A política linguística do reinado de Afonso X, o Sábio

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ATAS DA X SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

ATAS DA X SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Copyright © by Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva Leila Rodrigues da Silva Juliana Salgado Raffaeli (org.). Direitos desta edição reservados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) Instituto de História (IH) | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Largo São Francisco de Paula, 1 - sala 325-B Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20051-070 Fax.: (21) 2252-8032 - Ramal 104 E-mail: [email protected] | http://www.pem.historia.ufrj.br Edição: Alexandre Santos de Moraes ISBN: 978-85-88597-19-8

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da; RAFFAELI, Juliana Salgado (org.). Atas da IX Semana de História Medieval / Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva; Leila Rodrigues da Silva e

Juliana Salgado Raffaeli

(organizadores). Rio de Janeiro: PEM, 2014. Bibliografia: ISBN: 978-85-88597-19-8 1. História Medieval 2. Programa de Estudos Medievais 3. Instituto de História. I. Título.

A POLÍTICA LINGUÍSTICA DO REINADO DE AFONSO X, O SÁBIO Leonardo Augusto Silva Fontes 1

(Doutorando - Scriptorium/UFF)

Houve intensa produção de livros/manuscritos e documentos na oficina régia de Afonso X, rei de Castela e Leão (1252-1284), cuja escrita em língua vulgar se vinculava a um projeto político e à sua imagem interna e externa. Cabe a seguinte reflexão: o caráter fundador dessa escrita vernacular ensejou de fato um projeto político-cultural e linguístico, de poder? Essas obras foram fundamentais para a formação da corte de Afonso X, conhecido como sábio. Não existe rei sem livro, grande tesouro, ainda mais no caso desse monarca. Há um trecho como paradigmático acerca do lugar e da importância do livro na corte afonsina: El rey faze un libro non por quel él escriva con sus manos mas porque compone las razones d’él e las emienda et yegua e endereça e muestra la manera de cómo se deven fazer, e desí escrívelas qui él manda. Peró dezimos por esta razón que el rey faze el libro2. Afonso X fez não só um livro, mas vários, e todos em língua vernacular (castelhano ou galego-português). Daí a opção por manter o termo “política linguística” para analisar seu reinado. Não se pretende aqui adotar certo tom triunfalista da vitória do vernáculo diante do latim em terras hispânicas, mas é inegável que a relação entre língua e poder no reinado afonsino é intrínseca. Ainda durante a Baixa Idade Média houve a emergência de alguns vernáculos europeus e no século XIII o rei Afonso X finalmente adotou o castelhano como língua oficial de seu reinado, culminação de um processo histórico:

Bolsista CNPq e Técnico da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. 2 AFONSO X, O SÁBIO, General estoria I, 477 b. Grifo meu. 1

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Do século IX ao século XII no norte da Espanha atual, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, foram consolidadas as variantes do latim que futuramente se diferenciaram em dialetos. Em outras regiões se desenvolveram romanços que seriam a base das futuras línguas da Espanha. Já durante a Idade Média era possível identificar seis variedades de dialetos: o galego, o astur-leonês, o castelhano, o navarroaragonês, o catalão e o moçárabe. Essa última variedade acabou por desaparecer com o tempo.3

