A pomba-gira sou eu – aspectos da identidade transexual com a religiosidade afro

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ACOSTA, Tássio. A pomba-gira sou eu – aspectos da identidade transexual com a RODRIGUES, Tássio Acosta. religiosidade afro. In.: 1' Simpósio Sudeste da ABHR - 1' Simpósio Internacional da ABHR. Diversidades e (in)tolerâncias religiosas. ISSN 2318-518X. 2013.

A pomba-gira sou eu – aspectos da identidade transexual com a religiosidade afro Tássio Acosta Rodrigues 1

Introdução O interesse na formulação desse artigo deu-se após entrevistas com diversas transexuais femininas que, a partir de agora, serão chamadas de trans.mulheres, terem nas religiões de matriz africanas como escolhas de filosofia de vida. Muitas delas encontraram total aceitação de suas condições nas casas de santos e amparo emocional por parte das mães e pais de santos, assim como os irmãos de santos dessas casas, das quais frequentam. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas e com análise qualitativa dos dados que são apresentados dentro da narrativa, sem um lócus determinado. Todas as entrevistadas foram muito receptivas e se mostraram disponíveis para dirimir todas as questões apresentadas. Os nomes reais foram suprimidos no texto para garantir o anonimato. Das trans.mulheres entrevistadas para esse artigo, todas tiveram dificuldades de entendimento consigo (com o Eu) e com o outro (aqueles que estavam aos seus redores). Dificuldades essas das quais fizeram com que a respectiva identidade individual, do Eu, ficasse um período de suas vidas desnorteados, com questionamentos sem respostas e dificuldades no relacionamento intrapessoal e interpessoal.

A identidade da pessoa transexual

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Formado em História pela Universidade Católica de Santos, Especialização (lato sensu) em conclusão em Patrimônio Histórico, Memória e Preservação pela Universidade Santa Cecília com monografia a respeito da cultura LGBTTTIQ em Santos. Cursando Lato Sensu em Ética, Valores e Cidadania na Escola, pela USP (Universidade de São Paulo), onde analisa as questões das pessoas transexuais. Esse artigo é uma extensão da monografia em andamento a respeito das pessoas transexuais no período escolar. Email: [email protected] e [email protected]

Pessoas nascidas em corpos cuja anatomia não condiz com seus entendimentos necessitam de atributos e intervenções para (re)significarem suas existências. Atributos e intervenções essas que podem ser de uma mudança de registro do nascimento para o nome social, através da carteira de identificação de nome social2 , e/ou até mesmo a intervenção cirúrgica como, por exemplo, mastectomia e/ou neofaloplastia, esta última ainda em caráter experimental no Brasil, assim como diversas outras intervenções cirúrgicas. Porém, de acordo com o entendimento legal para a respectiva autorização, a pessoa transexual tem que apresentar uma comprovação de sua própria condição. Comprovação essa que não basta seu relato de vida e dificuldades na inserção no meio social, há de obter uma série de laudos médicos, psicológicos e psiquiátricos, pois no entendimento de determinados setores médicos, as pessoas transexuais sofrem de algum tipo de disfunção psicológica3. No entendimento legal, para que haja qualquer cirurgia de intervenção em um transexual, há de se ter um laudo expedido por junta médica4, aumentando o sofrimento de quem busca adequar sua imagem interna com o corpo que não é reconhecido como seu. Enquanto a medicina e o judiciário criam barreiras burocráticas através de laudos e papéis que dificultam a inserção das pessoas transexuais na sociedade, elas ficam a mercê dos olhares críticos, discriminatórios e negativos do outro. Entende-se o outro como pessoas inseridas na sociedade das quais seguem as normas e padrões convencionais heteronormativos. O presente estudo acompanha os estudos de Berenice Bento na qual as pessoas “transexuais em tratamento” têm total entendimento e conhecimento de suas condições onde numa possível negativa de laudos, a unanimidade de opinião foi presente: fariam a cirurgia por conta própria, com uma faca, ou até mesmo estariam dispostas a abreviarem suas vidas através do suicídio (BENTO, 2006, p.52).

