A poética do olhar e o intermundo persa

June 19, 2017 | Autor: Alan Victor Pimenta | Categoria: Educação, Artes Visuais, Pesquisa Em Educação, Iluminura Medieval
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A poética do olhar e o intermundo persa
Alan Victor Pimenta[1]


Resumo: A temática da Visão, como imagem arquetípica fundamental da cultura
religiosa corânica, elabora o olhar como um dos sentidos mais aguçados nas
metáforas textuais e iluminuras poéticas – principalmente entre os persas
do século XII. É por isso que o Mi'raj namah (ou narração da ascensão
celeste, em persa), a experiência visionária e extática do profeta do Islã
representa um objetivo constante e um incentivo profundo para as mais altas
expressões da espiritualidade e da arte muçulmana. Indicarei, brevemente,
caminhos de ver na produção imagética persa do século XVII, o repertório
técnico de produção das miniaturas que figuram a Viagem do profeta como
narrativa visual. Isso se dará por meio do desenvolvimento de conceitos da
tradição muçulmana persa compilados pelo pensador islamista Henry Corbin
(1903-1978), como o Intermundo, ou fronteiridade, na interpretação das
iluminuras imaginadas por Nizami, e suas ressonâncias nas pesquisas e
criações de Milton José de Almeida.
 