O termo castelhano vem de “castilla” (do latim “castella”, plural de “castellum”), que significava no período visigótico “pequeno compartimento militar”. No século IX, o castelhano era a língua falada por montanheses e bascos encarregados de defender a fronteira oriental do reino astur-leonês contra os árabes – o que deu origem à região tornar-se “tierra de Castillos”, em seguida “Castilla”. O primeiro castelhano se desenvolve em regiões de fala basca, no centro-norte espanhol. Esse romanço hispânico (línguas vernaculares) é derivado, então, do contato entre o latim e o euskera basco que ocorre no Reino de Castela. Nos séculos X e XI, o castelhano já se expandia em três frentes: leste, oeste e sul, ocupando, por fim, toda a região central da península, absorvendo de um lado o leonês e do outro o aragonês. Essa expansão linguística deve-se “à utilidade e ao prestígio da língua, mas, sobretudo ao importante papel político que Castela desempenhou durante a Reconquista. Foi, de certo modo, a retomada da região pelos domínios cristãos que definiram o desenvolvimento das línguas na Espanha”.4 Assim, na Espanha, a disseminação de uma forma-padrão de castelhano foi vinculada à reconquista. A variedade falada em Burgos tornou-se o padrão, aceito em Toledo quando aquela antiga capital foi retomada dos muçulmanos, ou “mouros”, e depois se espalhou pelo Sul. Em 1255, o rei Alfonso X, “o Sábio”, declarou que Toledo era “a medida da língua espanhola”.5 Entretanto, somente com os reis católicos o castelhano foi plenamente padronizado e homogeneizado, ainda assim com diversas 3 SOUSA, Fernanda Cunha. Dialetação do latim na península ibérica medieval. In: DERING, Renato de Oliveira. Intersecções nos estudos de linguagem, cultura e sociedade. Digital Books, 2013. p. 142-154, p. 149. 4 TEIXEIRA JUNIOR, Geraldo Alves. O desenvolvimento das línguas ibéricas e a política linguística do governo central espanhol. SOLETRAS, Rio de Janeiro, ano 9, n. 17, p. 128- 147, 2009. Supl. São Gonçalo: UERJ 5 BURKE, Peter. Linguagens e comunidades nos primórdios da Europa Moderna. Tradução. Cristina Yamagami. São Paulo: Unesp, 2010. p. 113.

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resistências regionais. Mas os esforços empreendidos por Afonso X na normatização do castelhano como língua de governo devem ser destacados. No campo jurídico, Afonso X buscou unificar os códigos normativos como elementos de difusão de seu poder, pois por meio da lei, ele exercia sua autoridade sobre os súditos e no âmbito da atuação de um poder disputava e se sobrepunha a outros. Outros mecanismos foram acionados no sentido de inscrever a autoridade régia em um amplo território, recém-reconquistado por seu pai e antecessor Fernando III, o Santo. Havia a necessidade de se consolidar não apenas no campo do Direito, mas nos domínios da Cultura e do Saber. Cabe lembrar que até mesmo as leis eram imbuídas de um caráter didático e voltadas para o ensinamento. Nesse sentido, o rei sábio ordenou e participou da tradução de diferentes obras (a maioria para o castelhano), juntamente a judeus e muçulmanos. Em março de 1254, por exemplo, o judeu toledano Yěhudá ben Mošé ha-Kohén começou a traduzir do árabe para o castelhano um dos mais conhecidos tratados de astrologia, o “Kitāb al-bāri’fi ‘akām an-nuğūm de Abū’l-asan ‘Alī b.Abī’r-Riğāl”, ou “El Libro conplido en los iudizios de las estrellas”, cujo prólogo diz: Laores e gracias rendamos a Dios padre uerdadero, omnipotent, qui en este nuestro tiempo nos denno dar sennor en tierra connocedor de derechuria e de todo bien, amador de uerdat, escodrinnador de sciencias, requiridor de doctrinas e de ensennamientos, qui ama e allega a ssi los sabios e los ques entremeten de saberes e les faze algo e mercet, porque cada uno d’ellos se trabaia espaladinar los saberes en que es introducto, e tornar-los en lengua castellana a laudor e a gloria del nombre de Dios e a ondra e en prez del antedicho sennor, el qui es el noble Rey do Alfonso, por la gracia de Dios rey de Castiella, de Toledo, de León, de Gallizia, de Seuilla, de Cordoua, de Murcia e de Jahen e del Algarue e de Badaioz, qui sempre desque fue en este mundo amo e allego a ssi las sciencias e los sabidores en ellas e alumbro e cumplio la grant mengua que era en los ladinos por defallimiento de los libros de los buenos philosopnos e prouados.6

6 IBN ABI ‘L-RIDJAL. El Libro conplido de los iudizios de las estrellas. Aly Aben Ragel; tradução feita na corte de Afonso X, introdução e edição por Gerold Hilty; prólogo de Arnald Steiger. Edição digital da edição de Madrid, Real Academia Española, 1954. Prólogo.

