A presença da Pathé-Baby no Rio de Janeiro e a coleção Paschoal Nardone no acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

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Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

n.9, 2015, p.9-10

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Expediente Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes Vice-prefeito Adilson Nogueira Pires Secretário-Chefe da Casa Civil Guilherme Nogueira Schleder Diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro Beatriz Kushnir Gerência de Pesquisa Luiza Ferreira

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Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro n.9 – 2015 – ISSN 1983-6031 publicação anual [email protected]

Editores Beatriz Kushnir Carolina Ferro Conselho Editorial André Luiz Vieira de Campos (UFF/UERJ) Ângela de Castro Gomes (CPDOC/FGV/UFF) Ismênia de Lima Martins (UFF) Ilmar R. de Mattos (PUC-Rio) James N. Green (Brown University) Jeffrey D. Needell (University of Florida) José Murilo de Carvalho (UFRJ) Lená Medeiros de Menezes (UERJ) Luciano Raposo de Almeida Figueiredo (UFF) Maria Luiza Tucci Carneiro (USP) Mary Del Priore (UNIVERSO) Stella Bresciane (Unicamp) Paulo Knauss (UFF/Museu Histórico Nacional) Tania Bessone (UERJ) Conselho Consultivo Aldrin Moura de Figueiredo (UFPA) Daniel Flores (UFSM) Luciana Quillet Heymann (CPDOC/FGV) Revisão Bella Stal Versão para o inglês Martina Arruda Projeto gráfico www.ideiad.com.br Foto de capa Cinema Capitólio, Cinelândia, 1958. O conteúdo dos textos é de única responsabilidade de seus autores.

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Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro n.9, 2015

n.9, 2015, p.9-10

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Há nove anos a Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro vem contribuindo para a divulgação e para a discussão de diversos aspectos da trajetória da capital fluminense e do acervo documental que custodia. A Prefeitura do Rio apoia essa iniciativa, calcada na excelência de seu Conselho Editorial e Consultivo e na competência de seus editores, responsáveis por uma publicação que reúne rigor e qualidade acadêmica, demonstrados em seus dossiês, artigos livres, resenhas e entrevista. Graças a esta publicação, os saberes na área de Ciências Humanas são compartilhados. Nossos professores têm mais instrumentos de pesquisa, podendo se atualizar, e nossa população torna-se mais cidadã com o conhecimento da história de nossa urbe. Os acadêmicos também contam com mais um espaço de discussão, de pesquisa e de trocas, indispensáveis para o aprofundamento de seus trabalhos. O Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, antenado com sua missão institucional, compreende e vivencia a função híbrida dos arquivos públicos nos dias de hoje: são órgãos estruturais da “boa governança” e da transparência de governo, e os responsáveis pela implementação de Políticas Públicas de Gestão dos Documentos. Por isso, em 2013, o AGCRJ foi transferido para a Secretaria da Casa Civil, sinalizando que a Prefeitura do Rio compreende que os Arquivos, como gestores de informação e do conhecimento, precisam ser apreendidos como equipamentos do Estado voltados para a eficiência e a eficácia dos serviços arquivísticos governamentais. Devem estar envolvidos na construção de políticas de transparência, de dados abertos, da composição de processos administrativos eletrônicos, das políticas de “governo sem papel”, bem como garantindo o acesso sem negligenciar o tratamento, a preservação e a disseminação de fontes de interesse para a História e para a defesa de direitos de cidadania. Nesta data festiva, em que nossa cidade e o acervo do AGCRJ comemoram 450 anos, nada melhor do que celebrar a existência de uma publicação cujo principal enfoque é o Rio de Janeiro. A Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro demonstra, mais uma vez, ser um dos mais importantes veículos de problematização do saber historiográfico e de divulgação do que é produzido nas nossas universidades, voltada tanto para a comunidade acadêmica como para o público em geral. Guilherme Nogueira Schleder Secretário-Chefe da Casa Civil n.9, 2015, p.9-10

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Sumário Apresentação

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Dossiê O Rio de Janeiro e suas conexões marítimas nos séculos XVIII e XIX Apresentação Jaime Rodrigues

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“Embarca agora a primeira vez”: marinheiros na rota Lisboa-Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX Jaime Rodrigues

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Que lancem todos os dias os nomes, empregos e mais sinais: circulação escrava e tentativas de controle estatal nas leis municipais do Rio de Janeiro e de Havana na década de 1830 Ynaê Lopes dos Santos

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Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII Carlos Eugênio Líbano Soares

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A língua de branco no Rio de Janeiro Ivana Stolze Lima

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A cidade-encruzilhada: o Rio de Janeiro dos marinheiros, século XIX Silvana Jeha

77

Escravidão e navegação fluvial: Identidades africanas na cidade do Rio de Janeiro e seus arredores 91 Nielson Rosa Bezerra

Dossiê Negociações Municipais: trabalho na cidade Apresentação Cristiana Schettini, Fabiane Popinigis e Paulo Terra

107

Vender e viver: posturas e comércio, Campinas, século XIX Laura Fraccaro

113

Os intendentes municipais, os criados de servir e a matrícula geral do serviço doméstico (Capital Federal, 1895-1896) Flavia Fernandes de Souza

127

Caminhos da cidadania: trabalhadores de baixo prestígio e alistamento eleitoral na freguesia da Sé em São Paulo, 1890-1892 Ana Flávia Magalhães Pinto

143

“Negro não pode ser conservador”: a política nos talhos do mercado público do Recife nas décadas finais da escravidão Felipe Azevedo e Souza

159

O negócio do prostíbulo: municipalidade e trabalho sexual (Buenos Aires, 1875) Cristiana Schettini

175

O ofício inconfessável: policiais, ordem urbana e mercado de trabalho na cidade de Buenos Aires, 1867-1880 Diego Galeano

191

Dossiê Pesquisa em Arquivologia Apresentação Eliezer Pires da Silva e José Maria Jardim

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Acesso à informação no Poder Executivo Federal: uma análise a partir dos serviços arquivísticos Paola Rodrigues Bittencourt

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Arquivos, gestão de documentos e Lei de Acesso à Informação: uma análise das instituições de saúde no Estado do Rio de Janeiro Francisco José Tavares do Nascimento e Paulo Roberto Elian dos Santos

235

O Arquivista e o mercado de trabalho no Estado do Espírito Santo Solange Machado de Souza

255

Gestão de documentos: síntese de uma proposta de curso de capacitação a distância para o Poder Executivo Federal Djalma Mandu de Brito, Gilda Helena Bernardino de Campos e Luiz Cleber Gak

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A construção da noção de documentos especiais na Arquivologia Anna Carla Almeida Mariz e Thiago de Oliveira Vieira

287

O aspecto simbólico do arquivo pessoal de Dom Adriano Hypólito Bruno Ferreira Leite

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Dossiê 450 anos da cidade do Rio de Janeiro Apresentação Fabricio Felice

325

Entre letras e imagens: o acervo audiovisual no Arquivo da Academia Brasileira de Letras Ana Renata Tartaglia e Débora Butruce

327

A presença da Pathé-Baby no Rio de Janeiro e a coleção Paschoal Nardone no acervo do AGCRJ Lila Foster e Roberto Souza Leão

341

Cerejeiras em Ipanema, 1968 Reinaldo Cotia Braga

355

Um olhar sobre a história do ativismo LGBT no Rio de Janeiro Cristina Câmara

373

Artigos Almanaque Biotônico Vitalidade e as Artimanhas: a contracultura engarrafada no Brasil Renata Gonçalves Gomes

399

Com que roupa? O associativismo recreativo e a questão da moralidade entre os trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República Juliana da Conceição Pereira

411

Resenhas Arquivologia no Brasil contemporâneo 427 Resenha de MARQUES, Angelica Alves da Cunha; RODRIGUES, Georgete Medleg; SANTOS, Paulo Roberto Elian dos (Orgs.). História da Arquivologia no Brasil: instituições, associativismo e produção científica. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros/FAPERJ, 2014 Renato Pinto Venancio O Oitocentos sob novas perspectivas 431 Resenha de FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima; RIBEIRO, Gladys Sabina (Orgs.). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014 Rodrigo da Silva Goularte

Entrevista

Um homem do século 19 – Leandro Konder Entrevista concedida a Beatriz Kushnir

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Apresentação

O nono número da Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro vem a público reafirmando sua posição de acolher e difundir as discussões acadêmicas sobre a história desta cidade e sobre as demandas que envolvem o universo da Arquivologia praticada em nosso país. Em um momento de consolidação de sua estrutura e de seu conteúdo, contamos com quatro dossiês organizados por especialistas – tendência inaugurada no número anterior –, dois artigos livres, duas resenhas e uma entrevista com o saudoso historiador e filósofo Leandro Konder (1936-2014). O primeiro dossiê, organizado por Jaime Rodrigues, enfoca as conexões marítimas da cidade do Rio de Janeiro – em relação ao comércio e à importância do porto –, de quando se torna a capital da América Portuguesa (na segunda metade do século XVIII) no final do século XIX. O segundo dossiê, preparado por Cristiana Schettini, Fabiana Popinigis e Paulo Terra, aponta novos ângulos na historiografia do mundo do trabalho e dos trabalhadores e sua ligação com as instituições estatais, notadamente as municipais. Esse panorama é analisado como um campo complexo, em que a última constitui um grupo de esferas normativas, legislativas e administrativas, ao passo que os primeiros são formados por ações individuais e coletivas. Esse conjunto também trata de outros temas que não a cidade do Rio de Janeiro, mas a importância do enfoque comparado justifica esta ampliação. O terceiro dossiê, organizado por José Maria Jardim e Eliezer Pires da Silva, traz algumas das mais recentes pesquisas no âmbito da Arquivologia. Os textos abordam a temática da Lei de Acesso à Informação – parâmetro legislativo que deverá/deveria alterar as relações de transparência na esfera pública – o mercado de trabalho na área e as práticas do profissional de Arquivo. Esta reunião de trabalhos marca uma parceria entre o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e o pioneiro Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da Escola de Arquivologia da UNIRIO. O quarto dossiê, organizado por Fabricio Felice, concebe uma homenagem aos 450 anos do Rio de Janeiro, com artigos que abordam olhares sobre a história da cidade no século XX, a partir do acervo audiovisual da Academia Brasileira de Letras, o teatro carioca no período da ditadura civil-militar, o cinema de Paschoal Nardone (cuja coleção se encontra no AGCRJ) e o ativismo LGBT do último quartel do século XX. Esses aspectos integram uma discussão ampla sobre a diversidade cultural do Rio de Janeiro. n.9, 2015, p.9-10

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Esta edição apresenta ainda dois artigos livres. Um deles, intitulado “Almanaque Biotônico Vitalidade e as Artimanhas: a contracultura engarrafada no Brasil”, de Renata Gonçalves Gomes, contextualiza o início da contracultura no país a partir do periódico Almanaque Biotônico Vitalidade (1976) e do sarau performático “Artimanhas”, organizado pelos mesmos colaboradores da publicação. O outro texto, “Com que Roupa? O associativismo recreativo e a questão da moralidade entre os trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República”, de Juliana da Conceição Pereira, contrapõe-se à visão de Luiz Edmundo – autor da obra O Rio de Janeiro de meu tempo (1938) – sobre a “falta da moralidade burguesa” de agremiações e clubes dançantes da primeira metade do século XX com os estatutos dessas associações. As duas resenhas aqui publicadas farão os leitores correrem para as livrarias. A primeira, sobre a obra História da Arquivologia no Brasil: instituições, associativismo e produção científica – organizada pelos professores Angelica Alves da Cunha Rodrigues, Georgete Medleg Rodrigues e Paulo Roberto Elian dos Santos –, foi escrita por Renato Pinto Venâncio, que destaca sua grande contribuição para a história dos arquivos e da arquivologia em nosso país. Já a segunda resenha, de Rodrigo Goularte, sobre a obra O Oitocentos sob novas perspectivas – organizada por Tânia Bessone Ferreira, Ismênia de Lima Martins e Gladys Sabina Ribeiro –, expõe as pesquisas mais recentes sobre o “longo século XIX”, fruto de trabalhos apresentados no Seminário do CEO (Centro de Estudos do Oitocentos) de 2013. Por último, temos uma entrevista com Leandro Konder, apresentada por Beatriz Kushnir. Além da grande erudição apresentada em questões da vida política de Konder – como sua participação no Partido Comunista Brasileiro, sua relação com Ferreira Gullar, o romance de Carlos Heitor Cony sobre o PCB, entre outras –, há uma admiração mútua que demonstra uma grande sintonia entre entrevistadora e entrevistado, tornando o texto leve e agradável. Um verdadeiro presente para aqueles que sentem falta de um dos maiores intelectuais de nosso tempo. Foi o dossiê sobre o universo fílmico carioca que nos inspirou a capa desta edição. Trata-se de uma fotografia da Praça Marechal Floriano, na qual se vislumbra o cinema Capitolio, no ano de 1958, e que faz parte do acervo do AGCRJ. Ao fundo, o Palácio Monroe, um dos edifícios mais imponentes da Cinelândia – região central do Rio –, que foi posto abaixo em 1976, e um bonde que levava os passantes ao Jockey Club. Boa leitura! As editoras

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Dossiê: O Rio de Janeiro e suas conexões marítimas nos séculos XVIII e XIX

n.9, 2015, p.13-14

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Cais do Valongo, 1904 / BR RJAGCRJ.PDF.AM.PC.0459. Acervo AGCRJ 12

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Apresentação Os artigos reunidos no dossiê deste número da Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro focam a cidade e suas conexões marítimas nos séculos XVIII e XIX. Antes de mais nada, a importância do recorte deve ser reconhecida: trata-se da época em que o Rio de Janeiro assumiu a condição de capital, inicialmente dos domínios portugueses na América, depois do Reino Unido e, em seguida, do Império brasileiro. Essa condição deveu muito à relevância do porto e do comércio realizado por meio dele. Os dados econômicos e políticos não se encerram em si mesmos nem contêm todas as explicações. Nos textos aqui reunidos, a variedade cultural comum às cidades portuárias com conexões mundiais pode ser exemplificada a partir da experiência carioca. Ao nos debruçarmos sobre o Rio de Janeiro, estamos tratando do mundo. Porém, se havia experiências em comum, a cidade também apresentou especificidades que são discutidas em cada um dos artigos, a partir das abordagens escolhidas pelos autores. Começo a discussão apresentando um perfil dos marinheiros engajados na navegação transatlântica. “Embarca agora a primeira vez’: marinheiros na rota Lisboa-Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX” insere-se em uma história social da vida no mar a partir dos registros de matrícula dos trabalhadores, considerando o hábito católico de designar os navios com nomes devotos, os aspectos ligados à cor e à condição social dos marinheiros, e ensaiando uma demografia a partir dos tipos de embarcações, do tamanho das equipagens, da idade, da experiência e das funções no trabalho. A perspectiva comparativa ganha relevo em “Que lancem todos os dias os nomes, empregos e mais sinais: circulação escrava e tentativas de controle estatal nas leis municipais do Rio de Janeiro e de Havana na década de 1830”. No artigo, Ynaê Lopes dos Santos deixa entrever que a circulação atlântica não era apenas de mercadorias, mas também de mecanismos de controle. A autora aponta as similaridades entre as leis havanesas e cariocas, que buscavam, nem sempre com sucesso, um controle cada vez mais efetivo sobre os escravos urbanos. Essas duas “irmãs do Atlântico” se caracterizavam pela grande população negra e escrava, bem como pela possibilidade de fuga/circulação marítima inerente à própria condição portuária de ambas. Um viés comparativo, ainda que ligeiro, pode ser observado também no texto de Carlos Eugênio Líbano Soares, “Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da Candelária da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII”. A partir de registros demográficos de freguesias portuárias (Candelária, no Rio, e Conceição da Praia, em Salvador), o autor discute os conceitos fundamentais de nação, meta-nação e origem étnica dos africanos desembarcados no Rio setecentista, e a importância de se conhecer esses grupos para compreender a conformação da cidade colonial. n.9, 2015, p.13-14

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O Atlântico, via de conexão do Rio de Janeiro com o mundo, banha também a África, como os textos de Soares e Rodrigues já aventaram e é bom que se repita. Ivana Stolze Lima lida com uma das decorrências dessa conexão em “A língua de branco no Rio de Janeiro”. Do lado africano do oceano vieram gentes e suas línguas, que construíram o português do Brasil no âmbito das relações escravistas, para nos atermos ao recorte do dossiê. Os senhores também tiveram de desenvolver um conhecimento acerca dos vocábulos e das formas de expressão dos cativos, deixando sinais disso na documentação impressa, sobretudo nos anúncios de fuga que mandavam publicar nos jornais da Corte e que a autora analisa de modo refinado. A língua falada no Brasil, assim como a escravidão, era relacional e produto de múltiplas convivências. Pelo oceano também chegavam visitantes. Em “A cidade-encruzilhada: o Rio de Janeiro dos marinheiros, século XIX”, Silvana Jeha busca sinais do cosmopolitismo e da marginalidade na encruzilhada carioca, procurando-os em lugares simbólicos que ainda hoje guardam memórias do tempo passado. Embora as estadas dos visitantes estrangeiros fossem relativamente curtas, eram também contínuas e inseridas em uma cultura letrada, com constantes citações de um viajante pelos outros. Mas a grande encruzilhada, no caso, era a das religiões afro-brasileiras e dos desejos dos marujos embarcados por longo tempo até encontrarem refresco no Rio de Janeiro. As conexões não se limitavam à navegação de longo curso. A diversidade cultural emergia também no aspecto mais particular, nos barcos que circulavam perto da costa. Nielson Bezerra, em “Escravidão e navegação fluvial: identidades africanas na cidade do Rio de Janeiro e seus arredores”, apresenta a diversidade de funções dos navegantes na Baía de Guanabara, explicitando as relações entre o Rio de Janeiro e sua hinterlândia no oitocentos e indicando sinais das identidades africanas na cultura dos marinheiros. Do geral ao particular, do local ao comparativo, do macro ao micro, as conexões marítimas do Rio de Janeiro ganham relevo em todos os textos. Essa característica e o estudo de suas possibilidades não se encerram em um único dossiê. Esperamos que os pesquisadores, estimulados por pesquisas como as que ora apresentamos, animem-se também ao constatarem que as fontes, tanto as novas quanto as já bem conhecidas, prestam-se a inúmeras temáticas e abordagens. O mar, mais do que uma presença constante na paisagem, é um caminho que leva e traz gentes, mercadorias, informações, costumes, línguas e tudo aquilo que torna a história desta cidade tão importante para se entender o Brasil.

Jaime Rodrigues

Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Recebido em 05/04/2015 Aprovado em 30/04/2015

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“EMBARCA AGORA A PRIMEIRA VEZ”

“Embarca agora a primeira vez”: marinheiros na rota Lisboa-Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX “Boarding now for the first time”: sailors in the Lisbon-Rio de Janeiro route on the 18th and 19th centuries Jaime Rodrigues Professor de História do Brasil, Departamento e Programa de Pós-Graduação em História/EFLCH/Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto1. [email protected]

RESUMO: Analiso aqui os registros de tripulações de navios mercantes empregados na rota Lisboa-Rio de Janeiro no período assinalado. Destacada a importância do porto do Rio de Janeiro no contexto dos domínios portugueses, o objetivo é salientar a relevância das fontes representada por esses registros para uma história social da vida no mar. Três aspectos são apontados no texto: as práticas de batismo das embarcações, sobretudo no aspecto religioso; o perfil das gentes do Rio de Janeiro empregadas nas tripulações, considerando cor e condição social; o perfil do conjunto dos marinheiros engajados nessa rota comercial, tendo em vista a naturalidade, o tamanho das equipagens, a tipologia das embarcações, a idade, o tempo de serviço e as funções desempenhadas a bordo por oficiais e marinheiros comuns.

ABSTRACT: Analysis of the crew registries of merchant ships, employed in the Lisbon-Rio de Janeiro route, on the aforementioned period. After emphasizing the importance of the Rio de Janeiro port in the context of the Portuguese territories; the goal is to stress the relevance of these records as sources for a social history of the life at sea. Three aspects are indicated in the paper: the practice of christening the ships, mostly concerning the religious aspect; the profile of the people employed in the ships, considering their color and social condition; the profile of the group of sailors engaged in this commercial route, taking into account their origin, the size of the crews, the types of vessels, the age, time in service, and tasks performed on board by officials and common sailors. Keywords: Maritime History, sailors, labor.

Palavras-chave: História Marítima, marinheiros, trabalho.

n.9, 2015, p.15-29

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JAIME RODRIGUES

U

m ímpeto estatal de produção de registros sobre os indivíduos pode ser notado no Portugal da segunda metade do século XVIII. Diversos historiadores chamaram a atenção para a profusão de leis e regulamentos editados no reinado de D. José I, com providências múltiplas e oriundas do governo sob as ordens de Sebastião José de Carvalho e Melo, então conde de Oeiras e futuro marquês de Pombal. Naquela altura, legislava-se abundantemente sobre o comércio, as finanças da monarquia, as artes fabris e também acerca de muitos assuntos relacionados aos domínios coloniais (AZEVEDO, 2004; FALCON, 1982; MAXWELL, 1996; MONTEIRO, 2008). No caso do comércio e dos domínios coloniais, destaco os regulamentos referentes às embarcações mercantes. Havia ordens expressas proibindo “a passagem das gentes ao Brasil” e que também tinham por alvo fazer com que capitães e mestres não mais recebessem por marinheiro, grumete ou moço, ou debaixo de qualquer outro pretexto, pessoa alguma que se não a legitime, mostrando a identidade da sua pessoa e de seus pais e pátria, e justificando que é da profissão marítima e que tem residido dentro deste Reino pelo menos três anos contínuos e sucessivos2.

Quem mentisse sobre sua condição estaria sujeito a seis anos de degredo em Angola e à “inabilidade” para navegar ou exercer qualquer emprego no Real Serviço3. Essa espécie de reserva de mercado de trabalho para marujos portugueses não era novidade no Reino. As Ordenações Filipinas já proibiam esses homens de se empregarem em “nenhumas navegações, nem Armadas (...) fora de nossos Reinos e Senhorios”, pois “em nossos Reinos tem bem em que ganhar suas vidas em nossas Armadas e navegações, não há razão que sendo nossos naturais, façam em outra parte as ditas navegações (...)” (Codigo Philippino, 1870, p. 1247). Nova, portanto, era a forma de controle da circulação das gentes: a partir de 11 de maio de 1767, começaram a ser feitas listas das tripulações “com os nomes, idades e sinais dos nelas conteúdos”4. O Rio de Janeiro era o destino de muitas dessas embarcações que transportavam gentes e mercadorias entre os portos do Atlântico, oceano privilegiado na reconfiguração dos domínios lusos a partir da Restauração de 1640, em um processo já bem mais avançado durante a época pombalina (BICALHO, 2003; CAVALCANTI, 2004). No século XVIII, o porto do Rio de Janeiro tornara-se um importante articulador da economia do Atlântico Sul e do comércio colonial português. A partir de meados do setecentos, o Rio de Janeiro firmara-se como o principal porto do Brasil. Ainda que o período tenha assistido ao declínio da mineração, houve um recrudescimento no tráfico de africanos, estimulado pela agricultura em Minas Gerais, nos Campos dos Goytacazes e no vale do Paraíba fluminense, além das atividades da cidade que incrementaram o movimento comercial. Com a chegada da Corte portuguesa em 1808, o Rio de Janeiro assumiu, para não mais perder, a condição de principal porto dos impérios lusitano e brasileiro. 16

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“EMBARCA AGORA A PRIMEIRA VEZ”

Na avaliação de Corcino Santos, cerca de 30 navios eram empregados todos os anos no transporte de cargas entre o Rio de Janeiro e Lisboa na segunda metade do século XVIII (SANTOS, 1993, p. 221). De Lisboa vinham mercadorias produzidas no Reino ou dali importadas de outras partes da Europa: As importações de Portugal consistem em bacalhau, azeite de oliva, arroz, farinha de trigo, vinagre, sal, aguardente, cebolas, tecidos, instrumentos, produtos europeus reexportados, tais como tecidos de luxo, renda, passamanaria da França, lãs, equipamentos para engenhos e minas, ferragens, cutelaria, vestimentas, laticínios da Inglaterra e da Dinamarca, porcelana e sedas do Oriente (SANTOS, 1993, pp. 130-131).

Os dados mencionados até aqui, colhidos na historiografia, afirmam a importância da navegação de longa distância para a economia de Portugal e seus domínios, e a centralidade do porto carioca nesse processo. Desse ponto de partida, pretendo apresentar um perfil dos navios e dos tripulantes que circularam entre o Reino e o Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. As indagações foram lançadas às fontes seriais representadas pelos livros de registros de matrículas das tripulações, e o universo abrange 37 viagens de Lisboa ao Rio de Janeiro entre 1767 e 18215.

Embarcações devotas De início, salta aos olhos a diferença nos nomes de batismo das embarcações. Nessa rota e na amostragem referente ao século XIX, os santos foram invocados em apenas dois nomes de embarcações, sendo as demais denominadas de forma leiga. Heróis ou militares (Ulisses, General Lecor, Vasco da Gama), referências aristocráticas (Princesa do Brasil, Duque de Bragança) ou genéricas (Aurora, Esperança, Piedade) povoavam as alcunhas. A laicidade dos nomes contrariava a prática corrente no ilustrado século XVIII: naquela altura, exceto por dois barcos que remetiam à realeza (a nau Princesa do Brasil e o Príncipe da Beira), todos os demais se referem aos santos católicos, liderados por Nossa Senhora (41 invocações), Jesus e os demais membros da sagrada família (Santa Ana, São José, São Joaquim, São João Batista), quase sempre com invocações conjugadas a outros alvos de devoção (Santíssimo Sacramento, Almas, Graça Divina e Corpo Santo, por exemplo). O costume de batizar navios com nomes que invocassem a proteção de santos católicos era persistente no século XVIII português e, ao que tudo indica, diferenciava-se da prática espanhola, na qual os nomes religiosos declinavam nas designações oficiais das embarcações. No entanto, tal declínio nesse período parecia ser mais formal do que efetivo entre os navegantes espanhóis: uma ordem real de agosto de 1793 determinou que cada navio tivesse um santo patrono, além do nome oficial (MUÑOZ, 2004, pp. 49 e 100). Entre os lusos, a recorrência às invocações marianas vinha pelo menos do início da era moderna e dos conflitos religiosos na Europa (DIAS, 1987, pp. 227-253). Delumeau, em seu estudo sobre o n.9, 2015, p.15-29

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JAIME RODRIGUES

medo na Europa medieval e moderna, menciona outras formas de devoção entre os ibéricos, como a crença de que era necessário exorcizar o oceano furioso: “e isso os marinheiros portugueses faziam recitando o prólogo do Evangelho de São João (que figura no ritual do exorcismo) e os marinheiros da Espanha e de outros lugares, mergulhando relíquias nas vagas” (DELUMEAU, 2009, p. 67). Pelas matrículas das equipagens, podemos perceber inúmeras questões que permeiam o universo do trabalho no mar. A forma de denominar as embarcações é uma delas, vinculada ao imaginário coletivo e referente aos antigos medos do mar e ao sentimento religioso que mesclava práticas eruditas e populares. Outras questões dizem respeito aos homens embarcados.