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DIÁRIO OFICIAL DE SÃO PAULO. 21/05/2013, Disponível em . Acesso em 30 de junho de 2013. 3

O DSM V afirma que as pessoas transexuais sofrem de Disforia de Gênero, enquanto no DSM IV afirmava que sofriam de Desordem de Identidade de Gênero. Hoje uma pessoa transexual tem que passar por avaliações médicas e psicológicas por no mínimo dois anos para ter o direito de adequarem seus próprios corpos a suas identidades de gênero. 4

Junta Médica é uma equipe de psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais destinadas a avaliar a condição da transexualidade do paciente.

Essa obrigatoriedade de laudos médicos das quais as pessoas transexuais são impostas e vistas pelo outro, como seres doentes, com transtornos e que necessitam de tratamento, dificultam o que de fato elas realmente necessitam: respeito e entendimento de que suas condições são formas subjetivas do comportamento humano, onde não é possível mensurar e criar uma obrigatoriedade de normas e prosseguimentos a serem seguidos. Afinal de contas a identidade de gênero assim como a sexualidade, é subjetiva e há a possibilidade de que intervenções de agentes externos, como questões culturais, por exemplos, busquem heteronormatizar tais condições através das dicotomias do gênero (WARNER, 1991, p. 09). Os indivíduos são sempre sujeitos do controle e normas sociais em qualquer sociedade. No ponto de vista da sexualidade, a descoberta do sexo biológico do bebê, que ainda na barriga da mãe já desencadeia uma série de normas, padrões e imposições. Quando o bebê crescer, ele estará entrelaçado numa gama de significações e dispositivos que determinaram e padronizaram sua existência de acordo com o seu gênero através de brincos, vestimentas, nomes, cores, brinquedos, brincadeiras, etc. Berenice Bento usa costumeiramente a expressão abjeto para as pessoas transexuais. Expressão essa que cria uma gama de significados para as vivências dessas pessoas. Como, por exemplo, a exclusão social, familiar, escolar etc. Deve-se lembrar que a identidade de gênero de uma pessoa transexual que não conhece a sua real condição, viverá em eterno conflito com ela mesma. Vale ressaltar que a sua condição como transexual nada tem a ver com a sua orientação sexual. Podemos ter trans.mulheres homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Assim como podemos ter trans.homens homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Identidade de gênero e orientação sexual são conceitos e expressões do ser humano totalmente distintos, sem que tenha que haver (mais) uma normatização. Esse é outro ponto que muitos transexuais têm dificuldade durante as sessões de análise com a junta médica. Muitas das trans.mulheres entrevistadas relataram que não bastassem elas terem baixa aceitação e entendimento perante a junta médica, elas ainda tinham que "fazer a hetero" 5 pois aqueles que estavam analisandoas queriam também engessar e heteronormatizar as relações.

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Entende-se a expressão ‘fazer a hetero’ manter-se no padrão heteronormativo.

"No terreiro fui aceita, no terreiro sou eu. Lá, a pomba-gira sou eu." Essas foram as palavras que mais chamaram a atenção nas entrevistas realizadas, o impacto foi tão grande que se fez necessário colocá-las no título do artigo. “A pomba-gira sou eu”, o discurso de pertencimento está muito além da respectiva religiosidade, está no fato do entendimento de que, assim como a pomba-gira pertence ao gênero feminino, com vestes femininas e trejeitos femininos, no corpo de um médium masculino, a trans.mulher também está na mesma condição. Não só as pombas-giras são, mas as trans.mulheres também são inquilinas nos próprios corpos onde buscam um entendimento consigo e com o outro (CECCARELLI, 2008, p. 57). Esse entendimento ocorreu perfeitamente dentro das casas de santos. Muitos porquês podemse elencar para possíveis questionamentos que poderiam desvirtuar do foco do texto, porém a premissa principal não é essa e, sim entender qual a relação essas trans.mulheres criaram com as pomba-giras. O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos, dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada. São esses sinais exteriores, postos em ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo. (BENTO, 2011, p. 553)