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O texto acrescenta que Yěhudá ben Mošé havia achado o libro “tan noble e tan acabado e tan conplido en todas las cosas que pertenecen en astronomía” e que o traduziu “por mandado del antedicho nuestro sennor, a qui Dios de uida”. Este prólogo, escrito dois anos depois da ascensão de Afonso X ao trono, contém uma espécie de declaração programática da atividade científica e cultural do rei Sábio. Gerold Hilty afirma que este prólogo está cheio de implicações culturais, que se referem a: um rei justo, que promove a investigação científica para fazê-la prosperar e para participar ele mesmo em seu progresso; um valor religioso da vulgarização/ vernacularização do saber e da adoção do romance como língua de cultura, feitas não só «a ondra e en prez» de seu promotor, mas também «a laudor e a gloria del nombre de Dios».7 O castelhano passava a prefigurar, seguramente, a capacidade de expressar conteúdos abstratos – filosóficos e científicos –, característica das traduções da época afonsina. A diferença entre as traduções do século XII e as do século XIII é evidente e significativa. O que no século XII não era mais que um meio, uma forma intermediária efêmera de se escrever, se converte em forma escrita definitiva nos códices da oficina régia de Afonso, o Sábio. No prólogo do “Libro de las estrellas fixas”, obra que foi traduzida em 1256, pelo mesmo Yěhudá ben Mošé em colaboração do clérigo Guillen Arremon Daspa, e da qual, 20 anos mais tarde, se realizou uma redação definitiva, o texto diz o seguinte: Et despues lo endereço e lo mando componer este Rey sobredicho, e tollo las razones que entendio que eran sobeianas e dobladas e que non eran en castellano drecho, e puso las otras que entendio que complian. Et quanto al lenguage endereço-lo el por si.8

Pode-se afirmar que foi conceituado, pela primeira vez, o castellano drecho. Rafael Cano Aguilar propõe, entretanto, uma interpreta7 HILTY, Gerold. El plurilingüismo en la corte de Alfonso X el Sabio. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2010. 8 RICO Y SINOBAS, Manuel (Ed.).1863-1867 Libro de la Ochava Esfera in Libros del saber de astronomía del Rey Alfonso X de Castilla. Madrid, s.n. apud LEITE, Mariana Soares da Cunha. Antes da queda de Jerusalém. Os reis e os seus profetas na III Parte da General Estoria de Afonso X. Porto: Universidade do Porto, 2008. p. 9.

