«A Poesia e o Colosso em António Franco Alexandre», Inimigo Rumor, vol. 11, Cotovia | 7Letras | Angelus Novus | Cosac & Naïfy, 2001, pp. 53-56.

July 14, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Poetics, Literatura Portuguesa, Poesia, Teoría poética
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A POESIA E O COLOSSO em António Franco Alexandre PEDRO SERRA

Talvez a seguinte imagem de um poema de António Franco Alexandre admita ser lida por um daqueles colossos a que se refere Hegel (cf. 1975), enquanto objectos híbridos: «Contar-lhe do grande telefone / que cobre lisboa?» (Alexandre 1999: 35). A admissão pode vir, por exemplo, pelo sujeito poemático que, ainda em Quatro Caprichos, enquanto leitor compra o livro «Espaço, Tempo, Arquitectura / porque tinha em vista / ser arquitecto, um dia» (ibidem: 53). Todas estas artes e letras, note-se, se encavalgam cancelando autonomias históricas. O «telefone» tanto pode ser escultura, arquitectura ou vago objecto correlativo do urbano, tal como a assídua leitura procurada na livraria oscila entre as «técnicas de basket» e o «clássico» de Siegfried Gideon; ou, ainda, se discute marxismo e literatura e se joga xadrez (cf. ibidem: 10). Tudo isto é cultura, cultura num mundo global – veja-se o último capricho – que, neste sentido, não sustenta identidades: «paki em londres, marroquino en Phrance» (ibidem: 37). O que pudesse haver de local – i.e., de ontologias nacionais – nos diferentes «palcos do mundo» - «em Tóquio, no Texas, nas pampas argentinas» (ibidem: 61) – reduz-se ao denominador comum de uma mesma encenação de Hamlet. O que faleceu foram as formas estáveis. É disto que a poesia de António Franco Alexandre, segundo penso, nos vem falando. Para o que mais directamente nos interessa, por exemplo, os próprios corpora nomeados «poeta» ou «poema», «arte» ou «mundo». Instala-se melhor, dirse-ia, no legado de Friedrich Schlegel que no de Hegel, pois a parabasis é

infinita e alastrou toda a sua astúcia. O «grande telefone que cobre lisboa» solicita aquela linhagem anti-ecfrástica (cf. Miller 2000: 58-75). O desinvestimento do apoio num poema orgânico forte, neste sentido, vai pautando o corpus poemático alexandrino desde o início. Em Sem Palavras Nem Coisas, na sequência, é de crer, da teorização do «projective verse» (cf. Olson 1997: 239-249). Enquanto coisa kinética, descarga energética ou processo, deve observância ao ouvido e à respiração, ao verso e à sílaba. Nos termos do poema «Universo Animal», este «jacto» contrasta com «o inútil universo que procura os olhos» (Alexandre 1996: 9). Desta guisa, o que se questiona é o símile, a mimesis: «The descriptive functions generally have to be watched, every second, in projective verse, because of their easiness, and thus their drain on the energy which composition by field allows into a poem» (Olson 1997: 243). O mínimo ecfrástico do «projective verse» em que se investe é potenciado pela máquina de escrever, artefacto que objectualiza a respiração (cf. ibidem: 245). Esta objectualidade como que reconcilia a realidade interior e exterior do poema, implicando ainda o seguinte saneamento: «Objectism is the getting rid of the lyrical interference of the individual as ego, of the ‘subject’ and his soul, that peculiar presumption by which western man has interposed himself between what he is as a creature of nature (with certain instructions to carry out) and those other creations of nature which we may, with no derogation, call objects» (ibidem: 247). Esta lição de humildade – o homem também como coisa – é a que leio em «As coisas justamente», do mesmo livro de 1974: «dos olhos nos retiram / o olhar que nos cederam» (Alexandre 1996: 47). «Coisas» são, por exemplo, citações, cujo regime pós-eliotiano assiste também, segundo creio, ao generalizado desinvestimento «lírico» do poeta (cf. Diogo 1993). Mesmo o resto estético implicado, pelo menos num primeiro momento, na kinética do verso é afectado pela ironia. Os seguintes versos das Terceiras Moradas traduzem o que seja a citação alexandrina:

«Todas as frases vinham do passado, o sujo / buraco da memória. E já por prova / se fixe no papel a garatuja» (Alexandre 1996: 364). Pertencem a uma poética posterior a Sem Palavras Nem Coisas, intensificando-se a deflação da solidez ontológica do poeta, dito «pardo bolor sonoro» (ibidem). Digamos que a identidade não passa pelo espaço do poema, suspendido numa aporética poesia/literatura. Quer dizer, ainda que se tenha dito «tudo» (cf. Alexandre 1999: 83), o «lugar» não é «certo», é um «pastiche» (cf. ibidem: 82). Os topoi subsumem-se, deste modo, ao erro, i.e., à metamorfose. A um estado de colosso – ou seja, uma deriva que faz total descaso da proporção ou ergonomia humanas. Da Tradição – a Literatura – à Cidade (cf. Serra 2001) o que temos é a equivocidade do colosso. Numa palavra, a Cultura que, não representando, nem se representa a si própria. A indiciação disto é, então, o que lemos no verso «Contar-lhe do grande telefone / que cobre lisboa?» (Alexandre 1999: 35). Admite, neste sentido, uma leitura póscolonial, com extremos a desenvolver, pois a musa que podemos ter também é uma «musa híbrida» (cf. Ramazani 2001) que aceita línguas várias ou usos miscigenados das normas portuguesa e brasileira (cf. Visitação). O «Sodré sem Cais» da errância de Oásis, a Poesia desamparada de genius loci, aberta ao nomadismo e ao multiculturalismo, não agencia uma Cultura identitária, como já referi. A Poesia, como um «coração», ainda se guarda em «sítio seco e fresco» (Alexandre 1999: 79). Na verdade, sítio/não-sítio, eis um poema possível sobre quaisquer moradas equívocas: Julgavas, então, que a poesia era um discurso de palavras em sentido? Sei quanto a musa aprecia glória, poder e uniforme, quanto aguarda o cavaleiro que produz. A vida, afinal, anda lá fora, antes da folha ter passado a prensa;