Os Persas de Milton
Hoje passamos o dia a dobrar o olhar para a luz como a olhava Milton[2].
Isso é algo que qualquer de seus parceiros de andança era naturalmente
levado a fazer, excitar o olhar como ato ativo, criador. Caminhante exímio.
Nunca senti dificuldade para desprender-me de mim ao ponto voyeur daquele
seu olhar... quantas praças, dias de chuva, cafés, barulho de moedas,
pessoas passantes, o tabaco e as conversas com Marguerite Duras.
De Milton aprendi muito, o olhar, a atenção curiosa, certas trilhas,
gestos e trejeitos. Mas aprendi de fato a maneira de andar pelos lugares
como um frequentador. Ele tinha esse fascínio especial pelo modo como seus
escritores favoritos elaboravam os tipos das suas personagens vasculhando
pelos lugares que freqüentavam. Essa expansão do mundo, que torna em
espetáculo o circular da colherinha na xícara do café, era o que nos
devolvia, qualquer que fosse o momento, ao tempo de Proust, manhãs chuvosas
de Prévert, dias alvos, suspensos na neutralidade de Clarisse.
Era assim que tentávamos fazer, imantar o mundo para que ele mostrasse a
nós a sua arte, e todos os cantos e lugares eram mostras particulares dessa
arte-mundo.
Não é por menos que nos dizemos olheiros, olhadores constantes do tempo
presente. Esse era um ponto constante nas falas de Milton, o presente como
o único tempo verbal em ato, dotado de existência concreta, certa. Se ao
passado devolvermos sua condição de memória e o futuro a da espera, o
presente será aquele que é e seguiria sendo a concretude dos nossos
caminhos. Ao menos, essa é a expectativa que nos animou artisticamente. A
arte como modo de replicar o olhar aos lugares por onde se passa, devolver
ao presente a sua cara pelada, de uma nudez violenta como aquela que se vê
em Francis Bacon. E essa era uma necessidade que Milton trazia na alma.
Artisticamente ele era um incitador. Paramentava-se de imagens, palavras
e sons para compor sua liturgia pessoal da realidade. Dessa posição de
estrangeiro, olheiro, colava mosaicos com diferentes camadas de tempos e
lugares, onde tudo era sobreposição do agora.
Academicamente ele ensinava que o método de pesquisa é algo a ser
construído a partir do objeto, melhor dizendo, a partir do modo como a
coisa que se observa pede para ser observada. Uma questão bastante
recorrente nas reuniões de pesquisa era indagar das formas da imagem o modo
como ela pedia ao olhar que a visse. Sobre quais ideias suas linhas foram
traçadas, o que quer de nós esta imagem?, sob que lentes quer quadricular
nossos olhos e que temperamento de cores vestem as vistas para pintar nosso
mundo?
Mas também aprendíamos a nos deter sobre imagem em sua qualidade
substancial, ou seja, tentávamos limpar do nosso olhar o desejo de penetrar
em seu discurso para ficarmos a sós com suas qualidades de superfície.
Interessante como o exercício é revelador de novas belezas, essencial para
o pesquisador que traga como proposta criar artisticamente a partir dos
resultados de sua pesquisa. É também dessa forma que o pesquisador-artista
compreende e dialoga com os elementos implícitos ao ato realizador da obra,
e novos pontos de observação se abrem sobre ele. Foi assim que desfiz o nó
contraditório que me envolvia ao admirar a beleza luminosa dos filmes de
Leni Riefenstahl.
Então, construímos nossos projetos de pesquisa sobre duas propostas
iniciais: escolhido o grupo de imagens a ser trabalhado, partíamos deste
grupo para delimitar um raio de pesquisa tempo/espaço, e investigar tudo
quanto possível nessa relação histórico-geográfica; num segundo plano:
antes, durante e depois, produzíamos artisticamente, imersos nessa fluidez
poética. O que imagino, da posição de historiador de formação, é na
necessidade de a pesquisa ser também uma relação e uma experiência
estética; isso é coisa que fazíamos em campo, com câmera, papel e caneta
nas mãos.
O trabalho historiográfico pretendia compilar as mais variadas formas
discursivas circulantes em paralelo ao documento escolhido e estudá-las. No
caso dos estudos persas iniciamos pelas iluminuras criadas a partir dos
Cinco Poemas, de Nezami, e, para ajustar nosso olhar ao delas, as
investigamos sob seus mais variados planos discursivos. O tratado sobre o
comportamento dos raios de luz, por exemplo, de Al Kindi[3] nos ajudou a
reajustar do foco anatômico dos olhos, para então percorrer outras vias
pelas linhas e formas da imagem, exercício físico de alteridade, tendo por
base que o modo de olhar naturalizado no nosso contexto se prende ao do
tridimensionalismo da câmara clara, hoje da caixa preta televisiva.
Acho que estou falando um pouco sobre o que o artista-professor Wenceslau
belamente chamou Estrangeiridade do Olhar. Este é um ponto bastante
curioso, porque trata de uma questão técnica em nosso mecanismo de
pesquisa, mas também diz muito do conceito persa da travessia ao anjo
guardião, narrada pelas histórias tradicionais do Islã, por poetas e
adeptos, de modo literário, plástico e filosófico. É uma temática constante
essa da sensação de estrangeiridade sobre a Terra; curiosamente, talvez
tenha sido este mesmo o desejo motor dos sábios perfumistas. E, ao mesmo
tempo, trata-se de uma estrangeiridade que deva ser construída sobre o
olhar do próprio observador.[4]
A leitura das imagens e o diálogo com os textos eram orientados pelos
mais diversos campos de elaboração do conhecimento: a ótica, literatura,
artes plásticas, a poética, filosofia e mística eram aspectos do estudo
investigativo que constituíam em nós um palácio da memória com relação ao
tema escolhido, e quanto a isso não discriminávamos qualquer temática. A
alquimia, por exemplo, foi uma arte que ficou absolutamente refutada como
fantasiosa pelo contexto europeu, mas que por muito tempo avivou como
método de leitura e elaboração do mundo dos fenômenos e suas artes.[5] Era
este o mote central que compunha o mosaico formador de nossos trabalhos de
pesquisa e criação artística.
O que resta, então, é um método bem diferente daquele dos objetivistas,
mas menos por negá-lo do que por incluí-lo num campo mais amplo, devolvendo-
o à sua natureza interpretativa. A racionalização acabou sendo uma forma
hábil de se organizar o entendimento sobre o mundo e sua ação sobre ele,
mas não há como evitar que se trate de apenas um dos possíveis arranjos
lógicos, neste caso, tão consolidado quanto qualquer outra forma de crença
e de política.
Então dizíamos que nossa metodologia seguia uma via interpretativo, e,
como interpretadores, nos víamos obrigados a assumir nosso envolvimento com
o que observávamos, entendendo especialmente o ato de observar, por si, já
como transformador de seu objeto sujeito, que deixa de ser aquilo que é
para alcançar a qualidade de objeto. E daí a ser lançado em nosso olhar de
decifração, posto em movimento por nosso desejo criador. O que tentávamos
fazer era responder à arte com arte.
Interpretar é assumir a violência do ato de olhar.