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ção diferente desse conceito e chega à seguinte conclusão: “El Códice Complutense, la mayor y más acabada compilación de las obras científicas del Rey Sabio, se nos revela así como un texto castellano continuamente salpicado de elementos de otros dialectos vecinos”:9 Assim, o autor defende que a ação linguística de Afonso X, em consonância com o enunciado na passagem castellano derecho, recai sobre uma normalização da língua em que cabiam elementos concretos que não eram estritamente castelhanos, afastando o rei de qualquer atitude purista. Ainda resta a dúvida se na verdade não se trataria de castellano derecho. Aguilar se pergunta, então qual teria sido a “situación dialectal en la España de Alfonso el Sabio y si el plurilingüismo de su corte contenía también una faceta dialectal” e afirma que os rasgos dialetais “desempeñan un papel importante en las obras de la corte de Alfonso el Sabio y que hay indicios que evidencian una clara conciencia respecto de este plurilingüismo interno del español, inclusive o próprio rei fala de um castellano derecho”.10 Esse plurilingüismo11 se expressa também na escolha do galego-português para a escrita poética de Afonso X. Daí as Cantigas de Santa Maria, por exemplo, serem entendidas como uma obra política: En las posiciones linguísticas adoptadas por Alfonso X se puede observar, por um lado, una estratégia inédita para la época: poner em duda la validez de un modelo latino universal; y, por outro, contrariando la imagen de Alfonso X como um soberano ocupado en cuestiones intelectuales en detrimento de los problemas del estado, una estrategia conciente de la importancia de la transmición del saber.12 9 CANO AGUILAR, Rafael. Castellano ¿drecho?. Verba, v. 12, p. 287-306, 1985. p. 304-305. 10 Idem. 11 Este caráter multicultural e multiétnico da Península Ibérica é ressaltado por diferentes autores. Cf. GARCÍA DE CORTÁZAR, Fernando; GONZÁLES VESGA, José Manuel. História de Espanha. Uma Breve História. Lisboa: Editorial Presença, 1997. p. 23: “Enclave entre o Norte europeu e o Sul africano, a península viveu bem cedo a desdita de se converter em campo de batalha entre dois mundos – mas também a sorte de ser lugar de encontro dos respectivos povos, num processo inacabado de mestiçagem de culturas e sangue que depois veio a expandir por terras americanas”. 12 BARROSO, Graciela. Alfonso X y la Escuela de Traductores de Toledo – Notas para un estudio de políticas linguísticas. Actas Academia de Ciencias Luventicus. 2003, 5, 10. Disponível em . p. 9.

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Há um caráter aglutinador do cancioneiro afonsino, como no uso do galego-português e quatro são as hipóteses levantadas acerca da escolha dessa língua: “uma preferência poética relacionada com sua infância na Galícia; uma adequação maior do galaico-português à lírica; uma inserção na tradição trovadoresca em voga e uma compreensibilidade e aceitabilidade por parte do público”.13 “Ainda que seja verídica essa flexibilidade linguística e poética do galego, no uso desta língua em parte da escrita afonsina também subjaz uma estratégia política de integrar outros reinos e súditos que não só os de Castela e Leão, como a Galícia”.14 Quer dizer, esta contraposição ao latim, e a diferença em relação ao castelhano, indica uma política afonsina plurilinguística, mas ainda assim centralizadora e aglutinadora, cimentada na visão de uma sociedade fronteiriça e na coexistência inescapável de diferentes povos – inclusive não-cristãos. E o fato do idioma galego-português ser “fluido, natural e expressivo – logo, de fácil penetração em todas as camadas da sociedade castelhana”15 só vem corroborar esta estratégia baseada numa preocupação propagandística evidente, em busca de maior apoio e compreensão popular; daí sua escrita em romance. Ao tratar dos textos poéticos medievais, Zumthor no que se refere às epopeias espanholas, nelas “parece afirmar con su precisión misma una identidad”.16 Cabe observar que há espaço para uma abordagem política acerca de textos poéticos, inclusive porque nuestras epopeyas deben considerarse desde la perspectiva de la formación de comunidades sociales y culturales en el momento en que se inicia el proceso del que saldrán las naciones modernas: fase de territorialización en la que, en el imaginario, 13 FERNÁNDEZ, Monica Farias. A Sennor de Dom Afonso X: estudo de um paradigma mariano (Castela 1252-1284). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1994. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994. p. 24 14 FONTES, Leonardo Augusto Silva. Às margens da cristandade: os moros d’España à época de Afonso X. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. 15 FERNÁNDEZ, Monica Farias. Op. Cit., 1994, p. 25. 16 ZUMTHOR, Paul. La medida del mundo. Representación del espacio en la Edad Media. Madrid: Cátedra, 1994. p. 365.