Gentes do mar, gentes do Rio de Janeiro Selecionei, de início, os embarcadiços nascidos no Rio de Janeiro e que tripularam navios no período assinalado (1767 a 1821). Em sua maioria, eram homens engajados em funções manuais, que exerciam trabalhos pesados na marinhagem e não ocupavam cargos mais elevados de oficiais. Dos 35 homens nascidos no Rio de Janeiro que compõem a amostragem, temos dez em funções de nível intermediário, com menor poder de mando, representando menos de um terço dos trabalhadores. Somam três capelães, um cirurgião, um contramestre, um escriturário ou escrevente, dois praticantes, um segundo piloto e um segundo sobrecarga. Os demais dois terços da amostragem serviam como calafates, copeiros, mancebos, marinheiros, moços, serventes ou simplesmente escravos sem funções específicas designadas no ato da matrícula. O contingente de escravos e forros representa cerca de 6% dos trabalhadores da marinha mercante luso-brasileira no período. Mariana Candido contabilizou 230 escravos em um universo de 8.441 tripulantes na marinha mercante para período semelhante (CANDIDO, 2010, p. 399), o que representa menos de 3% do total. Revisitando as mesmas fontes, cheguei a uma contagem um pouco diferente, incluindo informações sobre 5.279 homens, sendo 202 cativos e 125 forros. Esses dados não mudam substancialmente os apresentados por Candido: os escravos representam cerca de 4% do total de matriculados nas embarcações mercantes portuguesas do período assinalado e, se juntarmos a eles os forros, o percentual chega a 6% (RODRIGUES, 2013a e RODRIGUES, 2014). Escravos e forros ganham relevo maior quando selecionamos aqueles tripulantes nascidos na América portuguesa. No caso dos nascidos no Rio de Janeiro, os sete forros e três escravos encontrados nas fontes representam cerca de 28% da amostra. Esses mesmos homens tiveram suas cores assinaladas: quatro pardos (um escravo) e seis pretos (dois escravos). Em outras palavras, a experiência da escravidão, que abrangia escravos e forros, era muito mais expressiva entre os tripulantes nascidos nos domínios ultramarinos do que 18

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entre aqueles oriundos do Reino, onde a escravidão, existente pelo menos até 17736, não constituía a forma predominante de exploração da força de trabalho. Podemos estabelecer alguma relação entre a condição social e o letramento, se não for exagerado deduzir algo sobre o conhecimento da escrita a partir da simples inscrição da assinatura nas matrículas. Dos 35 tripulantes nascidos no Rio de Janeiro, apenas 11 sabiam assinar seus nomes, dentre eles dois forros e um escravo. Se a quantidade e a qualidade do letramento não chegam a ser animadoras, já que menos de um terço sabia assinar o próprio nome, o resultado não caracteriza um universo de homens iletrados, como os marinheiros costumam ser descritos em parte da historiografia. Marcus Rediker apontou a diversidade de origens dos trabalhadores do mar e de formas da cultura marítima. A maioria desses homens era de origem humilde e buscava as ocupações marítimas premida por necessidades econômicas. Os marinheiros mais velhos pareciam exercer um papel central na transmissão dos conhecimentos em um meio marcado por diferentes graus de domínio formal das letras. Entre os homens do mar, havia os inteiramente iletrados e outros capazes de exercer todas as habilidades literárias. Cerca de três quartos dos marinheiros empregados na marinha mercante britânica entre 1700 e 1750 eram letrados, se considerarmos como sinal suficiente de letramento o fato de eles saberem assinar os próprios nomes. Mas essa proporção de letrados pode ter sido bem menor, porque nem todos os que podiam assinar seus nomes sabiam ler e escrever. Desde o contrato – e, no caso português, desde o registro da matrícula por escrito –, muitos homens do mar aprenderam a assinar seus nomes (REDIKER, 1989, pp. 155-158). Dentre as centenas de homens recrutados para o serviço da Armada brasileira até meados do século XIX, alguns eram letrados e capazes de escrever requerimentos de próprio punho pedindo baixa e narrando suas histórias de vida de forma sumária (JEHA, 2011, p. 164)7. A essa altura, o grau de conhecimento formal da escrita e da leitura parecia ser bastante diferente daquele existente no início dos tempos modernos. O conhecimento de textos eruditos era quase nenhum entre a “gente do mar”, “em grande parte, iletrada e [que] sobrevivia nos mares mais pela experiência ou sorte do destino” (CATTOZZI, 2008). Em Portugal, e ainda mais no Rio de Janeiro, quase nada sabemos sobre o funcionamento de escolas. Alguns marinheiros reunidos na confraria de S. Pedro de Miragaia, no Porto, eram capazes de ler e escrever, como se comprova dos livros de gestão que mantinham em dia desde o início do século XV. No século XVI, o número de ‘letrados’ aumenta. Porém, esse fato (...) não parece decisivo para a evolução da sua arte. É preciso, neste âmbito, relativizar a alfabetização. A escrita, elemento fundamental na construção do mundo moderno, ainda era apanágio de muito poucos (...) (BARROS, 2005, p. 34).

Os raros registros de assinatura entre os marinheiros nascidos no Rio de Janeiro variam de acordo com a função desempenhada por eles a bordo. Dos que assinam em cruz, todos n.9, 2015, p.15-29

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eram serventes ou calafates. Os que sabiam assinar seus nomes vinham como capelão, contramestre, praticante de piloto, mancebos e serventes. Se o domínio das letras fazia algum sentido no trabalho exercido pelos oficiais, para marinheiros comuns essa habilidade não era imprescindível ao exercício profissional e não parecia interferir no andamento das viagens. Entre os que assinaram seus nomes, as idades variam de 17 a 33 anos, mas não podemos estabelecer uma relação entre idade e grau de letramento porque a fonte não informa quando esses homens adquiriram tal habilidade. No quesito idade, os mareantes do Rio podem ser divididos segundo critérios que envolvem cor, condição social e experiência no trabalho, para que possamos estabelecer algumas comparações com dados vindos da historiografia. Ao analisar a marinha mercante anglo-americana do século XVIII, Rediker afirma tratar-se de uma cultura de homens jovens, em razão das altas taxas de mortalidade e dos rigores do trabalho marítimo. A maior parte dos marinheiros situava-se na faixa dos 20 ou 30 anos. Os oficiais tinham de 30 a 35 anos, e a média etária dos marinheiros comuns era de 27 anos (REDIKER, 1989, p. 156). A partir do conjunto da amostra, que inclui oficiais e marinheiros, as idades variavam de 15 a 50 anos. Dentre eles, contam-se dez oficiais intermediários com média etária de 30 anos. Sobre os 23 marinheiros comuns a respeito dos quais temos informação sobre a idade, a média etária era de 27 anos. Assim, a idade dos homens no mar nascidos no Rio de Janeiro do século XVIII encontra-se nos mesmos padrões obtidos por Rediker, ainda que as formas de ascensão profissional fossem diferentes nos dois espaços atlânticos. O padrão era antigo e vinha pelo menos desde o século XVI, quando se acreditava que bons marinheiros eram aqueles iniciados desde meninos (LAPA, 1968, p. 190). Todos os oficiais intermediários nascidos no Rio de Janeiro eram brancos. A tabela a seguir sistematiza os dados referentes aos marinheiros comuns, incluindo pardos, pretos, forros e escravos. TABELA I MÉDIA ETÁRIA DE MAREANTES NASCIDOS NO RIO DE JANEIRO E ENGAJADOS NA MARINHA MERCANTE LUSO-BRASILEIRA (1767-1821) Brancos e livres Indivíduos 13

Média etária 24

Pardos (média de 21 anos) Forro/livre Escravo IndivíMédia Indivíduos etária duos 3 19 1

Média etária 29

Pretos (média de 38 anos) Forro/livre Escravo IndivíMédia Indivíduos etária duos 4 41 2

Média etária 32,5

Fonte: ANTT, Junta do Comércio, Livros 1 a 5 e Maço 37, Caixa 138. Os dados de todas as tabelas deste texto foram colhidos nessas mesmas fontes.

A especificidade do engajamento de escravos na marinha mercante luso-brasileira altera as médias etárias nesse segmento para 31 anos. Ainda continuamos em um universo de homens jovens, mas os escravos eram ligeiramente mais velhos que os marinheiros livres 20

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ou forros. As diferenças também podem ser percebidas no tempo de experiência marítima: enquanto os marinheiros brancos e livres tinham algo em torno de sete anos de vida no mar, os forros tinham cerca de quatro anos, e os pretos labutavam havia 12 anos. Porém, um indicador mais preciso das experiências profissionais é a idade a partir da qual esses homens ingressavam no mundo marítimo: livres de cor branca começavam por volta dos 14 anos, enquanto forros o faziam aos 26 anos, e escravos, aos 25 anos. Considerando a semelhança na idade de iniciação profissional, forros e escravos talvez não tivessem escolha quanto à atividade que iriam desenvolver; esta deveria ser uma opção de seus senhores, fossem eles oficiais da embarcação ou gente de terra que alugava seus cativos como marinheiros. A própria Fazenda Real no Rio de Janeiro “mostrou-se interessada em comprar negros, para aprenderem os ofícios de calafate e carpinteiro, com a finalidade de servir no arsenal. E é provável que em outras capitanias se adotasse o mesmo expediente” (LAPA, 1968, p. 115), assim como é provável que também comprasse escravos para servir a bordo. A iniciação mais precoce dos brancos aponta no sentido da tradição familiar de ocupações marítimas e também do papel que essas ocupações representavam no mundo do trabalho colonial. Tratava-se de uma das raras possibilidades para homens livres e pobres conseguirem inserção profissional em uma sociedade escravista com controles estritos de circulação entre seus espaços (RODRIGUES, 2005, p. 190). Contar com velhos homens do mar a bordo, nos termos em que Rediker trata a questão, era uma espécie de garantia de transmissão da cultura marítima, na medida em que a profissão de marinheiro era marcada pela alta mortalidade, pelo retorno rápido e pela mobilidade e pela dispersão geográfica. Ainda nas palavras desse historiador, a experiência dos mais velhos dava a medida e o entendimento de eventos e atividades marítimas. Os homens mais jovens respeitavam os mais velhos por seu conhecimento do mar, do navio, dos sinais da natureza e dos métodos de trabalho. As lutas diárias com os mestres e contramestres fizeram com que muitos marinheiros valorizassem o bom-senso dos velhos marinheiros que conheciam o momento certo da deserção, do motim e mesmo da adesão à pirataria (REDIKER, 1989, pp. 156-157). Apesar de sedutoras, as explicações não se aplicam inteiramente ao contexto luso-brasileiro da segunda metade do século XVIII. Isso se dá, novamente, em função da escravidão e, em parte, por razões religiosas. Nas embarcações lusas, era frequente a presença de capelães. Dentre eles, os nascidos no Rio de Janeiro tinham idades entre 29 e 42 anos, e, embora um pouco mais velhos, embarcavam pela primeira vez ou sua experiência não funcionava como correia de transmissão da cultura marítima. Quanto aos escravos e forros, com idades entre 29 e 46 anos, os mais idosos não eram exatamente velhos homens do mar, mas sim gente que se iniciara tardiamente na profissão, fosse por opção senhorial (no caso dos escravos), fosse pelo desejo de abandonar a terra onde haviam sido escravos e enfrentavam o estigma do passado vivido no cativeiro (no caso dos forros). n.9, 2015, p.15-29

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JAIME RODRIGUES

De Lisboa ao Rio de Janeiro Nos navios que cumpriam a rota Lisboa-Rio de Janeiro entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX – como, de resto, em toda a marinha mercante lusa –, as equipagens não apresentavam os traços de internacionalismo verificados em outras bandeiras do Atlântico Norte (RODRIGUES, 2013a, p. 13). Neste caso, a maior parte dos tripulantes era nascida no Reino. A partir de uma amostragem de 37 viagens de Lisboa ao Rio de Janeiro, temos dados sobre 1.528 homens, entre oficiais e marinheiros comuns. Quando se travava de tripulantes portugueses, estes costumavam declarar seus locais de nascimento, alguns de forma detalhada, incluindo freguesia, vila, cidade e bispado. A partir dessas informações, dividi os reinóis entre as regiões do norte, do centro e do sul do país8. A tabela a seguir apresenta o conjunto dos homens a partir de seus locais de nascimento. TABELA II NATURALIDADE DE OFICIAIS E MARINHEIROS NA ROTA LISBOA-RIO DE JANEIRO (1767-1821) Região

Nº de homens

%

África (inclui Cabo Verde)

29

1,2

América portuguesa

31

1,3

5

0,6

23

1,3

Ásia Espanha Ilhas atlânticas (Açores)

157

11

18

1,1

Irlanda

1

0,1

Itália

3

0,3

Ilhas atlânticas (Madeira)

Portugal centro (Lisboa e Estremadura)

549

36

Portugal norte (Beira)

103

6,7

Portugal norte (Entre-Douro-e-Minho)

562

37

18

1,1

Portugal sul (Alentejo)

7

0,8

Portugal sul (Algarves)

22

1,2

Portugal norte (Trás os Montes)

Os reinóis representavam 83% do total de trabalhadores marítimos nos navios com destino ao Rio de Janeiro, com forte concentração de gente do norte do país e de Lisboa e seu entorno (cerca de 80% do total). O percentual não seria diferente se o porto de destino fosse qualquer outro da América portuguesa. Se acrescentássemos à lista os habitantes das ilhas atlânticas, o percentual subiria para 95%. A presença de estrangeiros europeus na marinha mercante lusa era minúscula, assim como a de naturais da África e de homens nascidos na 22

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América portuguesa. Tratava-se, obviamente, de um mercado de trabalho reservado aos reinóis livres. O que dizem as fontes sobre os quesitos cor e condição social desses homens? Dentre os tripulantes na rota Lisboa-Rio de Janeiro, 16 eram escravos, sendo 10 africanos, dois portugueses, um nascido no Rio de Janeiro, e para três deles não consta a informação. Dezoito homens eram forros, sendo dois açorianos, nove africanos, cinco nascidos na América portuguesa, um em Portugal e um para o qual não temos o dado. Quanto aos livres embarcados, um era pardo e nascido no Rio de Janeiro, 19 eram pretos, divididos em dez africanos, um português e um maranhense, além de sete para os quais não consta a naturalidade. Os demais eram brancos, distribuídos entre uma imensa maioria de 1.213 reinóis (sete alentejanos, 22 algarvienses, 103 beirões, 548 de Entre Douro e Minho, 18 de Trás os Montes e 515 de Lisboa e Estremadura), 173 ilhéus (155 açorianos e 18 da Madeira), 23 espanhóis, um irlandês, três italianos, um africano, cinco asiáticos e 23 nascidos na América portuguesa. Se observarmos os tamanhos das tripulações, poderemos deduzir algo sobre a composição das equipes. TABELA III NÚMERO DE TRIPULANTES POR EMBARCAÇÃO, ROTA LISBOA-RIO DE JANEIRO Nome do navio

São Tiago Maior General Lecor

Nº de tripulantes embarcados 150

Data da partida em Lisboa

7 de junho de 1821

122

6 de junho de 1821

Vasco da Gama

91

10 de maio de 1821

Aurora

90

18 de julho de 1821

Ulisses

70

10 de setembro de 1821

N. S. do Pilar e Fortaleza

68

28 de março de 1768

N. S. da Luz

57

14 de abril de 1821

Graça Divina e Santíssimo Sacramento

54

28 de março de 1768

São Zacarias, N. S. da Conceição e Almas

52

22 de fevereiro de 1769

Princesa do Brazil

50

20 de setembro de 1821

N. S. do Monte do Carmo e Senhor da Canaverde

47

2 de maio de 1768

N. S. da Conceição e Almas

45

14 de dezembro de 1767

São Zacarias, Conceição e Almas

41

21 de novembro de 1767

São João Nepomuceno

41

8 de abril de 1768

N. S. da Piedade das Chagas (ver duas linhas abaixo)

40

11 de maio de 1767

N. S. do Livramento e São José

40

24 de março de 1768

N. S. da Piedade da Chaga (será “das Chagas”?) n.9, 2015, p.15-29

/037

9 de agosto de 1769 23

JAIME RODRIGUES

TABELA III (cont.) NÚMERO DE TRIPULANTES POR EMBARCAÇÃO, ROTA LISBOA-RIO DE JANEIRO Nome do navio

Nº de tripulantes embarcados 35

Santo Antonio de Pádua

Data da partida em Lisboa

28 de março de 1768

N. S. da Oliveira, São José e Santa Ana

33

28 de março de 1768

Duque de Bragança

30

4 de dezembro de 1821

N. S. da Piedade e Santo Antonio de Lisboa

29

4 de setembro de 1767

N. S. da Lapa e São José

27

19 de agosto de 1768

Santa Ana e São Joaquim

27

9 de novembro de 1767

Esperança

26

20 de julho de 1821

Lusitano

25

18 de setembro de 1821

N. S. da Boa Viagem, Corpo Santo e São Francisco de Paula N. S. da Misericórdia e Santa Ana

24

26 de setembro de 1768

24

27 de outubro de 1767

N. S. do Monte do Carmo e Almas

23

7 de janeiro de 1768

Piedade

23

5 de setembro de 1821

N. S. da Conceição e São José

22

31 de agosto de 1767

Bom Jesus de Além e N. S. da Esperança

22

10 de fevereiro de 1768

São José e Santa Rita

22

10 de fevereiro de 1768

N. S. do Monte do Carmo e São Francisco

20

22 de abril de 1768

N. S. da Conceição e Santa Anna

18

19 de janeiro de 1768

N. S. do Rosário

15

5 de março de 1769

N. S. da Sé e São Vicente Ferreira

3

19 de agosto de 1767

Primeiramente, vemos que os navios que percorriam rotas mais longas contavam com mais homens a bordo, e é provável que a alta taxa de mortalidade e o tipo de carga transportada (não informada pela fonte) requeressem isso. Na amostragem, os navios que levaram mais tripulantes foram o São Tiago Maior e o General Lecor9, sendo provavelmente ambos negreiros navegando em 1821 na rota Lisboa-Rio de Janeiro-Benguela, o que explicaria a presença de mais homens a bordo, necessários à manutenção da disciplina e aos cuidados com os escravos transportados. Na sequência, temos o Vasco da Gama10, também de 1821, com 91 tripulantes, que seguia de Lisboa para Macau com escala no Rio de Janeiro. Para os demais, há poucos indícios explicativos das razões do tamanho das tripulações. Temos dois bergantins (o Lusitano e o Piedade), um brigue (o Esperança), três corvetas (N. S. da Boa Viagem, Corpo Santo e São Francisco de Paula e Bom Jesus de Além e N. S. da Esperança, São José e Santa Rita) com tripulações de ordem similar: de 22 a 26 homens. A tipologia das embarcações, mesmo não sendo precisa, remete ao velame, à mastreação 24

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e à capacidade de carga. Nesse sentido, corvetas, bergantins, galeões e brigues eram navios semelhantes: de médio a pequeno porte e contando com dois mastros para dispor suas velas (FLORENTINO, 2005, p. 98 e ss). Já as galeras contavam, em geral, com mais tripulantes: na amostragem, são galeras o N. S. da Oliveira, São José e Santa Ana (1768), o Duque de Bragança (1821), ambos com 30 ou mais tripulantes; o N. S. da Lapa e São José (1768), o Santa Ana e S. Joaquim (1767), o N. S. do Monte do Carmo e Almas (1767), o N. S. da Conceição e São José (1767) e o N. S. do Monte do Carmo e São Francisco (1768), estes últimos contando com 20 a 27 homens em suas equipagens. Dois iates, o N. S. da Conceição e Santa Anna (1768) e o N. S. do Rosário (1769) completam a lista das embarcações das quais sabemos as tipologias. De tamanho e capacidade de carga menores, esses navios também levavam menos tripulantes. Verificando-se o tempo de serviço dos oficiais e o dos marinheiros comuns, poderemos entender o critério usado na contratação dos homens do mar para compor uma tripulação, tendo em mente a necessidade de equilibrar a remuneração (supostamente maior para homens mais adestrados) e a experiência marítima (gente mais perita lidando com novatos e ensinando-lhes os macetes do trabalho no mar). A partir dos dados das mesmas 37 viagens da amostra, vejamos o que é possível deslindar. TABELA IV TEMPO DE EXPERIÊNCIA NO TRABALHO MARÍTIMO - ROTA LISBOA-RIO DE JANEIRO (1767-1821) POSTO OFICIAIS Calafate/calafatinho Capelão Capitão Carpinteiro/carpinteirinho Cirurgião Comandante/primeiro piloto Condestável Contramestre Cozinheiro/copeiro Despenseiro Escrivão/escriturário Piloto Praticante Sotapiloto MARINHEIROS COMUNS Mancebo Marinheiro Moço Servente

MÉDIA ETÁRIA

TEMPO MÉDIO DE EXPERIÊNCIA

32 43 37 34 29 42 33 40 37 37 26 36 19 26

15 4 22 15 5 27 11 24 11 16 6 20 3 9

24 30 20 23

8 13 3 5

Obs.: Média etária e tempo de experiência em anos. Pelo número ínfimo (até três indivíduos), foram desprezadas as seguintes funções: ajudante de copeiro; aprendiz de calafate; boticário; fiel da artilharia; gajeiro; guardião; padeiro; primeiro e segundo pilotos; sobrecarga, segundo e terceiro sobrecarga; segundo tenente; tambor; tanoeiro e terceiro piloto.

n.9, 2015, p.15-29

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JAIME RODRIGUES

Profissões eminentemente braçais e que requeriam alguma formação específica incorporavam homens jovens. É o caso dos calafates, iniciados aos 17 anos, em média; dos carpinteiros, que ingressavam no mundo do trabalho aos 19 anos, e dos despenseiros, que começavam por volta dos 21 anos de idade. Havia funções que requeriam algum tempo de educação formal, prática ou aprendizagem. É o caso dos escrivães, com média de ingresso nas embarcações em torno de 20 anos, embora seu ofício também fosse demandado em terra, e ali eles poderiam tê-lo exercido antes de se tornarem responsáveis pelas escrituras no mar. Tradicionalmente, os oficiais ligados à pilotagem vinham de camadas sociais mais elevadas. Se no século XVI os pilotos, comandantes e capitães eram aristocratas da confiança do rei, no século XVIII essa situação já se transformara, mas não a ponto de incluir gente mais pobre em suas fileiras. Capitães e pilotos, por exemplo, ingressavam nesse universo por volta dos 15 ou 16 anos de idade. Jovens praticantes, eles podiam ascender profissional e socialmente; o mesmo não se dava com os marinheiros, homens livres e pobres cujo tempo médio de experiência de 17 anos em nada alterava seu status a bordo. Os casos dos capelães e dos cirurgiões, com médias etárias elevadas e tempo médio de experiência pequeno, podem ser explicados pela necessidade de formação para o exercício profissional. Não se podia começar nesses ofícios sem ter uma idade mínima e um tempo de estudos ou de prática, o que explica a presença de homens mais velhos e de menos experiência atuando como capelães e cirurgiões em navios. Esse não era o caso da maioria das outras funções a bordo. Ingressava-se muito jovem nos ofícios marítimos comuns, e alguns deles possibilitavam ascensão profissional ao longo do tempo, da condição social e da experiência acumulada. Outros, como os marinheiros comuns, embora acumulassem experiência, dificilmente deixavam sua função original e tornavamse oficiais. Embora fosse um mercado de trabalho destinado a gente livre, os marinheiros eram, em sua maioria, homens pobres que não encontravam meios de ascender e superar sua condição subalterna naquela sociedade. Mancebos, moços, serventes e marinheiros eram jovens quando adentravam o mundo do trabalho marítimo: em média, tinham de 16 a 18 anos de idade.

Considerações finais Dentre todos os oficiais ou marinheiros embarcados, era comum que muitos experimentassem pela primeira vez a distância salgada que separava Lisboa do Rio de Janeiro. “Embarca agora a primeira vez”, “primeira viagem”, “primeira vez que embarca” e expressões equivalentes são frequentes na documentação aqui analisada, quando se referem aos homens do mar. Se não encontrassem a morte ou uma doença incapacitante nos primeiros tempos de sua vida profissional, esses trabalhadores ficariam longos anos ao sabor das ondas. 26

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As sensações da primeira vez que embarcaram os uniam, mas a maneira como adentravam esse universo podia definir seu papel ao longo de toda a sua trajetória. Ir e vir de Lisboa ao Rio de Janeiro ou a outras partes dos domínios coloniais na condição de marinheiro incluía a chance de participar ativamente do comércio que animava o Atlântico. Gente como o marinheiro Simão Alves de Azevedo soube tirar proveito disso: em 1800, a bordo do Flor do Rio, ele e seu companheiro Antonio Lopes combinaram a soldada que receberiam do capitão Francisco José Pereira numa viagem do Rio de Janeiro a Lisboa, e pretendiam incorporar aos ganhos o carregamento e venda de dez sacas de arroz, 20 de café e dez de algodão. Todavia, nada receberam por isso. Simão acionou o capitão na Justiça, pedindo a metade desses fretes, e acusou seu superior de trazer a mercadoria de forma ilegal, pois “ele não mostrou os conhecimentos nem lhe declara os donos dos referidos gêneros”11. A marinha mercante era um lugar profissional para homens livres e pobres reinóis, quando se tratava das ocupações braçais e que pouco requeriam em termos de formação educacional. Era, assim, o lugar da reiteração das diferenças sociais, sobretudo quando se comparam as diferenças entre a experiência e a possibilidade de ascensão profissional de marinheiros comuns e oficiais ligados à pilotagem. No Reino ou em seus domínios, era difícil escapar da origem social. Mas, como a determinação não é boa guia para os estudos históricos, as rotas marítimas também podem ter proporcionado a sobrevivência de muitos trabalhadores livres, a manutenção de tradições familiares de engajamento marítimo e rotas de fuga para trabalhadores escravos (RODRIGUES, 2013b, pp. 145-177), mudando, assim, destinos aparentemente ditados desde o nascimento em uma sociedade quase estratificada. Mesmo com o objetivo declarado de inibir a “passagem das gentes ao Brasil”, a mobilidade espacial pelos domínios lusos poderia trazer possibilidades inusitadas para um grande contingente de pessoas que, mesmo diante da regulamentação de seus movimentos, escolhia deixar a vida que tinha no Reino para lançar-se no Atlântico, tendo o Rio de Janeiro como um de seus destinos privilegiados desde pelo menos a segunda metade do século XVIII. Simão, um marinheiro comum, não se conformou com o lugar que lhe fora destinado pela ordem social e processou o capitão do navio em que vinha embarcado. Aos sussurros (ou aos gritos, a depender dos ouvidos do historiador), a ação judicial parece nos dizer que ele e milhares de companheiros seus foram capazes de construir histórias de superação no decorrer do tempo, mesmo quando tudo parecia conspirar para que ele cumprisse seu papel em uma engrenagem externa, impessoal e distante do seu controle. Notas Agradeço ao CNPq, à CAPES, FAPESP e FAP/ UNIFESP pelo apoio concedido a esta pesquisa, que traz resultados das atividades de pósdoutorado desenvolvidas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1

n.9, 2015, p.15-29

2 ANTT, Junta do Comércio, Livro 1 - Matrículas das equipagens dos navios (1767-1768), termo de abertura. 3

Idem, Ibidem.

27

JAIME RODRIGUES

4 ANTT, Junta do Comércio, Livro 1, doc. cit, termo de abertura. 5 Esse número é parte de uma amostragem que inclui 151 viagens feitas por navios zarpados de Lisboa com direção aos portos da América portuguesa. Dessas viagens, além das destinadas ao Rio de Janeiro, 39 dirigiam-se a Pernambuco, 24 a Salvador, 13 ao Maranhão, 13 a Bissau/Cabo Verde, dez ao Grão-Pará, sete a Angola/Benguela, cinco a Santos, três à Paraíba, duas a Macau e duas a Benguela. 6 Alvará com força de lei datado de 16 de janeiro de 1773 estabelecia que, no Reino, o cativeiro não podia estender-se além dos bisnetos. Ver Repertorio geral, ou Indice alphabetico das leis extravagantes do reino de Portugal, publicadas depois das ordenações, comprehendendo tambem algumas anteriores, que se achão em observancia. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1815, p. 168. 7 Ver também protesto assinado por 11 de 14 tripulantes do negreiro Ermelinda Segunda em 1842 em REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos e CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 275.