a mais pequena árvore é verde eterna, comparada ao arbusto que, mal tocada a haste, se desvai em fumo. Por isso eu fico lendo as crónicas, as lendas, o jornal que, bem ou mal, cruza as palavras com o tempo, e contudo! quando o lábio se engana, solta a mais aguda fífia do trombone, e de repente o corpo sabe a gente, e então se diz: eis a verdadeira e pura poesia! pois seria, talvez, somente a tua mão, cobrindo a folha. (1996: 366)

A paisagem logofágica – remeto para este amplexo nocional desenvolvido por Tua Blesa (1998) – da poesia alexandrina, que pode ser dita «anti-discursivismo» (Magalhães 1981: 246), «descontinuidade discursiva» (Rosa 1987: 158), sobre-determinação do litotes (Lopes 1990: 325-326), resistência à «paráfrase» (Nava 1991: 16-17) ou «efeito de estranheza» (Amaral 1991: 108) no discurso crítico – sobre esta questão cf. Diogo 1995: 135 n. 22 e 1997: 85) – transporta também o Sentido. Uma possibilidade humilde – sujeita ao erro, ao «lábio [que] se engana» – mas plenamente potencial. O poema transcrito, i.e. «prensado», faz a mímica da comunicação no sistema literário. Na verdade, uma mímica/anti-mímica que não deixa de prover a uma sageza, a sageza da parábase mímica/antimímica. A kinética do poema, passada talvez a um destinatário cuja «mão» cubra a «folha», é um cumprimento dele com arte: «There is only one thing you can do about kinetic, re-enact it. Which is why the man said, he who possesses rhythm possesses the universe. And why art is the only twin life has – its only valid metaphysic. And if man is once more to possess intent in his life, and to take up the responsibility implicit in his life, he has to comprehend his own process as intact, from outside, by way of his skin, in, and by his own powers of conversion, out again» (Olson 1997: 162). Este re-

enactment é o que se encerra no «talvez» do poema supra transcrito, um nome da arte/vida não discernidas.

Bibliografia A. ALEXANDRE (1996), António Franco, Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim. ALEXANDRE (1999), António Franco, Quatro Caprichos, Lisboa, Assírio & Alvim. B. AMARAL (1990), Fernando Pinto do, O Mosaico Fluído. Modenidade e Pós–Modernidade na Poesia Portuguesa Mais Recente, Lisboa, Assírio & Alvim. BLESA (1998), Tua, Logofagias. Los trazos del silencio, Zaragoza, Universidad de Zaragoza. CRUZ (1999), Gastão, A Poesia Portuguesa Hoje, 2ª edição corrigida e aumentada, Lisboa, Relógio d'Água. DIOGO (1993), Américo António Lindeza, Modernismos, Pós– Modernismos, Anacronismos. Para Uma História da Poesia Portuguesa Recente, Lisboa, Cosmos. DIOGO (1995), Américo António Lindeza, Aventuras da Mimese. Na Poesia de Carlos de Oliveira e Na Poesia de António Franco Alexandre, Braga, Cadernos do Povo. DIOGO (1997a), Américo António Lindeza, Companhia dos Poetas. Pastoral, Cepticismo, Museu Imaginário, Braga, Cadernos do Povo.

DIOGO (1997b), Américo António Lindeza, Modernismo, Readymade. Notícias das Trincheiras, Braga, Cadernos do Povo. DIOGO (2001), Américo António Lindeza, «Sem Família» in AA. VV. Ave Azul, número dedicado a António Franco Alexandre, Viseu. HEGEL (1975), Georg Wilhelm Friedrich, Aesthetics. Lectures on Fine Art, 2 vols., translated by T. M. Knox, Oxford, Clarendon Press. LOPES (1990), Óscar, «Um poema de António Franco Alexandre», in Cifras do Tempo, Lisboa, Caminho, pp. 323–330. MAGALHÃES (1981), Joaquim Manuel, Os Dois Crepúsculos, Lisboa, Regra do Jogo. MILLER (2000), J. Hillis, «Friedrich Schlegel and the Anti-Ekphrastic Tradition», in Michael P. Clark, ed., Revenge of the Aesthetic. The Place of Literature in Theory Today, Berkeley, Los Angeles-London, University of California Press, pp. 58-75. NAVA (1991), Luís Miguel, «Introdução», in Antologia de Poesia Portuguesa. 1960–1990, Lisboa–Leuven, Caminho–Leuvense Schrijversaktie, pp. 5–25. OLSON (1997), Charles, Collected Prose, edited by Donald Allen and Benjamin Friedlander, with an introduction by Robert Creeley, Berkeley-Los Angeles-London, University of California Press. RAMAZANI, Jahan, The Hybrid Muse. Postcolonial Poetry in English, Chicago-London, The University of Chicago Press, 2001. SERRA (2001), Pedro, «Suburbia Alexandrinos», in AA. VV. Ave Azul, número dedicado a António Franco Alexandre, Viseu, pp. 52-70.

«A Poesia e o Colosso em António Franco Alexandre», Inimigo Rumor, vol. 11, Cotovia | 7Letras | Angelus Novus | Cosac & Naïfy, 2001, pp. 53-56.

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