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en los discursos, así como sobre el terreno, existir es ocupar, delimitar, defender. […] La epopeya española divide, en el seno del espacio, percebido como homogéneo, de la Península, un territorio propio movedizo, que se redefine a todo momento por los movimientos que le quitan y le añaden.17

Este caráter plurilinguístico de seu reinado se apoia, em grande parte, na escrita afonsina – marcada por uma produção que pode ser considerada monumental. Segundo Manuel González Jiménez, Afonso X expediu em sua chancelaria real e outras oficinas documentais cerca de impressionantes 3.500 diplomas.18 Em sua tese de doutorado,19 Marina Kleine estuda justamente a cámara del rey no reinado afonsino e afirma que essa produção se destaca não só pelo aumento significativo do volume documental “en comparación con los reinados anteriores sino fundamentalmente por constituir un punto de inflexión en el desarrollo de na cancillería real castellana en la Edad Media”.20 Após refletir sobre a relativa escassez de documentos conservados e seu grande grau de dispersão, Marina Kleine afirma que é nas Siete Partidas que a evolução da palavra cámara aparece de forma mais evidente, relacionada à produção de documentos de chancelaria. Destaca-se que, nesta obra, a referência “a la custodia de los escritos del rey refleja el alto valor atribuído a la documentación y a los libros del monarca”.21 Esse destaque à produção documental e livresca do monarca aparece em seu testamento de 21/01/1284, outorgado em Sevilha, onde Afonso X indica claramente que possuía uma biblioteca e que recebia livros de outros monarcas, como Luís IX da França. Além disso, demonstra o grande valor que dava a esses verdadeiros tesouros régios, ao listar ao listar alguns deles neste documento – seu último em vida: Ibidem, p. 366-367. GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel; CARMONA RUIZ, María Antonia. Documentación e itinerario de Alfonso X. Sevilla, Universidad de Sevilla, 2011. Agradeço a González Jiménez a prestimosidade e confiança em me oferecer ainda no prelo o acesso a esses registros, por meio de sua publicação. 19 Na Universidad de Sevilla, via CAPES e em vias de conclusão, sob orientação de González Jiménez. 20 KLEINE, Marina. Sancho Pérez y la cámara del rey en el reinado de Alfonso X. Alcanate. Revista de Estudios Alfonsíes, Cádiz, v. 7, p. 329-357, 2010-2011. p. 329. 21 Ibidem, p. 344. 17 18

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E mandamos otrosí, que las dos Biblias et tres libros de letra gruesa, cobiertas de piata, e la otra en tres libros hestoriada que nos dio el rey Luis de Francia, e la nuestra tabla con las reliquias, e las coronas con las piedras, e con los camafeos, e sortijas, e otras cosas nobles que pertenecen al rey, que lo haya todo aquel que con derecho por nos heredare el nuestro señorío mayor de Castilla y León.22

Portanto, o livro, para Afonso X está no mesmo patamar que as otras cosas nobles que pertenciam ao rei. Além dessas obras e do Setenario, Afonso X também manda que

que todos los libros de los Cantares de loor de Santa Maria sean todos en aquella iglesia de nuestro cuerpo se enterrare, e que los fagan cantar las fiestas de Sancta Maria. E si aquel que lo nuestro heredare con derecho e por nos, quisiere haber estos libros de los Cantares de Sancta Maria, mandamos que faga por ende bien et algo a la iglesia onde los tomare porque los haya con merced e sin pecado23

Percebe-se que a questão do livro e da escrita não era menor para Afonso X, ao contrário. E poderíamos nos perguntar se era comum neste século XIII castelhano tamanha especificação em testamentos e inventários de uma verdadeira biblioteca régia. Havia, assim, um protocolo de escrita (e de leitura) e uma grande variedade de funções e níveis de intervenção régia no processo de criação das obras de Afonso X em sua oficina. A especialista em escrita medieval, Elisa Ruiz García, diz que “hay que resaltar que su papel en la nueva concepción del libro en lo que concierne a la función utilitaria atribuida al mismo. Ciertamente, era considerado como un artefacto, que requería unas instrucciones de uso”.24 A escrita afonsina se reveste, assim, de grande caráter político e exercício do poder. Por isso, é interessante sua associação e investimento neste universo, sendo frequente a aparição de Afonso X “en las Antologia de Alfonso X El Sabio. Edición de Antonio G. Solalinde. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1940. p. 198. 23 Ibidem, p. 198. 24 RUIZ GARCÍA, Elisa. Rex escribens: discursos de la conflictividad en Castilla (12301350). In: NIETO SORIA, José Manuel (Dir.). La monarquía como conflicto en la Corona castellano-leonesa (c. 1230-1504). Madri: Sílex, 2006. p. 372. 22

