta será reconhecida como a mesma melodia. Notamos assim que há um grau de organização intrínseco ao conjunto e que não se reduz à soma das propriedades de seus elementos. Daí o conceito de estrutura, forma, ou no termo alemão que dá nome à esta escola, Gestalt. Nas palavras de Köhler: “na língua alemã [...] o substantivo “Gestalt” tem dois significados: além do sentido de forma ou feitio como !! !

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atributo das coisas, tem a significação de uma unidade concreta per se” (KÖHLER, 1968, p. 104). Esta unidade concreta é portanto uma totalidade que possui qualidades que extrapolam aquelas dos elementos e cuja organização é intrínseca. Alguns comentadores do gestaltismo, como Paul Guillaume (1966), Jean Piaget (1983), bem como grande parte dos manuais de teorias e sistemas psicológicos (WOLMAN, 1968; MARX e HILLIX, 1978) colocam a tônica na oposição dos gestaltistas às teses do elementarismo associacionista. E de fato, isto é de grande importância no movimento gestaltista. Contudo, uma ênfase excessiva e unilateral dada à questão da forma pode levar ao esquecimento de certas sutilezas das teses gestaltistas. O objetivo aqui não é realizar uma análise minuciosa do gestaltismo, mas se seguimos mais de perto algumas de suas trilhas, isto se deve à seguinte hipótese: o gestaltismo porta uma complexidade maior, que é deixada de lado por grande parte destes comentadores, no sentido em que a preocupação com a dimensão de forma é indissociável do reconhecimento da existência de um plano dinâmico, ou dizendo de outra maneira, de um campo de forças que participa da atividade perceptiva. Não se trata de afirmar que a dimensão dinâmica ou o campo de forças esteja ausente destas análises, mas sim que

não recebem seu justo estatuto. Trazer à tona estas linhas menores, levando-as

adiante e operando desvios onde for necessário, será de grande importância na compreensão da forma artística e da potência afetiva presente na experiência com a arte. A sutileza, muitas vezes esquecida, da tese gestaltista desenvolvida por Wertheimer, Köhler e Koffka após os trabalhos iniciais de Ehrenfels, é que a forma, ou estrutura, é contemporânea aos seus elementos. Não deriva, como mostramos acima, da adição das propriedades dos elementos, mas também, por outro lado, não se impõe a estes como uma forma pré-estabelecida. Gilbert Simondon (1989, 2006) afirma que esta é a grande novidade !! !

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introduzida pela Teoria da Gestalt. Num curso ministrado sobre o tema da percepção (2006), Simondon ressalta que contrariamente ao que aprendemos habitualmente, a teoria gestaltista da percepção não deve ser entendida como molar nem como molecular, já que o todo e as partes estão em constante inter-relação e se definem mutuamente. “A Psicologia da Gestalt renova a noção de forma e faz em certa medida a síntese da forma arquetípica platônica e da forma hilemórfica aristotélica graças à uma noção explicativa e exemplar, tirada das ciências da natureza: o campo2” (SIMONDON, 1989, p. 36). A noção de campo desempenha aqui papel fundamental pois é a partir dela que se pode pensar ‘uma reciprocidade de status ontológicos e de modalidades operatórias entre o todo e o elemento’ (idem, p. 44). Simondon chega a afirmar que ‘a definição do modo de interação característica do campo constitui uma verdadeira descoberta conceitual’ (idem). Um campo elétrico, eletromagnético ou gravitacional, consiste em um sistema distribuído de linhas de força que constituem uma configuração potencialmente ativa, ou seja, uma distribuição de energia. Em um campo, um elemento possui dois status e cumpre duas funções: na primeira, enquanto recebe a influência do campo, ele é submetido às suas forças, é um certo ponto do gradiente pelo qual pode-se representar a repartição do campo; na segunda, ele intervém no campo como ativo e criador, pois modifica as linhas de força deste e a repartição dos gradientes (SIMONDON, 1989). Assim, podemos dizer que uma vez que um corpo é colocado em um campo, não só este corpo sofrerá determinadas afecções e terá seu comportamento modificado, como também produzirá uma mudança no campo, já que em sua vizinhança a configuração será afetada de modo recíproco3. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2

Tradução nossa. Todas as traduções das obras não publicadas no Brasil, assim como daquelas que comparecem no original em nossas referências, são de nossa responsabilidade. 3 É interessante ver que o poeta Paul Valéry (2007) apontava em seu célebre texto sobre Leonardo da Vinci como a idéia de ‘ação à distância’ presente nos trabalhos científicos de Faraday sobre campos elétricos apresentam uma forte ressonância com a imaginação artística e os métodos de composição de Da Vinci.

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Ao colocar o problema da percepção como um fenômeno de campo os Gestaltistas abriram espaço para uma teoria altamente dinâmica da percepção onde se fazem presentes noções como densidade, tensão, limite e força, que permitem pensar a experiência perceptiva para além da impressão passiva de estímulos e na qual mesmo os espaços vazios são investidos de poder de ação. O espaço da percepção, ou seja, o espaço apreendido concreta e perceptivamente, se distingue do espaço da geometria euclidiana, um meio homogêneo e sempre idêntico a si mesmo, pois comporta diferenciações internas, regiões e direções privilegiadas, densidades diversas. O espaço percebido é assim, para usar os termos de Koffka (s/d), anisotrópico, em contraposição ao espaço isotrópico da geometria. Fayga Ostrower, artista de renome internacional e cujo trabalho no campo da arte se baseia amplamente na teses gestaltistas, dá uma descrição de como isto opera na pintura (e podemos dizer na percepção de forma geral)Ao se introduzir no plano pictórico alguma marca visual, digamos, uma forma mais ou menos triangular, imediatamente se estabelece uma relação ‘figura-fundo’. A figura triangular não apenas será percebida como elemento ‘ativo’, contrastando com o fundo ‘passivo’, como também a expansão espacial deixa de ser uniforme, diferenciando-se fisicamente ao se tornar mais densa e corpórea na área ocupada pelo triângulo. Mas as diferenças não param por aí. Em torno da figura triangular propaga-se um campo de tensões espaciais, que emanam desta figura e por ela também são delimitadas. Este campo é virtual e, portanto, invisível, mas ele é atuante, pois qualquer outra marca que for colocada em sua área será imediatamente afetada pelas tensões existentes. Dependendo da magnitude do contraste visual da figura triangular e da nova marca, da proximidade entre as duas, bem como de sua posição no plano pictórico, se estabeleceriam certas relações formais que nos fazem ver uma nova configuração, abrangendo ambas, com novas tensões espaciais e novos limites. Isto por sua vez altera novamente as características do espaço” (OSTROWER, 1998, p. 94).!!!

1.1.1. Caracteres fisionômicos e expressão No que diz respeito às propriedades dinâmicas presentes na configuração do campo perceptivo cabe destacar também aquilo que Koffka (s/d) denominou caracteres fisionômicos. O mundo percebido não é composto apenas de formas geométricas, cores, sons, texturas, etc., !! !

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pois comporta uma infinidade de propriedades afetivas e expressivas que não podem ser descritas apenas nestes termos. Assim, vemos a ‘melancolia’ de um salgueiro ou o porte ‘vigoroso’ de um carvalho, diferentes tons de vermelho podem assumir um caráter ‘quente’ ou ‘insinuante’, um som pode ser ‘gordo’ ou ‘ameaçador’. O caso da música aqui é bem ilustrativo como o ressaltam Kretch e Crutchfield (1963): “Na percepção da música, como um exemplo por excelência, essas propriedades expressivas e afetivas são irresistíveis. Uma das coisas mais imediatas, que percebemos numa peça musical, é se ela é ‘plangente’, ‘alegre’, ‘melancólica’ ou ‘poderosa’, ou uma combinação complexa destas qualidades, e de numerosas outras” (KRETCH e CRUTCHFIELD, 1963, p. 31).

Podemos dizer que se Kretch e Crutchfield colocam o caso da música como um exemplo por excelência, isto se deve não somente ao fato ressaltado por eles de que nela as propriedades expressivas são preeminentes. Mas também porque estas propriedades comparecem como um elemento importante a ser trabalhado nos mais variados momentos e planos do processo de composição musical (indo para além da questão da melodia), como o comprovam o emprego dos modos ‘maior’ ou ‘menor’, o andamento escolhido, a dinâmica de execução e até mesmo os timbres dos instrumentos utilizados. É célebre a colocação de Paul Valéry (2007) quanto à comoção produzida por um simples timbre de violoncelo. Apesar do termo ‘fisionômico’ derivar de ‘fisionomia’, utilizado para tratar das qualidades expressivas presentes no rosto humano, Koffka (s/d) faz questão de deixar claro que estas qualidades pertencem à todo e qualquer objeto. E não se trata aqui de uma ‘antropomorfização’. Trata-se sim de ressaltar que este caráter expressivo é um dos dados mais proeminentes na situação perceptiva e que não tem sua manifestação resumida ao mundo humano. Na verdade, esta é uma das grandes novidades trazidas pela teoria gestaltista, e que será de particular importância no campo da arte. Contra as teorias tradicionais que vêem no !! !