O Manuscrito
Os Cinco Poemas, de Nezami, é uma das mais famosas obras da literatura
persa medieval. O texto original foi composto como um conjunto de histórias
de cunho folclórico misturadas de forma poética a profundos tratados
filosóficos. Ele foi copiado, aumentado e reinterpretado, uma e outra vez
ao longo dos séculos, recebendo a marca de diferentes calígrafos e pintores
das iluminuras.
O autor, Nezami, viveu e morreu no século XII. As miniaturas reproduzidas
aqui datam do XVII, e são parte do Suplemento persa manuscrito 1029,
preservado na Biblioteca Nacional da França. Esta cópia dos Cinco Poemas
provavelmente foi construída entre 1619 e 1624 durante o reinado de Abbas
I, o Grande. Mas o uso do termo cópia não pode ser aplicado, neste caso,
com o mesmo sentido que se dá a ele em língua portuguesa, uma vez que cada
versão iluminada destes poemas é diferente, e se cogita a existência de
pelo menos 245.
Vale ainda ressaltar a diferença entre os termos iluminura e ilustração.
O mais usado aqui no ocidente é ilustração, referindo-se a uma forma de
reproduzir o entendimento que se tem do texto de forma imagética. Não é
incomum que se procure nas ilustrações o sentido que se fará do texto lido.
Mas quando falamos em iluminura, um outro significado está aí envolvido. A
iluminura não pretende dar o sentido do texto, mas iluminar, clarear uma
das maneiras de se penetrar nas palavras lidas, preservando a possibilidade
de outras formas. É este o motivo de se ter tantas versões para o mesmo
texto.
A autoria das iluminuras desta versão dos Cinco Poemas é desconhecida,
provavelmente realizada por um grupo de artistas da escola iraniana de
Isfahan sendo que grande parte delas é largamente atribuída a Haydar-qoli
Naqqach. O nome do calígrafo, no entanto, é certo, Jabbar Abd ol-Esfahani,
nascido em Isfahan, cidade de proveniência da maioria dos textos
caligráficos do período. Por uma razão que não se sabe, as páginas finais
do manuscrito foram escritas em Bagdá, durante o domínio persa.
As dimensões das páginas do manuscrito são de 23 por 36,2 centímetros. O
papel utilizado de textura finamente canelada é de origem indiana. As
páginas escritas comportam um padrão de quatro colunas de texto que são
completas nas páginas iniciais. Os títulos dos capítulos são ornados em
folhas de ouro. Nas páginas iluminadas as colunas são interrompidas para
dar espaço às figuras, que geralmente se abrem no centro da página. Esta é
uma maneira curiosa de sugerir a leitura dos textos-imagens, como se as
pudéssemos imaginar em palimpsesto.


Mi'raj namah



O Miraj, ascensão de Maomé


Seus passos rompem a cortina dos astros, os anjos seguram firmemente seu
estandarte,
O umbigo da noite estava repleto do almíscar exalado por seus lábios e a
lua, crescendo, parecia uma ferradura largada por sua montaria.
O galope das patas de Buraq produzia um clarão na noite onde ocorria este
grande acontecimento,
Falcão com aspecto de perdiz e vôo de pomba, era rosto de pomba selvagem
e brilho da Fênix.
O lótus celeste roçava sua roupa; de sua vestimenta emanava o reino
celestial.
A noite tornava-se dia, e que dia maravilhoso! A rosa mudava-se em
cipreste, prodigiosa primavera!


