A persona estendida e a internet das coisas

June 19, 2017 | Autor: E. Pires de Camargo | Categoria: Privacy, The Internet of Things
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A persona estendida e a internet das coisas 1.

A mente estendida

Onde a mente termina e o resto do mundo começa? Como resposta, alguns sustentam que o que está fora do corpo físico está fora da mente. Outros se impressionam com argumentos que sugerem que os significados de nossas palavras estão fora da mente, assim sendo, o externalismo a respeito dos significados implicaria também no externalismo de nossas mentes. Andy Clark, cientista cognitivo e filósofo da mente, propõe uma terceira posição, um externalismo ativo baseado no papel atuante do ambiente na condução de processos cognitivos (Clark, 2011: 220-232). Ele sustenta que várias atividades humanas são incrementadas com o uso de instrumentos tecnológicos e fornece exemplos disto: a caneta ou lápis como auxiliares em grandes multiplicações; o uso de instrumentos tais como a régua náutica, livros, diagramas e cultura. Em todos esses casos, o cérebro individual é o responsável por algumas operações enquanto outras são delegadas à manipulação de meios externos. No jogo eletrônico Tétris, no qual formas geométricas em queda devem ser rapidamente direcionadas a receptáculos apropriados numa estrutura emergente, um botão é usado para girar tais formas não apenas para posicioná-las, mas também para determinar se a forma e o receptáculo são compatíveis. Este caso seria um exemplo de ação epistêmica, que altera o mundo para ajudar e amplificar processos cognitivos. Clark sugere que ações epistêmicas deste tipo que diferem de meras ações pragmáticas - como o tamponamento de um buraco no solo, no qual alguma mudança física é desejável por si mesma - demandam a distribuição dos créditos epistêmicos. Se uma parte do mundo funciona como um processo que não hesitamos em considerar parte de um processo cognitivo, então parte do mundo faz parte do processo cognitivo. Assim, o processo cognitivo não se encontra, exclusivamente, em nossas cabeças (Clark, 2011: 220-232). Para Levi Bryant, Clark desenvolve uma teoria ecológico-midiática para a mente, já que objetos não-humanos como os dispositivos tecnológicos que

criamos e utilizamos participam de forma ativa no processo cognitivo. Ainda para Bryant, Clark desenvolve sua hipótese da mente estendida de forma ainda mais abrangente, cobrindo não só a questão dos processos cognitivos que se estendem no meio físico, mas também desenvolvendo uma nova teoria das crenças (Bryant, 2014: 84-93). Como exemplo disto, Clark apresenta dois casos baseados na memória: O primeiro, sobre uma mulher que é avisada por amigos a respeito de uma exposição que ocorre num determinado museu. Ela se lembra de onde fica tal museu e caminha até lá. Parece claro que a mulher acredita que o museu fica num determinado endereço antes mesmo de consultar sua memória. Esta crença estava em algum lugar da memória esperando para ser acessada; O segundo exemplo trata do caso de um homem que sofre de Alzheimer e, como vários pacientes de Alzheimer ele confia em informações do ambiente para estruturar sua vida. Este homem utiliza um bloco de notas para armazenar informações, substituindo a função da memória biológica. Ele também toma conhecimento da exposição, consulta o endereço do museu em seu bloco de notas e caminha até lá. Ele também acredita que o museu fica num determinado endereço e parece razoável dizer que ele acreditava nisto antes mesmo de consultar o bloco de notas. Em ambos os casos a informação é confiavelmente presente quando necessária, disponível para a consciência e disponível para guiar uma ação, da maneira que esperamos que seja uma crença. Para Clark, “a moral é que quando se trata de crença, não há nada sagrado com relação a crânio e pele. O que faz uma informação valer como crença é o papel que representa, e não há qualquer razão para crer que o papel relevante deva ser desempenhado unicamente de dentro do corpo” (Clark, 2011: 220-232). Em síntese, o conceito de mente estendida baseia-se no papel atuante do ambiente na condução de processos cognitivos, originando a ideia de externalismo ativo. E mais, mesmo em processos puramente mentais como as crenças, parte deste processo pode estar fundamentada em ações ou instrumentos externos.