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fenômeno da expressão seja a necessidade da presença de um espírito a ser expresso, seja a projeção de um estado subjetivo daquele que vê, os gestaltistas defendem que a expressividade é inerente ao objeto expressivo (talvez fosse até mais preciso afirmar que a expressividade é inerente à situação de campo). ! Neste sentido são diversos os exemplos tirados da percepção animal, dentre os quais o clássico experimento no qual Köhler teria utilizado uma máscara com grandes olhos arredondados e boca proeminente para alimentar seus chimpanzés. Ao entrar na gaiola, nenhum dos animais foi capaz de se aproximar, fugindo em debandada, dado o caráter assustador da máscara. Esta forte presença da dimensão expressiva na percepção animal apontada pelos Gestaltistas, e que diz respeito à dimensão dinâmica da percepção enquanto atividade vital, encontrará ressonância também nos trabalhos de Simondon (2006) quando este mostra que “as formas significantes do mundo animal são geralmente posturas, antes que formas abstratas e isoladas; a ameaça, o abandono no decorrer de um combate, são manifestados por um conjunto configuracional particular à cada espécie colocando geralmente em jogo partes definidas do corpo [...]. O animal utiliza por vezes particularidades temporárias de seu organismo, como se existisse uma co-adaptação entre o comportamento e o aspecto exterior” (SIMONDON, 2006, p. 206).

Koffka dá uma amplidão ainda maior a estas considerações ao afirmar que “Muitos psicólogos foram levados à crença, que considero bem fundada, de que, em estágios mais primitivos do desenvolvimento humano, nas crianças e povos primitivos, esses caracteres fisionômicos desempenharam um papel muito maior do que em nosso mundo comportamental (Scheler, Werner). O mundo comportamental primitivo é [...] um mundo fisionômico, o que significa que a organização do campo é tal que promove os caracteres fisionômicos à custa daquelas propriedades que consideramos constituírem características predominantes” (KOFFKA, s/d, p. 371). !

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Vê-se que é privilegiada aqui uma dimensão do fenômeno perceptivo que coloca em jogo algo de todo diferente da mera apreensão, por parte de um sujeito, dos atributos sensíveis de um objeto. O que o exame dos caracteres fisionômicos traz à tona é o primado das relações dinâmicas, ou estados de tensão como o diz Koffka, que se manifestam nas situações de campo. Koffka faz questão de marcar que deixa em aberto a explicação quanto à origem dos caracteres fisionômicos. No entanto, ressalta ser notável que estes são tanto mais proeminentes quanto menor for a distinção do campo em termos de sujeito-objeto. “Quanto mais unitário for o campo total composto pelo Ego e o meio, mais este último será dotado de caracteres fisionômicos. A falta de separação significa uma ampla interação fisionômica”. (KOFFKA, s/d, p. 372). E como ele próprio afirma: “a separação entre o Ego e o seu meio aumenta com o progresso da civilização” (idem).4 Daí a importância dada à percepção animal e aos chamados ‘estágios mais primitivos do desenvolvimento humano’. Vemos que não se trata de afirmar que os caracteres fisionômicos independem da relação sujeito-objeto, mas que estes apontam para um tipo de relação afetivo-expressiva que é anterior a sua completa distinção. Caminha-se portanto na direção contrária a uma certa visão antropomórfica e subjetivista, onde o modo de percepção do homem adulto, civilizado é tomado como centro de referência. Não há aqui qualquer juízo de valor negativo no uso do termo ‘primitivo’, pois o que Koffka mostra é exatamente como o privilégio excessivo dado ao pensamento conceitual-abstrato, que situa a percepção apenas como conhecimento objetivo incipiente, nos priva de grande parte da riqueza e do dinamismo presentes no mundo. “Nossa preocupação com o uso prático e as propriedades científicas classificáveis, privou nosso mundo de muitos desses caracteres. Um cadáver, para a pessoa comum, tem um caráter muito forte de temerosa repulsa, mas não para um estudante de Medicina, que dissecou dúzias de cadáveres. Por outro lado, se pudermos abandonar nossa atitude prática ou científica, apercebemo-nos de um número cada vez maior destas características. Entre nós, os poetas e artistas, são os que mais estão

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Por isso Koffka aponta ser pouco adequada a utilização do conceito de ‘caracteres exigentes’ de Kurt Lewin na apreciação destes fenômenos. Cf. Koffka (s/d, p. 370-371)

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livres dos anseios de eficiência. E, na verdade, o mundo é para eles mais rico de tais caracteres do que para nós.” (KOFFKA, s/d, p. 370)

E completa afirmando como para um artista do porte de Van Gogh, por exemplo, mesmo uma simples cadeira ‘parece conter todo o pathos do mundo’(idem). A importância destas questões para a arte é acentuada pelo crítico Mário Pedrosa, que em sua tese de 1949 Da natureza afetiva da forma, propõe a superação da antítese subjetividade versus objetividade precisamente por meio desta discussão acerca dos caracteres fisionômicos. Pedrosa afirma que ‘o fenômeno artístico consiste, no fundo, em ver tudo fisionômicamente’ (PEDROSA, 1964, p. 74). Trata-se de possibilitar um exercício da visão em que esta reencontra o mundo em sua expressividade própria. Dispara-se um duplo movimento no qual o olhar humano despoja-se de suas bagagens reflexivas para reencontrar seus desvarios e afetos inumanos, assim como as coisas sensíveis se libertam dos grilhões do silêncio que lhes foram impostos. A poesia de Francis Ponge nos parece um excelente exemplo deste duplo movimento. Na verdade este é o ponto central de seu projeto e de seu método. Como ele mesmo afirma, o próprio da poesia “é alimentar o espírito do homem, fazendo-o desembocar no cosmo. Basta rebaixar nossa pretensão de dominar a natureza e elevar a nossa pretensão de fazer fisicamente parte dela para que a reconciliação tenha lugar” (PONGE, 1997, p. 73). Ponge é conhecido como o ‘poeta dos objetos’5, e se formos levados apenas pelos títulos de seus poemas (o engradado, o cigarro, a vela, para citar alguns) talvez pudéssemos acreditar nisso. Mas se nos aproximarmos um pouco mais de seu trabalho, veremos que há muito mais em jogo. Segundo Ponge os poetas “são os embaixadores do mundo mudo. Enquanto tais, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 5

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Cf. Leda Tenório da Motta (2000).

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balbuciam, murmuram, afundam na noite do logos, até que, enfim, se encontrem no nível das raízes, onde se confundem as coisas e as formulações.” (idem, 74). O poeta deve realizar um longo trabalho sobre si, sobre sua atenção para deixar-se ver, para deixar-se invadir pelas coisas, abrir-se à sua ‘vida secreta’. E fazer do poema, ele próprio, uma coisa. Fazê-lo alcançar a realidade em seu mundo próprio. Trata-se de abrir as palavras às suas três dimensões: visual, auditiva e ‘talvez a terceira seja algo assim como a sua significação” (idem, p. 139). Pode soar estranha a afirmação de que uma coisa tenha vida, e ainda mais secreta, mas o que Ponge nos faz ver é que as coisas!!estão em nosso campo de visão, nos desviamos delas ao andar, as levantamos, as buscamos, mais precisamente as manipulamos, mas ainda assim lhes somos quase completamente insensíveis já que é “constantemente como meio, meio termo de homem para homem, que as coisas são consideradas, nunca por elas mesmas” (PONGE, 1997, p. 135). As coisas nos rodeiam, mas continuam sempre ‘lá fora’. Como disse Ponge em uma conferência em Stuttgart, “Nós estamos aqui, fechados nesta sala. É uma coisa concreta. É verdade. Somos homens, mulheres, vocês estão me ouvindo, eu estou falando. Mas as coisas continuam lá fora. Tudo está funcionando. A Terra, o sistema, é preciso pôr essa idéia na cabeça, tudo está funcionando, tudo em andamento, o mundo gira e não somente as plantas crescem, lenta mas seguramente, mas as pedras aguardam para explodir ou virar areia. Aqui também, os objetos estão vivendo. Há objetos por todo lado, estamos cercados de testemunhas mudas, mudas enquanto que nós... Em todo caso, essa realidade, não só do funcionamento (seria quase tranquilizador) mas da existência, provavelmente tão dramática quanto a nossa, dos mínimos objetos, - vocês entendem -, quem cuida disso6?” (PONGE, 1997, p. 133).

É o artista que vela por esta vida secreta das coisas, pela eloquência dessa ‘enfiada de coisas mudas, que não podem se exprimir, senão por suas poses, suas maneiras de ser, as formas a que estão constrangidas, que são sua danação, como nós temos a nossa” (PONGE, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 6

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Grifos nossos.

