A POESIA, A SALVAÇÃO E A VIDA - EU E OS OUTROS NA POESIA DE ADÉLIA PRADO

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A poesia, a salvação e a vida: Eu e os Outros na poética de Adélia Prado

"Et ego in illo, sim, eu estou nele, eu Deus, nele homem, em mim, que sou homem, estás tu, que Deus és, Deus cabe dentro do homem, mas como pode Deus caber no homem se é imenso Deus e o homem tão pequena parte das suas criaturas, a resposta é que fica Deus no homem pelo sacramento, claro está, claríssimo é, mas ficando no homem pelo sacramento, é preciso que o homem o tome, e assim Deus não fica no homem quando quer, mas qando o homem o deseja tomar, posto o que será dito que de alguma maneira o criador se fez criatura do homem [...]e contudo Et ego in illo, Deus está em mim, ou em mim não está Deus, como poderei achar-me nesta floresta de sim e não, de não que é sim, do dim que é não, afinidades contrárias, contrariedades afins, como atravessarei salvo sobre o fio da navalha, ora, resumindo agora, antes de Cristo se ter feito homem, Deus estava fora do homem e não podia estar nele, depois, pelo sacramento, passou a estar nele, assim o homem é quase Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o de modo não trino ou quádruplo, mas uno, uno com Deus, Deus nós, ele eu, eu ele, Durus est hic sermo, et quis potest eum audire." José Saramago, Memorial do Convento

"Ah, este bojo perfeito/Que trago junto ao meu peito /Só você violão /Compreende porque perdi toda alegria/E no entanto meu pinho/ Pode crer, eu adivinho/ Aquela mulher/ Até hoje está nos esperando/ Solte o teu som da madeira/ Eu você e a companheira/ Na madrugada iremos pra casa/ Cantando..." Cartola, Cordas de Aço

O objetivo deste texto é fazer uma leitura de quatro poemas de Adélia Prado, cada um deles extraídos de quatro livros distintos da autora, e tentar mostrar, através deles, como o eu-lírico adeliano se constrói na relação com um Outro. Tomarei aqui a acepção de alteridade trabalhada por Todorov (1982). Para este autor:

“Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim.”

A alteridade é antes de tudo uma relação e nessa relação eu construo um Eu, me sei único em relação a um Outro. Na poética de Adélia Prado, esse elemento alter é a figura humana, animal, metafísica e matéria. A autora de Divinópolis, cuja poesia é feita de chita, couro cru e barro, nas palavras de Caio Fernando Abreu, e que canta sobre bichos, santos e gente, para Drummond, instaura um discurso cuja alteridade captada através de seu modo de olhar para as coisas constrói uma poesia única, característica, estabelecendo assim um modus operandi de ser/estar no mundo, expressados através de seus versos, mas também de sua prosa. Assim, ao longo dos quatro poemas analisados, tentarei evidenciar como Adélia Prado constrói uma obra na qual o Eu se define e se reconhece em relação a Outro (s), com para os quais olha e também dialoga. Passemos à análise.

Janela Janela, palavra linda. Janela é o bater das asas da borboleta amarela. Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada, janela jeca, de azul. Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você, meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi o casamento da Anita esperando neném, a mãe do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai: minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis. Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão, clarabóia na minha alma, olho no meu coração.

Neste primeiro poema, do livro Bagagem, a relação com o mundo se dá através de uma janela, e a partir desse objeto que o eu-lírico vai instituir sua relação com um Outro através do modo de olhar. Tal relação se inicia com a palavra que representa o objeto e seu reconhecimento deste “janela, palavra linda”, e a comparação que esse objeto apresenta com um Outro do mundo “janela é o bater de asas da borboleta amarela”. A janela abre para fora “duas folhas de madeira à toa pintada”. A alteridade também é contato físico, já que “mas pulo você para dentro e para fora, monto a cavalo em você.” É esse objeto Outro que revela um outro mundo, o exterior, para o eu lírico “janela para o mundo aberta, por onde vi meu bem chegar de bicicleta” e no qual a anunciação de um Outro, humano, se dá através do objeto, a janela que é aqui o olhar da poeta. Aquilo que não é um Eu também se relaciona entre si “o casamento da Anita esperando neném”, e se o eu-lírico inclusive olha para “a mãe de Pedro Cisterna urinando na chuva” é porque esse fato o constrói, é através do olhar que a poeta instaura e constrói uma alteridade

Por fim, a relação do olhar que instaura a alteridade e que constrói um eu se explicita “claraboia na minha alma, olho no meu coração”.