2.

A mente que se estende na internet das coisas

Da dupla papel/lápis ao computador pessoal e, deste, às redes e finalmente à internet das coisas, as possibilidades para uma mente estendida cresceram de maneira exponencial. No caso da internet das coisas, definida como extensão da internet no mundo físico, o que torna possível a interação entre objetos e sua comunicação autônoma (Santaella, 2013: 31), podemos vislumbrar alguns caminhos para os quais apontam essas possibilidades. A diminuição do custo de produção das etiquetas RFID (Radio- Frequency IDentification) fará com que cada produto tenha a capacidade de interação e poderá se comunicar com dispositivos eletrônicos e ambientes, e tudo se comunicará com tudo. Neste cenário, a infraestrutura de satélites será responsável pela comunicação de cima para baixo e a infraestrutura de RFID criará a conectividade de baixo para cima: as pessoas estarão no meio desta quantidade gigantesca de dados (Kranenburg, 2008: 10-19). Além disto, com a incorporação da nanotecnologia, até mesmo coisas extremamente pequenas como as moléculas de nosso corpo terão capacidades de interação e conexão com a internet das coisas. Tudo passará a ter uma identidade eletrônica e, através da atuação de sensores espalhados pelos ambientes, não só a localização de cada objeto será possível, como também informações sobre as condições ambientais estarão disponíveis. Assim, estamos caminhando em direção a uma computação pervasiva à medida que a tecnologia começa a integrar de forma quase que imperceptível nossas roupas, nossos ambientes e todos os objetos que nos cercam (Santaella, 2013: 31-32). Num futuro próximo, nossos dispositivos estarão tão integrados ao ambiente que fatos curiosos poderão acontecer: como um iPad que diminui automaticamente seu volume em ambientes públicos ou um smartphone que avisa o usuário sobre a última promoção de uma determinada loja; como um cliente que se aproxima da gôndola de um supermercado e obtém não só o preço dos produtos, mas também seus dados nutricionais e técnicos; ou, como uma cidade dotada de redes de sensores e dispositivos capazes de indicar os melhores caminhos para fugir do tráfego intenso (Santaella, 2013: 31-32 e Kranenburg, 2008: 10-19). As possibilidades são realmente encantadoras, mas há riscos: receber toda e qualquer informação sobre promoções em nossos smartphones pode ser um

grande incômodo; obter informações sobre os produtos num supermercado pode significar que as empresas que os vendem também estão obtendo mais informação sobre nós do que realmente gostaríamos; e sobre as cidades inteligentes, muitas vezes gostamos de escolher nossos próprios caminhos apesar do trânsito. Esta questão é ainda mais contundente quando se leva em conta as novas formas de subjetividade e identidade que são cultivadas pela cibercultura. O cibernauta se apresenta como um ser multifacetado e rodeado por ambiguidades criadas pelos seus vários modos de se deixar ver e construir identidades nos diferentes ambientes da rede. São multiplicidades com as quais a pessoa encena e brinca no palco ubíquo das subjetividades (Santaella, 2013: 85-86). Assim, em simbiose com esta rede de objetos sensíveis e inteligentes, a ação da mente estendida do cibernauta deixará registrada, cada vez mais e de maneira persistente, uma quantidade enorme de informações pessoais das mais variadas naturezas, de dados de segurança como ID e senhas a uma miríade de marcas, pistas e signos de seus gostos, vontades, desejos e mesmo de sua presença num determinado local e momento. À medida que este usuário-ator desenvolve sua personagem digital, ele se espalha no ciberespaço à mercê de interesses corporativos e governamentais muitas vezes alheios aos seus próprios interesses. 3.