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1997, p. 134). O artista então toma o partido das coisas7. Pois “há pessoas que passam, vivem, têm razão, mas não são violentamente atingidas em sua sensibilidade pelo que acontece, pelo que existe” (idem, p. 133). Vemos aqui a força sutil da empreitada de Ponge. Em um primeiro momento poder-seia tomar suas colocações como místicas. Mas trata-se precisamente do contrário. As coisas não são humanizadas, é o homem que se depara com tudo aquilo que há de inumano em si e no mundo. Tomar o partido das coisas não é botar palavras na boca de objetos, mas pelo contrário, deixar que eles falem por meio da sua. Há de se deixar ver para que uma nova fala se produza. Como diz Sartre (2005) em um brilhante ensaio devotado ao poeta, as coisas ‘o têm habitado por longos anos, povoam-no, revestem o fundo de sua memória [...]; bem antes que tivesse tomado o partido de escrevê-las, elas já o perfumavam com suas significações secretas; e seu esforço atual é muito mais o de pescar no fundo de si mesmo esses monstros fervilhantes e floridos e restituí-los do que o de fixar suas qualidades após escrupulosas observações” (SARTRE, 2005, p. 232).

Não há uma observação descritiva, pois o objeto não ‘lhe aparece, como para Kant, como um pólo x, suporte de qualidades sensíveis” (op. cit., p. 256). Ponge não vê as coisas de fora, de longe. Exercita uma outra modalidade de visão que ao invés de instaurar uma separação sujeito-objeto, faz o movimento contrário. O artista se deixa invadir pelo inumano. Na direção do que apontavam Koffka e Pedrosa, trata-se de reativar este plano em que a percepção é intimamente ligada aos afetos, pois perceber deixa de ser fixar qualidades para se tornar ponto de abertura onde suas próprias condições de funcionamento são moventes. “Toda felicidade do contemplador está na sua recusa de considerar como um mal a invasão de sua personalidade pelas coisas” (PONGE apud SARTRE, 2005, p. 245). E aí um outro universo se descortina. Vê-se que as coisas são complexos, possuem modos de comportamento, se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 7

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Este é o título de uma de suas obras publicadas no Brasil.

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agenciam com outras coisas em torno de si, afetam e são afetadas. É isto, por exemplo, o que está em jogo no poema Os prazeres da porta!" Os reis não tocam nas portas. Não conhecem esta ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção para recolocá-la no lugar, - ter nos braços uma porta. ... A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento. Com a mão amiga a retém ainda, antes de reempurrá-la decididamente e encerrar-se, - o que o estalido da mola potente, mas bem azeitada, lhe assegura agradavelmente. (PONGE, 2000, p. 73)

Esse exercício da sensibilidade, ou como diz o próprio Ponge em sintonia com uma formulação bergsoniana, esta conversão da atenção colocada em jogo pela poesia e pela arte de maneira geral, não levam a qualquer apologia de fuga do mundo ou renúncia à ação, mas implicam um esforço por manter constantemente vivo o pólo perceptivo. Como marca Sartre, longe de suspender todo comércio com o mundo, o exercício da sensibilidade proposto por Ponge supõe, ao contrário, inúmeros empreendimentos que devem tão somente satisfazer a exigência de não serem utilitários. Ponge nos indica, por exemplo, o que é preciso para manifestar as qualidades singulares de uma lavadora: Não basta tê-la contemplado muitas vezes, sentado numa cadeira./ É preciso – vacilando – tê-la suspendido do chão, repleta de sua carga de tecidos imundos, num único esforço, para levá-la à fornalha – onde a devemos arrastar de um certo modo para em seguida assentá-la no tampo do braseiro./ É preciso ter atiçado sob ela as brasas para progressivamente comovê-la; frequentemente apalpado suas paredes mornas ou escaldantes; depois escutado o profundo frêmito interior, e as várias vezes desde então levantado a tampa para verificar a tensão dos jatos e a regularidade da rega./ É preciso tê-la enfim, toda fervente, ainda abraçado novamente para repô-la ao chão./ Talvez nesse momento a tenhamos descoberto. (PONGE, apud SARTRE, 2005, p. 247).

Vê-se que não há aqui nenhuma manipulação de um objeto por parte de um sujeito, pois esta manipulação envolveria uma meta, um sistema de referência que guiaria o olhar !! !

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privilegiando certos detalhes em detrimento de outros. O problema da utilidade é o quinhão de cegueira que impõe. Decerto que Ponge realiza estas ações no contexto de alguma tarefa cotidiana, mas esta torna-se quase incipiente diante da abertura ao plano geral da experiência com que Ponge parte para ela (o que nos leva a supor inclusive a possibilidade do prejuízo de sua realização). Indo ainda mais longe nos efeitos de um tal exercício pode-se ver como, para Ponge, o empreedimento do artista, mais precisamente o do poeta, se torna revolucionário: o exercício sensível que nos abre às coisas produz uma transformação que arrasta em si a linguagem. E aí, toda uma ordem social se quebra. Segundo o poeta, a! conversão da atenção nos abre ao mundo e fissura as palavras e idéias em nós cristalizadas. Como ele mesmo diz, “nosso primeiro motivo foi sem dúvida uma aversão a isso que somos obrigados a pensar e a dizer” (PONGE apud SARTRE, 2005, p. 234). E seguindo ainda com suas palavras: “Esses atropelos de caminhões e de carros, esses bairros que não alojam mais ninguém, mas apenas mercadorias, ou os dossiês das companhias que as transportam [,] esses governos de especuladores e de comerciantes, tudo isso ainda passaria se não nos obrigassem a tomar parte. Infelizmente, para cúmulo do horror, no interior de nós mesmos fala a mesma ordem sórdida porque não temos à nossa disposição outras palavras nem outras grandes palavras (ou frases, isto é, outras idéias) que não aquelas que um uso diário nesse mundo grosseiro vem prostituindo há uma eternidade.” (idem, p. 234-235)

O poeta não dispõe das palavras e idéias, mas é disposto e deposto por elas a partir do exercício sensível que as movimenta e que impõe a criação. O poeta não é o fundamento da criação, algo que o poeta Mário Quintana (1976) também expõe no poema Instrumento: Impossível fazer um poema Neste momento. Não, minha filha, eu não sou a música - sou o instrumento.

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Sou, talvez, dessas máscaras ocas Num arruinado momento: Empresto palavras loucas À voz dispersa do vento...

Por isso Sartre pode dizer acerca de Ponge e do alcance que este visava na poesia e na arte em geral: “resta que essa tentativa de conquistar terras virgens para as nossas sensibilidades se apresenta a seus olhos como altamente moral” (SARTRE, 2005, p. 249).

1.1.2 Complexificando o equilíbrio: as leituras de Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon Note-se que a aproximação de tais questões ao universo teórico do Gestaltismo nos leva muito longe das leituras mais comuns às quais nos referimos anteriormente, onde são as noções de forma e equilíbrio que concentram todas as atenções. Rudolf Arnheim, um dos grandes teóricos da psicologia da arte da segunda metade do século XX e cujo trabalho foi estreitamente ligado ao gestaltismo, afirma que uma tal leitura decorre de um longo processo de simplificação das teses gestaltistas. No texto The two faces of Gestalt psychology (1986) defende que uma grande distância separa os trabalhos dos pioneiros da psicologia da Gestalt da apresentação realizada pelos comentadores e pesquisadores mais recentes. No processo histórico de assimilação e transmissão de seus postulados e princípios, pontos importantes das pesquisas foram sendo obscurecidos, de forma que grande parte dos estudiosos perdeu de vista seu sentido de novidade e o alcance de suas formulações. Isto produziu uma lacuna que, segundo sua avaliação, gera uma sensação de estranheza quando aqueles que foram formados pelos fundadores desta escola se deparam com certos comentários simplificadores que !! !

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reduzem o gestaltismo a uma teoria da forma. Um dos pontos constantemente negligenciados diz respeito exatamente ao caráter dinâmico presente na teoria. Segundo Arnheim, a ênfase excessiva dada pelas gerações subseqüentes aos aspectos organizacionais e de auto-regulação da estrutura da Gestalt, princípios de combinação e segregação de formas, em detrimento da

preocupação com a complexa dinâmica da

organização em situações de campo, talvez tenha sido facilitada pelo fato de que, em um primeiro momento, os próprios teóricos da Gestalt tiveram que concentrar seus esforços nesta direção,!Havia uma grande preocupação nos trabalhos que datam do início do século XX em buscar, por um lado, construir uma teoria psicológica da percepção que fizesse justiça à experiência perceptiva tal como ela se dá, e que, por outro lado, se afirmasse como estritamente científica. As leis da percepção deveriam estar, portanto, em estreita continuidade com as leis da física e da fisiologia. Daí a importância de encontrar princípios explicativos que dessem conta da ordem percebida sem que fosse necessário supor quaisquer atividades reguladoras superiores. Nas palavras de Koffka: “assim, aceitamos a ordem como uma característica real, mas não precisamos de qualquer agente especial para produzi-la, pois a ordem é uma consequência da organização e a organização o resultado de forças naturais. Desta maneira, nossa discussão tornou manifesto como a natureza produz ordem” (KOFFKA, s/d, p. 186).