Quando a maioria de nós professa sua crença na figura de um Deus, em
Jesus Cristo, ou quando se afirma que não há outro Deus além de Alá, e
Mohâmmed foi o selo dos Profetas, muitos significados diferentes podem
estar aí envolvidos. Mas de qualquer forma, a crença em algo atemporal e
além dos limites do espaço, em uma forma de presença que não se mostra de
todo, ou que se faça conhecer por ocultar-se ao olhar direto, mas que
sempre existiu, existe e existirá, é, em geral, o que chamamos de fé. A fé
não deixa de ser, para os que a alimentam, uma forma de experiência e de
conhecimento, e tal conhecimento não necessariamente leva em questão a
reflexão acadêmica sobre a esfera das experiências religiosas.[6] Mas, se
afirmo que fé é conhecimento, tal afirmação deixa transparecer que me
refiro a uma forma de saber que não se opõe à crença, sendo o contrário
também verdadeiro.[7]
A temática da Visão como imagem arquetípica fundamental da cultura
religiosa árabe, principalmente aquela de tradição corânica, faz do olhar
um dos sentidos mais aguçados pelas metáforas textuais e iluminuras
poéticas, especialmente entre os persas do século XII. É por isso que o
Mi'raj namah (ou narração da ascensão celeste, em persa), a experiência
visionária e extática do profeta do Islã, representa um motivo constante e
um incentivo profundo para as mais altas expressões da espiritualidade
muçulmana.
Quando dizemos Visão, estamos nos referindo a um aspecto mais amplo deste
sentido. Os místicos islâmicos, de um modo geral, concebem a idéia de dez
sentidos físicos, nossos habituais visão, audição, olfato, tato e paladar,
e consideram também suas dimensões internas, sendo que à visão corresponde
o sentido interno da imaginação. Para o sufi, imaginar é ver.
Diferentemente do aspecto religioso da vivência da tradição, o trabalho
iniciático corresponde a percorrer, nas vias internas, o drama do encontro
consigo e retorno à morada verdadeira. O aspecto religioso do Islã
corresponde à prática das Leis Corânicas pela via formal da instituição
religiosa legada pelos ensinamentos do profeta. A via iniciática, por sua
vez, foi a temática central das escolas sufi, abreviação do termo árabe
taçawwuf que significa verdade, como referência ao fato do adepto iniciado
buscar a verdade do ensinamento do profeta em seu próprio interior,
correspondendo, grosso modo, a percorrer os caminhos já trilhados pelo
próprio profeta e travar, na fonte, os conhecimentos oferecidos a ele pelos
patriarcas do conhecimento. Embora sejamos capazes, mediante a literatura
publicada sobre o assunto, de identificar aspectos comuns a todos os
processos de ascensão mística, geralmente de caráter simbólico, é possível
afirmar que cada caminho seja absolutamente particular, pois o caminho se
trata da imagem expandida do próprio caminhante.
A via iniciática foi muito bem didatizada no século X pelo andaluz Ibn
Arabi, em sua Alquimia da Felicidade Perfeita[8]. Ela narra o encontro de
dois viajantes com um anjo, que mais tarde somos levados a entender que se
trata, na verdade, da imagem divina dos próprios viajantes. Denominado anjo
guardião, sua substância é a imagem arquetípica do próprio ser guardado.
Chamemos atenção ao teor marcadamente neoplatônico desta passagem.
O caminho que se percorre é aquele do retorno à condição de unidade
absoluta e primordial, o encontro do divino com o humano, que se dá no Olho
do coração (aiyn AL-Qalb), o centro mais profundo do homem, mediante o
dhikr, a lembrança de Deus[9]. O adepto peregrino é apresentado a sete
regiões, que se dispõe em esferas concêntricas, que se desenvolvem como
sucessivos estados de alma. Na cartografia celeste, as regiões não
correspondem a lugares, mas a estados de espírito. Cada uma dessas regiões
é presidida por um dos profetas do passado e incorporam uma forma de
conhecimento, sendo eles Adão, Jesus, José, Enoch, Aaarão, Moisés e Abraão.
Após a completa visão do Cosmos, o adepto é conduzido ao véu do limiar do
além, o pé do trono de Lótus, é neste momento que ele cavalgará o Asno de
sua imagem antiga, e inflamará seu rosto para dissolver sua imagem na
experiência oceânica de deus.