Da mente estendida à persona estendida

Continuando com as referências ao mundo do teatro, a palavra persona tem duas conotações. Se hoje, persona refere-se, de modo coloquial, ao papel social ou personagem vivido pelo ator, originalmente, referia-se à máscara utilizada em palco tanto para fazer ressoar corretamente sua voz quanto para dar a ele a aparência exigida pelo papel (Wikipédia, 2015). Assim, utilizo aqui o termo persona estendida como referência aos modos de se mostrar do cibernauta multifacetado (personagem) quando estende sua mente à internet das coisas, e cuja realização se dá por meio de seus dispositivos tecnológicos e gadgets (máscaras). Assim delimitada, a ideia de persona estendida impõe uma questão: atualmente, qual é o grau de gerenciamento e controle que o

cibernauta (ou seria ciberator?) é capaz de impor aos seus artefatos tecnológicos de maneira a preservar sua persona estendida? Joseph Paradiso, pesquisador do MIT Media Lab, apresenta um exemplo que aponta para uma resposta pouco animadora. Segundo ele, nossos acessórios e dispositivos vestíveis da mais alta tecnologia, como o Google Glass, tendem a agir de maneira arbitrária ao sugerir informações contextualmente relevantes ao usuário, como recomendar um determinado filme quando uma pessoa passa por um cinema. Além disto, essa sugestão, frequentemente ocorre de maneira perturbadora e ineficiente. Nossos sentidos não agem assim, pois direcionam nossa atenção de modo seletivo e dinâmico permitindo reagir ou ignorar estímulos de acordo com nossas preferências ou necessidades (Paradiso, 2014: 28-31). Fica clara, então, uma disparidade funcional entre o modo como atuam nossos artefatos tecnológicos e o modo como deveriam ou poderiam atuar. Mas, agora de forma mais animadora, Paradiso afirma que existem experimentos em andamento para verificar se computadores “trajáveis” seriam capazes de acessar a capacidade inerente do cérebro de se concentrar em tarefas e, ao mesmo tempo, manter uma conexão pré-atentiva com o ambiente. Tais sistemas, e também as informações que eles fornecem, seriam capazes, então, de se integrarem aos nossos sistemas de processamento sensorial, em vez de deslocá-los ainda mais. Então, seria esta uma abordagem capaz de dotar os dispositivos digitais de filtros de inteligência artificial que permitam ao cibernauta receber apenas informações realmente relevantes e personalizadas? Ou, em caminho inverso, capazes de deixar espalhar pela rede apenas rastros inofensivos à sua privacidade? Se houver sucesso, o cibernauta deverá conseguir aumentar o grau de gestão sobre sua persona estendida fazendo com que sua voz possa ressoar no palco da internet das coisas de maneira mais segura e em sintonia menos ruidosa com seus gostos e desejos.

NOTA: Imagem de abertura: Roman Theatre in Bosra, Syria. (disponível em:

http://www.globeimages.net/data/media/233/roman_theatre_in_bosra__syria.jpg. Acesso em: 27 fev. 2015).

REFERÊNCIAS: Bryant, Levi. 2014. Onto-cartography: an Ontology of Machines and Media. Edinburgh University Press, Edimburgo, Escócia. Clark, Andy e Chalmers, David. 2011. The extended Mind, em: Supersizing the Mind: embodiment, Action, and Cognitive Extension. Oxford University Press, Oxford, Inglaterra. Kranenburg, Rob van. 2008. Internet of Things. Institute of Network Culture, Amsterdan, Holanda. Paradiso, Joseph e Dublon, Gershon. 2014. Percepção Extra-sensória. Scientific America Brasil, 13(147).

Santaella, Lucia. 2013. Comunicação ubíqua: repercuções na cultura e na educação. Paulus, São Paulo, Brasil. Wikipédia. 2015. Persona (Teatro). Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Persona_(teatro). Acesso em: 20 fev. 2015.

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