Flores A boa-noite floriu suas flores grandes, parecendo saia branca. Se eu tocasse um piano elas dançavam. Fica tão bom o mundo assim com elas, que nem me desprezo por querer um marido. Perfumam à noite. A gaita de um menino que nunca morreu toca erradinho e doce. Eu cumpro alegremente minhas obrigações paroquiais e não canso de esperar: mais hoje, mais amanhã, qualquer coisa esplêndida acontece: as cinco chagas, o disco voador, o poeta com seu cavalo relinchando na minha porta. Desejava tomar bênção de pai e mãe, juntar uns pios, umas nesgas de tarde, um balançado de tudo que balança no vento e tocar na flauta. É tão bom que nem ligo que Deus não me conceda ser bonita e jovem (um dos desejos mais fundos da minha alma). «O Espírito de Deus pairava sobre as águas...» Sobre o meu, pairam estas flores e sou mais forte que o tempo.

Este segundo poema, do livro O coração disparado, começa a partir do desabrochar da flor, a boa noite como metáfora de uma saia. Os objetos são definidos em relação ao outro. Inclusive as flores “dançavam” se o eu-lírico tocasse piano, é, pois um mundo conectado, interrelacionado e através do olhar adeliano os elementos que constituem o alter estão em função de alteridade. Assim, o mundo com esses elementos é um mundo satisfatório e o Outro humano, aqui, que poderia causar desprezo no próprio eu-lírico pela ausência não o causa “Fica tão bom o mundo assim com elas/ que nem me desprezo por querer um marido”. Há também relação de alteridade entre aquilo só se percebe em função de um Outro físico, as experiências sensoriais “a gaita do menino que nunca morreu toca erradinho e doce” e as flores “Perfumam à noite”. É possível perceber a relação institucionalizada na alteridade com o metafísico, representado aqui por uma divindade da narrativa judaico-cristã, Outro constante na poética adeliana “e cumpro alegremente minhas obrigações paroquiais” O eu-lírico espera que algo “qualquer coisa esplêndida” ocorra, o maravilhoso “as chagas”, numa intertextualidade com a narrativa judaico-cristã, o disco voador, representando a face do maravilhoso no contemporâneo, uma vez que na modernidade tardia não há tanto espaço para bruxas e demônios, e uma das faces de explicação do mistério que rodeia o homem é agora com o que tem disponível, a tecnologia “o disco voador”. O diálogo também se dá com outros textos, porque também estes mantém uma relação de alteridade e reescritura através da história, aqui numa alusão a Dom Quixote. O eu lírico deseja tocar na flauta os elementos sensoriais do mundo cotidiano “uns pios” (sons de animais) “nesgas de tarde” (a visão) e tudo que o vento balança (o tato). Ou seja, as coisas em seu conjunto, as alteridades que a autora canta, elemento essencial de sua poética. Esse contato com a alteridade dá a medida do eu-poético “é tão bom que nem ligo que Deus me conceda ser bonita e jovem”. Há uma frase bíblica que demonstra a relação do Divino com o mundo “O Espírito de Deus pairava sobre as águas”, Deus/águas, para em seguida definir o seu próprio, em relação de alteridade, e o que paira sobre o eu-lírico são as flores, e ele é mais forte que o próprio tempo, porque se mantém, pervive através e com as elementos, e as registra e as canta.

A filha da Antiga Lei Deus não me dá sossego. É meu aguilhão. Morde meu calcanhar como serpente, faz-se verbo, carne, caco de vidro, pedra contra a qual sangra a minha cabeça. Eu não tenho descanso neste amor. Eu não posso dormir sob a luz do Seu olho que me fixa. Quero de novo o ventre de minha mãe, sua mão espalmada contra o umbigo estufado, me escondendo de Deus.