O conceito de isomorfismo desempenha aqui um importante papel, pois é a partir dele que é pensada a articulação com os processos de campo de ordem física e também fisiológica (sendo esta intermediária entre o mundo físico e o psicológico). Esta articulação é da ordem de uma correpondência estrutural. A objetividade da percepção residiria exatamente no rigor desta equivalência isomórfica entre a ordem percebida e a ordem física. O exemplo da autodistribuição de cargas elétricas em corpos condutores isolados, é frequentemente utilizado !! !

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para demonstrar processos físicos de auto-organização. Nestes processos é a tendência ao equilíbrio que rege a auto-organização, como postula o princípio geral de Le Châteler: “se uma alteração se produz num dos fatores que determinam uma condição de equilíbrio, o equilíbrio modifica-se de maneira tal que tende a anular o efeito dessa alteração” (GUILLAUME, 1966, p. 26). Assim, o sistema está em equilíbrio quando sua energia potencial é miníma, ou seja, quando suas forças compensam-se mutuamente de forma que nenhuma transformação ulterior seja possível e o estado final seja estável. A contrapartida psicológica do princípio de Le Châtelier é a chamada Lei da Boa Forma, expressa pela formulação: “a forma será tão boa quanto permitam as condições atuais” (KÖHLER, 1968, KOFFKA, s/d). Vemos aqui como o campo perceptivo, assim como os processos físicos de auto-organização, é estruturado a partir de sua tendência ao equilíbrio, ou seja, pela tendência de que a configuração resultante seja a mais estável de acordo com as condições dadas. A configuração do campo percebido, ou seja, a constituição de figura e fundo, a segregação de unidades perceptivas e suas respectivas localizações, enfim, todo o conjunto de articulações que delimitam grupos, subgrupos e suas inter-relações, respondem a um processo de equilibração que tende a alcançar um estado cujo grau de tensão é mínimo. Vemos assim como se abre caminho para algo que é recorrente nas análises acerca do Gestaltismo: não só as idéias de campo e equilíbrio são tomadas como sendo acopladas de modo unívoco, como também se passa muito rapidamente da formulação de que o campo perceptivo é uma totalidade estruturada, para a afirmação de que percebemos formas simples e estáveis. Dessa maneira, reduz-se a complexidade e a riqueza de problemas trazidos pelas teses gestaltistas apenas à questão das leis de auto-organização e da estabilidade das formas. Neste tipo de leitura homogeneizante, é diminuída a importância da compreensão da

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percepção como um fenômeno de campo, tornando obscuro, ou mais ainda, dispensável, o caráter dinâmico da teoria gestaltista. Um dos mais importantes comentadores do Gestaltismo na França, Paul Guillaume, parece seguir este caminho quando afirma: “Estudamos estados estáticos e processos estacionários nos quais o equilíbrio final, ou o regime regular, realizam-se, a partir das condições iniciais, por mudanças dinâmicas, muitas vezes rápidas, às vezes quase instantâneas, das quais nada dissemos. Porém, é importante que não tenhamos tido necessidade de estudá-los em si mesmos para determinar seu resultado. Seja qual for o modo de abordagem, o ponto escolhido e, por conseguinte, o curso particular do processo dinâmico, o resultado final é o mesmo8” (GUILLAUME, 1966, p. 25).

E ainda: “Pode-se, pois, dizer que no conflito entre as formas possíveis, o agrupamento, ou a disjunção, fazem-se no sentido da realização de uma forma privilegiada. As formas privilegiadas são regulares, simples, simétricas9. A forma que é percebida é a melhor possível.” (idem, p. 43).

Nota-se como todos os aspectos e transformações dinâmicas da experiência perceptiva são relegadas a segundo plano, já que não só se privilegia a forma final alcançada, como também se sabe de antemão que todas estas transformações convergem em um sentido único, que é o da forma regular e simples. As colocações de Jean Piaget (1979, 1983), ainda que por outras vias, também caminham no sentido de uma leitura simplificadora do gestaltismo. No texto O que subsiste da teoria da Gestalt (1983) Piaget ressalta que os princípios de totalidade e equilíbrio são duas das maiores contribuições da Psicologia da Gestalt ao estudo da percepção e podem ser tomadas como noções ‘definitivamente adquiridas’. No entanto seria necessário, segundo ele, complementar suas propostas de pesquisa, pois os teóricos do Gestaltismo não teriam levado em conta a totalidade dos fatos ao não reconhecer a existência da ‘multiplicidade dos planos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 8 9

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Grifo nosso. Grifo do autor.

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sobre os quais se organiza a percepção’. (idem, p. 277). Ao valorizar aquilo que Piaget define, significativamente, como os ‘efeitos primários do campo’, o Gestaltismo representaria um tipo de estruturalismo não genético, ‘cujo ideal implícito ou confesso, consiste em procurar estruturas que possam considerar como ‘puras’, porque as desejam sem história e, a fortiori, sem gênese, sem funções e sem relações como sujeito” (PIAGET, 1979, p. 47). O que aponta Piaget então é que para além dos ‘efeitos primários do campo’, há que se considerar a atividade exploratória por parte do percebedor. Esta atividade, cuja importância segundo Piaget ultrapassaria aquela dos efeitos de campo no decorrer do desenvolvimento do sujeito percebedor, é denominada como analítica e consiste na mobilização de ‘esquemas perceptivos’, que são transponíveis por recognição e generalização, produzindo novas estruturações no campo perceptivo. Estruturações essas que são de caráter reversível e de composição aditiva, distintas portanto daquelas de cunho gestáltico, e mais próximas das operações da inteligência. Isto fica evidente na afirmação de Piaget de que neste ponto a atividade perceptiva “se encontra em ligação cada vez mais estreita com a inteligência por intermédio dos esquemas sensórios-motores” (idem, p. 277). Aqui é importante sinalizar dois pontos. O primeiro é a quase equivalência feita por Piaget entre ‘atividade exploratória do sujeito’ e atividade inteligente. Esta última viria a ‘suplantar’, de acordo com o grau de desenvolvimento cognitivo do sujeito, as atividades primárias da percepção. Nota-se aqui como a sensibilidade é ainda considerada apenas enquanto dimensão passiva a ser suplantada pela atividade da inteligência. Quanto maior for o desenvolvimento desta, mais seu funcionamento se encontra ‘deslocado’ do plano concreto da sensibilidade. Daí a colocação de Piaget de que ‘a descrição gestaltista permaneceu pois muito global para atingir quantitativamente (e mesmo em parte qualitativamente) o que diferencia as estruturas primárias (efeitos perceptivos de campo) das estruturas da !! !

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inteligência” (PIAGET, 1983, p. 278). Talvez não seja exagerado afirmar que a desvalorização do plano concreto da sensibilidade (já que como se nota nas colocações de Piaget o conhecimento perceptivo é um momento a ser superado no processo de desenvolvimento do sujeito cognitivo) é reflexo (ou consequência) da própria forma de colocação do problema da cognição por Piaget. Sua preocupação epistemológica central, poderíamos dizer dominante, é o desenvolvimento das faculdades lógico-formais do sujeito, e seu modelo de inteligibilidade da cognição é tomado da ciência, não da arte. Daí, por exemplo, a ausência de uma contribuição piagetiana significativa neste campo. Não se trata de julgar a importante obra de Piaget por aquilo que ela não se propôs a fazer, mas não se pode deixar de afirmar que este silêncio é significativo em uma obra tão vasta. O segundo ponto diz respeito ao fato de Piaget situar o sujeito percebedor fora daquilo que se considera os ‘efeitos de campo’. No entanto, como ressalta Penna (1993), pensar a percepção como fenômeno de campo não é o mesmo que recusar qualquer relação do percebido com a experiência do percebedor. Este apenas não é o fundamento da experiência perceptiva. As atividades exploratórias são decorrentes de propriedades e transformações dinâmicas reveladas pelo próprio campo, e isto é importante pois permite pensar a percepção em seu caráter funcional e concreto10. Em suas palavras: “Vale assinalar que a hipótese derivada da perspectiva gestaltista configura-se como uma hipótese de campo, no sentido de enfatizar a conduta exploratória como expressão de uma relação sujeitoobjeto, ou, ainda, como expressão de propriedades exibidas por um campo de forças e não como função, apenas, de propriedades radicadas no sujeito” (PENNA, 1993, p.80).

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Lembramos que nos quadros da teoria gestaltista foi Kurt Lewin quem levou mais longe estas questões ao reforçar a necessidade de se pensar todo evento psicológico como compreendendo a totalidade dos fatos que podem determinar o comportamento do indivíduo em um determinado momento. Aqui cabe apenas remeter ao conceito de Espaço Vital (Lewin, 1973, Garcia-Roza, 1972), de grande importância em sua obra.