8 Localizando freguesias e vilas com o auxílio de ANDRADE, Agostinho Rodrigues de. Dicionário corográfico do Reino de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1878. 9 “Lista dos oficiais e equipagem do navio S. Thiago Maior, que segue viagem para Benguela com escala pelo Rio de Janeiro, de que são proprietários Jose Rodriguez de Magalhães e Francisco Xavier da Maia” e “Lista da tripulação do navio General Lecor que segue viagem para Benguela, com escala pelo Rio de Janeiro, de que são proprietários João Loureiro e Domingos Alves Loureiro”. ANTT, Junta do Comércio, Maço 37, caixa 128.

“Matrícula dos oficiais e marinheiros do navio Vasco da Gama, que segue viagem para o Porto de Macau, com escala pelo Rio de Janeiro em 1821, de que são proprietários João Lourenço da Cruz e Joaquim dos Ramos”. ANTT, Junta do Comércio, Maço 37, caixa 128.

10

ANTT, Feitos Findos, Juízo da Índia e Mina, Maço 53, Caixa 53, Processo nº 1, fl. 3.

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Que lancem todos os dias os nomes, empregos e mais sinais: circulação escrava e tentativas de controle estatal nas leis municipais do Rio de Janeiro e de Havana na década de 1830 Names, jobs, and other signs shall be registered every day: slave circulation and attempts of State control through municipal laws in Rio de Janeiro and Havana, on the decade of 1830’s Ynaê Lopes dos Santos Mestre e Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Professora Adjunta do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). [email protected]

RESUMO: O presente artigo pretende analisar a paridade entre as leis municipais produzidas pelas autoridades do Rio de Janeiro e de Havana durante a década de 1830 que tinham por objetivo maior o controle dos escravos urbanos alocados na ampla rede de serviços citadinos. Nesse período, a despeito da forte pressão britânica, ambas as cidades vivenciaram um significativo aumento do segmento escravo da sua população, crescimento este que era oriundo de escolhas muito semelhantes feitas pelas elites socioeconômicas do Brasil e de Cuba no intuito de manter a escravidão ao longo do século XIX. Palavras-chave: Escravidão urbana, Rio de Janeiro, Havana.

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ABSTRACT: The current paper aims to analyze the parity between the municipal laws produced by the authorities in Rio de Janeiro and in Havana during the 1830’s, which purpose was to gain greater control over urban slaves spread around the wide network of urban services. During this period, despite the heavy pressure by Britain, both cities experienced expressive increase in the slave segment of their populations, which derived from very similar choices made by the Brazilian and Cuban socioeconomic elites, with the purpose of preserving slavery along the 19th century. Keywords: Urban Slavery, Rio de Janeiro, Havana.

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Rio de Janeiro Os donos das hospedarias, estalagens, ou quaisquer outras casas públicas, que admitem indivíduos a tomarem aposento nelas, assignarão termo nesta Câmara de não receberem escravos não conhecidos por si ou seus senhores, nem pessoas suspeitas por qualquer outro motivo, tendo um livro, que será rubricado gratuitamente pelo fiscal respectivo, em que lancem todos os dias os nomes, empregos e mais sinais das pessoas que ali tomarem aposento sendo os ditos assentos assignados pelas próprias pessoas1.

Era assim que se iniciava a sétima das dez posturas que compunham o aditamento feito pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 11 de abril de 1834. Como fica latente na leitura do documento, o intuito dos vereadores com a sétima postura era controlar um aspecto inerente à escravidão urbana: a maior mobilidade dos cativos, principalmente nas casas públicas. Fazendo as vezes de feitor, a Câmara tentava evitar crimes graves, provavelmente roubos e furtos, e diminuir os índices de fuga escrava. Como o próprio nome do documento sugere, o Aditamento de Postura de 1834 não era a primeira tentativa da Câmara Municipal do Rio de controlar os escravos urbanos. Em 1830, a mesma Câmara havia elaborado e publicado as Posturas Municipais do Rio de Janeiro vislumbrando o bom funcionamento da cidade, o que em muitos casos foi sinônimo do aumento do controle sobre os escravos citadinos (SANTOS, 2010, pp. 125-148). A preocupação era tamanha que, no ano seguinte, outro edital foi elaborado pela Câmara, contendo novas posturas que visavam cercear o trânsito dos cativos do Rio de Janeiro. Observa-se, então, que, no curto intervalo de quatro anos, parte das autoridades responsáveis pela ordem na capital do Império do Brasil havia produzido dezenas de leis municipais direcionadas aos escravos e aos seus senhores. A razão para tamanho cuidado era relativamente simples: em consonância com a escolha feita pela elite brasileira de manter a escravidão (BERBEL, MARQUESE, PARRON, 2010), e a despeito das pressões inglesas e da proibição do tráfico em 1831, o número de escravos que desembarcavam nas cercanias do Rio de Janeiro crescia a olhos vistos. Ainda que a maior parte desses cativos fosse trabalhar na produção de café, um grande número deles continuava alocado na ampla rede de serviços urbanos do Rio. A vida dos responsáveis pela ordem da capital imperial teria sido mais tranquila se os problemas advindos da dinâmica escravista se limitassem aos ajuntamentos e às bebedeiras que ocorriam nas tabernas e estalagens do Rio, como pontuado na sétima postura do Aditamento de 1834. No entanto, a manutenção ilegal do tráfico nas cercanias da cidade tornou ainda mais complexo o cotidiano carioca. O incremento da produção de café fez com que o risco de sustentar o tráfico valesse a pena para plantadores, traficantes e parlamentares do Brasil – que, por vezes, eram as mesmas pessoas. Milhares de africanos escravizados continuaram sendo comercializados na ilegalidade (RODRIGUES, 2000. PARRON, 2011), 32

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e parte significativa deles era alocada na rede de serviços do Rio de Janeiro, como sugerido na sexta postura aditada em 1834: os vendedores de escravos que têm casas estabelecidas para esse fim, ou que o fazem em leilão, assignarão termo nesta Câmara de não comprarem escravos, nem os receberem para vender, se não de pessoas reconhecidas como seus legítimos Senhores, ou que apresentem pessoas estabelecidas que como taes os afianciem, assim como que mostrem igualmente que os ditos escravos chegaram a este império antes da prohibição do tráfico de escravatura, obrigando-se a ter um livro, que será rubricado gratuitamente pelo fiscal respectivo, em que faça os assentos dos escravos que comprão ou recebem para vender, declarando a data da compra ou recebimento, o sexo, o nome, nação, préstimo, idade provável do escravo, assim como quaesquer signaes por que se faça conhecido, declarando igualmente quando, donde e como houve o vendedor: os quaes assentos serão assignados pelos vereadores, sendo pessoas reconhecidas, ou por quem se responsabilize por elles não o sendo, e serão patentes ao Fiscal, ou qualquer autoridade policial que o exija. Os infractores soffrerão a pena de 8 dias de prisão e de 30$000 rs. de multa, e nas reincidências, a de 30 dias de prisão e 60$000 rs. de multa, além dos que incorrerem pelo código2.

Tal situação acabou gerando uma nova categoria de habitantes da cidade, que não eram nem escravos, nem livres. Como pontuado em recente trabalho de Sidney Chalhoub, a tessitura política herdada do período colonial fez com que órgãos estatais e interesses particulares fizessem uso indevido desses africanos libertados, que muitas vezes iam parar nas fazendas de café ou nas obras públicas do Rio de Janeiro (CHALHOUB, 2012). Entretanto, para além da precariedade da liberdade, a conservação do tráfico transatlântico também foi responsável pelo aumento do segmento escravo na cidade, o que teve impacto direto na vivência urbana do Rio de Janeiro. Não por acaso, foi também no aditamento de 1834 que as autoridades decretaram que estavam proibidas as casas conhecidas vulgarmente pelos nomes de casas de zungú e batuques. Os donos, ou chefes de taes casas serão punidos com a pena de 8 dias de prisão e 30$000rs. de multa, e, nas reincidências, com as de 30 dias de prisão e 60$000 rs. de multa3.

Os zungus teriam se originado das casas de quilombos que pipocavam desde os primeiros anos do século XIX. De acordo com alguns estudos, tais casas, que possivelmente serviram de ponto de encontro de escravos fugidos – daí sua denominação –, também reuniram diferentes comunidades de africanos e crioulos, e, por isso mesmo, foram duramente combatidas pela polícia, praticamente desaparecendo da documentação policial na segunda metade daquele século. Todavia, os zungus não foram apenas locais de encontro entre cativos, onde esses faziam suas danças e batuques. Os zungus tinham sentidos e usos múltiplos. A origem dessas casas também estava no angu, comida típica do escravo e facilmente encontrada nas ruas cariocas, o que leva a crer que tal organização nem sempre aconteceu em locais determinados, mas também nas ruas, em volta das negras com seus tabuleiros de angu (SOARES, 1998, pp. 16-57). n.9, 2015, p.31-47

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A proibição de casas que eram, ao mesmo tempo, refúgio para escravos foragidos e locais de dança e batuque, revelava muito bem a dupla atuação da polícia frente ao segmento escravo: ela deveria evitar que os cativos fugissem, mas também garantir que a população cativa se comportasse de forma adequada. Ainda que em 1834 o trono estivesse vazio, o Rio era Corte e capital do Brasil: batucadas e ajuntamentos de escravos e libertos não seriam tolerados. Em nome da ordem, os deputados não só proibiram essas casas, como também se mostraram preocupados com uma prática havia muito difundida entre escravos, libertos e livres pobres da cidade: o jogo. Todas as pessoas que forem encontradas nas ruas, praças e mais lugares públicos, bem como em vendas, barracas, corredores de casas e torres de Igrejas a jogar qualquer espécie de jogo, serão multadas em 2$000 rs. e soffrerão 8 dias de prisão e o duplo nas reincidências, sendo escravo pagará a multa o respectivo senhor, ao qual é salvo o direito de requerer ao juiz executor a commutação da prisão em açoutes, na forma do artigo 60 do Código Criminal. Os donos das vendas e barracas em que forem encontradas taes pessoas a jogar, incorrerão nas penas de 8 dias de prisão e 30$000 rs. de multa, e nas reincidências, na de 30 dias de prisão e 60$000 rs. de multa4.

Tomado na sua totalidade, o Aditamento de 1834 era uma peça que demonstrava a preocupação com a manutenção da ordem de um projeto de cidade que dialogava tanto com a necessidade proeminente de mão de obra escrava como com os ditames de civilização que haviam fundado a nação brasileira. Não por coincidência, as onze posturas aprovadas em caráter provisório tratavam do cerceamento da mobilidade escrava, mas também determinavam a proibição e punição pela retirada indevida de árvores e da areia das praias da cidade, e obrigava a assinatura de termos de compromisso para todos que desejassem abrir casas de jogo de bilhar ou de brechó5. A busca por uma cidade mais civilizada – ou a Versalhes Tropical, como bem pontuou Kirsten Schultz (2008) – esteve presente na criação do município neutro, instituído poucos meses depois da publicação das leis municipais analisadas. De acordo com Thomas Flory, a aprovação do Ato Adicional em agosto de 1834 resultou na diminuição dos poderes locais, já que os conselhos municipais ficaram a cargo das assembleias provinciais, a despeito de suas pretensões centralizadoras; era criada uma espécie de centralização intermediária, mesmo diante da perda de poder sofrida pelo Rio de Janeiro (FLORY, 1986, pp. 244-5). Segundo Maria Odila da Silva Dias, a decadência das municipalidades resultou no acirramento das facções locais, que, desesperadas, tiveram que recorrer a um entendimento com o poder central (DIAS, 2005, p. 145). A proclamação do Ato Adicional teve consequências diretas para o Rio de Janeiro, que foi transformado em Município Neutro. A cidade manteve-se como capital do país, mas a província do Rio passou a funcionar da mesma forma que as demais. O que se observou a partir de então foi uma tentativa de ampliação da atuação estatal, tanto da Câmara Municipal como da polícia, no controle dos milhares de escravos que continuavam sendo responsáveis, ao lado dos libertos, pelo funcionamento da cidade. 34

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Embora parte dos documentos contidos no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro tenha se perdido no incêndio que atingiu a instituição na década de 1950, alguns pedidos de licença para escravos saírem ao ganho foram salvos, e, por meio de uma leitura seriada, eles permitem observar que a cada ano o número de senhores que recorriam à Câmara para tratar dos trâmites legais aumentava. É possível que esse crescimento tenha tido duas razões: o aumento do segmento escravo na cidade por meio do tráfico ilegal e o recrudescimento das ações da polícia e dos demais órgãos responsáveis pela administração da cidade. Uma vez mais, as medidas tomadas pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro parecem afiançar as hipóteses levantadas acima. As novas demandas criadas pela equação que contabilizava o aumento da procura de mão de obra escrava pelos produtores de café, a manutenção do tráfico transatlântico ilegal e a necessidade de manter a ordem num momento de fragilidade política também estiveram presentes na elaboração do novo Código de Posturas pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1838 (BERBEL, MARQUESE, PARRON, 2010). Um primeiro exame deste código de posturas permite observar um enrijecimento das leis que passaram a governar a cidade. A seção Polícia foi acrescida de três títulos e mais de trinta artigos, que versaram, principalmente, sobre os diversos meios de manter a segurança, as comodidades e a tranquilidade dos habitantes6, como demonstra o artigo abaixo. Tít. 4o. Art. 6o. Nenhuma pessoa de qualquer estado, condição ou sexo (inclusive pessoas encarregadas da condução de gêneros) poderá transitar pelas ruas deste município senão com vestes decentes, isto é, não deixando patente qualquer parte do corpo que ofenda a honestidade e a moral pública. O contraventor, além da multa de 10$000 rs, sofrerá 4 dias de prisão, e o duplo na reincidência, tanto a respeito da multa como ao tempo de prisão: sendo escravo, estará 8 dias de calabouço7.

Assim como apresentado nas posturas de 1830, a presença dos escravos se concentrou na seção de Polícia, tornando-se mais constante no código de 1838. O cativo, que em 1830 era proibido de três ou quatro coisas, além de ser comprometido (via seu senhor) em ajudar a apagar o fogo dos incêndios, começou realmente a ser tratado como suspeito em potencial. Os artigos abaixo ilustram como os escravos passaram a ser encarados. Tít. 7o. Art. 6º. Todo escravo que for encontrado das 7 horas da tarde em diante sem escrito de seu Senhor, datado do mesmo dia, no qual declare o fim que vai, sofrerá 8 dias de prisão, dando-se parte ao Senhor8. Tít. 10. Art. 23. Ninguém poderá expor à venda em loja, nem mesmo em particular, pólvora e armas ofensivas de qualquer natureza que sejam (*), sem que obtenha licença da Câmara Municipal, obrigando-se as não vender a escravos, nem a pessoas de suspeita, prestando, além da licença, uma fiança, perante o juiz de paz, de pessoa idônea e de probidade conhecida. Os infratores incorrerão na multa de 20$ rs. e 8 dias de prisão, e, no caso de reincidência, em 30$ rs. e 20 dias de cadeia9.

A incorporação de leis que haviam sido aprovadas em caráter provisório indica que a mobilidade escrava, característica do espaço urbano, continuava sendo uma questão para n.9, 2015, p.31-47

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os responsáveis pela ordem no Rio de Janeiro, que, quando necessário, não se faziam de rogados e agiam como verdadeiros feitores urbanos. No caso específico do Rio de Janeiro, o Estado-feitor chegou ao seu limite entre os anos de 1839 e 1840, quando a Câmara Municipal elaborou um projeto de aditamento às posturas municipais de 1838 no qual todos os 18 artigos versavam sobre o escravo urbano. De maneira geral, esse projeto pretendia abarcar todas as questões referentes aos cativos citadinos. Os primeiros artigos pareciam reforçar a preocupação da Câmara em controlar a procedência dos escravos do Rio de Janeiro, a fim de evitar que africanos desembarcados ilegalmente fossem comercializados na cidade. Justamente por isso, Art. 1o. Em todos os Juízos de Paz do Império, haverá um livro de matrícula de todos os escravos existentes, ou que d’ora em diante nascerem, com declaração dos nomes, naturalidades, idades, estados, ocupações, e signaes característicos dos escravos, e bem assim dos nomes, e residências dos Senhores10.

Além do livro de matrícula, todos os senhores de escravos deveriam comunicar aos juízes de paz o nascimento e a morte de qualquer escravo, bem como avisar à Câmara caso eles e seus escravos mudassem de distrito. A compra e a venda dos escravos urbanos também deveriam ser feitas por meio de uma nova burocracia, na qual Art. 5o. Nenhum escravo poderá ser vendido senão perante o Juiz de Paz do Distrito do vendedor, do que se lavrará termo em um livro para esse fim destinado, escrito pelo Escrivão que declarará no termo não só o preço da venda como também o nome do escravo, sua naturalidade, idade, estado, ocupação e signaes característicos e os nomes do comprador e vendedor, que assignarão, ou alguém por eles, o dito termo, juntamente com o Juiz, servindo de título ao comprador uma certidão deste termo. Art. 6o. Os escrivães não lavrarão este termo sem exigir do vendedor ou comprador o conhecimento de pagamento de meia siza do escravo vendido, cujo conhecimento será ditado no referido termo e arquivado no Cartório do Distrito. O transgressor será punido com suspensão por um ano e multa de 20$00011.

Além de exigir que os senhores matriculassem todos os seus cativos, sob pena de multa, e que todos os libertos se apresentassem ao Juiz de Paz de seu distrito com seus títulos de liberdade, a preocupação com a fuga dos cativos também esteve presente nesse documento. O artigo 9o proibia que qualquer escravo viajasse por mar ou por terra além de duas léguas de distância em relação à casa de seu senhor, sob pena de ser preso como fugido12. Contudo, o caráter feitorial do projeto ficou especialmente claro no 14º artigo: Fica proibido aos Senhores de escravos que consentirem que eles morem sobre si, a pretexto de quitandarem ou por qualquer outro: os transgressores serão punidos com 5 a 15 dias de prisão, e multa de 10 a 30 $, e os escravos castigados com 100 açoites, e trarão por 1 ano ferro ao pescoço, penas estas que serão dobradas havendo reincidência13.

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Era a primeira vez que o Estado interferia legalmente num acordo privado da dinâmica escravista. Segundo o artigo, senhor e escravo seriam punidos caso se constatasse a prática de o cativo morar sobre si, o que até então nunca fora proibido pelas autoridades. A penalidade reservada ao escravo não só recairia sobre seu único bem (seu corpo), como tinha um forte caráter exemplar. Não por acaso, o uso do ferro no pescoço também era aplicado aos escravos fugitivos, indicando que a Câmara Municipal passou a ver o morar sobre si como um ato de fuga. As razões possíveis para tamanha intromissão residem no recrudescimento da legislação que tratava de assuntos relacionados à escravidão. Ao que tudo indica, tal proposta era mais uma faceta do projeto saquarema que se forjava (MATTOS, 1990). Seria de se esperar, portanto, que a partir da década de 1840 as escrivaninhas da Câmara Municipal fossem invadidas por documentos produzidos a partir do recrudescimento do controle dos escravos. No entanto, como demonstrado em trabalho anterior, esse Projeto de Aditamento de Postura, que chegou a ser citado pela historiografia como uma das ferramentas utilizadas pela polícia do Rio de Janeiro para controlar a vida escrava na cidade, não foi aprovado (SANTOS, 2010). O conjunto de posturas que objetivava o aumento do controle dos escravos e libertos da cidade – procurando, inclusive, melhor estabelecer a diferença entre as duas condições, tendo em vista a forma como elas se misturavam numa “cidade esconderijo” (CHALHOUB, 1990) – não foi sancionado. O motivo da reprovação consiste num somatório de fatores. Em primeiro lugar, não se sabe ao certo quem foi o responsável por sua elaboração, no caso de conjecturar prováveis disputas internas na Câmara Municipal. Segundo, não é possível afirmar se foi a própria Câmara que barrou o projeto, o Ministério do Império ou até mesmo a Assembleia Geral, devido, especialmente, ao fato de estar de acordo com os fundamentos políticos defendidos pelos saquaremas, que haviam conquistado o poder em 1837. Em linhas gerais, tal projeto privilegiava o governo do Estado em detrimento do governo da casa, pela adoção de uma política que coibiria os exageros dos círculos familiares – inclusive no que dizia respeito ao governo dos escravos –, afinando-os pelas diretrizes estatais (MATTOS, 1990). Assim sendo, tal projeto de aditamento era uma radicalização das posturas aprovadas em 1838, nas quais a preocupação com a ordem de uma cidade sabidamente escravista estava clara. Era necessário que o Estado distinguisse a casa (espaço privado) das ruas e praças (espaços públicos), o que, em última instância, poderia representar uma intromissão estatal mais direta nos poderes particulares. Dito de outra forma, o veto do projeto parecia ir contra a plataforma fundadora do Regresso Conservador. Mas havia outra razão para impedir a aprovação dessas posturas: a política saquarema que referendava a abertura sistemática do tráfico ilegal (PARRON, 2011). É bem verdade que essa medida devia ser acompanhada pelo aumento do controle estatal da circulação cativa, tendo em vista o número de africanos que desembarcavam ilegalmente na cidade. Era exatamente este o objetivo dos primeiros quatro artigos do projeto: documentar a procedência n.9, 2015, p.31-47

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de todos os escravos que fossem comprados e vendidos na cidade. No entanto, tal controle não poderia, de forma alguma, permitir que o próprio Estado registrasse possíveis aspectos dessa ilegalidade (COSTA, 2003, pp. 58-74). Por conhecerem bem os meandros da sociedade escravista brasileira e, sobretudo, a natureza do tráfico de escravos após 1837, os saquaremas não aprovaram o projeto de Aditamento às Posturas de 1838. Compartilhando interesses socioeconômicos com a elite agrícola cafeicultora quando eles próprios não faziam parte dela, esses políticos defendiam um Brasil fundado na mão de obra escrava. Por que, então, pôr em risco uma dinâmica que permitia a plasticidade necessária à manutenção da instituição escravista na cidade? O veto desses dezoito artigos também reforça um aspecto comum na escravidão citadina ressignificada a partir da Revolução do Haiti em 1791: o responsável pelo escravo era, em primeiro e em último lugar, o seu proprietário. No caso brasileiro, é possível afirmar que após a Independência, em 1822, muitos senhores, quase todos cidadãos, tinham seu direito à propriedade afiançado pelo Estado. Seguindo a lógica de uma sociedade escravista, o segmento social que poderia ser controlado por meio de posturas municipais só podia ser aquele passível de assumir a responsabilidade pelos seus atos, ou seja: homens e mulheres livres proprietários de cativos. Isso não significa dizer que os escravos não seriam punidos. Ao contrário. Todas as posturas que recaíam sobre os cativos tinham a prisão e o açoite como formas de castigo para esse segmento social. Mas todas também acionavam, de alguma forma, seus donos. Parafraseando Ilmar Mattos, o projeto político saquarema colocou o governo da casa sob os olhos do soberano (MATTOS, 1990, pp. 206-231). Assim, não seria provocativo afirmar que, levando em conta a lógica que pautou as relações escravistas sob a égide saquarema, o Estado brasileiro deveria se portar como um feitor no que tange ao controle e à vigilância dos escravos: a palavra final continuava sendo do senhor, e o direito “sagrado” da propriedade (assegurado na legislação) não poderia ser violado. As autoridades do Rio de Janeiro não foram as únicas a ter que lidar com a difícil equação da necessidade da mão de obra escrava executando as mais variadas atividades na rede de serviços urbanos e o imperativo de evitar qualquer tipo de movimentação escrava que pusesse em risco a ordem na capital do Império do Brasil. Vale lembrar que a conturbada década de 1830 foi marcada por um ciclo de movimentos insurretos que começaram a aparecer em diferentes localidades do Império. De acordo com José Murilo de Carvalho, entre os anos de 1831 e 1835, encontram-se revoltas citadinas ocorridas nos maiores centros urbanos do país, cujos atores centrais foram o povo e a tropa (CARVALHO, 2003, p.251). As principais reivindicações desses movimentos incidiam sobre o alto custo de vida nas cidades, o controle de parte do comércio pelos portugueses, a desvalorização da moeda nacional e, no caso da Rebelião dos Malês, o fim da escravidão para um número expressivo da maior cidade escravista do Império do Brasil (REIS, 2003). O que se observou foi que, grosso modo, a postura assumida pelos órgãos responsáveis pela administração do Rio foi 38

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muito semelhante às atitudes tomadas em âmbito local em diferentes lugares do Império do Brasil na conturbada década de 1830, tendo em vista que o que se delineava naquele momento era um projeto de Estado nacional que mantinha a projeção da escravidão para o futuro (ALENCASTRO 2004, p. 17).

Havana Vitoriosos, sobretudo entre o final da década de 1830 e meados da década de 1860, os saquaremas não estavam sozinhos na tentativa de tecer uma fina trama política que sustentou durante décadas a escravidão no Brasil. Contudo, o Império do Brasil não foi o único lugar das Américas a escolher manter a escravidão e o tráfico transatlântico em tempos de forte pressão britânica e do isolamento das localidades ditas escravistas no Novo Mundo. Desde 1791, com a Revolução do Haiti, a estratégica sacarocracia cubana vislumbrou na manutenção do escravismo e na produção de açúcar a relação que colocaria Cuba num novo patamar da economia-mundo. No entanto, como sabido e experimentado pelas autoridades do Rio de Janeiro, a opção pela escravidão também teve consequências cruciais na dinâmica urbana de Havana, que nos anos 1830 passou a compartilhar com o Rio de Janeiro o título pouco honroso de maior cidade escravista das Américas. Na manhã de 20 de março de 1835, o jornal Diário de Havana publicava na primeira página, pelo terceiro dia consecutivo, um ofício expedido pelo capitão geral Miguel Tacón. A peça em questão determinava que habiéndome manifestado el capitán juez pedáneo del barrio de S. Lázaro, que en el día de su cargo se encuentra un crecido número de negros esclavos de ambos os sexos con solo unos simples papeles de sus amos para poder pernotar y vivir donde les acomode, y como nadie es tan fácil como hacer una licencia falsa, y difícil al mismo tiempo el que se puedan conocer todas las firmas de los que las deo; he determinado para evitar dudas, el que los amos de los referidos jornaleros á quienes permiten vivir por su cuenta ó pernotar fuera de sus casas, den dichas licencias visadas por los comisarios de barrio y capitanes de extramuros, que los harás gratis, con lo que se evitará la fuga de muchos, que tal vez existían bajo este refugio14.