Este terceiro poema, do livro Terra de Santa Cruz, mostra uma relação com um Outro que que é Deus, a quem o eu-lírico interpela e cuja é tão intensa que chega ser insuportável. É um Outro metafísico, mas para o eu-lírico não há dúvida de que é um um elemento possível é para o qual será atribuída a causa de uma angustia existencial, já que “Deus não me dá sossego” ou seja, não é a poeta que se angustia com suas questões, antes essa questão é atribuída a um Outro, um Outro aqui insuportavelmente presente, tanto que é “meu aguilhão” e “morde meu calcanhar como serpente”, ou seja, um outro que está lá todo o tempo e todo lugar e se transmuta em dor física. Seria uma alusão à parte mais frágil de Aquiles e a serpente bíblica, como se Deus tentasse o eu-poético justo em suas questões mais dúbias? Mais clara está a característica transcendental de Deus e, como o mostra a narrativa judaico-cristã, também o faz o eu lírico através da intertextualidade “faz-se verbo, carne, caco de vidro”, ou seja é mais que um outro, é um outro que se transmuta, pois é “pedra contra a qual sangra minha cabeça”. Há, entretanto, uma busca por esse outro, já que é a cabeça que sangra contra a pedra, ou seja, que vai busca-la, e assim a relação de alteridade se instala de modo tenso, já que “não tenho descanso neste amor”. Esse Outro desinquieta o eu-lírico “não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa”, tanto o único modo de alívio é longe da visão intoleravelmente presente de Deus, para a poeta, e só um Outro pode lhe dar guarida “Quero de novo o ventre de minha mãe, /sua mão espalmada contra o umbigo estufado, me escondendo de Deus.”

A Esfinge Ofélia tem os cabelos tão pretos como quando casou. Teve nove filhos, sendo que tirante um que é homossexual e outro que mexe com drogas, os outros vão levando no normal. Só mudou o penteado e botou dentes. Não perdeu a cintura, nem aquele ar de ainda serei feliz, inocente e malvada na mesma medida que eu, que insisto em entender a vida de Ofélia e a minha. Ainda hoje passou de calça comprida a caminho da cidade. Os manacás cheiravam como se o mundo não fosse o que é. Ora, direis. Ora, digo eu. Ora, ora. Não quero contar histórias, porque história é excremento do tempo. Queria dizer-lhes é que somos eternos, eu, Ofélia e os manacás

Neste quarto e último poema analisado, do livro O Pelicano, o eu-lírico parte da observação física do Outro “cabelos tão pretos” e a relação de alteridade deste entre os Outros” quando se casou”. Há uma relação de alteridade particularmente problemática,

posto que se institui uma normalidade: dos nove filhos de Ofélia, esse Outro a quem a poeta observa e a partir do qual se define , sete “vão levando a vida normal” e um é homossexual, ou seja, aqui a alteridade vista sob o ponto da diferença, à qual o eu-lírico ressalta, se não com um julgamento moral, pelo menos com um olhar de reprovação, pois se o Eu se define em relação a um Outro, este não compartilha de pelo menos alguns elementos que o eu-lirico considera normal para si. Nesta mesma linha também há o filho que mexe com drogas e que está fora do grupo dos que são considerados “levando a vida normal”. Ofélia é comparada ao eu-lírico e seus atributos físicos, e o ar de “serei feliz”, atributo este subjetivo e que lhe atribui o eu lírico, como “inocente e malvada”, é a poeta quem instaura a alteridade, que se define em relação ao outro “na mesma medida que eu”, “insisto em entender a vida de Ofélia e a minha”, num desejo de conhecimento de si e do Outro. Este é perscrutado: “ainda hoje passou de calça comprida a caminho da cidade”. Há um diálogo com um Outro sem o qual não haveria o texto, talvez menos ainda a razão de ser do discurso poético, o leitor : “Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora”. A partir dos elementos em relação entre si através do olhar da poeta, os manacás exalando cheiro tem uma alteridade e uma significação que não necessariamente terão para o Outro interpelado, e uma dialética se instaura. Por fim não interessa ao eu lírico contar histórias, já que “história é excremento do tempo. O que importa para ele é dizer, instaurar um discurso e através dele e da alteridade que se expressa, o eu lírico se reconhece e se diz eterno, com os elementos Outros, mas que tem como ponto de partida um Eu: “eu , Ofélia e os manacás”

Bibliografia

PRADO, Adélia. Reunião de poesia; prefácio de Adilson Cittelli. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2013.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

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