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Da mesma maneira coloca Simondon (1989) quando afirma: “se existe um campo exterior, um campo fenomenal no processo da percepção, porque não considerar o sujeito como estando no campo, logo realidade de campo11? Existiria um campo total que se subdividiria em dois sub-conjuntos, o campo sujeito e o campo objeto; a ação seria a descoberta de uma estrutura, de uma configuração comum ao campo exterior e ao campo interior” (SIMONDON, 1989, p.47).

Na mesma direção das colocações de Penna e Simondon caminham as considerações de Rudolf Arnheim. Segundo este, é pelo fato de apreendermos isoladamente certos princípios que deveriam ser tomados sempre em estreita articulação aos processos de campo, que perdemos de vista a complexidade e o caráter dinâmico da Teoria da Gestalt. O resultado disso é apontado como uma ‘limitação fatal’ (ARNHEIM, 1986), já que a percepção visual consiste precisamente na “experimentação de forças visuais” (ARNHEIM, 1991). É comum encontrarmos análises sobre as totalidades estruturadas, as Gestalts, que se iniciam pelo famoso slogan de Wertheimer ‘o todo é maior do que a soma das partes’. No entanto, segundo Arnheim, esta formulação é problemática se tomada isoladamente. O que constitui o cerne da concepção da gestalt é a articulação de dois princípios centrais. O primeiro se refere ao fato de que em processos de campo a estrutura do todo interage com aquela dos seus componentes. O segundo, mais conhecido como Lei da Boa Forma, postula que os padrões da Gestalt tendem em direção à organização mais simples, regular e simétrica possível sob as condições dadas (e mesmo este segundo princípio será nuançado por Arnheim, como veremos adiante). Uma vez que grande parte dos estudos e discussões é centrada alternadamente sobre apenas um destes dois princípios, guardando uma pequena consideração ao outro, esta articulação se torna cada vez menos explícita. A concepção de forma se distancia cada vez mais de seu plano dinâmico, pois perde-se de vista que estas formas mais ‘simples’, regulares !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 11

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Grifos do autor.

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ou simétricas, são efeitos de um processo de equilibração sujeitas às flutuações dos processos de campo. Um bom exemplo disso é a importância excessiva e unilateral dada às regras de agrupamento visuais de Wertheimer. Estas regras, segundo as quais a segregação das unidades perceptivas responde a fatores como proximidade, semelhança e boa continuação, foram de grande interesse pois serviram como um contraponto às teorias clássicas que submetiam a organização do campo perceptivo ao processo de aprendizagem. Mas se as complexas relações entre o todo e as partes forem reduzidas apenas à sua existência, estas regras poderiam ser tomadas apenas enquanto relações entre elementos, relações estas determinadas por fatores como distância, tamanho, direção ou movimento. Estaríamos neste caso, excessivamente próximos das teorias mais tradicionais. Esta forma de abordagem reduz também a diferença entre padrões de níveis de complexidade variáveis, simetria ou regularidade, a uma mera morfologia estática, a uma variedade de formas cuja presença e particularidade é tida como certa, tal como vimos na citação de Guillaume, e novamente perdemos de vista como estas formas estruturalmente distintas (a partir das citadas regras) se originam. Pois estas formas não são apenas um padrão visual entre outros, mas são efeitos de processos de equilibração cujos produtos finais possuem valor biológico e cognitivo. Arnheim ressalta repetidas vezes que os psicólogos da Gestalt, “mesmo quando se concentravam em problemas especiais de percepção visual, sempre os visaram como paradigmas adequados e concretos de padrões de ação, regulando a natureza física, tanto quanto o funcionamento biológico e mental em geral” (ARNHEIM, 1986, p. 821). Isto para o que Arnheim visa chamar a atenção é a necessidade de colocar o problema da percepção das formas em sua dimensão concreta, onde a situação perceptiva é portadora de sentido e funcionalidade. “Uma concepção unilateral das dinâmicas da gestalt fez com que o percepto parecesse desdobrar-se como uma flor, belo em sua simetria, mas sem relação com !! !

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suas obrigações de órgão de informação” (ARNHEIM, 1986, p. 822). É em decorrência destes valores funcionais de estrutura, presentes tanto na arte quanto em qualquer situação perceptiva, que Wertheimer falou em ‘boa gestalt’, utilizando um termo controverso, que é da ordem dos valores, para denotar um princípio de organização. Uma ‘boa forma’ portanto não significa apenas uma forma mais simples, mas uma forma que cumpre sua função dentro de um padrão ótimo de regulação. E isto coloca em jogo mais do que a tendência homogeneizante de redução de tensão. Arnheim (1991, 1997) propõe então dois passos. O primeiro consiste em denominar a Lei da Boa Forma de Lei da Simplicidade. Isto evitaria possíveis equívocos quanto à questões de caráter valorativo. O segundo passo é contrabalançar a importância da lei de simplicidade por meio do reconhecimento da existência de uma contratendência, que age em oposição à redução homogeneizante da tensão. No mundo físico o princípio da simplicidade opera sem resistência somente nos sistemas fechados. Quando não há intervenção de nenhuma energia externa, as formas que constituem o sistema se reorganizam até alcançar um equilíbrio estável, ou seja, um estado no qual não são possíveis transformações posteriores. No entanto, o organismo não é um sistema fechado. Fisicamente, ele contrabalança o dispêndio de energia necessário com a extração de recursos do meio. Este processo também ocorre psicologicamente, pois os organismos vivos absorvem através dos sentidos informações do meio que são trabalhadas internamente no sentido de poderem ser convertidas em ações possíveis. Os organismos vivos se deparam todo o tempo com mudanças de condições, que não só se colocam como obstáculos, mas também lhes servem como possibilidade de crescimento e desenvolvimento. Em suas palavras, “é bem possível que a principal característica do organismo vivo seja que ele representa uma anomalia da natureza em travar um penoso combate contra as leis universais da entropia retirando constantemente nova energia de seu ambiente.” (ARNHEIM, 1991, p. 28). Assim, !! !

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na experiência perceptiva concreta dos seres vivos a tendência a simplicidade, ou redução de tensão, está todo o tempo em funcionamento mas se depara com resistências que mobilizam uma tendência contrária, de elevação da tensão. Se a tendência para a estrutura mais simples tivesse sua formação sem oposição, ela não poderia produzir nada além de um campo homogêneo, o que impediria até mesmo a explicação acerca da existência de fenômenos de base, como aquele da distinção figura-fundo. É necessário portanto que a teoria da gestalt reconheça a presença de uma tendência contrária, situada no mesmo nível daquela que promove a estrutura mais simples, que é a tendência que permite a articulação de formas. Só a interação constante destas tendências complementares pode dar conta da percepção de formas. Segundo Arnheim (1986), Koffka já teria entrevisto isso, mas enfraqueceu suas colocações ao descrever as duas tendências como alternativas e não inerentes a qualquer evento perceptual. Esta tendência contrária é denominada por Arnheim (1991, 1997) como tendência anabólica ou construtiva. É em seu texto Arte e Entropia (1997) que esta discussão comparece mais detalhada, mas, a nosso ver, de maneira ainda pouco desenvolvida. Em suas palavras: “Esta demonstração revela-nos, sem surpreender-nos, que a tendência para a redução de tensão pela simplificação, só descreve a ordem de maneira incompleta. A redução da tensão promove a regularidade, mas a regularidade é só um aspecto da ordem. A tendência para endireitar as coisas, para reduzi-las economicamente aos seus elementos essenciais, não pode operar no vazio. Deve ter algo sobre o que atuar. Por isso, o nosso padrão estrutural deve ser ampliado para que inclua o que chamarei de tendência anabólica. Trata-se do princípio cósmico da criação de formas que explica a estrutura de átomos e moléculas, o poder de unir e libertar, que faz a sua estréia simbólica no livro Génesis quando o Criador separa as águas da terra seca. A termodinâmica chama-lhe entropia negativa, mas não podemos adotar aqui o costume de descrever a estrutura como ausência de forma” (ARNHEIM, 1997, p. 383).

Assim, toda forma percebida coloca em jogo tendências de aumento e redução de tensão, produzindo estruturas nas quais predominam seja um ‘nivelamento’, seja um ‘aguçamento’ (ARNHEIM, 1991). O nivelamento caracterizando-se pela presença de unificação, simetria, redução das caracteristicas estruturais, repetição, omissão de detalhes !! !