O grande orientalista Henry Corbin forjou o termo mundo imaginal, para se
referir ao todo que compreende as dimensões externas e internas dos dez
sentidos. Essa condição intermediária da potência imaginal é identificada
por alguns pensadores do universo místico do Islã como a via intermediária
da alma, o istmo que se interpõe aos mundos manifesto (múltiplo) e não-
manifesto (uno), seria, então, como um istmo entre dois graus consecutivos
da hierarquia do Ser.[10]
O mundo imaginal reúne as dimensões sensível e inteligível, unifica os
dois aspectos da Visão, dá confluência a esses dois oceanos em uma condição
intermediária de existência. É o que o Islã chama alam al-mithâl, o mundo
de malakût, que não é o mundo dos sentidos, mas também não é o mundo do
puro entendimento abstrato. É povoado por realidades alheias à matéria
sensível, mas possuidoras de forma e dimensão. É, segundo a fórmula sufi, o
mundo em que se espiritualizam os corpos e se corporificam os espíritos.
Notemos, ainda, que o termo imaginal não equivale a imaginário - de uso
mais comum entre nós, mas de significação diversa - nem se trata de simples
licença poética. A escolha que Corbin fez pelo primeiro termo, imaginal,
deve-se ao fato de atribuirmos ao imaginário o significado de irreal,
fantasioso e utópico, como suporte fictício da realidade. A compreensão que
temos do termo utopia, utilizado por Tomas Morus, aponta para um não-lugar,
no qual se desenvolveria a cidade ideal, correspondendo à experiência
ilusória como parte do suporte físico de existência. A realidade do mundo
imaginal corresponde a outro plano de entendimento, pois seu significado
aproxima-se da dimensão do lugar-total, que, assim sendo, não pode ser
encontrado em nenhum ponto da realidade física, já que é o imaginal que
abarca o aspecto material da realidade. Com imaginal ganhamos uma dimensão
mais própria de seu significado em árabe. Enquanto imaginário quer
significar o ilusório, o imaginal deseja ser a terra da verdadeira
realidade.
É nesse campo de expansão que se desenvolvem as atividades artísticas e
filosóficas. O mundo imaginal corresponde às nossas esferas criativas e é a
constante busca pelo elo entre o mundo dos fenômenos e a sensibilidade
poética. Qualquer enredo que se conte de forma criadora levará o ouvinte a
viajar por este espaço em seu interior, criado por obra do contador da
história. Qualquer imagem que se crie lança sobre o olheiro sua condição de
janela.



Agora pensaremos um pouco sobre o modo como as iluminuras dos Cinco
Poemas carregam esse conhecimento na forma e na técnica com que foram
manufaturadas.


Chîrin vem ver Farhâd


Vieram dizer a Chîrin que Farhâd fez um tanque e abriu um canal.
Manhã e noite, este tanque se enchia do leite de suas ovelhas.
Beleza do Paraíso, ela veio pela planície, rodeou o tanque, contemplou o
canal.
Ela refletiu: "isto não é obra humana, é obra de Deus!"
Ela se extasiou com a destreza desse mestre Farhâd: "Que Deus tenha
piedade de tão hábil pessoa!"
Uma vez descansada, ela chamou Farhâd e o fez acomodar-se mais próximo
que seus seguidores.