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exquisitas miniaturas de la época, rodeado de profesionales tan variados del mundo de la cultura como ‘trasladadores’, ‘enmendadores’ o ‘ayuntaores’, cuando no de copistas, miniaturistas, músicos, etc.”.25 Menéndez Pidal reconhece que a suspeita acerca da autoria plena de Afonso X na Primera Crónica General é válida. Porém, interessa aqui a noção afonsina de que o “rei faz o livro”, presente em sua obra: de los colaboradores que trabajaron en la Crónica General nada sabemos […]; sólo queda, como autor único, el rey que no dice, como en la General Estoria, fiz fazer este libro, sino que escribe terminantemente: ‘Nos don Alfonso... mandamos ayuntar quantos libros pudimos aver de historia que en alguna cosa contassen de los fechos de España... et compusiemos este libro.26

Jean Batany defende que “o uso crescente de documentos escritos, dos séculos XII ao XIV, não lhes tira seu valor secundário em relação à memória, às falas, aos cantos, aos gestos, aos objetos simbólicos. Nas escolas, o mestre ‘lia’, o aluno ‘escutava’” (Paul Zumthor). Escrevia-se e lia-se bastante no final da Idade Média, sobretudo material bíblico e litúrgico. O impacto dessas mudanças foi imenso. Havia empréstimos de manuscritos entre os monastérios e os monarcas, o que relativiza a suposta clausura total dos textos medievais. Quanto aos textos pagãos, nem todos eram copiados. Somente no século XIII a recuperação dos clássicos se intensifica, principalmente através dos árabes e da corte afonsina. Este monarca impulsionou enormemente a cultura escrita em terras castelhanas, inclusive, como já foi dito, no campo da tradução. Em meados do século XIII, Toledo era de novo “o centro de uma intensa atividade de tradução, com o impulso dado pelo rei Afonso X, cujos secretários redigiam, primeiro em castelhano, depois, em certos casos, em latim, o que os intérpretes, geralmente judeus, tinham compreendido do original”.27 25 VALDEÓN, Julio. Alfonso X el Sabio. La forja de la España moderna. Madri: Ediciones Planeta Madrid, 2011. p. 170. 26 PIDAL, Ramón Menéndez. “Presentación” e “La primera crónica General de España”. In: AFONSO X. Primera Crónica General de Espanã. p. VII-LVI. p. XX. 27 JACQUART, Danielle. A escola de tradutores. In: Toledo - Séculos XII-XIII. Muçul-

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Esta cidade era, então, o grande centro tradutor e cultural da Europa, de onde o Ocidente iniciou a apropriação da produção intelectual do mundo greco-romano e do árabe. Essa aliança entre o antigo e o novo é a grande marca desse século XIII, no meio de um processo cultural intenso entre cristãos, muçulmanos e judeus: Alfonso X estableció una diferencia con la política de traducciones del período precedente. En primer lugar, incluyó en los trabajos obras literarias, junto con el corpus de obras científicas y filosóficas. Por otra parte, al solicitar la traducción al romance (lengua vulgar) y no al latín (lengua culta) marcó el inicio de una empresa de traducción en lengua vernácula que se apartaba del movimiento precedente, donde el romance era sólo un intermediario oral entre un arabista y un latinista.28