A incongruência entre a imagem do espelho e seus entendimentos (e necessidades) foram bases e principais questionamentos em todas as suas vidas. Quando no terreiro estiveram e viram homens incorporando entidades espíritas femininas, logo viram suas próprias condições. Tais incorporações deixaram de ser simples entidades espirituais para tornarem-se identidades reais. As trans.mulheres identificaram-se automaticamente. Assim como as pombas-giras estavam em corpos que não lhes pertenciam, essas trans.mulheres estavam nas mesmas condições. Em uma eterna busca por um corpo que de fato lhes representassem com total sentimento de pertencimento. Motivos diversos levaram para essa identificação, mas um dos principais dá-se pelo respeito que tais entidades impõem ao frequentadores do terreiro, através de adoração, presentes, atenção, beleza, feminilidade e sensualidade.

A figura da pomba-gira é vista pelos umbandistas como a “mulher de Exu” ou “Exu fêmea”. As pombas-giras se referem, antes de tudo, aos espíritos de prostitutas, cortesãs, cafetinas, mulheres sem família e sem “honra”. Além de possuírem as mesmas características que seus “parceiros”, elas carregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma imagem feminina fortemente sexualizada. (SULIVAN, 2008, p.4).

Os frequentadores dessas casas de santos veem as pombas-giras como sinônimos de veneração, encantamento e sensualidade, assim como as respectivas trans.mulheres que nortearam esse artigo, sempre se viram, só que de forma inversa as entidades religiosas, elas são reiteradamente ridicularizadas pela sociedade e mídia, e excluídas pelas famílias. Muitas relataram que no itinerário de suas casas até os terreiros, as zombarias e agressões verbais eram constantes. Chamadas de “putas”, “travecos” e “João”, essa rotina fazia parte de seus cotidianos. Porém, quando na casa de santo entravam, os atabaques tocavam e as vestes colocavam, toda essa realidade ultrajante desaparecia, viviam verdadeiros momentos de paz com demasiado orgulho e tinham o respeito de todos que ali estavam. Praticamente uma fábula da Disney, mas a princesa na verdade eram as Pombas Giras. Da vestimenta ao cabelo, dos presentes às formas de agir, muitas dessas trans.mulheres, mesmo fora de seus terreiros mantêm esses signos e sinônimos. Muitas disseram durante as entrevistas que “aquele olhar dela” e “aquela forma dela agir” era o sonho que elas tinham e visualizavam como mulher. “A minha pomba gira sabe se portar e impor o respeito, um dia eu também terei tudo isso!”. Vestes bem arrumadas, perfumes exalando pelo terreiro e sensualidade, para essas trans.mulheres as pombas-giras são muito mais do que simples venerações religiosas. São, acima de tudo, venerações de feminilidade. Faz-se necessário lembrar que até mesmo essa feminilidade das quais essas respectivas trans.mulheres afirmaram ter como objetivo e desejo mantêm-se na dicotomia de gênero onde segue aquela ordem de que a mulher é feminina, meiga, sensual e passiva. Dentro do imaginário dessas trans.mulheres a imagem do gênero feminino tem que seguir essa normatização “que ensina e produz certas formas de pensar, agir, estar e se relacionar com o mundo” (CECHIN; SILVA, 2012, p. 626). A heterogeneidade presente nas casas de santos faz com que as condições individuais dos frequentadores não sejam o foco e muito menos motivos de questionamentos. Todos estão ali

com o mesmo objetivo: adorar a divindade incorporada nos médiuns. Naquele momento, a aceitação das trans.mulheres e o respeito passam a ser o pensamento e filosofia dos frequentadores, o que é extremamente necessário para elas. Tudo o que a trans.mulher gostaria de ser, mas por algum motivo (questões jurídicas, laudos médicos etc) não ocorre, ela tem durante aquelas horas de festividade e religiosidade, o direito integral de ser quem de fato ela sempre foi e pertenceu: gênero feminino. O gênero, portanto, é o resultado de tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais [...] As experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas (BENTO, 2011, p. 551).

Se não somos predestinados a tais obrigações, por que devemos engessar as possibilidades de vivência e convivência? Quais as necessidades que temos em estabelecer métodos, padrões e normas para as práticas? Esses questionamentos esquecem que está no direito individual a liberdade de manifestar-se, seja como quiser, desde que não agrida verbal e fisicamente o próximo.