Há muito era sabido que, assim como boa parte dos bairros extramuros, San Lázaro servia como local de morada de inúmeros cativos que podiam “pernotar y vivir donde les acomode”, não havendo nada que as autoridades de Havana pudessem fazer a respeito. Controlar a permissão, dada pelos senhores, consentindo que seus cativos pernoitassem “fuera de su casa” também não estava na alçada do mando público da cidade. No entanto, não havia como fazer vista grossa às licenças falsificadas que chegavam aos montes ao gabinete do capitão geral, possivelmente acompanhadas das reclamações de proprietários que foram enganados por seus cativos. Desde o século XVII, a possibilidade de o escravo morar sobre si aparecia nos documentos produzidos pelas autoridades, geralmente acompanhada por juízos negativos. Dessa forma, n.9, 2015, p.31-47

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se o caso dos escravos de San Lázaro reforçava a constatação de que o número de cativos que usufruíam desta prática havia aumentado, as falsificações das licenças expedidas pelos proprietários apontam que nem todos os cativos obtinham autorização senhorial para viver longe de seus amos. Como a prática era afiançada por uma licença aparentemente simples, que continha apenas a assinatura do senhor, vários escravos infringiam as leis adulterando e falsificando documentos que lhes permitiam experimentar outros arranjos de moradia. A leitura completa do ofício permite observar que a preocupação de Miguel Tacón não estava em mapear os locais e as condições de moradia dos escravos que obtinham autorização para viver longe do seu senhor. Uma vez mais, não era a materialidade da vida escrava que estava em jogo. Sua inquietação residia na possibilidade – que, segundo o documento, era cada vez mais frequente – de os escravos fazerem uso das brechas deixadas por essa prática para fugir. Tanto que a saída encontrada pelo capitão geral de Cuba não foi a criação de uma lista contendo os nomes e os endereços dos cativos, mas sim a exigência de que as licenças passassem a ter um visto do comissário de bairro ou do capitão de extramuros, para que a falsificação das respectivas licenças se tornasse mais difícil. Menos que controlar as possibilidades de moradia do escravo urbano, Miguel Tacón objetivava desenvolver uma ferramenta que facilitasse a identificação da tênue fronteira existente entre o exercício dos diferentes arranjos escravos de moradia e a possibilidade da fuga. Se, por um lado, o ofício definia que os cativos que não possuíssem licença subscrita pelo Estado seriam “considerados como cimarrones y conducidos por los comissários y capitanes al depósito de la Real Junta de Fomento, agricultura y comercio”15, por outro, o Estado em questão oferecia gratuitamente o visto por ele exigido, evitando, assim, prováveis transtornos para a classe senhorial. A isenção de taxas para este serviço demonstrava que o objetivo dessa medida era dificultar a vida do escravo, e não a do seu proprietário. Quatro meses depois, o próprio Miguel Tacón foi obrigado a intervir em outra situação na qual a possibilidade do morar sobre si estava colocada, só que agora de forma indireta. No dia 13 de julho de 1835, o capitão geral de Cuba recebeu um ofício escrito por um dos comissários de bairro de Havana descrevendo que en la noche pasada fué aprehendido un negro de nombre Ricardo Carabalí, esclavo de la viuda Luiza Diulf, jornalero [...] dentro del cuarto de una negra Catarina esclava del licenciado en medicina Don Francisco Hernandez con la que llevaba amores y en cuya casa estuve hace meses acomodado el referido negro por que sabia las entradas y salidas francas de la casa16.

O caso amoroso entre o escravo Ricardo e a cativa Catarina só foi descoberto pelo proprietário dela porque na noite referida um cachorro latiu enquanto o cativo entrava furtivamente na casa de sua amada. Incomodado com os latidos, o médico Francisco Hernandez foi, acompanhado por seu filho, verificar o que alardeava seu cão. E qual não foi a sua surpresa ao apanhar um escravo desconhecido na sua casa. Assustado com a descoberta, 40

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Ricardo tentou fugir, mas acabou ferido no braço por uma espada, e logo em seguida preso17. O susto de Francisco Hernandez ao deparar-se com um estranho em sua residência indica que o proprietário de Catarina não sabia das incursões amorosas de sua cativa, muito menos que tal intercurso ocorria, literalmente, debaixo de seu nariz. Ao que tudo indica, Catarina fez da casa de seu senhor o lugar onde vivia e dividia seus momentos mais íntimos, o que assinala que, mesmo sem autorização, a cativa exercia algum tipo de gerência em sua moradia, ainda que essa também fosse a casa de seu senhor. É provável, inclusive, que a escrava tivesse um quarto separado da casa principal, o que facilitaria a entrada velada de seu amante. Tal hipótese permite pensar que o morar sobre si não dependia, necessariamente, da saída da casa senhorial, podendo ser, antes de tudo, uma prática com sentidos simbólicos muito mais eficazes do que a materialidade de outra residência. Por sua vez, o tempo em que Ricardo passara despercebido na casa do médico sugere que sua senhora, a viúva Luiza Diulf, não sabia ou não se importava com o local onde seu escravo passava as noites, contanto que ele lhe entregasse os jornais devidos. Vale lembrar que o caso veio a público graças à denúncia do médico, e não por causa de uma reclamação da viúva em busca de seu escravo desaparecido – observação que reforça a hipótese de que Ricardo cumpria o acordo apalavrado com sua proprietária. Para além do pitoresco que marcou este episódio, existe um ponto de grande relevância nesse documento: o fato de o comissário de bairro afirmar não ser sua “facultat determinar este asunto”18. A isenção do comissário devia-se à dificuldade em definir as infrações que haviam sido cometidas, se é que elas, de fato, existiram. Ainda que aparentemente o carabalí Ricardo não tivesse infringido o acordo com sua senhora no tocante à possibilidade de morar sobre si, ele não tinha autorização para estar na casa da família Hernandez. Sendo assim, se o comissário atendesse ao pedido do médico, ele manteria o escravo preso sob a alegação de invasão de propriedade. No entanto, o cativo em questão não estava violando nenhuma lei, pois ele havia sido recebido na casa durante meses; não era culpa dele se a cativa Catarina estava enganando seu senhor. Além disso, a prisão arbitrária do escravo acabaria prejudicando a viúva-proprietária, que, provavelmente, contava com os ganhos de Ricardo para se manter. Sem saber como proceder, o comissário levou o caso para Miguel Tacón, que, na ilha, era a instância máxima para resolver esse tipo de questão. Infelizmente, não foi possível encontrar o desfecho desta história. A reputação de “mãos de ferro” que Miguel Tacón cultivou em Cuba permite aventar a possibilidade de o capitão geral ter mantido o escravo Ricardo preso por um curto período, ou então obrigado ao pagamento de algum tipo de fiança. De todo modo, esse evento serviu de alerta para os desdobramentos que a prática do morar sobre si poderia ter na Havana de 1830; desdobramentos que, muitas vezes, poderiam deixar as autoridades de mãos atadas. Para evitar que episódios como esse se repetissem, cerca de seis meses depois do ocorrido, o mesmo Tacón sancionou uma lei na qual definia que: n.9, 2015, p.31-47

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[...] todo esclavo que salga de su fondo mas de dos leguas de día y a cualquier hora de noche, lleve precisamente licencia escrita del dueño, mayoral o la persona á cuyo cargo esté, pues de lo contrario será considerado cimarrón, y pagará su dueño cuatro pesos de captura que están designados para estos19.

Logo se vê que Miguel Tacón arrochou posturas municipais elaboradas por seus antecessores. Já que o Estado cubano não podia legislar sobre os acordos firmados entre escravos e senhores, ele tentava gerenciar a circulação dos cativos nos espaços públicos. A partir de janeiro de 1836, todo escravo que se distanciasse mais de duas léguas de sua casa – que poderia ser ou não a residência senhorial –, sem a autorização do proprietário, estaria sujeito à prisão sob a acusação de aquilombamento. E para reaver seu cativo, o senhor deveria pagar uma multa de quatro pesos à Secretaria de Polícia (V. CHATELOIN, 1989. VENEGAS, 2000, pp. 49-65. MENA, 2001). As dificuldades no trato das questões relativas aos arranjos escravos de moradia em Havana estavam longe de ser o maior desafio enfrentado por Miguel Tacón. O mandato de seu principal antecessor, Francisco Dionísio Vives (1823-1832), fora marcado pelo forte desenvolvimento da produção açucareira que, por sua vez, acionara o aumento da importação de africanos escravizados. A maior parcela desses escravos tinha os engenhos de açúcar como destino final, mas o incremento das atividades portuárias de Havana e a própria dinamização da cidade acabaram por criar uma demanda significativa de escravos urbanos. Como pontuado, esses escravos se tornaram a principal mão de obra no espaço citadino, a ponto de praticamente transformarem labor manual e escravidão em sinônimos. Desde a década de 1820, o uso concreto e simbólico dos cativos na execução dos mais variados serviços urbanos desenvolveu uma geração de homens brancos e livres (quase todos criollos) que sem opção, e/ou avessos às tarefas que apareciam, preferiam gastar seu tempo com jogos de azar ou brigas de galo, cada vez mais constantes em Havana. A falta de mando permitiu que a mesma facilidade que os cativos encontravam para falsificar documentos e enganar as autoridades responsáveis pela ordem nos bairros extramuros possibilitasse a abertura de fábricas de pólvora e a utilização de guano na construção das casas mais pobres, combinação que poderia ter consequências trágicas, como no caso do incêndio que destruíra boa parte de Jesus Maria em 1828. Como se tudo isso não bastasse, a pouca vigilância nos espaços públicos da cidade fez com que as principais fontes de água potável de Havana (como a Zanja Real) se transformassem tanto em local de banho e diversão de cativos, libertos e transeuntes, mas também em foco de epidemias que mataram milhares de habitantes. Em nome do projeto sacarocrata, a “Havana de Vives” mais parecia um carro desgovernado: faltava pulso em seu comando. Mas firmeza era o que sobrava a Miguel Tacón. O espanhol chegou à ilha em 1834 para assumir o posto de capitão geral de Cuba e ficou no poder durante quatro anos. Embora sua passagem tenha sido relativamente curta, a historiografia que analisou o desenvolvimento 42

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urbano de Havana é uníssona ao eleger o governo de Tacón como o agente catalisador das mudanças urbanísticas da capital cubana. Escolhido para zelar pela boa governança de toda a ilha, Tacón fez de Havana “a menina dos [seus] olhos”. O reordenamento urbano empreendido na cidade foi uma das maneiras que o capitão geral encontrou para materializar as mudanças efetivas e simbólicas que a Espanha pretendia fazer em toda a ilha. Filho de funcionário do governo espanhol, Miguel Tacón y Rosique ingressou jovem na carreira militar, seguindo a tradição de sua família. Seu primeiro posto de destaque no Novo Mundo foi de governador de Popaýan, em Nova Granada, entre 1809 e 1811. Ainda que tenha sido derrotado pelo movimento emancipacionista, a lealdade à coroa espanhola fez com que Tacón assumisse outros cargos de comando nos dois lados do Atlântico hispânico (DE LA RIVA, 1963, pp. 13-96). Quando foi designado capitão geral de Cuba, Miguel Tacón não só possuía a experiência administrativa necessária, como parecia ter estabelecido uma importante rede de contatos, da qual faziam parte diversos generais que tinham combatido os insurgentes americanos. Muitos estudiosos apontam que ele teria galgado o cargo de capitão geral de Cuba após expressar apoio à rainha Maria Cristina depois da morte de Fernando VII. Definido como um liberal progressista, o novo capitão geral tinha a difícil tarefa de governar a principal possessão hispânica no Novo Mundo em um contexto no qual o conceito de liberdade tinha sentidos e usos diversos. Grosso modo, as mudanças que Tacón empreendeu na cidade eram parte de uma política mais ampla da coroa espanhola, que desejava retomar o controle da ilha. Nas palavras da pesquisadora Felicia Chateloin, Tacón funcionou como uma espécie de “freio à oligarquia criolla” (1989, p. 60), embora seu governo tenha sido marcado por importantes obras de infraestrutura na ilha. Quando assumiu o cargo, em 31 de maio de 1834, Miguel Tacón tinha um objetivo muito claro: construir uma Havana ordenada, disciplinada, mas, sobretudo, subordinada à coroa espanhola. A hierarquia de seus propósitos pôde ser atestada em 17 de julho de 1834, quando seu governo não havia completado dois meses. Nessa data, o novo capitão geral ordenou a extradição de Jose Antonio Saco para Trinidad. Na época, Saco era uma das principais vozes da intelectualidade criolla de Cuba, mas, ao contrário de boa parte dos seus conterrâneos, era um crítico ferrenho da escravidão e fazia uso da imprensa para manifestar seu ponto de vista. O curioso é que, embora estivessem em lados opostos da relação colonial – o que, de certa forma, justificou a extradição –, tanto Antonio Saco como Miguel Tacón desejavam uma Havana “iluminada”. Boa parte dos escritos de Saco defendia uma cidade disciplinada pela educação e pelo trabalho, em que não haveria espaço para a jogatina e a libertinagem. Em certa medida, esses eram os planos de Tacón. No entanto, mais importante do que levar a cabo seu projeto de transformação urbana, Tacón precisava deixar claro que a Espanha não estava disposta a ceder muito espaço para os colonos. Nesse sentido, a extradição de Antonio Saco talvez tenha sido a medida mais radical tomada pelo novo capitão geral. No entanto, durante os quatro anos em que ficou no comando de Cuba, Tacón esteve em disputa aberta n.9, 2015, p.31-47

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com o conde de Villanueva, que, por ocupar o cargo de intendente geral, acabou tornando-se o criollo mais influente da ilha e um dos maiores defensores dos interesses da sacarocracia. Em inúmeras ocasiões, Tacón e Villanueva fizeram do espaço urbano motivo de suas disputas políticas. Os debates que marcaram a construção da ferrovia foram exemplos desses conflitos, que também poderiam ser atestados em ações mais simbólicas, como a construção e até mesmo o batismo de obras públicas (CHATELOIN, 1989, p. 41). Mas se havia algo em que as duas maiores autoridades de Havana concordavam era no uso indiscriminado de escravos. Assim como seu antecessor, Tacón facilitou a compra dos negros emancipados pelos senhores de engenho da ilha, e continuou usando-os nas obras públicas. Junto com os cativos presos por cimarronage, os emancipados compuseram a mão de obra que transformou a capital cubana numa cidade mais ordenada. Aquedutos, passeios, teatros, Jardim Botânico e ferrovia (mesmo que a contragosto) foram construções que levaram a marca de Tacón. Seu governo alterou os padrões materiais de Havana. E foi entre uma preocupação ou outra em relação ao espaço público que se modificava que Tacón acabou legislando, indiretamente, sobre questões relativas à vida escrava. Além de legislar sobre o funcionamento dos mercados e da região alfandegária de Havana, ele fez intervenções estruturais nos bairros extramuros da cidade, com o intuito de transformá-los numa região que pudesse ser habitada por outras pessoas, e não só por cativos e libertos. Outra função dessas obras era viabilizar o trânsito entre a cidade propriamente dita e o restante da ilha por meio da construção de ferrovias, que desde 1837 já existiam na cidade (ZANETTI. GARCIA, 1998). E como ocorria em Havana desde muito, tais obras foram feitas por meio do trabalho escravo. A mesma determinação que fez com que Tacón conseguisse empreender as obras em Havana o transformou numa figura pouco querida na cidade. O degredo de Antonio Jose Saco no primeiro ano de seu governo foi o primeiro de uma série de incidentes que o colocaram contrário aos interesses da oligarquia criolla. Os entreveros com a elite sacarocrata acabaram resultando no curto governo de Tacón, mas as heranças que ele deixou para a cidade podiam ser observadas tanto por meio do aumento da população escrava da cidade, como por meio do incremento que ele fez no aparelho urbano de Havana.

Considerações finais Durante a década de 1830, o Rio de Janeiro e Havana foram cidades em que era possível vislumbrar a escolha feita por suas respectivas elites, que no caso de Havana contou com o apoio da Metrópole. A fim de manter a competitividade no mercado internacional, Brasil e Cuba não só mantiveram a escravidão como criaram uma série de estratégias para que o cativeiro continuasse sendo alimentado pelo tráfico transatlântico de africanos escravizados, a despeito da crescente pressão inglesa e dos movimentos insurretos promovidos pelos próprios 44

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cativos. Ainda que a maior parte dos escravos continuasse alocada nas zonas agrícolas, o Rio e Havana mantiveram sua dependência em relação aos cativos citadinos. Por um lado, esses escravos eram responsáveis pelo transporte e pelo embarque do café e do açúcar produzidos nas hinterlândias das duas cidades. Por outro, o incremento econômico gerado pela produção monocultora escravista dinamizou parte da rede de serviços urbanos, que, como era de se esperar, continuou sendo servida por escravos. À medida que aumentava o segmento escravo das duas urbes, crescia a preocupação das autoridades em controlar cativos que, para trabalhar, precisavam desfrutar de maior mobilidade de trânsito. Posturas, leis, decretos e bando de buen gobierno de Havana foram elaborados para que as cidades que dependiam dos escravos para funcionar não se tornassem reféns deles. A rede de interesses que sustentou a escravidão via tráfico no Brasil e em Cuba até meados da década de 1840 estava tão bem engendrada que nem mesmo a transitoriedade desfrutada pelos escravos urbanos conseguiu rompê-la. Mesmo porque, como afirmou Mary Karasch, as cidades tinham “muros invisíveis” que mantiveram a escravidão como uma instituição válida até sua abolição final (2000). E esses muros eram resultado não só do pacto feito entre a classe senhorial e o Estado, mas também das ações estatais que souberam respeitar um dos condicionantes basilares do escravismo moderno: o fato de o escravo ser, antes de qualquer coisa, uma propriedade. No entanto, essa propriedade, ou esse “bem semovente”, como foi tachado inúmeras vezes, se movia. Fosse para carregar sacas de café e açúcar até o cais, ou então vendendo angu e refrescos pelas quentes e úmidas ruas do Rio de Janeiro e de Havana, os escravos transitavam e faziam desse trânsito uma arma de luta e de sobrevivência em duas sociedades que compartilhavam a opção pela escravidão. Se, por um lado, as leis formuladas pelas autoridades das duas cidades apontam o forte pacto feito entre elites e poderes públicos pela manutenção do escravismo em escala atlântica, por outro lado, os homens e as mulheres que estavam submetidos ao cativeiro no Rio de Janeiro e em Havana encontraram diferentes maneiras de ressignificar suas vidas e, muitas vezes, fugir aos padrões e normas estabelecidos por aqueles que fizerem as vezes de feitores. Notas 1 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante AGCRJ). Códice 18.1.66. Editais de Postura 1830-1836. 7ª postura (1834) 2 AGCRJ. Códice 18.1.66. Editais de Postura 18301836. 6ª postura (1834)

AGCRJ. Códice 18.1.66. Editais de Postura 18301836, 8ª postura (1834). 3

4 AGCRJ. Códice 18.1.66. Editais de Postura 18301836 (9ª postura, 1834). 5

6

Idem. Seção Polícia.

7

Idem.

8

Idem. Seção polícia.

9

Ibidem.

AGCRJ, Códice 6.1.28. Projecto de postura em additamento às posturas de 11 de setembro de 1838.

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11

Idem.

Idem, posturas 1ª a 5ª (1834).

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Idem, Ibidem. Fica claro que os termos de abonação e fiança, abundantes na década de 1820, haviam perdido seu sentido, pois as viagens feitas pelos cativos-mascates devem ter se convertido em boa oportunidade para a fuga.

12

13

AGCRJ, Códice 6.1.28.

Archivo Nacional de Cuba (doravante ANC). Fundo: Gobierno Superior Civil. Legajo 937, expediente 33067. Destaques meus.

14

15

Ibidem.

ANC. Gobierno Superior Civil, Legajo 937, Expediente 33075.

16

17

Idem.

18

Idem.

ANC. Gobierno Superior Civil, legajo 998. Expediente 33082, 1835.

19

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UMA PORTA PARA O MUNDO ATLÂNTICO

Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII A door to the Atlantic world: africans in the Candelária parish in the city of São Sebastião do Rio de Janeiro, 18th century Carlos Eugênio Líbano Soares Professor Adjunto na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. [email protected]

RESUMO: Este artigo faz uma análise de Nossa Senhora da Candelária de São Sebastião do Rio de Janeiro, freguesia de uma das cidades mais importantes do Estado do Brasil no século XVIII. A região tinha um perfil socioeconômico semelhante ao de outras áreas portuárias e comerciais das cidades da América portuguesa. Nosso foco concentra-se na população africana registrada na freguesia, conforme os livros eclesiásticos de batismo, casamento e óbito. Palavras-chave: século XVIII, africanos, cidade do Rio de Janeiro.

n.9, 2015, p.49-62

ABSTRACT: This article analyses the Nossa Senhora da Candelária de São Sebastião do Rio de Janeiro, a parish from one of the most important cities of the Brazilian State, in the 18th Century. The region had a socioeconomic profile similar to those of other ports and trade areas in cities of Portuguese America. Our focus concerns the African population registered at the parish according to the ecclesiastical records of baptisms, marriages and deaths. Keywords: 18th Century, africans, city of Rio de Janeiro.

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io de Janeiro e Salvador representam as principais experiências urbanas da América portuguesa no século XVIII1. Nesse período, o ouro e os diamantes das Minas financiaram a primeira revolução urbana colonial, a formação de uma sociedade muito diversa do mundo agrário hegemônico dos séculos XVI e XVII. Apesar da grande quantidade de estudos sobre o século XVIII, particularmente de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia (como Salvador era chamada), ainda há muitos pontos obscuros. O Rio de Janeiro teve um papel central em um dos setores mais importantes para a reprodução da economia colonial: o tráfico de escravos africanos. Estudos mais recentes apontam que dois milhões de africanos foram trazidos para o Brasil nessa centúria, cerca de metade do total importado em mais de 350 anos de tráfico atlântico2. Do Rio, esses africanos eram redistribuídos para boa parte do Brasil. A maioria esmagadora dessas pessoas era desembarcada no Rio pela freguesia da Candelária. Ali esses africanos eram alimentados, tratados de suas doenças, batizados e vendidos nos armazéns à beira-mar. Esses entrepostos de milhares de homens, mulheres e crianças ficaram marcados por esta presença. Certamente, a maioria dos africanos que passaram pela freguesia não foi batizada, não se casou e também não foi enterrada nela. Mas somente esta presença residual mudou a natureza da região, criando uma “pequena África” no seio da cidade.

Qq No início do século XVIII, a cidade do Rio de Janeiro atravessava um caudal de mudanças. A principal se relacionava com a descoberta do ouro no “sertão” e o redirecionamento das rotas do tráfico. O tráfico de africanos teve início no Rio na década de 1580, quinze anos após a fundação da cidade (ABREU, 2011). O porto do Rio torna-se, então, escala obrigatória do trato com Buenos Aires, na rota para as minas de prata de Potosí. Os engenhos de açúcar do Rio consumiam escravos, geralmente da África Central, no século XVII, mas a demanda era pequena (ABREU, 2011). A notícia da descoberta do ouro provocou uma corrida de mineradores e de escravos para os sertões (BOXER, 2000, pp. 189-227). Desde os primórdios, o desembarque de africanos era feito na Rua Direita, a principal da cidade, na freguesia da Candelária. E a grande maioria desses escravos ia para as minas. Os relatos de viajantes mostram que, no início do século XVIII, a Candelária tinha se tornado um imenso empório da mercadoria negreira, nas portas da cidade. Em 1711, o tipógrafo Jonas Fink, que chegou ao Rio poucos dias antes que a cidade caísse em mãos dos franceses, dá conta da já enorme presença africana: Há cerca de oito mil escravos negros na cidade, todos vivendo em condições miseráveis. Esses cativos, desde que aprendam o Pai Nosso e sejam borrifados com água benta, são facilmente aceitos na Igreja Católica. Todos trazem pendurados no pescoço, como sinal de sua fé cristã, imagens de Santo Antônio, de São Francisco, etc (FRANÇA, 1999, p. 69). 50

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Em 1747, o abade francês René Courte de La Blanchardière visitou a Candelária e registrou o costume de se venderem africanos nas portas das casas da Rua Direita: Quando caminhamos pela rua, vemos porções de negras e negros sentados à porta da casa de seus donos, completamente nus, pacientemente à espera de que algum transeunte os compre e os mude de cativeiro. Eles são trazidos da Guiné pelos portugueses e vendidos para trabalhar nas minas. Às vezes são comprados pelos espanhóis de Buenos Aires e levados para o Peru; esse comércio, porém, é de contrabando. Nosso calafate mestre, de nacionalidade espanhola, comprou um, de 13 ou 14 anos, por 150 piastras. Esse pobre infeliz, quando estávamos no porto, chorava continuamente e não queria alimentar-se, pois, como confessou mais tarde ao seu dono, temia que quiséssemos engordá-lo para depois comê-lo (FRANÇA, 1999, p. 93).

A Candelária era a porta do Rio para o mundo atlântico e até a década de 1770, o principal centro de compra e venda de escravos na cidade. Na primeira metade do século XVIII, o local abrigava os edifícios mais importantes da cidade. Entre eles, o Palácio do Governador, conhecido atualmente como Paço Imperial, e a Alfândega e seu trapiche, onde toda mercadoria importada tinha de pagar seus impostos, inclusive os escravos. Outro conjunto importante era o do Convento do Carmo, que data dos primórdios da fundação da cidade. Os comerciantes de “grosso trato” concentravam-se no Largo do Carmo, depois Largo do Palácio, onde mais tarde se erguerá o Arco do Teles, principal centro comercial da cidade no final do século XVIII. A freguesia da Candelária foi criada em 1634, a segunda na cidade depois da Sé ou de São Sebastião. As fronteiras da Candelária no século XVIII iam da Rua Direita até a Rua dos Ourives (atual Miguel Couto) e, no sentido norte-sul, até a Rua da Misericórdia, próximo ao Morro do Castelo3. Depois, abarcava o litoral da Prainha (atual Praça Mauá) e do Valongo que, em 1751, foram desmembrados para formar a freguesia de Santa Rita4. E pelo sul chegava à Ajuda, que, em 1751, seria separada para formar a freguesia de São José. Dessa forma, a Candelária era, fundamentalmente, uma região de comércio marítimo de extrema importância na época, o que define com muita força a natureza da sua mão de obra. Mas o registro de batismo em grande parte reflete a natureza de ponto de escala para o mercado consumidor das Minas, e não o perfil definitivo da população africana. TABELA 1 CANDELÁRIA: BATISMO DE ESCRAVOS AFRICANOS POR NAÇÃO (1713-1717) NAÇÕES ÁFRICA OCIDENTAL Cabo Verde Mina* Gentio da Guiné ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL Negro de Angola Loango Total n.9, 2015, p.49-62

Homens 158 1 156 1 5 3 2 163

% 53 100 54 25 100 100 54

Mulheres 141 0 138 3 0 0 141

% 47 0 46 75 0 0 46

Total 299 1 294 4 5 3 2 304

* Inclui mina, negro mina, negro mina do gentio da Guiné, mina do gentio da Guiné e preto mina.

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Na Tabela 1 vemos a sistematização do registro dos batismos de escravos africanos na freguesia da Candelária entre 1713 e 1717. Por ela, constatamos a forte presença dos africanos ocidentais, principalmente os chamados da nação Mina, em comparação com a nação Guiné, normalmente a mais numerosa nos primórdios do século XVIII. Nesses registros, os mina chegam a 96% de todos os africanos batizados na Candelária nos cinco anos assinalados. Mesmo sabendo da ausência de registros de batismo para os angola, que eram batizados no bispado de Luanda, esta forte presença de africanos ocidentais certamente indica o vigoroso comércio entre Bahia e Rio no início daquele século, o que vai marcar os cem anos seguintes. A nação Guiné é, no entanto, uma referência reiterada no Rio de Janeiro do século XVIII. Mesmo sabendo da metamorfose pela qual o termo passou desde o século XVI, podemos intuir que Mina e Guiné não se confundem no Rio setecentista. A partir do final do século XVII, com a criação do bispado de Angola, os escravos embarcados em Luanda passam a ser obrigatoriamente batizados antes de entrarem a bordo (RUSSELL-WOOD, 2005, p. 193). De qualquer maneira, alguns poucos angola não eram batizados na África, ou havia dúvidas se isso havia ocorrido; então, estes eram levados a batismo sub conditioni, o que indicava alguém que não tinha sinais de haver recebido o sacramento5 – ou podiam ser angolas que não vinham de Luanda, como indicou Miller (2002, p. 29). Outro importante escoadouro de cativos ao norte de Angola era Loango, como explicou o mesmo autor: A outra nação Centro-Ocidental é a de Loango, um nome muito familiar nos registros de batismo do Rio da primeira metade do século [XVIII]. Nem sempre um termo de Nação corresponde a um habitante de determinado reino ou estado (pode ser alguém escravizado por povos daquela região), mas pelo menos indica que ele foi embarcado na dita área. A região de Loango era o palco das chamadas rotas Vili, mantidas pelas etnias Teke, e que enviavam escravos para amplas áreas da costa norte do Congo e até ao sul (MILLER, 2002, pp. 56-57).