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não integrados, eliminação de obliquidade, etc. Já o aguçamento realça as diferenças, intensifica a obliquidade. Segundo Arnheim isto é bem ilustrado na história da arte, onde o classicismo e sua valorização da simplicidade, da simetria e da redução das tensões se coloca como o pólo oposto do expressionismo e sua ênfase do irregular, assimétrico, incomum e complexo. Estas duas vertentes, ou dois tipos de estilo, “resumem duas tendências cuja interação, em diferentes proporções, constitui a estrutura de qualquer obra de arte visual e na verdade qualquer padrão visual” (ARNHEIM, 1991, p. 59). Para Arnheim estas questões são de extrema importância na discussão do conceito, segundo ele controverso, de prägnaz (traduzido no português como pregnância). Para ele, ao ser transposto da língua alemã para a língua inglesa o termo se distanciou de seu sentido inicial, que é o de clareza, concisão, sendo tomado equivocadamente como sinônimo de simplicidade ou simetria. No entanto, a pregnância de uma forma não implica necessariamente simplicidade ou simetria. Arnheim (1991) cita

um experimento sobre

memória realizado por Friederich Wulf (1922) para ilustrar esta questão. Neste experimento Wulf utilizou figuras ambíguas compostas por linhas côncavas mais ou menos semelhantes à letra M, que eram apresentadas num tasquistoscópio, o que possibilitava alguma variação nas respostas dos sujeitos. Quando era requisitado que os sujeitos desenhassem aquilo que viam, dois tipos de respostas eram então observadas. Alguns sujeitos aperfeiçovam a simetria do modelo, aumentando sua simplicidade (nivelamento). Outros exageravam a assimetria, estabelecendo distinções mais claras do que as dadas na figura original (aguçamento). Ainda que em direções opostas, os dois grupos trabalharam no sentido de tornar a estrutura percebida o mais nítida ou pregnante possível (ARNHEIM, 1991). Nas palavras de Arnheim, “esse aspecto estético da criação da forma, familiar a qualquer artista, mas ativa em toda percepção, caracteriza a forma perceptual como produto de um processo altamente dinâmico, no

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qual a tendência em direção ao aumento da tensão de articulação interage com a tendência contrária em direção ao equilíbrio em cada caso” (ARNHEIM, 1986, p. 823).

É certo que Arnheim confere ainda grande importância à lei de simplicidade, mas o que ele visa deixar claro é que esta não é a única tendência presente na situação perceptiva. Há assim uma leitura do gestaltismo presente em seus trabalhos que reforça a colocação do problema da percepção a partir do campo de forças de onde emerge uma forma, numa luta entre o aumento e a redução da tensão. Algo que se tornava obscurecido pela sempre rápida passagem desta tese para a afirmação de que estas forças se anulam numa distribuição homogênea e estável. A boa forma não é, para Arnheim, necessariamente a forma mais simples, mas sim a mais expressiva e a menos ambígua. A pregnância é contrária à ambigüidade, não à complexidade. Segundo Arnheim, por isso as obras de arte são frequentemente citadas na psicologia da Gestalt como exemplos eminentes de gestalts. Isto se dá não apenas pelo fato de as obras dependerem de uma organização estrutural perfeita, mas também porque ao mesmo tempo em que alcançam um alto grau de complexidade, nelas a forma perceptual é purificada para obter a mais clara expressão dos significados. Sugerimos aqui que há indícios de um encontro às escuras entre os trabalhos de Rudolf Arnheim e Gilbert Simondon12. Neste caso, ainda que por vias diferentes e sem qualquer referência mútua explícita, apontam numa mesma direção, afirmando ser necessário reter as idéias gestaltistas, mas expandir suas teses para além do tema da forma e do equilíbrio, em favor do campo de forças e da dinâmica da forma em sua pregnância e expressão. Para Simondon, se conferimos uma importância exclusiva à lei da Boa Forma e tomamos como modelo de equilíbrio os processos estacionários, consideramos uma “boa forma” aquilo que !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 12

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Há um aparente desconhecimento recíproco entre estes autores cujas obras são contemporâneas.

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seria exatamente a degradação da forma. A “boa forma” não comporta um grau mínimo de tensão, mas um grau máximo de diferenciação. Há, segundo Simondon, na base de todo processo perceptivo uma descontinuidade, uma diferença de intensidade. A percepção, em sua forma mais característica, é um processo diferencial. “Se esta maneira de visar a percepção como essencialmente diferencial responde à realidade, devese encontrar como fundamento da percepção das formas a descontinuidade, o contraste simultâneo ou sucessivo entre duas estimulações, contraste em intensidade, precedendo a apreensão possível das qualidades. [...] Este tipo de sensibilidade às diferenças de intensidade é o aspecto primário da percepção das formas” (SIMONDON, 2006, p. 211).

Simondon sublinha então a necessidade de estabelecer uma distinção entre dois níveis de segregação das unidades perceptivas. Num primeiro nível a segregação se dá de acordo com o princípio de assimetria, implicando uma diferença de potencial que cria uma heterogeneidade no campo. Apenas num segundo nível a lei da boa forma se aplica, produzindo um equilíbrio estável nos sub-conjuntos destacados. Para além de um conjunto de transformações convergentes na direção da estabilidade e do equilíbrio, há um momento em que a diferença de potencial alcança um grau limite, onde o sistema possui um grau máximo de ativação. Vêse assim que o equilíbrio estável só surge quando o que ele chama de “problema perceptivo” já está resolvido. No entanto o que Simondon reforça é que o ponto chave para a justa compreensão do fenômeno perceptivo se encontra precisamente em sua face ‘problemática’, e não em sua face de problema já solucionado. Na verdade, este tipo de

inversão na forma de colocação dos problemas é

característico do pensamento simondoniano, sendo um dos pontos fundamentais de sua teoria da individuação. Esta teoria não se reduz ao fenômeno da percepção e diz respeito aos mais variados planos de realidade, havendo individuações físicas, biológicas, psíquicas, coletivas, !! !

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etc. Segundo Simondon é por partir dos indivíduos já constituídos e não dos processos de individuação que recaímos em modos de pensamento substancialistas e identitários perdendo de vista o caráter sempre movente e produtor de novidade do real. Pois há nesta forma de colocação do problema que parte do indivíduo e busca a condição de possibilidade de sua existência, sempre a suposição de que o princípio de individuação é anterior ao próprio processo. É dado aqui um privilégio ontológico ao indivíduo constituído, pois mesmo que se dêem transformações temporais estas são de caminho necessário. Há portanto o primado dos estados finais em detrimento dos processos. Se Simondon propõe então uma teoria da individuação é exatamente no sentido de inverter estes pólos. O indivíduo é contemporâneo de seu devir pois esse devir é o de sua própria individuação. “O devir não é devir do ser individuado, mas devir da individuação do ser” (SIMONDON, 1989, p. 24). Não cabe aqui seguir toda a filosofia da individuação de Simondon, mas vale apontar que é no interior deste quadro que se coloca a questão da percepção para Simondon, assim como suas considerações quanto à novidade e quanto aos limites das teses gestaltistas. Como já vimos, a noção de campo é de grande importância pois permite pensar a percepção enquanto uma totalidade, um conjunto de relações dinâmicas no qual há correlação e reciprocidade entre parte e todo. No entanto, Simondon aponta como limite o fato de que, por trabalhar a partir de um paradigma físico por demais simplista (SIMONDON, 1989), os gestaltistas teriam sido levados à considerar o processo de tomada de forma a partir dos processos estacionários de equilíbrio. A lei da Boa Forma estabelece uma hierarquia neste processo. Vê-se que o princípio que rege a atualização permanece exterior ao próprio processo. Para Simondon, pensar a percepção enquanto individuação é reverter isso. A individuação das unidades perceptivas, ou seja, a atualização do campo perceptivo, deve abarcar de fato a totalidade de suas condições, e para isso é importante expandir as teses gestaltistas referentes ao equilíbrio. !! !

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Transpondo os limites do vocabulário gestaltista, Simondon forja o conceito de metaesbilidade. Um sistema metaestável é um sistema tensionado, que guarda em si uma dissimetria ou uma diferença de potencial entre ordens de grandeza que inicialmente não se comunicam (SIMONDON, 1989, 2006). Falar em metaestabilidade implica portanto em falar em uma dimensão intensiva, uma repartição de limiares de ativação ou energia potencial. Segundo Simondon (2006) os próprios gestaltistas teriam entrevisto a existência de tais sistemas metaestáveis ao se voltarem para o problema das figuras ambíguas e da origem das ilusões ótico-geométricas. Seria então injusto afirmar que teriam ignorado completamente o fato de que nem todos os sistemas caminham no sentido da redução da tensão. No entanto, o problema apontado por Simondon é que as tensões internas e as consequentes possibilidades de transformação do sistema são geralmente tomadas pelos gestaltistas como fontes de distorção. Talvez possamos dizer, na linha do que já apontamos anteriormente, que isto se deve a forte preocupação epistemológica por parte dos primeiros teóricos do gestaltismo em pensar a questão da ordem sem fazer recurso a qualquer instância superior ou atividade reguladora especial. Por isso a necessidade de estar em estreita continuidade com as leis da física e da fisiologia. Como mostra o físico Ilya Prigogine (1988) por muito tempo a questão da ordem esteve atrelada aos processos de equilíbrio estacionário, daí podemos inferir o porquê do interesse dos gestaltistas e o forte acento que ganham estes processos em suas teses. No entanto, seguindo ainda com Prigogine, o estudo dos chamados sistemas longe do equilíbrio ganha cada vez mais importância em áreas diversas do conhecimento científico e vê-se que o antigo paradigma que sustentava a equivalência ordem/equilíbrio em oposição ao par desordem/não-equilíbrio é insuficiente e impreciso. Em suas palavras, !! !