O caminho em espiral, por exemplo, representa um importante simbolismo
para a mística islâmica. Nele, os adeptos enxergam o caminho da iluminação,
a viagem iniciática vivida não apenas pelo profeta Mohâmmad, mas também por
aqueles anteriores e posteriores a ele. Seguindo suas linhas os olhos
caminham pela iluminura indo do centro às bordas, percorrendo sua geometria
sagrada através das palavras em Luz e Sombra, em Cor e Forma, nesse
movimento ondulante do êxtase místico a contrair e expandir os mistérios da
existenciação, o influxo da Criação.[11]
A forma espiral percorrida pelo profeta no Mi'raj deixa a entender que
ele tenha atravessado por diversas vezes o mesmo ponto, mas de uma
perspectiva diferente, a cada reencontro, pois que acrescida da experiência
anterior. Este movimento, no entanto, não é original do Corão e diz muito
da própria forma narrativa das histórias árabes pré-islâmicas, cujos finais
tendem a se confundir com o começo umas das outras. O mesmo se observa na
confecção das imagens, espiralando sentidos e ritualizando o olhar.
A disposição dos elementos de cena sugere, em diversos momentos, essa
movimentação do olhar em espiral. Evidente que o olhar é livre para se
lançar sobre a imagem do modo como queira, mas uma maneira de se ver a cena
poderia ser esta: o assunto central da cena narrada se posiciona no ponto
inicial da espiral, formada pelo posicionamento e movimento dos elementos
que se desenvolvem ao longo da cena, de modo que o olhar percorra os mesmos
pontos por diversas vezes, mas num patamar diferente de observação, já que,
a cada curva, é levado a perceber a história narrada em uma dimensão
totalizante. Como se o desejo da imagem sobre o olhar fosse girá-lo, do
interior às bordas e de lá de volta ao centro.
Acontece algo semelhante quando lemos as histórias, o desenvolvimento do
enredo atualiza constantemente o significado de cada lugar, de cada cena
lida anteriormente, dando a ela um sentido completamente novo. Deste mesmo
modo, o olhar-entendimento movimenta-se em espiral e desenvolve sobre todos
os pontos da imagem, arrastando consigo a visão geral do que é visto.[12]
Não entendo isso como algo possível de se fazer em uma visão linear, afim à
construção cronológica do sentido da imagem, movimento característico da
cultura resultante da perspectiva renascentista. Nas iluminuras, a forma
não funciona apenas como suporte para o conteúdo das histórias, mas é, ela
própria, a expressão daquilo que contém, em sua qualidade de forma
espiralada.
É bastante proveitoso ver também que as personagens não possuem sombra e
que todas as partes da imagem são iluminadas uniformemente. Na ausência de
fonte luminosa, naturalmente, não se espera a existência de sombras. Seria
possível a ideia de que toda a cena é iluminada por uma fonte exterior à
imagem, como se fossem nossos olhos os iluminadores da cena, cuja luz é
devolvida a nós com as formas, linhas e cores da imagem. Ou, ainda, que no
intermundo da imagem elas se animado com luz própria. As cores são, então,
substâncias materiais a alterar a frequência da luz, vestem os raios com
seus significados de profundeza e mistério, tendo, cada cor, um significado
a ser compreendido ao longo da narrativa.
Nas iluminuras as figuras não têm suas dimensões alteradas conforme se
posicionem em planos mais distantes ou mais próximos, a impressão de
profundidade de campo não se dá como na perspectiva de Giotto e dos outros
mestres do renascimento. A princípio temos a sensação visual de ausência de
planos, no que chamaríamos imagem chapada, de um único plano e sem
profundidade de campo. Isso acontece, em parte, porque os olhos estão
habituado a usar o tamanho dos elementos da cena como referencial para
dispor as personagens na cena, conseguindo, assim, dar aos olhos a sensação
de profundidade. As dimensões dos elementos de cena não obedecem ao padrão
referencial de localização no espaço, como estamos acostumados a ver nas
pinturas da perspectiva clássica, então um novo padrão deve ser adotado
pelos olhos olheiros. A sensação de relevo é garantida quando se ajusta os
olhos sob o foco da espiral. É comum que a sucessão dos fatos narrados no
texto seja observada nesta mesma relação, o personagem central da espiral
propulsiona os fatos que se desenvolvem nela. Assim, a paisagem total da
iluminura é vista ao mesmo tempo, como se as diferentes camadas do
espaço/tempo pudessem ser vistas há um só momento. A visão que se tem das
diferentes camadas de acontecimento é sempre total, de modo que os espaços
não estão coordenados, mas não subordinados uns aos outros.
Essa forma de leitura da imagem também traz à luz a idéia de que o
observador, capaz de tudo ver e de tudo saber do interior da imagem, ocupa
a posição de avistar a história/paisagem com a onividência característica
de um deus. A movimentação do olhar pela cena aprende dela suas sucessivas
camadas de tempo e espaço sobrepostas na inteireza da imagem. Esta sensação
traduz o significado do espaço do Barzah, intermundo poético da
espiritualidade persa, no qual o modo de ver é um modo que se constrói à
medida em que se vê.