Depois de Angola, Loango vai se tornar a região da África Centro-Ocidental mais registrada nos livros de batismo do Rio de Janeiro no século XVIII. Em seguida vemos a nação Cabo Verde. O arquipélago de Cabo Verde desde muitas décadas era um entreposto importante no tráfico da África Ocidental para o Brasil, principalmente da Alta Guiné. Sempre devemos frisar que as nações da escravidão têm pouca relação direta com as etnias de origem na África6. Elas guardam, possivelmente, um forte componente do contexto regional africano e, sobretudo, do padrão do tráfico operante. Por isso, devemos entender seus significados nestes casos específicos, apesar da existência das grandes nações (que chamaremos de metanações), como Angola e Mina, que praticamente dominam o registro de cidades como Rio de Janeiro e Salvador no início do século XVIII. Em nossa hipótese, a presença muito forte dos guiné no Rio conecta-se com o anterior e importante tráfico de Recife para essa cidade – inclusive no século XVII – e que aos poucos 52

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foi perdendo força com a rápida ascensão da Bahia a partir de 1680. Somente um estudo do tráfico entre Recife, Bahia e Rio nesse período poderá elucidar o problema. Uma divergência nos registros de Salvador e do Rio de Janeiro no caso em tela é a questão de gênero. Enquanto em Salvador as mulheres são mais de 52% dos africanos recém-chegados, no Rio de Janeiro não chegam a 47%. Esta diferença sofrerá reparos nos anos seguintes, mas certamente se liga ao vigoroso mercado de trabalho feminino urbano de Salvador – a maior cidade da colônia – e ao fato de o Rio estar em outro patamar de desenvolvimento econômico. A segunda entrada da Candelária no registro cobre o período de 1725 até 1730 (Tabela 2). É apenas um fragmento, mas ilustra que os benguela também não passavam pelo batismo na África como os angola. TABELA 2 FREGUESIA DA CANDELÁRIA: BATISMO DE AFRICANOS POR NAÇÃO 1725-1730 NAÇÕES ÁFRICA OCIDENTAL Gentio da Mina* ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL Benguela Total

Homens 5 3 0 0 8

Mulheres 0 2 0 1 3

Total 5 5 0 1 11

* Inclui “gentio da Costa da Mina”.

Continuando na Candelária, entre os anos de 1734 e 1744 o registro de batismo persiste em mostrar a presença maior dos africanos ocidentais de nação Mina (Tabela 3). TABELA 3 CANDELÁRIA: BATISMO DE ESCRAVOS AFRICANOS POR NAÇÃO 1734-1744 NAÇÕES ÁFRICA OCIDENTAL Mina Cabo Verde Gentio da Guiné Coura ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL Angola Total

Homens 60 46 14 0 1 3 3 64

% 49 44,3 77,8 0 100 75 49,7

Mulheres 64 58 4 2 0 1 1 65

% 51 55,7 22,2 100 0 25 50,3

Total 124 104 18 2 1 4 4 129

Assinalamos uma presença numericamente insignificante, mas importante do ponto de vista das estratégias do tráfico: é raro haver um homem de nação Coura. Os coura eram parte integrante da população escrava nas Minas, mas, paradoxalmente, quase não apareciam no registro da escravidão no Rio ou na Bahia7. Nossa hipótese é que eles vinham no comércio negreiro inglês que abastecia os mineradores de forma clandestina nos primórdios do século XVIII, oriundos da região de Coromanty, perto da feitoria negreira inglesa de Cape Cost (ELTIS, 2000, p. 243). A presença dos angola nos registros de batismo do Rio sempre foi n.9, 2015, p.49-62

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maior que na Bahia, o que possivelmente indica maior diversidade de origem desta nação no caso carioca do que no baiano. De qualquer forma, mais de 80% dos africanos neste registro são mina. No entanto, é importante reter que muitos africanos, citados apenas como “adultos”, não tiveram sua nação identificada, o que com certeza indica a imprecisão da fonte. Aparentemente, os mina eram mais registrados no Rio do que outros grupos, mas esta provável particularidade termina nos registros de casamento e óbito. Como mostrou Mariza Soares (1997), os mina tinham lugar estratégico na população africana da cidade do Rio. Na Tabela 4, vemos o registro de enterramentos de africanos na Candelária entre 1724 e 1736. Os registros de óbitos são os mais importantes para mostrar a população efetivamente residente na cidade ou em áreas limítrofes, na medida em que muitos africanos batizados podiam ser vendidos para o interior, onde, de fato, a maioria da população africana residia. TABELA 4 CANDELÁRIA: ESCRAVOS AFRICANOS NO REGISTRO DE ÓBITO POR NAÇÃO: 1724 - 1736 NAÇÕES ÁFRICA OCIDENTAL Cabo Verde Mina* Guiné ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL Angola Ambaca Benguela** Caconda Congo Ganguela Loango Monjolo Muxicongo Quissamã São Tomé ÁFRICA ORIENTAL Moçambique Total

Homens 75 7 38 30 113 81 0 12 0 10 3 2 3 1 1 0 2 2 190

% 44,4 87,2 44 43,8 62,8 62 0 57,2 0 83,4 75 100 100 100 100 0 0 100 54,4

Mulheres 94 1 54 39 67 50 1 9 1 2 1 0 0 0 0 3 0 161

% 55,6 12,8 56 56,2 37,2 38 100 42,8 100 16,6 25 0 0 0 0 100 100 0 45,8

Total 169 8 92 69 180 131 1 21 1 12 4 2 3 1 1 3 2 2 351

*Inclui Costa da Mina **Inclui um benguela do Gentio da Guiné

Em um quadro absolutamente diferente dos batismos, vemos que a população africana escrava da cidade do Rio de Janeiro naqueles anos era majoritariamente Centro-Ocidental, mas pouco menos da metade (cerca de 49%) era da África Ocidental, sendo que os mina respondem por ampla margem deste grupo. A diversidade de nações da África Central é uma oportunidade única para se entender o emaranhado étnico do Rio africano. Os ambaca8 habitavam o leste de Angola, e raramente aparecem na documentação coeva (KARASCH, 54

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1987, pp. 19 e 373). Naquela altura, eles eram vítimas das incursões dos guerreiros do reino Lunda, um grande estado do centro da moderna Angola e que faziam negócios com os portugueses de Luanda em vidas humanas9. Os caconda provavelmente vinham do sudeste de Angola, das regiões mais distantes do litoral. Possivelmente eram embarcados no porto de Benguela (KARASCH, 1987, p. 377), mas com certeza não eram confundidos com os benguela, a maior nação do Rio de Janeiro entre o final do século XVIII e o fim do tráfico, em meados do século XIX. Caconda era local de frequentes incursões portuguesas em meados do século XVIII. No início do XVIII, a nação Congo pouco tinha a ver com o poderoso reino que séculos antes era soberano da África Central. As guerras civis tinham reduzido o antigo estado a um caos de tal dimensão que nem os portugueses, que costumavam lucrar nesses momentos com os prisioneiros, tinham segurança para fazer seu comércio de carne humana (THORNTON, 1997, pp. 55-74). De acordo com Mary Karasch, os ganguela vinham do sul de Angola e frequentemente eram engolfados na metanação Benguela (KARASCH, 1987, p. 21). Entretanto, eles eram identificados como provenientes do leste e do sul de Bié e chamados de nganguelas. O termo ganguela era pejorativo como em outros tempos seria nagô, significando alguém que pode ser escravizado, usado pelos povos quimbundo do norte e do noroeste de Angola (MILLER, 1997, p. 58). Eles teriam sido, de acordo com Miller (1988), os primeiros falantes de línguas banto que chegaram ao Brasil para trabalhar nas plantações de açúcar no final do século XVI, o que incluía a Bahia. Na Candelária, enterravam-se três homens ganguela para cada mulher, o que demonstra o padrão de superioridade masculino do tráfico da costa centroocidental da África na era moderna. Se foram transportados africanos centro-ocidentais da Bahia para o Rio na era do ouro, ainda é um mistério. Monjolo, conforme Karasch (1987, p. 17), era o nome pelo qual ficaram conhecidos os povos Teke ou Tio, que vinham da região noroeste do Congo, próximo ao litoral de Loango, e também podiam ser levados ao mar pelas rotas Vilis que abasteciam Loango, como explicamos acima. Eles eram identificados pelas marcas étnicas no rosto, não tão comuns entre os povos de Angola10. No século XVIII, ainda se usava o etnônimo anjico ou angico para os Tio e, para Karasch, somente no XIX apareceria o termo monjolo. Aparentemente, esses três homens assinalados na Tabela 5 (mais abaixo) desmentem a afirmação. Os muxicongo eram oriundos de São Salvador, a antiga capital do extinto reino do Congo, também conhecida por Mbanza Congo (KARASCH, 1987, p. 374 e REDINHA, 1969, p. 9). Com a desagregação do reino, populações inteiras fugiram da cidade, que em meados do século XVIII era quase uma ruína. É possível que tenham chegado ao litoral pelas rotas Vili. Já Quissamã é referente a um grupo étnico bastante organizado, cujo território ficava a sudeste de Luanda (MILLER, 1988, pp. 37-38 e HEINTZE, 1972, pp. 407-418). Nesse período, Kissama ou Quissamã tinha se tornado um abrigo para aqueles que fugiam dos caçadores n.9, 2015, p.49-62

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de escravos que infestavam os sertões de Angola. Estes refugiados formavam exércitos que enfrentavam as razias escravagistas. São Tomé era escala dos navios que saíam do litoral centro-sul de Angola e rumavam para o Brasil. As embarcações faziam uma rota circular ao norte da Corrente de Benguela, e em seguida desciam para o litoral do Brasil. Na ida para a África, dava-se o oposto: a perna sul obrigava os navios a fazerem uma meia-lua com o vértice para baixo, e chegavam a Benguela pelo acesso meridional. A produção de açúcar do arquipélago de São Tomé tinha cessado desde a revolta de 158011, e no século XVIII, o projeto colonial na ilha sustentava-se com os direitos (impostos) dos escravos que por ela trafegavam. Moçambique é uma metanação da África Oriental no Rio relativamente tardia e pouco estudada pelos pesquisadores12. Somente no século XIX uma grande parcela de moçambiques chegaria ao Rio de Janeiro, mesmo assim reduzidos ao mundo rural do café13. Mas a presença desses moçambique na Candelária no início do século XVIII é derivada de embarcações da Carreira da Índia, que traziam africanos para a Bahia no retorno de sua longa viagem, segundo Antonil (2007, p. 98). Poderíamos, aqui, ensaiar uma breve comparação com a cidade da Bahia. Infelizmente, não existem livros de óbito da freguesia portuária da Conceição da Praia para a primeira metade do século XVIII, mas temos um livro de enterros da freguesia da Sé da Bahia que cobre um intervalo temporal muito próximo, entre 1735 e 1762. Nesse livro, vemos o esperado predomínio de africanos ocidentais na população escrava e liberta, com cerca de 72% do total de africanos. Entretanto, a população angola sozinha cobre 26% do total de africanos enterrados na Sé em quase 30 anos e quase todos os africanos centro-ocidentais. No Rio de Janeiro, os angola eram a maior nação não somente entre os oriundos da África CentroOcidental no período, mas no conjunto, invertendo e tornando esta parte da África a mais importante no interior da gente escrava e/ou liberta carioca. Na Bahia, os vindos da África Ocidental, mesmo no livro de óbito que obriga a registrar aqueles de nação Angola, perfazem mais de dois terços dos africanos que viviam na cidade, enquanto no Rio os ocidentais não chegam à metade, em uma cidade escrava majoritariamente de línguas banto – em redução, de qualquer maneira, do perfil esperado como hegemônico dos angola no Rio14. Em outro nível de análise comparada, podemos utilizar os registros da Santa Casa de Misericórdia da Bahia na segunda metade do século XVIII, referente ao chamado Banguê dos Escravos (Tabela 5) – instituição mantida pela Santa Casa para recolher cadáveres de africanos mortos nas ruas da cidade15. Nos primeiros períodos cobertos pelo Banguê na Bahia, no século XVIII, vemos a presença majoritária dos centro-ocidentais, refletindo o antigo domínio destes. Em outras palavras, a última geração de africanos angola do século XVII estava morrendo em plena vigência da “onda mina” que invadiu a cidade da Bahia desde o crepúsculo daquele século16. 56

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TABELA 5 AFRICANOS POR NAÇÃO ENTERRADOS PELA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DA BAHIA (livro de BANGÜÊ) 1749-1799 Nação ÁFRICA C.OCIDENTAL Angola Benguela Cabinda Congo Muxicongo Gabão Mbunda Molembo São Tomé Ilha do Príncipe Total ÁFRICA ORIENTAL Moçambique ÁFRICA OCIDENTAL Jeje Nagô Mina Gentio da Costa Guiné Aussá Arda Benim Calabar Cabo Verde Fulani Tapa Total Total geral

1741 1743

1746 1749

1749 1753

1758 1764

1015 16 2 3 -

782 22 1 2 2

182 21 1 1 2

725 30 4 1 1 17 1

1036

804

17

34

11

783 -

1 798 -

1 784 1837

2 801 1639

1764 1772

1772 1780

1780 1792

1792 1799

Total

%

1201 206 5 7 -

886 584 3 7 1

2191 1231 9 2 9 -

1010 341 6 17 6 3

6195 2413 1 27 2 18 1 1 46 7

39,1 15,2 0,006 0,17 0,01 0,1 0,006 0,006 0,2 0,04

55

35

23

93

2

219

1,3

20 2 127 -

105 27 688 271

413 80 462 90

181 34 816 14

239 143 2019 1

440 99 551 12

1398 385 4663 388

8,8 2,4 29,4 2,4

1 6 1 1 -

4 2 5 2 -

6 1 2 -

1 4

1 1 2 1

6 7 1 1

11 6 1 17 6 8 1 6

0,06 0,03 0,006 0,10 0,03 0,05 0,006 0,03

376

1938

2508

2554

5942

2502

15820

100,0

Fonte: Carlos B. Ott. Formação e evolução étnica da cidade de Salvador (tomo II) Salvador, Tipografia Manu, 1957. Fontes primárias: Livros do Bangüê da Santa Casa da Misericórdia. Vol. 1259 (1749-53), 1260 (1758-64); 1261 (1764-1772); 1262 (1772-80); 1263 (1780-92); 1264 (1792-1815) [usado só até 1799].

Não deixa de ser curioso que os moçambique sejam, em meados do século XVIII, tão numerosos nos registros de enterro quanto os benguela na Bahia. Talvez a taxa de mortalidade desses africanos vindos de tão longe seja muito mais alta que a dos benguela, mas faltam estudos sobre africanos orientais para que possamos ser mais afirmativos. Em uma leitura comparada do conjunto dos registros do Banguê da Santa Casa da Bahia com o da Candelária, como a que ensaiamos aqui, não se pode esquecer que estamos n.9, 2015, p.49-62

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lidando com uma única freguesia do Rio de Janeiro para um período mais curto (entre 1724 e 1736) e com um conjunto de dados de mortalidade referentes à Bahia em quase 50 anos (de 1749 até 1799), períodos desiguais e também um pouco afastados. Ainda assim, vemos que os dados são coincidentes: no Rio, os africanos ocidentais (com maior distribuição entre as grandes nações) eram 48% do total de africanos para 51% dos centro-ocidentais, um relativo equilíbrio. Na cidade da Bahia, os ocidentais – com notável predomínio dos mina – representavam 48% dos africanos, para uma maioria de 56% de centro-ocidentais, enquanto os angola sozinhos representavam 72% do total de oriundos da África Central. Assim, no apogeu da Era do Ouro, em meados do século XVIII, nas cidades do Rio e da Bahia, cogitando que as taxas de mortalidade de escravos de ambas fossem semelhantes, as populações centro-ocidentais eram ligeiramente mais numerosas, não apenas como remanescentes de eras passadas de hegemonia angola, mas também fruto do tráfico ainda forte dessas regiões para a América portuguesa17. Robin Blackburn afirma que, nas propriedades açucareiras do Caribe do século XVIII, a mortalidade mais alta era de homens africanos, com uma média de 45 anos de expectativa de vida, pouco menor que a das mulheres africanas, que configuravam o grupo com mortalidade mais alta. Assim, os africanos chegavam entre 15 e 20 anos na América e viviam por pouco mais de duas décadas. No Brasil, as taxas de mortalidade de escravos são ainda maiores nas regiões mineiras, enquanto na escravidão urbana tendiam a diminuir. Na Candelária do final do século XVIII, entre 1793 e 1800, como vemos na Tabela 6, os africanos ocidentais desapareceram por completo dos termos de óbitos, abrindo caminho para a volta da hegemonia dos centro-ocidentais. Apesar dos números, é possível observar que a maioria dos africanos é de mulheres – uma constante nos registros urbanos que se repete neste caso. TABELA 6 CANDELÁRIA: ESCRAVOS POR REGISTRO DE ÓBITO AFRICANO POR NAÇÃO 1793 - 1800 NAÇÕES ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL Angola Benguela Cabundá Congo Rebolo ÁFRICA ORIENTAL Moçambique Total

Homens 16 11 1 1 2 1 1 1 17

% 57,2 55 34 100 66 100 100 100 59

Mulheres 12 9 2 0 1 0 0 0 12

% 42,8 45 66 0 34 0 0 0 41

Total 28 20 3 1 3 1 1 0 29

No que se refere aos centro-ocidentais no Rio, não podemos deixar de mencionar os cabundá. De acordo com Karasch (1987, p. 19), no Rio de Janeiro cabundá eram os falantes de língua Mbundu, que vinham do sul de Luanda ou de sua periferia. Muitos dos chamados 58

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Crioulos de Luanda eram falantes de Mbundu que foram escravizados e embarcados na capital angolana para o Brasil. Possivelmente, muitos cabundá foram batizados como angola antes da viagem. Os rebolo ou libolo remetem ao sul do médio rio Kwanza, e eram das mais destacadas nações no Rio, retratadas por vários gravuristas. Eram de uma região em guerra constante, tanto contra os portugueses e seus agentes como em conflitos intestinos, como aquele com Kisama (MILLER, 1988, pp. 34, 257, 442, 589). No Rio, após o início do colapso da economia aurífera em 1760 – que não quer dizer decadência total da economia das Minas Gerais –, as rotas para a África Ocidental ficaram mais esvaziadas. Somente na metade do século XIX, com a decadência – esta, sim, efetiva da economia da Bahia – africanos da Costa da Mina, libertos e escravos, vieram para a capital do novo Império18. O final do século XVIII na Bahia ficou marcado pela aurora dos nagôs e, ao mesmo tempo, pela despedida dos jeje: nomes diferentes para indicar povos limítrofes.

Considerações finais Nos registros de casamento e óbito é que se pode perceber a maior visibilidade dos angola. Junto a eles, uns raros benguelas. De acordo com Curto (1996), esses homens e mulheres eram traficados em troca de aguardente que podia ser produzida no Recôncavo Baiano ou no Rio de Janeiro, sendo as duas concorrentes (CURTO e GERVAIS, 2001, pp. 1-59). Voltando para a questão das nações do tráfico, vemos o termo “Gentio da Costa” como um genérico que abarca as duas metades do século XVIII, mas acreditamos voltado primordialmente para os africanos ocidentais, ainda que estranhamente ele não apareça nas irmandades de africanos nem nas identidades festivas tecidas por escravos. Cremos que, de tão genérico, ele se dilui nas nações mais assertivas. Outro dado importante é o equilíbrio entre homens e mulheres na massa africana. Na primeira metade do século XVIII, o predomínio feminino era onipresente, na proporção de 55 mulheres para 45 homens nos batismos. Na Conceição da Praia da Bahia do final do século XVIII, este quadro se inverte: vemos quase 60% de homens para apenas cerca de 40% de mulheres. Como podemos explicar esta metamorfose em uma freguesia tão importante da cidade da Bahia? Nossa hipótese repousa na mesma assertiva usada para entender o quadro do início do século: o padrão do trabalho urbano escravo. No final do século XVIII, Salvador perde importância política, e a elite do estado colonial se transfere para o Rio de Janeiro levando parte de seus agregados e círculo de favorecidos. Mesmo mantendo peso similar no comércio externo, o mercado interno urbano se retrai, o que reduz o espaço para as ganhadeiras ou negras de tabuleiro. Assim, digamos, as africanas de rua perdem espaço, enquanto os homens envolvidos com carregamento de mercadorias e manejo de embarcações ainda são muito importantes. Mas este quadro não se repete em toda a cidade, o que torna nossa hipótese ainda merecedora de mais estudos. n.9, 2015, p.49-62

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CARLOS EUGÊNIO LÍBANO SOARES

O tráfico de escravos entre a Bahia e o Rio de Janeiro era intenso na primeira metade do século XVIII, o que trazia decorrências bastante relevantes. Entre 1700 e 1751, de um total de 2.096 africanos batizados na Conceição da Praia, cerca de 96% eram minas; a mesma proporção podia ser encontrada entre os 304 africanos que chegaram à Candelária no mesmo período, o que reforça a hipótese de que, nesse período, a Bahia era o mais importante fornecedor de cativos da África Ocidental para o Rio de Janeiro. Assim, na primeira metade do século XVIII, África Ocidental, Bahia, Rio de Janeiro e a região das Minas formam, na realidade, um único complexo negreiro atlântico, com uma cultura escrava comum em formação, fortemente afro-ocidental. Notas Ver ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 63.

11

Para uma visão clássica das duas cidades, ver BOXER, Charles R. A idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, principalmente os capítulos IV “Os franceses no Rio de Janeiro”, pp. 111-132, e “Bahia de Todos os Santos”, pp. 153-188. 1

Para uma visão do lugar de Moçambique no tráfico atlântico, ver ALPERS, Edward A. “Moçambiques in Brazil: Another Dimension of the African Diaspora in the Atlantic World, e CAPELA, José. “Mozambique-Brazil: Cultural and Political Influences Caused by the Slave Trade”. Ambos em RENÉE, Soulodre-La France e CURTO, José (orgs.). Africa and Americas: Interconnections during the Slave Trade. Nova Jersey: Africa World Press, 2003.

12

2 Para uma visão global do trato negreiro, ver ELTIS, David. The rise of African Slavery in the Americas. Nova York: Cambridge University Press, 2000. 3 Para uma história de delimitação e dinâmica da freguesia da Candelária, ver SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio antigo. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965. 4 Para um mapa dos limites das freguesias no final do século XVIII, ver CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista, p. 262. 5 VIDE, Sebastião Monteiro de. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 23. 6 Sobre este problema, ver OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Quem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia”, Afro-Ásia, Salvador, 1997, pp. 37-73. 7 Para uma visão da escravidão africana nas Minas, ver REZENDE, Rodrigo. As nossas Áfricas: população escrava e identidades africanas nas Minas setecentistas. UFMG, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, 2006.

Sobre esse grupo, ver VANSINA, Jan. “Ambaca Society and Slave Trade 1760-1845”. The Journal of the African History, 2005, v. 46, Issue 1. 8

9 Sobre o Reino Lunda, ver M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador: Casa das Áfricas/Edufba, p. 550.

Para uma análise das marcas étnicas, ver GOMEZ, Michael. Exchanging our Country Marks: the Transformations of African in the Colonial and Antebellum South. Chapell Hill: University of Carolina Press, 1998.

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Para uma análise da população moçambique residente na cidade do Rio na segunda metade do século XIX, ver SOARES, Carlos Eugênio Líbano, “Os últimos malungos: moradia, ocupação e criminalidade entre libertos africanos”. In: SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio dos Santos e FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, pp. 149-208.

13

Para uma visão dos inventários dos engenhos de açúcar do século XVIII, ver ABREU, Maurício de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro, v. 2.

14

Para uma visão da instituição até 1750, ver RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia 1550-1755. Brasília, Ed. da UNB, 1981, p. 176. 15

Infelizmente, desapareceram os livros de enterros de escravos na Misericórdia baiana entre 1693, ano da fundação do Banguê, e 1741.

16

Para uma discussão sobre mortalidade de escravos, ver BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo, op. cit., pp. 595-597.

17

Trato disso em SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. Campinas: Ed. da Unicamp, 2004, pp. 355-391.

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UMA PORTA PARA O MUNDO ATLÂNTICO

Referências Bibliográficas ABREU, Maurício de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro 1502-1700, Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal/Andrea Jacobson, 2011, v. 2. ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003. BOXER, Charles R. A idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. CURTO, José Carlos. Alcohol and Slaves: The Luso-Brazilian Commerce at Mpinda, Luanda and Benguela during the Atlantic Slave Trade c. 1480-1830 and its impact on the societies of West Central Africa. Los Angeles, University of California, 1996. CURTO, José C. e GERVAIS, Raymond R. “The Population of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, 1781-1844”. African Economic History, 29 (2001), pp. 1-59. ELTIS, David. The rise of African Slavery in the Americas. Nova York: Cambridge University Press, 2000. FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial. Antologia de textos 1531-1800. Rio de Janeiro: José Olympio/Eduerj, 1999. GOMEZ, Michael. Exchanging our Country Marks: the Transformations of African in the Colonial and Antebellum South. Chapell Hill: University of Carolina Press, 1998. HEINTZE, Beatriz. “Historical Notes on the Kisama de Angola”. The Journal of the African History, v. 13, n.3, (1972): pp. 407-418. KARASCH, Mary C. Slave Life in Rio de Janeiro 1808-1850. Princeton: Princeton University Press, 1987. M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador: Casa das Áfricas/Edufba, 2007. MILLER, Joseph C.. “Central Africa During the Era of the Slave Trade, c. 1490s-1850s”. In: Linda M. Heywood (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. MILLER, Joseph C.. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830. Madson, University of Wisconsin Press, 1988. OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Quem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia”, AfroÁsia, Salvador, 1997, pp. 37-73. REDINHA, José. Distribuição étnica da província de Angola. Luanda: 1969. RENÉE, Soulodre-La France e CURTO, José (orgs.). Africa and Americas: Interconnections during the Slave Trade. Nova Jersey: Africa World Press, 2003. REZENDE, Rodrigo. As nossas Áfricas: população escrava e identidades africanas nas Minas setecentistas. UFMG, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, 2006.

RUSSELL-WOOD, J. R., Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa da Misericórdia da Bahia 1550-1755. Brasília: Ed. da UNB, 1981. SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio antigo. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 18081850. Campinas: Ed. da Unicamp, 2004. SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio dos Santos e FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. SOARES, Mariza Carvalho. Identidade étnica, religiosidade e escravidão: os “pretos minas” no Rio de Janeiro, século XVIII. PPGH-UFF, 1997.

n.9, 2015, p.49-62

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CARLOS EUGÊNIO LÍBANO SOARES

THORNTON, John K. “As guerras civis no Congo e o tráfico de escravos: a história e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas”. Estudos Afro-Asiáticos, v. 32 (1997): pp. 55-74. VANSINA, Jan. “Ambaca Society and Slave Trade 1760-1845”. The Journal of the African History, 2005, v. 46, Issue 1. VIDE, Sebastião Monteiro de. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, 2007. Recebido em 07/04/2015 Aprovado em 15/04/2015

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A LÍNGUA DE BRANCO NO RIO DE JANEIRO

A língua de branco no Rio de Janeiro The white man’s tongue in Rio de Janeiro Ivana Stolze Lima Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa [email protected]

RESUMO: A proposta do artigo é discutir a expressão “língua de branco”, uma das formas de nomear a língua portuguesa falada na cidade, localizada em anúncios de jornal relativos a fugas de escravos e em outros registros. Apesar de pouco frequente na documentação, a expressão pode ser um caminho para se refletir sobre o lugar do Rio de Janeiro em uma história social das línguas no Brasil, atentando mais particularmente para a perspectiva dos africanos e suas formas de comunicação na cidade.

ABSTRACT: The proposal in this article is to discuss the expression “língua de branco” (literally, “the white man’s tongue”), one of the ways to refer to the Portuguese spoken in town, especially as used in classified ads reporting slave escapes and other records. Although not frequent in the documentation, the expression can offer a path to reflect on Rio de Janeiro’s place in a Social History of the languages in Brazil, focusing more specifically on the perspective of the Africans and their forms of communication in the city.