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“classicamente associava-se a ordem ao equilíbrio (caso dos cristais) e a desordem ao não equilíbrio (caso da turbulência). Hoje sabemos que isso é inexato: a turbulência é um fenômeno altamente estruturado, em que milhões e milhões de partículas se perseguem num movimento extremamente coerente. Isto também é válido para muitos outros fenômenos como, por exemplo, os relógios químicos, que são reações oscilantes: podemos ver a solução tornar-se vermelha e depois azul, vermelha, azul, e assim por sucessivamente....[...] Atualmente, as experiências de laboratório [...] mostram que, quando se depara com o domínio do não-equilíbrio, se estabelecem novas interações de longo alcance: o universo do não-equilíbrio é um universo coerente. E isto representa uma fato novo, que contradiz tudo quanto se pensava ainda há poucos anos” (PRIGOGINE, 1988, p. 41)

O não-equilíbrio não é portanto a desordem, mas “o domínio por excelência da multiplicidade das soluções” (idem, p. 41). Dá-se a amplificação de flutuações que geram a constante possibilidade de novas estruturações. Como marca Prigogine isto é de extrema importância não só para a física mas também para todos os saberes voltados para o domínio da vida. “A vida não é só química. A vida deve ter incorporadas todas as outras propriedades físicas, isto é, a gravitação, os campos eletromagnéticos, a luz, o clima. De alguma maneira foi necessário uma química aberta ao mundo exterior, e só a matéria longe das condições de equilíbrio tem esta flexibilidade. E porquê esta flexibilidade? Longe das condições de equilíbrio, as equações não são lineares, são possíveis muitas propriedades, muitos estados que são as diversas estruturas dissipadoras acessíveis. À medida que nos aproximamos do equilíbrio, a situação é oposta: tudo se torna linear e só há uma solução” (PRIGOGINE, 1988, p. 26).

Por isso Prigogine afirma que em situações longe do equilíbrio a matéria se torna ‘sensível’, ou ainda, que a matéria ‘vê’. Pois em situações de equilíbrio as moléculas só sofrem os efeitos daquilo que as rodeia de perto, diferentemente do que se passa longe do equilíbrio, quando uma mínima perturbação pode gerar efeitos de larga escala. Entrevemos aqui a ressonância desta discussão com as questões colocadas por Simondon, pois o conceito de metaestabilidade ganha importância precisamente porque permite pensar a estruturação sem que seja necessário supor o esgotamento dos potenciais. Sistemas metaestáveis, ou longe do equilíbrio como diria Prigogine, são sistemas estruturados mas que guardam em si potenciais de atividade. O processo de individuação é na verdade um !! !

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processo de resolução parcial e relativa de um sistema metaestável (SIMONDON, 1989), desta forma a individuação engendra um indivíduo, mas mantém em si um potencial ativo, uma carga energética pré-individual. Simondon ressalta a dificuldade de uma definição conceitual precisa desta dimensão pré-individual, sugerindo que isto talvez seja fruto de uma longa tradição moldada por um pensamento substancialista. Mas faz questão de marcar a importância de sair de um modo de pensamento que opera por meio de categorias opostas e exclusivas como uno x múltitplo ou ainda contínuo x descontínuo. Segundo Simondon, o problema da segregação das unidades perceptivas traz à tona algo que os fundadores do gestaltismo haviam visto bem: nenhum processo de individuação é reservado a um único domínio de realidade, seja ele por exemplo físico ou psicológico. Assim, não há realidade individuada que não seja mista. No entanto, o recurso dos gestaltistas à lei da Boa Forma e ao isomorfismo impede que se pense mais profundamente a totalidade dos efeitos das relações entre planos e ordens diversas de realidade. A tese do isomorfismo nos coloca perigosamente próximos de teses realistas nas quais é a forma física que se coloca como denominador comum das ordens vitais, psicológicas, etc13. As colocações de Simondon acerca da metaestabilidade e do plano pré-individual são importantes neste sentido, pois não há um privilégio de um conjunto de relações ou de um domínio sobre outro. Assim pode-se, por exemplo, pensar de fato a percepção enquanto totalidade, já que as relações de campo produzem transformações recíprocas entre diferentes ordens. A questão da tomada de forma, ou de configuração do campo perceptivo, não se descola portanto da dimensão intensiva e pré-individual, na qual ordens de grandeza distintas fazem sistema por meio de uma diferença de potencial. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 13

Esta é também a crítica endereçada ao Gestaltismo por Merleau-Ponty. Cf. A estrutura do comportamento (2006).

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“a teoria da Forma reduz a dois termos isto que é um conjunto de três termos independentes ou ao menos distintos: não é senão após a percepção que as tensões são efetivamente incorporadas ao campo psicológico e fazem parte de sua estrutura. Antes da percepção, antes da gênese da forma que é precisamente percepção, a relação de incompatibilidade entre o sujeito e o meio existe como um potencial apenas, da mesma maneira que as forças que existem na fase de metaestabilidade da solução supersaturada ou sólida em estado de sobrefusão, ou ainda na fase de metaestabilidade da relação entre uma espécie e seu meio. A percepção não é a apreensão de uma forma, mas a solução de um conflito, a descoberta de uma compatibilidade, a invenção de uma forma. Esta forma que é a percepção modifica não somente a relação do objeto e do sujeito, mas ainda a estrutura do do objeto e aquela do sujeito” (SIMONDON, 1989, p. 76).

É por essa via que Simondon buscará complementar a idéia de forma gestaltista a partir do conceito de informação14, já que toda informação comporta essa dimensão intensiva e, portanto, relacional. Como ressalta Escóssia, “Tensão, intensidade e potencial de informação ou de forma. Qualquer que seja o termo utilizado nesse contexto conceitual, o significado é um só: concentração até o limite disruptivo ; reunião de contrários em unidade; existência de um campo interior a esse esquema de informação; e ainda, dimensão que reúne aspectos ou dinamismos habitualmente incompatíveis entre eles” (ESCÓSSIA, 2004, p. 73)

Sobre a questão da Boa Forma Simondon se pergunta: A boa forma não seria aquela que contém um campo de forma elevado, isto é, uma boa distinção, um bom isolamento entre os dois termos ou a pluralidade de termos que a constituem, e entretanto, entre eles, um campo intenso, isto é, um poder de produzir efeitos enérgicos se alguém ali introduz algo?” (SIMONDON, 1989, p.52).

A boa forma é portanto aquela que mantém o nível energético do sistema, conservando seus potenciais e os compatibilizando. É a ligação significativa do uno e do múltiplo, estando assim ‘próxima do paradoxo, próxima da contradição, não sendo contraditória em termos lógicos’ (idem, p. 53).

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Simondon faz questão aqui de marcar sua distância em relação às teorias tecnológicas da informação que equiparam o conceito de informação a um sinal, suporte, ou veículo de informação em uma mensagem.

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É importante destacar que Simondon não recusa, mas procura recuperar e complementar as noções gestaltistas de forma e pregnância. Na mesma direção sublinhada por Arnheim, afirma que a pregnância da forma não deve ser pensada a partir da estabilidade e da redução homogeneizante de tensão, mas sim pela capacidade de “atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez mais variados e heterogêneos” (SIMONDON, 1989, p. 53). A pregnância está intimamente ligada ao caráter dinâmico do campo perceptivo e não à estabilidade da forma, “ela não é uma uma consequência da forma somente, mas também, e sobretudo, do alcance da solução que ela constitui para a problemática vital” (idem, p. 92). Entrevemos as ressonâncias com Arnheim também quando este afirma que na experiência perceptiva concreta dos seres vivos a tendência à simplicidade está todo o tempo em funcionamento, mas se depara com resistências que mobilizam uma tendência contrária, de elevação da tensão. Se a tendência para a estrutura mais simples operasse sem oposição, não poderia produzir nada além de um campo homogêneo, o que impediria até mesmo a distinção figura-fundo. Em suas palavras: “a percepção reflete uma invasão do organismo por forças externas, que perturbam o equilíbrio do sistema nervoso. Abre-se um buraco num tecido resistente. Deve resultar uma luta quando as forças invasoras tentam se manter contra as forças do campo fisiológico, que procuram eliminar o intruso ou pelo menos reduzi-lo ao padrão mais simples possível. A resistência relativa das forças antagônicas determina o que se percebe como resultado. Em momento algum a estimulação se congela em um arranjo estático. Enquanto a luz afeta os centros cerebrais da visão, o impulso e a atração continuam, e a estabilidade relativa do resultado não é senão o equilíbrio de forças opostas. Há alguma razão para se afirmar que somente o resultado da luta se reflete na experiência visual?” (ARNHEIM, 1991, p.429).