Motivos geométricos
Em nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso.
As iluminuras reproduzidas até aqui foram atribuídas a Haydar-qoli
Naqqach, da escola de Isfahan. Essa reprodução do Palácio Turquesa, no
entanto, é de autoria desconhecida. Trata-se claramente de um estilo
diferente das anteriores, valorizando a perspectiva paralela e os motivos
geométricos.[13]
A miniatura do Palácio Turquesa elabora com eloquência o simbolismo das
formas geométricas. A sacralidade dos tradicionais mosaicos árabes está em
sua forma de expressar, em imagem, a sentença fundamental do Islã: Em nome
de Deus, o Compassivo, o Misericordioso. Na cosmogonia corânica, o momento
em que o mundo é criado estabelece a dualidade primordial entre Deus e Não-
Deus, relação que replicará em todos os níveis ou planos de realidade: dia
e noite, quente e frio, mulher e homem, inspiração e expiração. É
importante lembrar que a noção de dualidade mantida pelos persas
Zaratustrianos é diversa daquela do oposicionismo, a bipolarização é aceita
como condição básica de tudo o que existe, de modo complementar em relação
um ao outro. Nas lendas sufis, o Criador desdobrado em Dois forma a
condição Trina da Criação, o Um que, dividido em Dois, é Três, já que mesmo
duplo, conserva ainda sua dimensão de unidade. Daí o triângulo ser um
símbolo bastante associado à Criação do mundo manifesto nas culturas
monoteístas do judaísmo, cristianismo e islamismo.
Entendendo o mundo imaginal como patamar intermediário entre o mundo dos
fenômenos e o das esferas sutis das formas perfeitas, na completude divina,
então esse mundo desenvolve-se num duplo intermundo: tanto no movimento do
Arco da Descida (Nozûl, passagem do Um ao múltiplo), quanto ao nível da
Ascenção, Escalada, por onde todos os seres aspiram a reencontrar sua fonte
original. Situada sobre o Arco da Descida, este intermundo é designado como
a cidade de Jâbalqâ, isto é, o mundo imaginal como tal, que precede o mundo
dos fenômenos sensíveis. Considerado pelo ângulo do Retorno, da Ascensão,
ele é a cidade da sombra de Jâbarsâ, posterior ao mundo sensível, o limite
no qual, nos dizeres de Daryush Shayegan, é um mundo no qual o amor deveria
preceder todo conhecimento, onde o sentido da morte seria a nostalgia da
ressurreição.[14]
A simultaneidade dos movimentos de contração e expansão da forma é
referenciada sob este aspecto, o constante movimento da Criação, as
centelhas que, expelidas pelo Criador, retornam a ele na condição de
peregrinos. Esta circularidade, tão característica das concepções gnósticas
do conhecimento, é constantemente lembrada pelos dizeres iniciais do Corão
e pelas formas dos mosaicos arabescos.
Segundo a mística islâmica, taçawwuf, o mundo é, então, esse processo
fluídico pelo qual a Divindade Una, produz sua própria imagem, e, tornando-
se conhecido de si mesmo, se desdobra em tudo o que existe. Este poderia
ser um dos grandes motivos da produção de imagens ter sido proibida pelo
Corão. Seja imagem de um plano divino ou terrestre, o ato de dar forma a
isso rompe com sua condição de existência enquanto potência criadora. Criar
uma imagem de Deus seria como aprisionar a essência dessa Compreensão na
grade interminável dos processos racionais. Também é por este motivo que o
profeta, na imagem do Mi'raj, aparece com seu rosto encoberto pelo véu do
mistério, uma maneira de significar que naquela condição ele atravessou o
abismo em direção à presença divina, fundindo seu ser ao ser cósmico
absoluto e, desintegrando sua existência individual, não pode ser visto.
Seu olhar é emprestado então pelo Burak, o asno condutor.
Não é por menos que muitos dos poetas e iluminadores foram perseguidos
pela Lei Islâmica, ficando a existência das poucas imagens condicionadas à
proteção específica deste ou daquele governante. Como foi o caso do
pensador Sohravard, por exemplo, protegido do Sultão Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf, o
Saladino das cruzadas, e que mais tarde morrerá a mando de seu próprio
protetor, acusado de influenciar demasiadamente as ideias seu filho e
herdeiro.