Palavras-chave: Língua Nacional, Escravidão, Rio de Janeiro

Keywords: National Language, Slavery, Rio de Janeiro.

n.9, 2015, p.63-76

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IVANA STOLZE LIMA

A corte multilíngue O multilinguismo é uma das marcas da história da cidade do Rio de Janeiro, caracterizada como cidade colonial, marítima, portuária, atlântica, capital, cosmopolita e tantos outros adjetivos similares que salientam seu lugar especial como encruzilhada de povos e culturas. Se é pertinente considerar as várias línguas que atravessam a cidade como um quadro de heterogeneidade, apontando assim para a dificuldade de comunicação, o choque e o impasse (heteroglossia), e se também é pertinente apontar para a pluralidade de línguas faladas pelos seus habitantes permanentes ou passageiros (plurilinguismo), em outra perspectiva é ainda mais pertinente e interessante apontar o multilinguismo como marca das várias formas de trânsito e intercomunicação que caracterizam as relações sociais na cidade. No quadro da história da língua portuguesa no Brasil, isto é, da formação da língua nacional, o Rio desempenhou papel irradiador de uma padronização, sobretudo a partir das transformações de 1808, quando se tornou sede da Corte portuguesa e quando assumiu mais tarde a função de capital do Império do Brasil. Por outro lado, se colocamos o foco nos dois milhões de africanos1 que aqui desembarcaram em séculos de tráfico e escravidão, vale pensar na relação desses africanos com a língua portuguesa em seu processo de se tornar uma língua nacional: como a mesma foi adquirida e usada? Que formas de interação e conflito no espaço urbano se deram nessa apropriação? Simultaneamente, devem-se considerar as formas de comunidade travadas por meio das próprias línguas africanas. Já é bastante conhecida a formação étnica africana da população escrava do Rio de Janeiro. Embora os nomes de nação como angola, mina e nagô expressem, em geral, lugares aproximados de origem ou de embarque, e não traduzam línguas específicas dos diferentes povos escravizados, é possível avaliar, a partir das regiões, rotas e períodos do tráfico, as línguas africanas que podem ter sido faladas na cidade2. Os indivíduos poderiam usar não apenas suas línguas maternas, mas línguas comuns, línguas aprendidas e compartilhadas. Em meio a essa multiplicidade, algumas línguas são mais evidentes para a historiografia, como as das áreas de tráfico mais intenso no Congo-Angola, onde merece destaque o quimbundo, que era uma língua usada por diferentes povos e agentes do tráfico, que tem presença em diferentes regiões do país (MENDONÇA, 1935), e cuja importância pode ser ilustrada pela Arte da Língua de Angola (DIAS, 1697), obra que revela o domínio jesuítico sobre essa língua, tendo sido o Rio de Janeiro um dos espaços de construção desse domínio (BONVINI, 1996). O quimbundo e outras línguas do grupo banto possuem características linguísticas comuns, o que, em certas situações, facilitou a intercompreensão entre seus falantes. Outra língua que merece ser destacada, não por ter sido demograficamente dominante, mas por ter uma presença constante na cidade e marcar uma identidade escrava reconhecida, é a chamada língua geral de mina ou língua mina-jeje, formada por línguas do grupo gbe, com presença dominante do fon. Com registros dispersos na Bahia, em Minas, no Maranhão 64

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A LÍNGUA DE BRANCO NO RIO DE JANEIRO

e no Rio de Janeiro, essa é uma língua também muito difundida na África Ocidental, presente na história do tráfico (PEIXOTO, 1741/1945; SOARES, 2004; PARÉS, 2006; SWEET, 2011). Outra comunidade linguística no Rio existia em torno do nagô, nome histórico e tradicional do iorubá. Em Salvador, foi uma língua geral amplamente falada, o que se explica tanto por causa da concentração de falantes como pela importância religiosa que a língua adquiriu nos terreiros de candomblé. No Rio havia também uma comunidade nagô, em geral incluída na categoria mina (RODRIGUES, 1977; MAMIGONIAN e REIS, 2004). Será que essa heterogeneidade linguística e étnica impossibilitou a criação de vínculos e formas de comunidade? Em 1849, um parlamentar britânico perguntava, atônito: “Que línguas os africanos falam no Rio de Janeiro?” (apud ABREU, 2014). A questão principal era avaliar a possibilidade de revolta, um medo senhorial sempre à espreita. Mais reflexões deveriam ser feitas em torno da ideia de que os africanos não conseguiam se comunicar por falarem línguas distintas entre si, uma ideia às vezes repetida sem maiores questionamentos. Robert Slenes abriu uma seara interessante com o conceito de comunidades de fala formadas nas plantations cafeeiras, a partir do movimento do tráfico de escravos, que concentrou africanos de origens próximas (SLENES, 1992). Assim, pesquisas que têm avançado na relação entre a história do Brasil e da África, investindo na retomada da documentação, têm mostrado dimensões distintas, a exemplo do trabalho de Marcos Abreu (2014) sobre os locais de origem de africanos e as possibilidades de compartilharem línguas, partindo da amostra dos africanos apreendidos no período do tráfico ilegal (1831-1850). Por tudo isso, o conceito de multilinguismo sugere pistas interessantes. Um africano que aprendesse a língua senhorial, passando a ser classificado como ladino, não iria necessariamente abandonar todo o seu repertório de formas de comunicação. A prática de “trocar a língua”, de alternar os códigos, merece atenção.

O Rio e a língua nacional Muito se fala do Rio de Janeiro oitocentista como capital política, que difundiria, como uma força centrífuga, os ideais de civilização e ordem. O Rio, Corte imperial, suposto centro político, exerceu seu poder sobre as províncias, regiões vencidas. No conjunto de ideais, valores, sentimentos compartilhados pelos dirigentes imperiais, que ajudariam a difundir o estratégico “espírito de associação”, incluía-se a ideia de uma unidade da língua. A imagem de unidade linguística contrastava com a comunicação, frequente e corriqueira, em muitas outras línguas, das mais diferentes proveniências. Se, de acordo com a História, o papel da capital foi estender a soberania sobre o território, isto não impediu que outras histórias, pequenas, paralelas, conflitantes, tenham sido também parte da experiência dos grupos sociais que viveram a formação do Estado no Brasil. Como parte desse processo de formação do Estado, especialmente de “formação do povo”, houve uma política, ou ao menos uma expectativa, em torno da difusão da língua n.9, 2015, p.63-76

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IVANA STOLZE LIMA

nacional através da instrução pública. Tanto a instrução como a língua, na medida em que atuavam na formação lenta e progressiva de um certo espírito de consenso, eram entendidas como estratégicas para a centralização do Estado (MATTOS, 1987, cap. 3). A circulação de impressos, como jornais, revistas e livros, estruturou o processo, favorecendo a difusão de certas características em uso no Rio de Janeiro até as províncias. Uma das marcas da construção da nacionalidade após a Independência foi o cuidado com a identidade linguística, que gerou olhares voltados para a autonomia ou a continuidade face a Portugal. Mas onde também se percebe, embora não tenha sido sempre evidenciado, o cuidado – ainda mais estratégico – com as diferenças internas, essas, sim, sentidas como heterogêneas e desestabilizadoras da ordem civilizada que se buscava forjar por meio de uma língua comum. A proposta de construir uma identidade linguística envolveu, em alguns casos, renomear a língua falada: língua brasileira ou língua nacional são expressões que passam a se alternar com língua portuguesa, sendo isso parte de uma cultura política nascente já na década de 1820 (LIMA, 2007 e 2008). A função de capitalidade do Rio de Janeiro na questão da língua foi marcada por direções múltiplas, nem sempre favoráveis à disseminação de uma unidade tal como imaginada pelos dirigentes imperiais, como, por exemplo, o cônego Fernandes Pinheiro, Gonçalves de Magalhães ou Francisco Adolfo de Varnhagen – a unidade moldada pelo brasileiroportuguês, pela religião católica, pela herança europeia (SUSSEKIND, 1994 e LIMA, 2009). Procuremos destacar ao menos três destas direções, que nem são excludentes, nem deixaram de desencadear tensões. Uma primeira direção a ser citada: a Corte difundiu um sentimento de nacionalidade, um certo molde de identidade nacional, que incluiu e sedimentou padrões sobre a língua. A segunda: a cidade foi um palco para as diferenças. Note-se, inclusive, a permanência das linguagens múltiplas, dessas tradições que se combinaram, o que por muito tempo permanecerá como característica da cultura das ruas no Rio, ligada à memória corpóreo-gestual e às territorialidades vivenciadas pelos grupos sociais (VELLOSO, 2004). Uma terceira direção de desdobramento possível para a questão da experiência da cidade do Rio: no avesso da sua condição de capital, ela pode ter exportado, involuntariamente, esta multiplicidade nas formas de comunicação, falares apelidados de “caçanjes” por “deturparem” a língua pátria.

A língua de branco Em outros textos, expus os resultados de uma análise sistemática e detalhada sobre as práticas de comunicação de escravos e senhores a partir de anúncios de jornais publicados no Rio de Janeiro entre 1821 e 1870. As descrições usadas para caracterizar os escravos em relação à sua forma de se comunicar foram analisadas buscando-se uma análise seriada, que as agrupou em categorias quantificáveis. Além disso, a análise propôs a discussão mais fina 66

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A LÍNGUA DE BRANCO NO RIO DE JANEIRO

e particular sobre as descrições, no que podem revelar sobre a estreita relação entre senhores e escravos. Retomo abaixo as tabelas, para uma visão geral sobre a pesquisa (LIMA, 2012 e 2014). Nos artigos citados (LIMA, 2012 e 2014), há uma discussão detalhada sobre os métodos empregados e o tratamento das descrições. Aqui, de forma muito resumida, pode-se apontar algumas linhas principais: a reafirmação continuada da distinção entre crioulos e africanos e a sensibilidade para essa distinção; o grau de aprendizado da língua senhorial pelos africanos foi majoritariamente apresentado como bom; havia uma expectativa senhorial de que os africanos aprenderiam sua língua, sendo esse um processo transitório; foi minoritária a proporção de escravos africanos e crioulos apresentados como tendo dificuldades de se comunicar. No presente artigo, explorarei outras facetas do material, pois a variação dos sentimentos e das práticas linguísticas que a expressão “língua de branco” sugere é chave fundamental para melhor entender a complexidade da questão. Tabela 1 - Descrições dos escravos crioulos3 Classificação das descrições Boa habilidade

Características psicológicas

Fala atrapalhado/ fala embaraçado Falantes de um outro idioma Fanhosa Gago Fonação/ articulação Sem informações sobre a fala Total

Número de crioulos 97

%

Exemplos

53%

27

14,7%

3

1,6%

fala bem (15) bem falante (18) sabe ler e escrever (24) muito falador/ muito faladeira (7) fala desembaraçada (10) fala explicada/ fala inteligível/ explica-se bem/ fala bem expressado (7) ladino (3) e outras manso no falar, fala descansada, agradável no falar, fala baixo e macio, fala vagarosa, quando fala, é sempre com ar de riso fala mansa cabeça sempre baixa quando fala meio apatetado quando fala fala um tanto atrapalhado, fala muito embaraçado

13

7,1%

fala inglês, fala um pouco de espanhol, fala francês

2 16 5

1% 8,7% 2,7%

fala fanhosa bastante gago, gagueja quando fala quando fala, pega-lhe a língua, quando fala é com muita pausa, fala muito grosso, fala fina

20

10,9%

183 crioulos

100%

Fonte: Diário do Rio de Janeiro (1821-1870) e Jornal do Commercio (1827-1870).

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IVANA STOLZE LIMA

Tabela 2 - Descrições de escravos africanos Classificação das descrições

Número de africanos 147

% (aproximada)

Exemplos

40,8%

Fraca habilidade na língua portuguesa

64

17,7%

Média habilidade na língua portuguesa

23

6,4%

Em processo de aprendizagem

22

6,1%

Características de fonação/ articulação Características de cunho psicológico ou de gestual Só com indicações de falar um outro idioma Inclassificáveis Sem informações sobre a fala Total

41

11,4%

33

9,2%

4

1,1%

4 22 360 africanos

1,1% 6,0% 100%

Ladino, fala bem a língua portuguesa, fala perfeitamente, fala como um crioulo, fala desembaraçada, bem falante etc. Fala atrapalhada, fala embaraçado, boçal, não fala bem o português, fala pouco o português, fala o português muito mal Fala meio embaraçado, ladino e não fala bem claro, fala pouco desembaraçada, não fala bem explicado Ainda boçal, ainda fala pouco o português, já meio ladino, fala ainda meio atrapalhado Fala grosso, gagueja, fala fanhosa, fala rápido, fala fina Fala mansa, fala pouco, fala muito brando Fala francês, fala espanhol , fala inglês muito falador e mal

Boa habilidade na língua portuguesa

Fonte: Diário do Rio de Janeiro (1821-1870) e Jornal do Commercio (1827-1870)

Como se percebe nas descrições exemplificadas nas Tabelas 1 e 2, havia muitas formas de se referir às particularidades e marcas pelas quais os escravos africanos e crioulos se comunicavam. Dentre as formas de representar e nomear a língua portuguesa, a expressão “língua de branco”, embora muito pouco usual no material levantado, desperta a atenção, pois gera o problema da perspectiva de quem a usou: quem iria se referir à língua falada na cidade como uma língua de branco? Aprofundar essa análise ilumina a existência de um leque variado de origens sociais e culturais que deixou suas marcas de oralidade nos anúncios. Língua de branco é uma expressão que ganha sentido nos contextos de diferenciação e conflito pertinentes às situações de relação colonial, conquista e negociação na América e na África. Diferentemente dos termos “língua nacional”, “língua brasileira” ou “língua portuguesa”, baseia-se, de modo explícito, na relação entre brancos e não brancos. Não necessariamente a língua de branco seria a portuguesa. Para índios não falantes de línguas tupis, por exemplo, o nheengatu, uma língua geral introduzida pelos missionários no Rio Negro no século XVII pode ser considerarda uma “língua de branco” (BESSA-FREIRE, 2004, p. 17). Segundo Marcos Abreu, diversos viajantes que percorreram a região do Rio do Congo no século XIX, registraram a presença de uma língua de comércio baseada no português, 68

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A LÍNGUA DE BRANCO NO RIO DE JANEIRO

chamada “língua de branco” (ABREU, 2012, p. 56). Dentre estes relatos, destaca-se o do comerciante Augusto Saldanha, de 1862, em conversa com um marinheiro cabinda: N’uma conversa que tive com um Cabinda foi que vim no conhecimento do verdadeiro sentido que os pretos ligam à palavra − branco − pela qual nos dominam. Perguntei-lhe se quando estavam a bordo dos navios estrangeiros entendiam as línguas que lá lhes falavam, e ele respondeu-me com certa presunção: − Me fala flancé, inglé e língua de Blanco. Esta língua de branco é a portuguesa. Só nós somos considerados brancos, porque assim designaram os descobridores e conquistadores d’aquelas possessões, e só a eles é que os negros julgam pertencer esta denominação4.

Abstraindo a interpretação de Augusto Saldanha sobre sua branquitude, é bom lembrar que o português era mesmo uma das línguas utilizadas por outros europeus, como franceses e holandeses, para seu contato com povos africanos (SILVA NETO, 1952, p. 513), o que se explica pelas novas formas de movimentação dos europeus no continente africano a partir de meados do século XIX. O que importa é procurar entender os pesos e sentimentos que as formas de interação e comunicação entre povos de línguas distintas e hierarquizadas experimentam, específicos de cada momento e contexto. No contexto do Rio e de outras cidades escravistas, pode-se pensar, de forma correlata, que quem se referia à língua portuguesa falada na cidade, língua essa que dava corpo e movimento à ordem escravista, como uma “língua de branco”, poderia ser um negro ou africano, escravo ou de outras condições sociais (livres, libertos), com variadas funções, como feitores, mestres de ofícios, capitães do mato, etc. Ou ainda aqueles que de alguma forma acionassem a mesma lógica de distinção, como numa investigação judicial, por exemplo. Em Salvador, na investigação sobre a Revolta dos Malês, consta que o escravo Joaquim, haussá, declarou não saber falar a língua de branco (REIS, 2003, p. 346). Além de indagar sobre quem poderia proferir a expressão, é importante considerar que ela fazia sentido para os interlocutores, e que conotava um teor de diferenciação através da língua muito acentuado, ou seja, uma clara separação – a língua é do branco, ainda que o escravo a fale bem ou mal. Recolhi anúncios com esse uso de 1821 a 1842. O primeiro exemplo a ser apresentado é de 1821: Há um ano que desapareceu ao Coronel Sebastião José Guerreiro da Fonceca, um escravo por nome Miguel, Nação Monjolo, cara redonda e retalhada5, estatura ordinária, cheio de corpo com o ventre mais elevado, pés chatos, com rachaduras nos calcanhares, cicatriz antiga na cabeça, que sempre inclina para aquele lado, não fala a língua de branco, apesar de estar em casa, e neste País havia mais de 10 anos, e por isso parecia ainda novo ou boçal, por cujo motivo há toda a suspeita de ser furtado, ou seduzido, quando vinha para fora da Cidade com um cesto vazio na cabeça; seu dono dará 19$200 a quem lho denunciar, ou trouxer a sua casa em Maracaná [sic] na Freguesia do Engenho Velho (Diário do Rio de Janeiro, 25/10/1821).

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Buscando-se outros indícios sobre Miguel, nota-se que ele não falava a “língua de branco, apesar de estar em casa e neste País” havia já muito tempo. Nessa propriedade, situada em região de chácaras, era possível que alguma língua africana fosse utilizada, de modo que Miguel podia viver por lá tanto tempo e desempenhar sua função sem falar português, a ponto mesmo de sequer ser considerada sua possibilidade de fuga: ou ele foi furtado ou foi “seduzido”. Nesse exemplo, há quase uma barreira entre Miguel e a “língua de branco”. Os monjolos eram falantes de teque, e podiam ter tido contato com variedades do quicongo em seu percurso ligado ao tráfico (ABREU, 2014, p. 93). Mas os monjolos do Rio, além de falantes de teque e provalmente de variantes do quicongo, tornavam-se também falantes de português, e não se deve associar a etnia de Miguel ao fato de não ter aprendido essa língua. A origem étnica não parece ter sido determinante na aquisição da língua do senhor. Fatores como idade, atividade ou ofício, e características individuais e psicológicas foram mais importantes, além, é claro, do contexto histórico e social. Àquela altura, em 1821, a cidade passava pelas remodelações de sua transformação em Corte, desencadeadas no período joanino. Como se sabe, o Rio que já havia sido um importante porto escravista mobilizado para a economia mineradora e seus desdobramentos, torna-se o principal ponto de desembarque de africanos, tendência aprofundada com a produção cafeeira. Mais do que isso, a cidade era um polo onde traficantes de escravos estavam estabelecidos (FRAGOSO e FLORENTINO, 2007). Em 1821, de acordo com um censo realizado, a população era de 43 mil habitantes livres e 36 mil escravos6. No final dessa década, em 1829, mais um anúncio utiliza a expressão: No dia 30 do mês passado, às 11 horas da manhã, fugiu um moleque de Nação Moange, por nome Benedito, é magro, tem as pernas finas, e uma delas zaimbras, os dedos das mãos alguma cousa tortos, a cor bastante preta, e terá de idade 14 a 15 anos; ia vestido com umas calças já velhas de algodão Americano, e camisa de riscado, e no mesmo dia da fugida foi encontrado no morro de S. Diogo, tomando o caminho do Saco do Alferes; como tem apenas um ano de casa, não fala ainda bem língua de branco, mas tem alguma viveza, e explica-se de sorte que se pode entender; quem o achar, ou souber notícia dele, queira dirigir-se à rua dos Pescadores N. 49, onde receberá alviçaras, e pago do seu trabalho no caso de o traze [sic] (Diário do Rio de Janeiro, 4/07/1829).

O jovem Benedito estava ainda aprendendo a língua, o que seria esperado por ter “apenas um ano de casa”. Mas já conseguia se fazer entender e fugiu. Trata-se aqui de um endereço bem central, próximo ao morro de São Bento, atual Rua Visconde de Inhaúma. O texto do anúncio traz algumas marcas que o diferenciam de outros, como a ausência do artigo definido “não fala ainda bem língua de branco”, “dia da fugida” e a forma “traze”, por “trazer”. Se aqui pode ter havido um erro tipográfico, as duas primeiras marcas podem indicar uma particularidade no uso do português, um tanto destoante do usual no discurso impresso, embora o mesmo não fosse ainda padronizado de forma mais regular. 70

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Na década de 1830 há também alguns exemplos da expressão. José era um moleque, nação moçambique, e aprendiz de pedreiro. Encontramos sobre ele dois anúncios, um de outubro de 1832 e outro de janeiro de 1833, com algumas diferenças, mas ambos com a mesma forma de nomear a língua: Fugiu no dia 23 do corrente, um moleque de nome José, costuma mudar o nome, e dizer ser de outro Sr., de nação Moçambique, idade 16 a 18 anos, com os sinais seguintes: delgado, estatura ordinária, a cara mais cheia de uma banda que a da outra, beiços grossos; olhos vermelhos, cor retinta, é aprendiz de Pedreiro, fala muito bem a língua de branco, levou vestido camisa e calça de algodão, é feio de cara, e testa frangida [sic]; quem dele tiver notícia, dirija-se à rua larga de S. Joaquim n. 122, canto da rua do Costa (Diário do Rio de Janeiro, 30/10/1832).

Aqui se diz que José costumava mudar o nome e fingir ter outro proprietário, algo facilitado já que “fala muito bem a língua de branco”. No anúncio publicado alguns meses depois, já se teria ouvido notícias sobre o seu paradeiro (“consta ser seduzido”). É interessante marcar que a reiteração na forma como a língua foi nomeada pode ser um indício de como os anunciantes (proprietários ou seus representantes) – e não só os redatores – interferiam no texto dos anúncios7. Levando em conta características do trabalho escravo no Rio, com pequenos proprietários envolvidos nas mais distintas atividades econômicas, podemos aventar a hipótese de que José, aprendiz de pedreiro, pertenceria a um desses proprietários, quem sabe um negro e/ou africano. O endereço era a Rua Larga de São Joaquim, próxima à área de venda de escravos. Em 1835 há notícia de “um preto de nação Congo”, mais uma vez mencionando a língua de branco, que, neste caso, ele ainda conhecia pouco. O interessante é que ele poderia se refugiar junto a quitandeiras, sendo que para isso o seu ainda restrito domínio da língua de branco não seria um empecilho: Fugiu no dia 7 do corrente, um preto de nação Congo, que terá 40 anos, com os sinais seguintes, cabeça pelada de um lado, de queimadura em a pá de um dos braços, e um dedo da mão esquerda aleijado, levou camisa de algodão Americano, calça de brim, e barrete encarnado, ainda fala pouco a língua de branco, há indícios de que de noite se recolhe em casas de quitandeiras, porque tem sido visto de dia; seu Sr. protesta contra quem o acoitar, assim como dará boas alviçaras a quem o levar ou der notícia na rua do Sacramento n. 1, ou na de S. Francisco de Paula n. 62, defronte da Lampadosa (Diário do Rio de Janeiro, 27/05/1835).

Nesse último exemplo, que indica que na década de 1840 a expressão era ainda usada, trata-se de um velho, que não seria um bom falante da “língua de branco”. Fugiu no dia 4 do corrente, da praia da Saúde, beco Sem Saída n. 6, um preto velho, de nome Miguel, de nação Cabundá, com os sinais seguintes: baixo, magro, coroado na cabeça por carregar tabuleiros com fazendas, tem um braço torto porque foi quebrado, e não fala bem a língua de branco; qualquer pessoa que o levar à casa acima, será bem pago do seu trabalho; assim como se protesta por todos as perdas e danos contra quem lhe der coito (Diário do Rio de Janeiro, 10/01/1842). n.9, 2015, p.63-76

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Sob que outras formas a língua portuguesa era nomeada nos jornais? Ao se descrever o grau de habilidade linguística dos escravos, expressões como “fala bem”, “meio boçal”, “muito desembaraçado”, “ladino”, “não fala claro” mesclavam-se a menções explícitas à língua, como nos exemplos “não fala bem a língua portuguesa” ou, simplesmente, “ainda não fala português”. Nesse quadro, língua de branco teria como particularidade testemunhar a distância e a separação entre os escravos e o português, de um lado, mas também inserir as marcas africanas nos usos dessa língua. Em 27 de agosto de 1851, no contexto da repressão ao tráfico definido pela Lei 581 (Lei de Repressão ao Tráfico) ocorrida meses antes, o Diário do Rio de Janeiro publicou o relato da Comissão de Justiça ao Conselho de Estado8 quanto à apreensão de 199 africanos na Ilha da Marambaia, ocorrida em fevereiro do mesmo ano. Logo em seguida ao episódio, o Jornal do Commercio havia publicado a acusação de Joaquim de Souza Breves, proprietário dos africanos apreendidos, de que as autoridades teriam incluído entre os apreendidos escravos já estabelecidos na sua propriedade, ladinos e mesmo crioulos9. A acusação provocou um esclarecimento de Bernardo Nascentes de Azambuja, chefe interino de polícia da província do Rio de Janeiro. Tendo recebido a denúncia sobre o desembarque clandestino, Azambuja foi em um vapor de guerra até a Marambaia e trouxe os africanos para a Auditoria de Marinha. O que nos interessa aqui é como o episódio acionou a percepção das autoridades para reconhecer se um africano − ou mesmo um crioulo − seria ou não boçal. Essa percepção, que mobilizava categorias construídas coletivamente, seria também acionada pelos caçadores de escravos ao tentarem identificar os fujões. A classificação ladino/boçal se deu em diferentes fases, desde o contato inicial da apreensão até o interrogatório formal na Auditoria de Marinha. A primeira leva de africanos foi entregue a Azambuja pelo corpo de guarda permanente: depois de examinados pelo chefe de polícia e pelos oficiais de marinha (...) e os guardas marinha (...) foram reconhecidos Africanos boçais em número de 16”, com o cuidado de separar “todos aqueles que eram ladinos (Diário do Rio de Janeiro, 27/08/1851).