Diferente de Simondon, que formula o conceito de metaestabilidade e justifica sua aplicação às chamadas boas formas, Arnheim mantém o conceito de equilíbrio, mas adverte que falar em equilíbrio não significa reduzi-lo a uma ausência de tensão ou de forças. O !! !

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equilíbrio na percepção é também “animado de tensão”. Na arte a tensão da forma é de extrema importância, pois a potência expressiva da obra deriva precisamente da presença das forças e tensões dirigidas. Segundo Mário Pedrosa, é isso, por exemplo, que está em jogo nas obras de Kandinsky e Mondrian: Em Kandinsky, os objetos não são outra coisa senão um campo de energia-tensão e, quanto à composição, é um simples arranjo de linhas [...]. Para Mondrian, o ritmo é tudo, pois sua função é expressar o movimento dinâmico através de uma contínua oposição dos elementos da composição. Por este meio, a obra de arte, uma pintura, é uma espécie de campo eletro-magnético onde forças contraditórias mas organizadas exprimem o que ele designa por ação, quer dizer, vida. A ação é criada pela tensão da forma, da linha, e da intensidade das cores (PEDROSA, 1975, P. 77)

Segundo Faiga Ostrower “as forças atuantes tornam-se visíveis através dos limites da forma” (OSTROWER, 1998, p. 83). O equilíbrio não caminha na direção da anulação das tensões internas, mas funciona no sentido de uma articulação que as maximize de maneira a alcançar uma dimensão expressiva. Os exemplos são do campo da pintura, mas parece possível afirmar que as artes em geral estão concernidas com essa dimensão de forças, trabalhando com elas na composição. Segundo Arnheim, uma forma artística equilibrada é aquela na qual o máximo dinamismo interno coexiste com o caráter de necessidade do todo. Para melhor apresentar esta idéia, cita um episódio no qual Charlie Chaplin teria dito a Jean Cocteau que “depois de completar um filme, deve-se ‘sacudir a árvore’ e conservar apenas o que fica bem preso aos ramos” (ARNHEIM, 1991, p. 51). É este dinamismo interno intimamente ligado às tensões e forças presentes na obra que garantem seu poder expressivo, assim como é este caráter expressivo que a afasta de uma simples representação, produzindo no receptor uma experiência distinta da mera informação. Nas palavras de Arnheim, desde que a forma da energia vivificante transmitida não é simplesmente registrada pelo sentido da visão, mas presumivelmente desperta na mente uma configuração correspodente de forças, a reação do observador é mais do que uma mera tomada de conhecimento de um objeto externo. As forças que caracterizam o significado da história chegam vivas ao observador e produzem a

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espécie de participação ativa que distingue a experiência artística da aceitação separada da informação (ARNHEIM, 1991, p. 452).

A forma artística é uma composição expressiva de forças, que por sua vez afetam o percebedor. Daí a formulação de Arnheim: “o que o artista cria com materiais físicos são experiências” (ARNHEIM, 1991, p. 10)! e a consequente recusa de toda posição formalista que postularia uma consistência interna da obra que a separaria de outros campos de experiência – a arte pela arte15. Formulação esta que mantém ressonâncias com as palavras de Kandinsky: “a obra de arte é o espírito que, por meio da forma, fala, se manifesta, exerce uma influência fecunda” (KANDINSKY, 1970, p. 254). Se em determinado momento a arte colocou em destaque a questão formal, como na pintura abstrata por exemplo, não foi para suprimir sua dimensão expressiva, mas sim para abrir novas frentes e modalidades de expressão. Por isso podemos dizer que a arte abstrata não é apenas assunto para especialistas e historiadores que analisariam sua perfeição formal, os materiais escolhidos ou as frentes de diálogo com outras tradições estéticas. Para além disso, a arte abstrata também dialoga com um plano mais amplo de experiência. Renunciar à figuração não significa renunciar ao contato com a dimensão expressiva. Mas é, pelo contrário, um artifício expressivo. Como defende Fayga Ostrower, as linhas, cores e figuras geométricas de Mondrian, por exemplo, são expressivas na medida em que refletem um intenso trabalho formal na tentativa de lhes conferir ritmo, peso visual, concentração ou expansão do espaço e toda uma sorte de dimensões que são totalmente estranhas ao âmbito da geometria, mas ligadas à nossa apreensão afetiva do mundo (OSTROWER, 1998).

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Cf sua crítica às colocações do crítico Roger Fry em “A forma e o consumidor” (1997).

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Os procedimentos formais utilizados pelo artista são uma luta pela incorporação das forças na obra, pois são elas que a sustentam, que conferem ao mesmo tempo sua consistência interna e sua potência de afetação. Ostrower chega a afirmar, comentando algumas obras e instalações contemporâneas, que são obras ‘flácidas’ e carentes de ‘tensões espacias’, “só não caem no chão porque há uns pregos que ainda as seguram na parede” (OSTROWER, 1998, p. 61).!! Por meio das leituras de Arnheim e Simondon podemos ver que a abordagem gestaltista da percepção não se restringe a destacar o caráter homogêneo, simples e regular da forma. A colocação do problema da percepção a partir da noção de campo de forças - essa ‘verdadeira decoberta conceitual’ (SIMONDON, 1989, p. 44) – exige o reconhecimento de uma dinâmica da forma com linhas de ação e modos de relação. A percepção é “um campo contínuo de forças, uma paisagem dinâmica” (ARNHEIM, 1991, p. 8). Distinta e individuada, a forma mantém estreita relação e não se separa do campo de forças. Todas essas formulações lançam o gestaltismo para além do estatuto de um sistema que pertence apenas à história da psicologia, reativando seu interesse no tratamento de problemas que ainda desafiam nosso entendimento na atualidade, como é o caso da experiência com a arte. Uma das razões pelas quais os artistas e críticos demonstram um forte interesse pela abordagem gestaltista da percepção é por certo a possibilidade de escapar à uma leitura subjetivista da experiência com a arte. Contra esta leitura, que veria na percepção de uma obra de arte a projeção de fatores subjetivos e da personalidade, o gestaltismo marca diferença pelo seu objetivismo que, numa leitura renovada como sugerem Arnheim e Simondon, traduz-se num objetivismo do campo de forças. Na percepção de uma obra de arte, é a dinâmica da forma que toca, de fora, o percebedor, abrindo a possibilidade de uma experiência que não !! !

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equivale ao mero reconhecimento. Neste sentido, ele oferece condições de entendimento para além dos jargões de uma certa psicologia da arte. É certo que buscamos em Arnheim e Simondon uma argumentação que dá importância a algumas linhas menos reconhecidas do gestaltismo. Não se trata com isso de negar que haja no Gestaltismo um forte acento sobre a questão da estabilidade das formas, mas de tentar reativar algumas de suas virtualidades. Por outro lado deve-se também ressaltar que os trabalhos de Arnheim e Simondon, principalmente deste último, possuem seus matizes próprios. No trabalho de Arnheim há ainda um espaço significativo concedido à questão do equilíbrio e da estabilidade das formas. Talvez esta preocupação derive de seu esforço por se distanciar dos estudos psicológicos sobre a experiência com a arte pautados nas variáveis subjetivas. Neste caso, Arnheim trabalha basicamente do ponto de vista da composição da forma artística. Quando fala em estabilidade das formas, tem em vista uma preocupação de valorizar as necessidades internas de composição da obra. Não se trata, como já vimos, de assumir uma posição formalista, mas sim de buscar um princípio de consistência interno à obra e que, em certo grau, funcione como a garantia de sua qualidade estética. Sua preocupação em se distanciar de certos estudos psicológicos que ‘encaram a atividade artística principalmente como um instrumento de exploração da personalidade humana, como se entre arte e um borrão de tinta de Rorschach ou as respostas de um questionário houvesse pouca diferença’ (ARNHEIM, 1991, p.3) é evidente e, a nosso ver, muito fértil. No entanto, escapar das armadilhas do subjetivismo não implica a necessidade de minorar a possibilidade de diferenciação presente tanto no interior das obras quanto nas experiências que delas derivam. E aqui Simondon, parece seguir um caminho mais fecundo ao acentuar que a forma (no caso !! !

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da arte, a obra) não perde sua consistência e mesmo guarda uma potência de novas atualizações ou individuações. A pregnância de uma forma é pensada a partir de sua capacidade de ‘atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez mais variados e heterogêneos” (SIMONDON, 1989, p. 53). Entrevemos neste ponto a ressonância com Deleuze e Guattari (1992) quando afirmam que a obra se conserva, ‘se mantém de pé’ pelos afectos, encontros e devires que é capaz de produzir. Ressonância esta que buscaremos seguir (e levar) adiante.

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