Esse princípio da dualidade é simbolizado pelo sufismo na sobreposição
dos signos de expansão e retração da forma. A cada plano da criação a
dualidade se renova porque em todos eles existem sempre dois termos
opostos: a quantidade que o caracteriza dentro da multiplicidade (três,
quatro, cinco etc), e a Unidade ou Realidade divina que o permeia. A
dualidade expressa na complementaridade das formas.[15]
Esta cosmogonia participa da definição dual do intermundo, que está para
esses dois planos de realidade como um istmo entre os oceanos, é uma
condição intermediária entre dois graus da hierarquia do Ser, a realidade
ideal de Deus e o Deus-mundo refletido. Essa dualidade intrínseca do
intermundo é elaborada nas formas dos mosaicos, que num certo sentido
decoram o interior das mesquitas, mas que em uma leitura mais aprofundada,
fazem com que suas paredes vibrem o princípio dual de sua matéria. Toda
mesquita é um reflexo da Mesquita Verde do profeta, aquela que não está em
nenhum lugar, mas se estende sobre todos, na Jerusalém Celestial.


Esperamos ter atendido ao menos em parte às expectativas com relação aos
novos estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa orientado pelo professor
Milton José de Almeida no Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO. Nosso
objetivo foi expor de forma panorâmica alguns dos conceitos trabalhados,
além de expor algumas das análises imagéticas realizadas por nós durante as
reuniões de orientação. Espero que esta exposição tenha trazido um pouco
mais da memória deste grande professor, grande artista e acima de tudo,
grande amigo.


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2002.
SHAYEGAN, Daryush; Henry Corbin, La Topographie Spirituelle de L'Islam
Iranien; Paris Ed. de la Différence, s/d.
WELCH, S. C.; Persian Painting – Fave Rouyal Safavid, Manuscript of the
Sixteenth Century; NY: George Braziller, 1996.



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[1] Cinéfilo e historiador, doutorou-se em Educação pelo Laboratório de
Estudos Audiovisuais OLHO, Faculdade de Educação, Unicamp, com a tese
orientada por Milton José de Almeida. Intitulada A cor da romã, trata da
obra homônima do artista e cineasta armênio Serguei Paradjanov. Colaborou
com alguns trabalhos fotográficos, literários e audiovisuais no grupo olhos
d'água, conjunto de trabalhos de criação artística do Laboratório OLHO. E-
mail: [email protected]
[2] O artigo seguinte é resultado da participação na mesa redonda "Teatro
da Memória e Estudos Persas" no Colóquio Imagens e Palavras - homenagem ao
professor Milton José de Almeida, no dia 16 de outubro de 2012, na
Faculdade de Educação da Unicamp.
[3] Escrito no século X e que mais tarde influenciou marcantemente o plano
perspectivista do renascimento italiano, bem como o raciocínio mágico de
Giordano Bruno.
[4] Posteriormente voltaremos a abordar a figura do Santo Anjo Guardião,
mas para uma leitura mais detalhada ver dissertação de mestrado: COSTA,
Alan V. P. A. P.; lugares no avesso do deserto, Universidade Estadual de
Campinas, Faculdade de Educação, 2007.
[5] O trabalho que o professor Henry Corbain iniciou na Universidade de
Sorbonne e continuou em Teerã, foi sem dúvidas o mais completo que se tenha
sobre a filosofia oriental, ele alertava constantemente sobre o fosso
conceitual entre estas elaborações e o mundo ocidental.
[6] Ver: IBN'ARABÎ; Alquimia da Felicidade Perfeita; SP: Landy Ed., 2002.
[7] O assunto é melhor desenvolvido em meu capítulo A visão de Qaf, em
Educação e cultura audiovisual: ressonâncias, SP: Ed. Moderna, 2012.
[8] Uma das cópias manuscritas desta obra estaria entre os pertences de
Dante Alighieri.
[9] Ver AZEVEDO, Mateus, 2000, p.7
[10] LEITE, Silvia; O Simbolismo dos Padrões..., p.41.
[11] Ver Alquimia da Felicidade Perfeita
[12](;? K }~



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øðøäÖË〣c£F£€£€£ Uma analogia curiosa poderia ser aquele modo como Juan
Rulfo conta suas histórias, desenvolvendo o todo como resultado da
individualidade própria de cada cena descrita. Ver Pedro Páramo, Chão em
Chamas e O Galo de Ouro.
[13] Ao assunto geral de que trata uma imagem, à repetição de uma célula
imagética ou à predominância de certas tonalidades, geralmente se atribui o
motivo imagético.

[14] Ver SHAYEGAN, Daryush; Henry Corbin...
[15] Ver LEITE, Sylvia; O Simbolismo...
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