Houve, assim, uma política linguística de vernacularização da cultura, dos saberes, da administração e do direito – ou seja, do poder. Desse modo, Peter Burke postula que A expansão dos vernáculos no âmbito do Direito e do governo não era simplesmente uma questão de praticidade administrativa. Mais uma vez, a comunidade é um indicativo disso. Essa expansão era um ato, ou uma sucessão de atos, de importância simbólica, sinalizando o surgimento de novas comunidades ou novos conceitos de comunidade. Podemos ver essa importância simbólica com mais clareza se lembrarmos que apenas alguns vernáculos se expandiram dessa forma e que conseguiram isso tanto em detrimento de outros vernáculos como do latim.29 No caso afonsino esta expansão dos vernáculos está diretamente associada a um projeto político e a uma busca pela uniformização social, que se demonstra, por exemplo, pela escolha de uma única língua manos, Cristãos e Judeus - o saber e a tolerância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 164. 28 BARROSO, Graciela. Alfonso X y la Escuela de Traductores de Toledo – Notas para un estudio de políticas lingüísticas. Actas Academia de Ciencias Luventicus, v.5, n. 1, p. 1-10, 2003. p. 8. 29 BURKE, Peter. Op. Cit., p. 91.

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(castellano derecho) para a escrita de quase toda sua obra, exceto para a poética (galego-português), buscando com isso mitigar (ou combinar) a influência tanto do árabe, do latim e demais línguas vernáculas em uso nas terras sob seu domínio. O cuidado afonsino para com a linguagem da obra ia além de seu estilo, visando também a concisão e o purismo da mesma, em que uma “certera preocupación literaria revela el esforzarse por alcanzar ‘el castellano drecho’, la propiedad castellana, cuando no existía una arraigada tradición prosística en Castilla”.30 Isso significa um projeto político centralizador subjacente a uma escolha aparentemente estética, como acontece em diversas passagens de suas obras. Neste vasto horizonte linguístico e no impressionante plurilinguismo ativo do rei e, sobretudo, de seus colaboradores houve um centro incontestável: o castelhano. Esta língua se enriqueceu mediante o contato com outras línguas, adotando latinismos, arabismos, galicismos, dialetalismos, etc., mas principalmente estendeu e ampliou seus “propios medios expresivos al confrontarse con otras lenguas, al tener que expresar - principalmente en las traducciones - valores, realidades y conceptos nunca expresados en castellano”.31 Neste sentido, a política lingüística afonsina contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento e consolidação do castelhano no âmbito da cultura escrita e, digamos, erudita – vinculada a um projeto político de superioridade régia em meio a conflitos de poder. Mesmo que o galego-português tenha sido usado para a expressão poética, pode-se afirmar que ao final do reinado de Afonso X, a España possuía uma língua administrativa, judicial, ampla, culta, rica e variada, que dava condição de possibilidade de expressão a todos ou quase todos os valores do mundo material e espiritual. Ou seja, pode-se falar em política linguística afonsina? Não deveria haver muita necessidade de lembrar as pessoas da ligação entre língua e política ou, melhor, do emaranhamento entre línguas e políticas [...] Por que um historiador cultural escreveria sobre linguagem? Por que não deixar o tópico para os PIDAL, Ramón Menéndez. “Presentación” e “La primera crónica general de España”. In: AFONSO X. Primera Crónica General de Espanã. p. LI. 31 HILTY, Gerold. Op. Cit. 30

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linguistas? Antes de mais nada, porque a linguagem é sempre um indicador sensível – embora não um simples reflexo – da mudança cultural.32

Cabe, portanto, uma reflexão sobre a política – por que não linguística – de Afonso X em vernacularizar toda escrita oficial de seu reinado, pois as intervenções na língua ou nas línguas têm caráter eminentemente social e político: A intervenção humana na língua ou nas situações linguísticas não é novidade: sempre houve indivíduos tentando legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da língua. De igual modo, o poder político sempre privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa língua ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria. No entanto, a política linguística (determinação das grandes decisões referentes às relações entre as línguas e as sociedades) e o planejamento linguístico (sua implementação) são conceitos recentes que englobam apenas em parte essas práticas antigas.33

CALVET, Louis-Jean As Políticas Lingüísticas. Florianópolis/São Paulo: Ipol/ Parábola, 2007, p. 17. 33 Ibidem, p. 11. 32

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