Em seguida, os guardas encontram mais um grupo de africanos em praia próxima, que foram “julgados nas mesmas circunstâncias dos outros, e os declarara também apreendidos”. No entanto, no dia seguinte, mais 153 africanos foram levados ao chefe de polícia, que ainda se encontrava no local, “reconhecidos Africanos boçais pelo segundo tenente da Armada Elisiário José Barboza e pelo guarda marinha Cincinato José de Cerqueira Lima”. Uma vez alojados na Casa de Correção na Corte, os 199 africanos foram listados, batizados, e foi nomeado um curador “para com eles se fazerem as perguntas e exames indispensáveis”. Desse grupo fazia parte um língua (intérprete) chamado Firmino, “que entendia e sabia falar o idioma português”, fundamental para esclarecer vários pontos, como data e local do desembarque. Firmino apontou que “entre os Africanos que acabava de indicar, os de número três, trinta, sessenta e seis e cento e setenta e seis falavam alguma coisa da língua de branco”. Outros africanos deram mais informações por meio de intérpretes: “que era a 72

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primeira vez que vinham à terra de brancos, tendo chegado há pouco tempo da sua terra, e desembarcado há poucos dias no lugar em que foram presos, que era uma ilha, primeira terra de brancos que viram”. Após os passos cabíveis, o auditor da Marinha deu sua sentença de acordo com os peritos, de que seriam quase todos boçais, mas que todos eram recém-desembarcados, descumprindose, portanto, a lei de 1831. O relato traz ainda a apelação feita por Breves, que levou o caso ao Conselho, não para contestar a apreensão como um todo, mas para reaver o grupo de 46 escravos ladinos ali incorporados, incluindo dois crioulos. Breves alegava que esses ladinos foram inclusive batizados (mais uma vez) juntamente com os recém-desembarcados. É citado, especificamente, o escravo de nome Joaquim, Cabinda, também ladino, e que na justificação junta vem sob n. 47, mas que se fingiu boçal, e na segunda apreensão despiu a sua roupa, e tomando a sua tanga, misturou-se com os novos, e por tal modo se portou, não querendo proferir palavra, que foi como tal considerado. (idem)

Breves punha em questão justamente a exatidão da análise sobre a boçalidade dos africanos, a partir da performance de Joaquim Cabinda “não querendo proferir palavra”. Esse exemplo do uso da expressão “língua de branco” numa situação em que autoridades se deparam com falantes africanos de português, isto é, em situações em que sua “africanidade” está em questão, a meu ver corrobora a tendência apontada nos anúncios. O próprio Firmino pode ter nomeado assim a língua, cujo domínio fazia dele uma peça-chave, em destaque no meio dos “boçais”. Mas o registro foi feito pelas autoridades, que também se referiam a uma “língua portuguesa”. O que se comunicava ali era, assim, a distância entre o africano e os rudimentos da língua portuguesa. Marcos Abreu desenvolve uma hipótese mais ampla sobre o signficado de língua de branco. Tomando como base o depoimento do mesmo Firmino, cabinda como o marinheiro com quem Saldanha conversou, Abreu defende que a expressão conotaria uma determinada forma de falar a língua portuguesa por africanos, uma variante pidginizada, que teria correspondência nas variantes dessa língua utilizadas no Congo. Uma informação importante é que os cabindas controlavam o comércio de cabotagem na região, tornando-os ainda mais conectados com os escravistas e as línguas europeias, dentre as quais o português. A língua de branco se cristalizaria assim no contexto do contrabando de africanos escravizados, no período de tráfico ilegal (1831-1850), a partir de uma série de exemplos e situações de uso de variantes da língua portuguesa como língua de comércio, ou utilizada por intérpretes envolvidos pelo tráfico, bem como iniciativas dos negociantes escravistas de fazerem africanos aprenderem português (Rodrigues, 2000, p. 135). Seria um equívoco considerar a distância que a expressão “língua de branco” denota como tendo dado o tom das formas de interação linguística que ocorreram na cidade no século XIX. O resultado apresentado nas Tabelas 1 e 2 indicam a maioria de africanos e n.9, 2015, p.63-76

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crioulos dominando a língua corrente. Sem dúvida, a heteroglossia, a dificuldade da “fala atrapalhada”, a classificação e hierarquização dos sotaques fazem parte da história da Corte. Mas talvez exatamente por isso as possibilidades de trânsito entre as fronteiras foram valorizadas por quem precisava. Como o sujeito que pôs este anúncio: Precisa-se de um um preto de Nação Monjolo, que saiba falar a mesma Língua, e também de Cabinda, Moçambique, e outras mais línguas, terá por dia 500 rs, e que seja forro; pode procurar na rua da Cadeia N. 113, que achará com quem tratar (Diário do Rio de Janeiro, 19/08/1828)10.

Esse sonhado preto forro monjolo, conhecedor de tantas línguas, pode ou não ter existido para ganhar os seus 500 réis diários. Mas nos faz pensar nas ambiguidades que marcaram a relação entre senhores e escravos, em meio à própria violência da escravidão e às reafirmadas formas de distinção entre livres e escravos, ambiguidades que mostram o terreno da linguagem como um lugar possível de transformação. Notas escarificações faciais características. De fato, muitos dos anúncios levantados descrevem os monjolos como de “cara riscada”.

1 Segundo a estimativa do Slave Trade Database, 2.263.914 africanos desembarcaram no Sudeste do Brasil durante o período do tráfico, sendo 1.275.932 na primeira metade do século XIX. slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces. 2 A diversidade étnica e linguística do Rio de Janeiro foi apontada no já clássico estudo de Mary Karasch (2000). Margarida Petter e Emílio Bonvini (2008) procuram identificar mais sistematicamente as línguas africanas envolvidas no tráfico para o Brasil. No caso específico do Rio, um estudo recente é o de Marcos Abreu (2012 e 2014) 3 Como pode haver mais de uma descrição para o mesmo indivíduo, optei por selecionar na classificação apresentada nas duas tabelas aquela que fosse mais representativa. Por exemplo, se um escravo é apresentado como bem falante e voz grossa, indiquei o primeiro elemento. No grupo dos que sabem ler e escrever, considerei essa característica.

Augusto Carlos de Saldanha, Quarenta e cinco dias em Angola. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1862. p.11. Apud Abreu, 2012, p. 57-58.

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5 Monjolo designava os escravos vindos do reino do Tio, na região do Congo. Segundo Mary Karasch (2000, p. 53), eram reconhecidos pelas

6 Mapa da população da corte e província do Rio de Janeiro em 1821. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 33, 1870. p. 137.

“Fugiu no dia 23 de outubro próximo, um moleque de nome José de idade 16 a 18 anos, de Moçambique, com os sinais seguintes, delgado de corpo, estatura ordinária, cara mais cheia de uma banda que de outra, beiços grossos, olhos vermelhos, cor retinta, é oficial de pedreiro, fala bem a língua de Branco, consta ser seduzido, e por isso se protesta contra quem dele souber, dirija-se a Rua larga de S. Joaquim.” (Diário do Rio de Janeiro, 12/01/1833). 7

8 O Diário do Rio de Janeiro continha uma seção inicial chamada “Parte oficial” com notícias do governo, do legislativo, das províncias etc. 9 Sobre o episódio, ver também a análise de Marcos Abreu, 2012, p. 21, que toma como base a documentação da Auditoria de Marinha referente ao episódio.

Agradeço a gentileza de Silvana Jeha por apontar esse anúncio.

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Referências Bibliográficas Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Seção de Periódicos

Jornal do Comércio (1827-1870)



Diário do Rio de Janeiro (1821-1870)

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A LÍNGUA DE BRANCO NO RIO DE JANEIRO

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A CIDADE-ENCRUZILHADA

A cidade-encruzilhada: o Rio de Janeiro dos marinheiros, século XIX Crossroad city: Rio de Janeiro of the sailors, 19th century Silvana Jeha Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Estágio pós-doutoral atual na Escola de Economia de São Paulo/Fundação Getúlio Vargas (FGV). [email protected]

RESUMO: Este ensaio explora o Rio de Janeiro de meados do século XIX como uma cidade-encruzilhada. Ponto estratégico nas rotas marítimas internacionais e dentro do Império do Brasil, a cidade era um grande centro internacional frequentado por marítimos de todos os cantos do planeta. Esta população flutuante era continuamente renovada por novas levas de indivíduos que chegavam e partiam para todas as direções. A ideia de encruzilhada nas religiões afrobrasileiras, assim como outros conceitos espaciais simbólicos e físicos, reforçam o argumento: a cidade era encruzilhada de desejos represados dos marujos depois de muito tempo no mar, potencial explosivo que detonado ou não, estigmatizava os marinheiros como gente desordeira e perigosa. Do ponto de vista da história do trabalho e da cultura, esta imagem pode ser transformada, considerando as péssimas condições no modo de produção das embarcações e, ao mesmo tempo, a internacionalidade e diversidade da experiência dos marítimos que enriqueciam culturalmente as cidades-encruzilhadas como o Rio de Janeiro.

ABSTRACT: This essay explores mid-19th century Rio de Janeiro as a crossroad city. A strategic spot of the international navigation routes within the empire, the city became a huge international hub visited for short periods, but continuously, by seafarers from many different origins, thus consolidating seamen sites, and contributing to its cosmopolitan culture. The idea of crossroad in the Afro-Brazilian religions, as well as other symbolic and physical spatial concepts, reinforces the argument: the city was a crossroad of repressed desires for part of the sailors after long spans on the sea, an explosive potential which stigmatized seamen as rabble and dangerous people. From the point of view of the Cultural and Labor History, this image can be transformed, considering the dire conditions in the mode of production on board and, at the same time, the diversity and international aspects of the seafarers’ experience which enriched the culture of crossroad-cities like Rio de Janeiro. Keywords: sailors, Rio de Janeiro, Crossroad, 19th Century.

Palavras-chave: marinheiros, Rio de Janeiro, encruzilhada, século XIX.

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A importância simbólica da encruzilhada é universal. Liga-se à situação de cruzamento de caminhos que a converte numa espécie de centro do mundo. Pois para quem se encontra numa encruzilhada ela é, nesse momento, o verdadeiro centro do mundo. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 367).

Encruzilhada, limiar, marginalidade, cosmopolitismo Durante boa parte do século XIX, o Rio de Janeiro foi uma das principais encruzilhadas do mundo. Cidade portuária, por isso, uma cidade de marinheiros. Porto mais importante do Atlântico Sul, o maior porto de café do planeta, escala permanente para navios que seguiam rumo ao Pacífico e ao Índico. Os ventos alísios entre a linha do Equador e o trópico de Capricórnio sopram na direção da costa brasileira e, associados às chamadas correntes oceânicas do Brasil, facilitam a navegação dos veleiros na direção oeste, motivos pelos quais diversos navios do hemisfério norte em direção ao Pacífico ou ao Índico abasteciam-se de água e mantimentos na cidade. Esta rota foi batizada de volta ao largo ou volta ao largo do mar. Em 1497, Vasco da Gama foi pioneiro ao realizar esta manobra, passando perto do que é hoje o Brasil, e assim tornou-se o primeiro navegador a dobrar o Cabo da Boa Esperança e alcançar a Índia1. A ideia de encruzilhada do mundo conflui com outra expressão, que é a baía do Rio de Janeiro como Theatrum Mundi. Luciana Martins adota a expressão para denotar o confronto de poder naval na baía. Ela evoca uma frase emblemática de Charles Darwin numa carta à sua irmã explicando o adiamento da chegada durante a noite no Rio de Janeiro. O capitão do Beagle entendia “que deveríamos ver o porto do Rio e sermos vistos em plena luz do dia” (apud MARTINS, 2001, p.15). Capital do Império. Partida e destino principais da navegação de cabotagem. Força centrípeta e centrífuga de gentes de todos os mares. Baía gigantesca que abrigava uma profusão de pequenas e grandes embarcações. Nas primeiras décadas do século XIX, a cidade assistiu ao maior desembarque de escravos africanos de todos os tempos. Nas décadas de 1840 e 1850, os desembarques do tráfico ilegal seriam feitos em portos adjacentes. Todas as freguesias urbanas da cidade debruçavam-se sobre a baía. Os navios eram vistos o tempo todo. E dos navios se via panoramicamente o que acontecia na cidade. O tamanho pequeno do perímetro urbano densamente povoado, diante da capacidade de fundeamento da baía, fazia com que os trabalhadores marítimos participassem ainda mais do cotidiano da cidade. No Rio de Janeiro de meados do século XIX, este sentir-se no centro do mundo não era, portanto, apenas simbólico: ali se cruzavam diariamente muitos europeus, norte-americanos, africanos, indígenas e “brasileiros”2 de todas as províncias, que conviviam entre a cidade e 78

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suas águas. Na cidade residia um grande número de estrangeiros, principalmente africanos escravizados de várias origens. Imigrantes e comerciantes completavam o quadro. As milhares de embarcações que frequentavam o porto anualmente, das canoas às fragatas, estrangeiras ou nacionais, eram tripuladas por gente de muitos lugares do mundo que não necessariamente haviam nascido nos mesmos países das bandeiras dos mastros. Tradicionalmente as tripulações dos navios eram multinacionais. Encontro sobretudo do sexo masculino nas ruas, nas águas da baía, nos botequins e nas estalagens. Essa efervescência de gentes e a permanente algaravia eram marcantes numa cidade de cerca de 270 mil habitantes na década de 1850 que recebia anualmente uma população flutuante marítima de cerca de 50 mil homens. Por sua vez, abrigava seus próprios residentes marítimos, os quais andavam por muitos cantos do Império e do mundo. Apesar de marginalizados, os marinheiros eram visíveis nas ruas da cidade e figuravam frequentemente na seção “Polícia da Corte” dos jornais e nas seções judiciárias: presos por brigas, porres, “andar fora de horas”, falar palavras obscenas, portar armas proibidas e, eventualmente, por assassinar seus colegas. Este foi o caso do alagoano José da Cunha, primeiro-marinheiro da Armada Nacional e Imperial, que matou seu “camarada” Rufino José dentro da fragata Príncipe Imperial. Cunha recebeu do Conselho Naval a rara pena máxima dos artigos de Guerra: a capital. Uma das justificativas é que nem sequer estava bêbado. Foi enforcado em 18 de outubro de 1843 no Largo do Moura, local de enforcamento de militares e escravos3. Entre outros aspectos, o noticiário contínuo dos delitos de marujos contribuiu para uma imagem marginalizada desses trabalhadores do mar, como em tantos outros lugares do mundo. Exu, orixá do candomblé e entidade na umbanda, é uma figura controversa como os marinheiros. Há muitos séculos associado pelo senso comum e pelas autoridades cristãs ao diabo, ao mal, cada vez mais ele é reconhecido com o seu atributo original, que é o de mensageiro entre dois ou mais mundos, do consciente e do inconsciente dos indivíduos e de guardião da encruzilhada. Ou, nas palavras de Reginaldo Prandi, “orixá mensageiro que detém o poder da transformação e do movimento, que vive na estrada, frequenta as encruzilhadas e guarda a porta das casas, orixá controvertido e não domesticável, porém, nem santo nem demônio” (PRANDI, 2001, p. 63). Outra definição complementar desse orixá/entidade de mil faces é a de Stefania Capone: Èsù-Elegbéra (...) exerce papel múltiplo, rico em contradições e com frequência abertamente paradoxal. Ele é o grande comunicador, o intermediário entre os deuses e os homens, o restaurador da ordem no mundo, mas, ao mesmo tempo, como senhor do acaso no destino dos homens, desfaz as abordagens conformistas do universo ao introduzir a desordem e a possibilidade de mudança. Personificação do desafio, da vontade e da irreverência (CAPONE, 2004, p. 54).

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Principalmente na Umbanda, os exus são espíritos (eguns) de pessoas que viveram marginalizadas, como malandros, marujos, escravos, trabalhadores, e têm nomes variados: Exu tranca-rua, Exu das sete-encruzilhadas, João Caveira, entre tantos outros. As Exumulheres são chamadas de pombagiras e muitas vezes teriam sido prostitutas. Como os teóricos das religiões afro-brasileiras que procuram redefinir a imagem dos Exus, é necessário repensar os estigmas dos marujos. O alcoolismo real e a criminalidade circunstancial de parte da marujada têm muito a ver com as condições pesadas do modo de produção nos navios. Até o século XIX, eles desembarcavam em portos depois de dias, meses e até anos no mar. É fácil entender o afã de diversão, a carência afetiva e sexual represada e que, em vários casos, explodiam na cidade. Refiro-me novamente à identificação que tento estabelecer entre os exus e os marujos, relacionando sofrimentos de classe, de corpo e de espírito. Na umbanda, são os guias que atendem aos anseios recônditos dos sofredores, e daí, segundo Reginaldo Prandi, a sua popularidade: Na luta dos homens e mulheres brasileiros que procuram o mundo dos Exus para a realização de seus anseios mais íntimos – homens e mulheres que são, em geral, de classes sociais médias, baixas e pobres, quase sempre de pouca escolaridade e reduzida informação, e para quem as mudanças sociais têm trazido pouca ou nenhuma vantagem real na qualidade de suas vidas (PRANDI, 1996, p. 163).

O marujo lidava o tempo todo com a corda bamba da contenção e a explosão de desejo. A maioria atravessava a encruzilhada portuária e seguia a vida. Mas um grupo menor ficava “prisioneiro da passagem”: mortos, condenados, deprimidos, alcoólatras e tantas outras condições-limite. Faziam parte do que as elites convencionaram chamar de “classes perigosas” no século XIX: carimbo em indivíduos, das classes populares com a pecha de suspeitos permanentes e, portanto, mais suscetíveis às forças policiais e à sua narrativa estigmatizante. Sim, os marujos bebem, procuram prostitutas, se metem em confusão. Mas esta é uma das faces de suas vidas. Há muitas outras. A encruzilhada é associada à marginalidade, apesar de ser um termo de espacialidade central. E esta ideia pode ser costurada por outra, que é a de limiar na filosofia de Walter Benjamin: “limiar [schewelle] é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen [inchar, intumescer, crescer]” (BENJAMIN, 2007, p. 535). Grande estudiosa de Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin lembra que esta definição está no caderno de Passagens dedicado a jogo e prostituição. A autora entende que, ao aproximar etimologicamente limiar dos sentidos de inchar e intumescer, ou seja, de uma zona indefinida, da excitação sexual, o limiar “lembra fluxos e contrafluxos, viagens e desejos” (GAGNEBIN, 2014, p. 36). Um estado completamente marujo, eu acrescentaria. Limiar ou encruzilhada devem ser zonas de passagem. Gagnebin atenta para outra face desta zona de passagem quando ela perde a função “um limiar inchado, caricato, que não é mais lugar de transição, mas, perversamente, lugar de detenção, zona de estancamento e de exaustão” (Idem, p. 45). Neste sentido, o 80

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malogro do marinheiro na cidade-encruzilhada, devido aos excessos de farra etílica, desejo desproporcional pelos gozos da vida, resulta em violência e na imagem caricata do marujo. Diversas sociedades, principalmente africanas e também europeias, depositam coisas indesejadas em encruzilhadas, ou ali cultuam espíritos ou deuses. Elas deveriam funcionar como um depósito das coisas contaminadas passíveis de serem purificadas. Por outro lado, são a morada de diversos espíritos que devem ser reverenciados por meio de oferendas, prática que os brasileiros herdaram sobretudo dos africanos4. Quando o despacho5 não funciona, a transformação desejada não acontece. Esse é o ponto ao qual quero chegar. A passagem dos marujos por uma cidade portuária importante como o Rio de Janeiro está inserida nas várias faces do limiar e da encruzilhada. A boa passagem, frutífera e comunicante, colaboradora do cosmopolitismo e a não passagem, quando os marujos se transformam literalmente os prisioneiros da passagem. Michel Foucault emprega esta expressão aos loucos despachados das cidades europeias em navios no século XIV: “o louco (...) é um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem” (FOULCAULT, 1978, pp. 16-7). Sim, a palavra “’louco pode ser substituída por “marinheiro” neste texto, onde o mar é infinita encruzilhada e as grandes regiões portuárias são os seus pontos nevrálgicos, ou, como diria João do Rio, “local de ruas viajadas”. A boa e a má passagem são complementares para definir zona portuária, limiar, encruzilhada entre o mundo e a cidade. A vida dos marujos na cidade também pode passar por outras experiências de mensageiro ou mediador, tal qual Exu. Podemos abordá-los como agentes de um cosmopolitismo qualificado a partir das suas experiências menos conhecidas e narradas. Para o antropólogo Gilberto Velho, está em jogo uma plasticidade sociocultural que se manifesta na capacidade de transitar e, em situações específicas, de desempenhar o papel mediador entre distintos grupos e códigos. O cosmopolitismo pode ser interpretado como expressão desse fenômeno que não é apenas espacial-geográfico, mas um potencial de desenvolver capacidade e/ou empatia de perceber e decifrar pontos de vista e perspectivas de categorias sociais, correntes culturais e de indivíduos específicos (VELHO, 2010, p. 19).

Mais adiante, o autor define o mediador: “(...) é um intérprete e um reinventor da cultura. É um agente de mudança quando, através de seu cosmopolitismo objetivo e/ou subjetivo, traz, para o bem ou para o mal, informações e transmite novos costumes, hábitos, bens e aspirações” (Idem, p.20). Se os jornais narram principalmente os crimes dos marítimos, o seu lado oculto para a maior parte da sociedade, nesse caso mais positivo, pode ser conhecido em outras narrativas. Os marítimos estrangeiros, sobretudo anglófonos, escreveram memória e ficção sobre suas n.9, 2015, p.77-89

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experiências na cidade6. Outras pistas podem ser encontradas em memórias de não marítimos e na literatura, como é o caso do conto Noite de Almirante, de Machado de Assis, sobre a história de amor de um marujo. Deolindo Venta-Grande e uma moça se apaixonam. Juram amor eterno, e ele viaja por dez meses. Quando volta, a moça, sincera, lhe diz que já está com outro. Desesperado, ele responde que vai se matar, mas antes lhe entrega os brincos que trouxe da Itália, os quais ela imediatamente coloca: Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos. Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. (...) Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem “que vai do meio caminho para terra”. Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático (ASSIS, 1974, p. 449).

Deolindo volta para o navio vangloriando-se da sua “noite de almirante”. O marinheiro de Machado de Assis é gentil, não comete atos violentos mesmo numa situação limite. Mas sua vida segue afetiva e financeiramente frágil.

Números flutuantes Esboço algumas estatísticas de marítimos do Rio de Janeiro para encarná-los e reforçar o meu argumento. Boa parte da população flutuante da cidade aparece a partir da década de 1850 nas estatísticas oficiais da Capitania dos Portos, responsável pelas matrículas dos marítimos residentes e registro dos visitantes. Infelizmente, fica de fora a marca fundamental dos navios negreiros na cidade, abundantes nas décadas de 1810 a 1830. 1850 é a década da passagem da navegação à vela para a navegação mista de vela e vapor; ainda assim, as embarcações a vapor de longo curso eram minoria. Esta mudança, somada às aberturas do Canal de Suez (1869) e, depois, do Panamá (1914), transformariam drasticamente o tráfego do porto do Rio de Janeiro ao longo das décadas subsequentes. Na década de 1850, aportavam no Rio de Janeiro cerca de 1000 navios estrangeiros por ano: Navios estrangeiros aportados no Rio de Janeiro (1852-1860) EUA 2.325

Inglaterra Portugal 1.645

1.007

Cidades hanseat. 901

França 607

Espanha 582

Dinam. 570

Suécia

Outros

Total

559

692

8.888

Fonte: Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa (...) pelo Ministro e Secretário de Estado da Repartição dos Negócios da Marinha, volumes de 1852 a 1860.

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A respeito do número de tripulantes tanto das embarcações estrangeiras, quanto nacionais, apresento os dados de 1855, pois a média para o restante da década é semelhante. Relatório da Marinha de 1855. Província do Rio de Janeiro7 Embarcações estrangeiras* Embarcações nacionais de longo curso** Entrada de embarcações nacionais de cabotagem Prov. RJ*** Embarcações tráfego portos e rios. Prov. RJ**** Pescaria. Prov. RJ***** TOTAL Navios de guerra estrangeiros e nacionais

Número de embarcações

Tripulação escrava

Tripulação livre

Tripulação estrangeira

Total Tripulação

1.086 59

610

155

15.953

15.953 765

2.723

12.524

12.488

25.012

296

Número não disponível ****** 602

1.387

2.543

1.195 6.450 Dezenas

819 16.496 0

965 13.904 Milhares

104 16.659 Milhares

1.888 47.059

3.441

*Fonte: Mapa R. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa (...) pelo Ministro e Secretário de Estado da Repartição dos Negócios da Marinha, 1855. **Mapa Q, idem. *** Mapa Q, idem. ****Mapa T, idem. *****Mapa T, idem ****** Grande parte da tripulação livre na navegação de cabotagem era estrangeira. Dentre os 7.926 marítimos matriculados no porto da Corte nesse ano, 3.916 eram escravos, muitos deles africanos. Dentre os 4.100 marinheiros livres matriculados, 2.317 (56%) eram estrangeiros. Mapa T, idem.

A Inglaterra e os Estados Unidos mantinham estações navais permanentes na América do Sul, em geral estacionadas na baía do Rio de Janeiro. O porto do Rio era frequentado por inúmeros navios de guerra estrangeiros e nacionais, não contabilizados na tabela acima. Portanto, considero aproximadamente 50 mil, o número de marítimos que frequentavam por ano a baía do Rio de Janeiro na década de 1850. Ou podemos admitir algo como dezenas de milhares, o suficiente para o meu argumento. A marinha de guerra do Brasil era pequena em relação à marinha mercante de longo curso e cabotagem. O efetivo era formado, em média, por 3.500 marujos, e quase a metade, 1.500, tripulava navios fundeados no Rio de Janeiro8. Sediado no Rio, o quartel-general da Marinha também recebia recrutas de todo o Império para distribuí-los pela frota. Eram cerca de 1.000 homens por ano, a maioria vinda das províncias do Norte9.

Lugares marujos Uma boa parte dos marujos não desembarcava e a sua sociabilidade se dava sobre as águas da baía. Visitavam outros navios, compravam comida e bebida contrabandeada nos botes de quitanda. Muitos visitavam amigos em outros navios na hora do jantar.

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Quando aportou pela segunda vez no Rio, Herman Melville não desceu do navio de guerra que tripulava. No entanto, desembarcara quando da sua ida ao Pacífico, num baleeiro que foi uma das matrizes do romance Moby Dick. Depois de desertar, Melville embarcou num navio de guerra americano ainda no Pacífico. Na volta para os Estados Unidos, parou no Rio de Janeiro. Esta viagem inspirou a novela White-Jacket, de sua autoria. Melville tomou a paisagem carioca como cenário de um bom pedaço do livro, apesar de ficar na baía por apenas oito dias. Comparou a visão do Rio de Janeiro através das escotilhas a um Cosmorama, ou seja, gravuras de paisagens expostas em grandes urbes no interior de salas ovais, dando ao espectador a impressão de uma visita virtual às cidades e paisagens famosas de todo o mundo. Do navio imaginava-se a cidade, mesmo quando ela estava a metros de distância (JEHA, 2013, p. 119). O tempo de estadia de um navio no porto podia variar de dias a meses. O navio francês em que o jovem pintor Édouard Manet estava embarcado como aprendiz demorou-se na cidade de dezembro de 1848 a abril de 1849. Manet desembarcava todas as quintas e domingos e escreveu cartas para seus parentes e amigos, enviadas para Paris nos paquetes ingleses e franceses que deixavam a cidade com frequência. Seu navio era diariamente provido de laranjas, bananas e abacaxis, para seu deleite. No Rio de Janeiro, teve notícia da corrida do ouro rumo a uma certa Califórnia, localizada no Pacífico. E escreveu ao irmão: “Espero levar-te um macaco que me prometeram”. Como tantos outros marítimos estrangeiros, desprezava a cidade, seus habitantes; apenas a tangenciava, admirando a beleza das mulheres brancas e mulatas com as quais eroticamente travou guerra de limões de cheiro durante uma tarde de Carnaval. Lamentava desembarcar apenas dois dias por semana. Desclassificava a um só tempo o que o atemorizava e fascinava. O jovem Monet deixou esboços de cenas marítimas na cidade10. O tenente Daniel Noble Johnson, da estação naval americana, também apreciava as mulheres da cidade e desenhou uma mulata (JOHNSON, 1959). Rugendas retratou finamente o olhar ávido de um marujo recém-desembarcado tanto pelas frutas de uma negra de ganho quanto por ela mesma. Jacob Hazen, desertor de um baleeiro passou seis meses na cidade. Arranjou-se com uma prostituta inglesa num bilhar de um alemão ao pé do Morro do Castelo. A moça morreu depois de alguns meses, levando-o a chorar pela sua alma em frente à vala coletiva da Santa Casa. Hazen optou por uma vida de estrangeiro na cidade. Seus amigos e o patrão eram estrangeiros, bem como sua namorada11. Um local de grande mistura de fluidos, muitas vezes involuntária, era a Santa Casa de Misericórdia, onde os corpos antes hercúleos e jovens dos marujos se expunham em feridas purulentas ou em feições cadavéricas. Em 1840, cada navio que entrava no porto tinha de pagar 640 réis para a instituição. A enfermaria de estrangeiros foi o destino de muitos marujos que chegavam doentes ou se metiam em brigas. Muitos morreram por ali e acabaram enterrados na vala comum do hospital, no cemitério protestante da Gamboa ou no fundo da 84

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baía, entre outros lugares. Os marinheiros russos John Narstron e Frederic Castarlund, da barca Fursh Meuchikoff, envolveram-se numa briga com os marujos do barco inglês Nancy Gevan e levaram facadas no ventre. Ambos foram tratados com sangrias, sendo aplicadas em cada um mais de 200 sanguessugas. O primeiro passou 15 dias no hospital e ficou curado; o segundo morreu, e do solo carioca nunca mais partiu. (GUIMARÃES, 1843, p. 36). A aplicação de sanguessugas era uma técnica de cura europeia, havia muito em desuso nas grandes cidades do Velho Continente, mas bastante em voga no Brasil colonial e imperial. Na enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, o doutor Robert Avé-Lallemant identificou as primeiras mortes oficiais da grande epidemia de febre amarela que no verão de 1849/50 ceifaria milhares de vidas. São muito conhecidas as suas conclusões sobre a propagação da febre amarela no Rio. Ainda não se sabia que o transmissor era um inseto. Teria começado com um marujo da barca Navarre, vindo de New Orleans com escala na Bahia e hospedado na publicaus, corruptela de public-house, de um americano chamado Franck, na Rua da Misericórdia. O segundo foi Enquist, um “russo da província da Finlândia”, habitando uma hospedaria atrás da de Franck, na subida do Morro do Castelo. Outros hóspedes, pessoas que trabalhavam na hospedaria e vizinhos também se infectaram. Na versão de Avé-Lallemant, a doença se propagou do navio e da hospedaria pelas ruas, pelos rios e navios ancorados, chegando a infectar nove mil pessoas e a matar quatro mil. Há várias versões posteriores sobre a disseminação da doença. No calor da hora, ele escreveu: Temos aqui uma série de casos tão coerentes como os anéis de uma cadeia. Os doentes n. 2 e n.3 trazem o gérmen da epidemia da Bahia para este porto: desembarcam e moram na taberna de Franck: aí adoecem os dos n. 4, 5, 6 e 8. O contágio se transplanta para a casa de Wood [hospedaria vizinha, na Rua da Misericórdia], aí adoece o do n. 7 e aqueles três outros que não foram para o hospital (AVÉ-LALLEMANT, 1850).