Considerações Finais É importante retomar um dos principais documentos internacionais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) para explicitar qual a perspectiva é adotada na presente discussão. No seu Artigo II esclarece que Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948)

A aceitação da condição trans na sociedade é uma luta e busca continua não só das pessoas transexuais como de qualquer outra que luta a favor da diversidade, do respeito, da tolerância e da pluralidade, incluída a sexualidade e a identidade de gênero. Faz-se necessário respeitar o direito individual a suas manifestações e não a discriminação por meio de críticas negativas ou imposições externas a partir de padrões pré-estabelecidos. O

padrão de "normalidade", principalmente o heterossexista, fazendo uso de sua condição hegemônica impõe formas de agir e tratar as trans.mulheres. Impor e atrelar aos transexuais sejam eles masculinos ou femininos, a necessidade de laudos para cirurgias de readequação e entraves burocráticos para mudança de nome, traz ainda mais sofrimento para aqueles que necessitam principalmente de entendimento, e não um atendimento. Assim como a rápida e imediata identificação que as trans.mulheres entrevistadas tiveram com as pombas giras, elas têm o mesmo rápido e imediato repúdio para com seu corpo, não aceitam e não compactuam com aquilo que nasceram. Atrás de um discurso de necessidade de se regulamentar para o bem da pessoa transexual, cria-se mais sofrimento e dificuldades. Atualmente no Brasil é possível encontrar-se discursos e ações contra o segmento trans baseado principalmente em critérios religiosos, ligados a heteronormatividade, um exemplo tácito disso é que o Ministério da Saúde, por meio do ministro Alexandre Padilha, desistiu no dia 05/08/2013, de estender o tratamento hormonal para transexuais a partir de 16 anos no Sistema Único de Saúde (SUS), por conta de uma ligação telefônica do Pastor Samuel Ferreira, presidente da Igreja Assembléia de Deus, contrário a portaria6 . Nesse caso específico, existe um contraponto bastante significativo, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia se manifestado favoravelmente à temática, que foi discutida em diversas reuniões por mais de dois anos. A que se considerar o que deve nortear um Estado laico, aparentemente, essa questão ainda não foi plenamente resolvida no Brasil. Durante todo o artigo foram feitas aproximações entre as pombas giras e as trans.mulheres, como já dito, não se trata de exaltação de uma determinada religião em detrimentos de outras, mas de reafirmar a possibilidade de aceitação que elas têm nos cultos das religiões afrobrasileiras, a partir de um ponto de identificação. A necessidade e desejo de pertencimento das trans.mulheres, como de todas as pessoas, podem e devem ser respeitado a partir de políticas

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Portaria que beneficia transexuais é suspensa. GPS Gospel. Disponível em: . Acesso em 03 ago 2013.

públicas específicas direcionadas a esse segmento dentro de uma perspectiva de Direitos Humanos, onde ninguém deve ser alvo de constrangimento por conta de suas características.

Referências

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo. Sexualidade e gênero na experiência transexual. 1º edição. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006. ________, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Rev. Estud. Fem. [online]. 2011, vol.19, n.2, pp. 549-559. CECCARELLI, Paulo Roberto. Transexualismo. 1º edição. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2008. CECHIN, Michelle Brugnera Cruz. SILVA, Thaise da.: Assim falava a Barbie: uma boneca para todos e para ninguém. Fractal, Rev. Psicol., v.24 – n.3, p. 623-638, Set./Dez. 2012. SULIVAN, Barros. Possessão, gênero e sexualidade transgressora: Análise biográfica de uma pomba-gira da Umbanda. Fazendo Gênero 8 – Corpo, violência e poder. Florianópolis. 2008. WARNER, Michael. Introduction: Fear of Queer Planet. Duke University Press. N° 29, p. 3-17, 1991.

Internet

Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10/12/1948, Disponível em . Acesso em 02 ago 2103. Diário Oficial de São Paulo. 21/05/2013, Disponível em . Acesso em 30 de junho de 2013. Portaria que beneficia transexuais é suspensa. GPS Gospel. Disponível em: . Acesso em 03 ago 2013.

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