Se foi por meio dos anéis dessa cadeia que o mosquito que transmite a febre a fez propagar na cidade não sabemos bem. As visitas do médico às public-houses estrangeiras nos abre as portas dessas comunidades de estrangeiros flutuantes da cidade no sopé do extinto Morro do Castelo, na Rua da Misericórdia. Sem dúvida, uma rua de marujos. A Rua da Misericórdia foi a escolhida pelo personagem e ex-escravo Bom-Crioulo, do romance homônimo de Adolfo Caminha (de 1895), para alugar um quartinho com o seu jovem amante grumete catarinense. Ali viveram em relativa paz seu amor homossexual e proibido. O perfil da dona da casa de cômodos onde moraram mostra um mundo que tem suas próprias ordem e ética, ao contrário dos estereótipos dessa área da cidade, de seus habitantes e transeuntes: D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito. n.9, 2015, p.77-89

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Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima coisa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.  Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora (CAMINHA, s/d, pp. 24-5).

Alguns anos depois, embora reconhecesse o cosmopolitismo das “ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes”, João do Rio, escritor flâneur e frequentador do submundo carioca, reforça a aparência degradante da região portuária, sem dar voz aos envolvidos: ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias... (RIO, 1997, p. 62).

Escravos e indígenas Em 1855, circulavam mais de 12 mil escravos marinheiros no Rio de Janeiro, entre matriculados no próprio porto ou vindos de outras províncias. Ser marujo, naturalmente, oferecia ao escravo mais oportunidades de acesso à liberdade. São vários os anúncios de fugas de escravos marinheiros nos jornais. Em boa parte deles, um aviso especial aos capitães das embarcações para não os empregarem, pois se intitulam forros e “desejam embarcar”. Num deles, o dono de Manoel afirma que ele fugira havia 14 anos! Alguns capitães de navios, ansiosos por mão de obra, faziam vista grossa para a possibilidade de seus tripulantes serem escravos de outrem e partiam com seus novos marujos para nunca mais. Outros anunciavam nos jornais que haviam descoberto escravos fujões em sua tripulação. Entre 1829 e 1832, dentre todos os portos da baía, havia mais de dois mil remadores africanos de 31 “nações” distintas. A maioria era moçambique (30%), benguela (17%), cabinda (15%) e congo (10%). Havia apenas 225 não africanos, dos quais a metade criolo/pardo, e o restante, europeus (BEZERRA, 2010, p. 135). Quando atravessou a baía num pequeno barco, o norte-americano Thomas Ewbank elogiou os marujos moçambicanos: “homens dos mais bem proporcionados que jamais vi”, porém “tinham as marcas indeléveis de suas origens bárbaras (...), uma fileira de borbulhas do tamanho de ervilhas ao meio da fronte”. Outro passageiro disse ter assistido ao processo de “produção dessas contas de carne” na costa oriental da África do Sul (EWBANK, 1856, p. 196). Muitos escravos vindos da área de Moçambique tinham essas marcas no rosto. O Rio de Janeiro foi uma encruzilhada onde 86

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artistas e cientistas do Atlântico Norte, como J.M. Rugendas e Louiz Agassiz, realizaram vários estudos sobre a diversidade africana da cidade. No recôncavo da baía do Rio de Janeiro, notadamente em Iguaçu, havia diversos mocambos ou quilombos que participavam de redes de comércio clandestinas transportadas de barco para a Corte. Dos quilombolas capturados em Iguaçu entre 1816 e 1877, 40% eram congos e cabindas. Os cabindas dominavam a navegação dos rios Sarapuí e Iguaçu, que desaguavam na baía (GOMES et alii, 2010, pp. 78-80). No Reino de Ngoio, região do porto de Cabinda: “o mar tinha importante significado na concepção de mundo dos cabindas. Formavam uma sociedade marítima e detinham a tecnologia de construção de barcos desde o século XVIII” (Ibidem). Na umbanda, a memória marítima de Cabinda também aparece num ponto (canções cantadas nos rituais) de preto velho (entidade que representa os escravos): “Congo com Cabinda/Quando vem pra trabalhar/Congo vem por terra/Cabinda vem pelo mar”12. Nesse período, a navegação de longo curso com pavilhão do Brasil ainda era pífia, e nela quase não se utilizava mão de obra escrava. No entanto, como mostra a tabela, na navegação de cabotagem, mais da metade da tripulação era composta de escravos. Nos navios mercantes havia, na década de 1850, segundo as estatísticas oficiais uma minoria de cerca de 200 indígenas matriculados no Rio de Janeiro. Mas sabemos também que muitos deles foram contabilizados entre os pardos. A Marinha de Guerra, em consonância com leis do Império, promoveu o recrutamento de indígenas dentro do processo civilizatório característico do século XIX. Expedições de recrutamento foram realizadas em províncias como Espírito Santo e Pará. Esses indivíduos eram muitas vezes referidos como índios na correspondência que os acompanhava de suas províncias natais e se transformavam em caboclos nos registros da Armada. Os indígenas ribeirinhos eram considerados adequados para a Marinha. O norte-americano Ewbank os encontrou na baía: Encontrei, faz poucos dias, uma centena de recrutas recém-chegados de uma província do Norte. A maioria era de cor, um terço era de índios. Eles se alistam por quanto tempo? – perguntei. Eles absolutamente não se alistam, responderam-me. São agarrados e obrigados a servir. Os presidentes de Província têm ordens para enviar todos os indivíduos desordeiros, e tantos índios quantos puderem apanhar (EWBANK, 1856, p. 278, tradução minha).

Nos levantamentos que fiz de recrutas e tripulações da Armada entre as décadas de 1830 e 1860, 19% ou mais das tripulações eram compostas de caboclos, além de uma maioria de pardos que deveria incluir uma parcela considerável de descendentes de indígenas. Os marinheiros caboclos eram tanto índios de aldeamentos coloniais em pleno desmonte, quanto índios que cresceram em meio à sua nação, com língua e cultura própria13.

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Considerações finais A algaravia do porto carioca era especialmente internacional em meados do século XIX, formada por levas de marítimos participantes de um rodízio que mudava permanentemente as feições da cidade. Cosmopolitismo, marginalidade, limiar, encruzilhada: seja o nome que for, todos se referem à diversidade cultural e aos diversos lugares simbólicos e espaciais ocupados pelos marujos. O porto do Rio é pequeno hoje em dia. Não é mais rota obrigatória para o Pacífico e o Índico. A Rua da Misericórdia se desconfigurou com a derrubada do Morro do Castelo, sobrando entre poucos trechos uma mística ladeira que dá em lugar nenhum. O Rio de Janeiro não é mais capital do Brasil, nem mais uma cidade pan-africana ou paneuropeia. No entanto, as marcas desse tempo ainda são visíveis. Os escombros das estalagens, tavernas da Rua da Misericórdia, embaixo do Centro da cidade, ao lado dos esqueletos misturados nas valas comuns nos confins do terreno da Santa Casa da Misericórdia, o grito final da forca do Largo do Moura.... Afinal, o que é baía, o que é aterro, o que é terra firma na região portuária? Se escavarmos um pouco, ainda podemos ouvir tamanha algaravia e conceder-lhes um enterro mais digno. Notas 1 “A rota traçada por Vasco da Gama utilizou a Volta ao Largo pela primeira vez na história de navegação à vela no Atlântico Sul. Nesta manobra, os navios, após passarem pelas ilhas do Cabo Verde, rumam para sudoeste, aproveitando-se da corrente do Brasil e dos ventos do flanco esquerdo do anticiclone subtropical do Atlântico evitando numerosas dificuldades que encontrariam no percurso ao largo da costa africana” (INOCCENTINI, Valdiri et alii, 2000). 2 Nesse período, a identidade dos “brasileiros” era preferivelmente ligada à província de origem: baianos, pernambucanos, paulistas, etc. 3

Diário dos Tribunais. Rio de Janeiro, 17/10/1843.

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Ver verbete “encruzilhada” em Chevalier e Gheerbrant, op.cit. pp. 367-370. Os autores relacionam vários estudos do significado de encruzilhadas em diversas sociedades em diferentes épocas. 4

5 Nome que as religiões afro-brasileiras empregam para oferenda, muitas vezes no sentido de limpeza, purificação, livrar-se do mal.

Tratei especificamente de diários de norteamericanos em JEHA, Silvana. “Anphitheatrical Rio!” Marítimos americanos na baía do Rio de Janeiro, século XIX. Almanack. Guarulhos, n.06, pp.110132, 2º semestre de 2013. 6

portos ou estações navais da província, como Angra dos Reis, Paraty e Campos. Podemos descontar do total de 10% a 20%, considerando os que não são matriculados nos portos da baía do Rio de Janeiro. No entanto, podemos acrescentar algo semelhante se somarmos marujos que vêm em navios de guerra estrangeiros e nacionais. Considero que os pequenos portos da baía pertencem à dinâmica geral portuária da Corte. Há cerca de 40 rios que deságuam na baía, por isso faz sentido dizer que canoeiros desses rios em algum momento frequentavam a baía. Afinal, a Corte era abastecida pela Baixada Fluminense e por outros pontos do interior. Mapa da força naval do Brasil. E. RMM, 1855.

Sobre recrutamento para a marinha no período, ver JEHA, 2011, pp. 110-122. 9

Estas cartas e os esboços estão publicados em MANET, Édouard. Viagem ao Rio: cartas da juventude, 1848-1849. Rio de Janeiro, José Olympio, 2002.

10

Para um resumo de seu livro de memórias (Five years before the mast, Philadelphia: G.G.Evans, 1859) ver JEHA, 2011, pp. 102-6.

11

Ponto cantado no terreiro Pai Benguela em São Paulo, 2014. 13 Ver seção “Indígenas”. JEHA, 2011, p. 155-164. 12

7 Mesmo sabendo que a maioria dessas embarcações é do porto da Corte, não se está especificado quantas são matriculadas em outros

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A CIDADE-ENCRUZILHADA

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Escravidão e navegação fluvial: Identidades africanas na cidade do Rio de Janeiro e seus arredores Slavery and inland navigation: African identities in the city of Rio de Janeiro and its surroundings Nielson Rosa Bezerra Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenador do Curso de Pós-Graduação em História da África e da Cultura Afro Brasileira na Fundação Educacional de Duque de Caxias (FEUDUC) e colaborador do Museu Vivo do São Bento (Caxias-RJ) [email protected]

RESUMO: Neste artigo, apresento uma visão panorâmica da cultura dos comandantes, marinheiros, barqueiros e remadores empregados na navegação fluvial que se fazia na Baía de Guanabara, visando as conexões da cidade do Rio de Janeiro e seus arredores durante o século XIX. A pesquisa utilizou diferentes tipos de documentos, como relatos de viajantes, inventários e códices da Polícia da Corte, onde foi possível apurar indícios das identidades africanas representadas na cultura dos marinheiros, bem como identificar algumas das muitas conexões entre a cidade do Rio de Janeiro e o Recôncavo da Guanabara. Palavras-chave: navegação fluvial, escravidão, identidades, comércio.

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ABSTRACT: In the following paper I present an overview of the commanders, sailors, boatmen, and rowers who worked in inland navigation within the Guanabara Bay, connecting the city of Rio de Janeiro to its vicinity in the 19th century. The research used several kinds of records such as travelogues, inventories and codices of the Royal Court’s Police, where it was possible to sense signs of African identities represented in the maritime culture and to identify some of the many connections between the city of Rio de Janeiro and the region around the Guanabara Bay. Keywords: inland navigation, slavery, identities, trade.

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O cenário da Guanabara: beleza natural, navegação e autonomia escrava Talvez não exista no mundo uma região como o Rio de Janeiro, com paisagens e belezas tão variadas, tanto do ponto de vista da forma grandiosa das montanhas quanto dos contornos das praias. Em virtude da multidão de enseadas e promontórios, há uma variedade infinita de panoramas, tanto para o lado da baía e das suas ilhas quanto para o mar alto. Não são menores a riqueza e a variedade da vegetação (RUGENDAS, 1941, p. 26).

Desde o século XVI, as águas da Baía de Guanabara serviram de conexão entre a cidade do Rio de Janeiro e o mundo atlântico, sendo ocupada por inúmeras embarcações e suas respectivas tripulações, envolvidas no transporte de mercadorias e passageiros. Neste contexto, a cidade tornou-se a principal porta de entrada de africanos escravizados do centro-sul do Brasil, passando a ser também uma referência no processo de distribuição de mão de obra escrava para o interior. No mesmo contexto, a Baía de Guanabara tornou-se um espaço de conexão entre a cidade e o seu recôncavo, sendo a principal via de acesso a regiões como Niterói, São Gonçalo, Magé, Iguaçu, entre outras. Como se vê, não eram apenas os trabalhadores empregados na navegação atlântica que ocupavam as águas da Guanabara, havendo também uma expressiva quantidade de trabalhadores empregados no comércio cotidiano, envolvidos no transporte de pessoas e de mercadorias entre o litoral e o interior mais próximo da província do Rio de Janeiro. Eram a beleza das montanhas e os contornos das praias que emolduravam o cenário de tráfico humano, onde se comercializavam homens, mulheres, jovens e crianças para serem empregados nas mais diferentes atividades e ofícios do regime escravista. Neste artigo, proponho acentuar as contradições entre as belezas naturais e a exploração do trabalho escravo nas águas da Baía de Guanabara, considerando-se a diversidade da mão de obra africana naquele contexto. É bem sabido que as relações escravistas não se restringiam ao espaço da cidade, mas ganhavam novos contornos e espaços, caracterizando as complexidades do regime escravista e suas repercussões na formação da sociedade brasileira. A cidade do Rio de Janeiro, em seus 450 anos de existência, tem sido caracterizada pelas belezas naturais formadas pelo conjunto entre as montanhas e os contornos de suas praias. Para os viajantes do século XIX, as belezas naturais da Baía de Guanabara eram uma motivação e provocavam o entusiasmo de se conhecer e vivenciar as experiências da vida tropical. Entretanto, o mesmo entusiasmo também era provocado pela diversidade cultural e pela multiplicidade de trabalhadores e seus ofícios espalhados por todos os cantos da cidade, 92

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incluindo as águas da Guanabara. A maior parte desses viajantes não se restringiu às ruas da cidade de São Sebastião, encontrando nas viagens ao interior do Brasil os caminhos para completar suas vivências e experiências, muitas vezes em busca de conhecimento sobre a história natural de um Brasil tropical. Com isso, seus registros oferecem ainda hoje uma visão panorâmica das belezas naturais, das atividades produtivas e da vida cotidiana do Brasil durante aquele período. Assim, o interesse aqui será descrever e analisar os relatos de diferentes viajantes sobre a cidade do Rio de Janeiro, a Baía de Guanabara e seu recôncavo, buscando compreender como o regime escravista integrava essas diferentes regiões, tornandoas uma extensão da outra por meio de um complexo processo de conexão protagonizado pelos marinheiros, barqueiros e remadores africanos que trabalhavam nas embarcações utilizadas na navegação fluvial que desembocavam nas águas da baía durante o século XIX. Desse modo, a viagem para o interior partindo da cidade tinha como primeiro destino o recôncavo da Guanabara, seus portos fluviais e suas freguesias, geralmente acompanhadas de uma movimentação comercial, uma vez que naquelas localidades se fazia o entreposto das mercadorias que circulavam entre o litoral e o interior da província do Rio de Janeiro. O missionário norte-americano Daniel Kidder, em 1822, iniciou uma dessas viagens, deixando registros sobre o porto do Rio de Janeiro, a travessia da Baía da Guanabara e os portos fluviais do recôncavo: Quando chegamos ao ponto onde devíamos tomar a embarcação (Praia dos Mineiros), fomos, como de costume, assaltados por cerca de cinquenta barqueiros, e tremenda concorrência, oferecendo botes, faluas ou canoas (...) Esses homens pertencem à numerosa classe de escravos adestrados no mister de catraeiros e empregados no transporte de passageiros no interior da baía. Dão-lhes botes e canoas pelos quais ficam pessoalmente responsáveis, assumindo perante seus senhores a obrigação de pagar certa parcela diária, depois de deduzida a quantia necessária à sua subsistência. (...) não trabalham apenas para ganhar a vida, mas para escapar ao castigo que lhes está reservado caso não consigam entregar a seus senhores a parcela estipulada (...). alugamos um bote munido de vela e remos conduzidos por dois negros que diziam ser perfeitos conhecedores de todos os portos da baía (KIDDER, 1972, 145-146).

Kidder relatou diferentes características dos barqueiros escravizados que trabalhavam nas embarcações empregadas na Baía de Guanabara, visando as conexões da cidade e seus arredores. Segundo ele, os barqueiros eram muitos, havia concorrência entre eles, variando o tipo de embarcação, a necessidade do cliente e o local para onde desejava se deslocar. Contudo, o viajante americano também apontou para a dinâmica da exploração do trabalho escravo de acordo com os ofícios de barqueiros e marinheiros. De acordo com Kidder, aquelas pessoas, mesmo na condição de escravizados, recebiam autonomia de trabalho, de deslocamento espacial para além dos limites da cidade, muitas vezes chegando aos lugares mais recônditos da província. Entre os trabalhadores que ofereciam seus serviços, a comitiva do missionário americano alugou um bote com dois remadores que se diziam conhecedores de todos os n.9, 2015, p.91-103

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portos da baía. Isso significa que a autonomia era cotidiana e recorrente, acumulada nas inúmeras viagens realizadas entre os portos da Guanabara. Juliana Barreto Farias apontou a presença de escravos fugidos que se passavam por pombeiros na região portuária da cidade, sobretudo nas praias da Saúde e do Valongo, mas que também fugiam pelo recôncavo, passando-se por mascates e visitando as diferentes engenhocas. Em outras ocasiões, esses africanos escravizados também se passavam por marinheiros em Porto das Caixas ou Iguaçu (FARIAS, 2011, pp. 175-193). Por sua vez, Ynaê Lopes dos Santos (2011, pp. 85-100) analisou o caso dos africanos Sivestre e Domingos, presos pela Polícia da Corte na Praia Formosa, enquanto abasteciam a canoa que os levariam de volta para o quilombo de Iguaçu, onde viviam já por algum tempo. De acordo com a autora, aquela era uma das frequentes viagens realizadas para comercializar as mercadorias produzidas pelos quilombolas, sugerindo que aqueles indivíduos mantinham familiaridade com a vida urbana por meio da estreita conexão entre a cidade do Rio de Janeiro e as freguesias rurais de seus arredores. O envolvimento de milhares de africanos empregados como marinheiros, barqueiros e remadores na navegação fluvial que conectava o recôncavo e a cidade provocava uma perspectiva de invisibilidade, facilitando as fugas e o trânsito dessas pessoas naquele circuito. Além da constante vigilância e da repressão policial pelas ruas da cidade, percebe-se uma tentativa de controle dos trabalhadores da Baía de Guanabara, de forma que fosse possível extinguir ou minimizar situações como as anteriormente descritas. De acordo com a Polícia da Corte, os juízes de paz das freguesias da cidade e do recôncavo deveriam apresentar uma lista de todas as embarcações, sendo estas identificadas pelo seu modelo e o tipo de serviço a que se destinavam. Do mesmo modo, a lista deveria ser acompanhada de uma relação da tripulação de cada embarcação. Os comandantes das embarcações (arrais), por exemplo, além dos nomes, deveriam também ter suas descrições físicas registradas, de modo que fosse possível antever qualquer tentativa de burlar a ordem estabelecida. Sobre mascates e quitandeiros do mar, ainda era preciso que as embarcações fossem inspecionadas cotidianamente, uma vez que estas seriam consideradas suspeitas e sujeitas a averiguações1. A autonomia dos escravos barqueiros descrita por Kidder desvela uma lógica de rebeldia, uma vez que escravos fugiam e se passavam por pequenos comerciantes e mascates, utilizando o tumultuado cotidiano da navegação fluvial da Guanabara e seus arredores para se tornarem invisíveis aos mecanismos de controle e repressão da sociedade escravista. Em muitos casos, os quilombolas que viviam nos arredores da cidade se passavam por barqueiros e comerciantes – nada fora do normal, se já não fossem esses foragidos do trabalho escravo. Contudo, o controle e a repressão estavam organizados com a intenção de conter os abusos e as resistências ao regime da escravidão. Para isso, todas as embarcações deveriam ser enumeradas, caracterizadas, e seus tripulantes, identificados. Desse modo, seria possível conter situações como aquelas protagonizadas por Silvestre e Domingos. 94

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O recôncavo da Guanabara era extenso, sendo possível identificar diferentes portos, referências para as inúmeras embarcações que conectavam a cidade com várias freguesias rurais dos seus arredores. De acordo com Kidder (1972, p. 158), os portos principais da baía eram Magé, Piedade, Estrela e Iguaçu. Porém, a documentação tem demonstrado uma multiplicidade de portos: além daqueles geralmente mencionados pelos viajantes, foi possível identificar a Praia Grande de Niterói, Porto das Caixas, Guia de Pacobaíba, Pilar, Inhomirim e Sarapuí, entre outros. Além disso, o porto da cidade do Rio de Janeiro também se multiplica, aparecendo pontos onde atracavam e desatracavam as embarcações, como Botafogo, Porto dos Ingleses, Saúde, Gamboa, Irajá e Caju, entre outros2. Desse modo, percebe-se um Rio de Janeiro ainda mais plural do que a historiografia vem apresentando. O porto de embarque de mercadorias e de desembarque de africanos poderia ser mais do que aquele originalmente identificado na Praia dos Mineiros. É possível que muitos desembarques ilegais de africanos ocorridos depois de 1831 tenham acontecido na própria cidade ou nos seus arredores próximos, uma vez que a multiplicidade de portos também significava dificuldade para se fiscalizar, facilitando as atividades dos traficantes e mercadores desejosos de contornar os impedimentos legais sobre o comércio de africanos. Não é difícil imaginar que não eram apenas a raia miúda, alguns quilombolas e escravos fugidos que se aproveitavam das dificuldades do sistema de controle estabelecidos pelo Estado brasileiro durante o século XIX. As conexões entre o recôncavo e a cidade do Rio de Janeiro também se faziam presentes no âmbito da classe senhorial. Muitos proprietários de fazendas do recôncavo mantinham negócios e sobrados na cidade, tornando possível a convivência das diferentes realidades do mundo urbano mesmo que, em muitos casos, fossem as atividades rurais as principais fontes de recursos dessas pessoas. Em 1814, Manoel Gomes Cardoso era proprietário de 97 escravos. Residente na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Inhomirim, na fazenda Anhangá, situada às margens do rio Saracuruna, tinha outra fazenda, de menor porte, nas proximidades do Porto da Estrela. Seus escravos estavam distribuídos entre suas fazendas e nos negócios que mantinha na Corte: 25 ficavam na cidade, 72 nas fazendas. Este senhor também tinha embarcações, carros de transporte e pequenas casas e sobrados na cidade. Desse modo, as atividades comerciais que Cardoso mantinha na cidade, bem como a produção rural de suas fazendas, o tornavam alguém acostumado com o trânsito entre diferentes espaços geográficos, seja pessoalmente, seja por meio de trabalhadores que viviam a serviço de seus interesses3. O inventário do comendador Bento Domingues Vianna, distinta figura política da vila de Iguaçu, demonstra a lógica de muitos proprietários residentes no recôncavo da Guanabara, que, além de seus escravos ligados às atividades rurais, também mantinham outros trabalhadores escravizados em atividades na cidade ou, pelo menos, na navegação fluvial que conectava as duas localidades. No caso de Bento Domingues Vianna, sua casa de vivenda de frente para o porto do Iguaçu era ladeada por galpões que serviam para armazenar n.9, 2015, p.91-103

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o café produzido serra acima. Muitos de seus trabalhadores escravizados eram empregados naqueles armazéns, trabalhando no processo de estocagem daquela importante mercadoria. Contudo, seus escravos mais bem avaliados foram os africanos barqueiros, responsáveis pela condução das embarcações em direção à cidade do Rio de Janeiro ou a outras localidades do recôncavo. Considerando-se que o comendador também tinha sobrados localizados nos Arcos do Teles, ao lado da Alfândega, próximo à região portuária, é possível que os mesmos barqueiros também tivessem contato com os demais escravos do comendador que viviam na cidade4. As atividades dos escravos da cidade pertencentes aos fazendeiros do recôncavo poderiam ser diversas, como diversas também poderiam ser as autonomias de circulação desses indivíduos. De acordo com Ynaê Lopes dos Santos (2011, p. 97), havia senhores que viviam no recôncavo e solicitavam licença para que seus escravos pudessem trabalhar ao ganho nas ruas da cidade. Por volta de 1842, o senhor José Felix, morador de São João de Meriti, solicitou licença para seu escravo Pedro Crioulo trabalhar ao ganho. Não se sabe se vivia em residência de propriedade de seu senhor, mas o certo é que o escravo Pedro Crioulo vivia na rua da Quitanda, no Centro da cidade, bem próximo ao porto. No Rio de Janeiro oitocentista, os senhores obtinham privilégios, mantinham diferenciais que os distinguiam dos demais componentes daquela sociedade. Entretanto, era o trabalho escravo que os mantinha e garantia a prosperidade de seus negócios. Assim, eram os proprietários de escravos os maiores interessados na circulação dos trabalhadores escravizados, uma vez que os serviços feitos por estes levavam ao enriquecimento de seus senhores. Em contrapartida, era o Estado responsável por criar leis e mecanismos de controle da massa de escravizados que circulavam pelas ruas e navegavam pelas águas da Guanabara, muitas vezes atravessando os limites da cidade e também circulando por outros espaços de seus arredores. A questão remete aos períodos de ausência, nos quais muitas vezes os africanos e crioulos escravizados ficavam distante das vistas de seus senhores. Pedro Crioulo, por exemplo, vivia na cidade, enquanto seu senhor vivia no recôncavo. Isso significa que, por mais fácil que fosse o deslocamento entre o recôncavo e a cidade, essas viagens não eram feitas todos os dias. Embora escravizado, Pedro Crioulo não estava sob o olhar senhorial cotidianamente. O botânico inglês Charles James Fox Bunbury registrou: Fiquei impressionado com a beleza das pequenas ilhas cobertas de mato de que a baía é espessamente salpicada, e muitas das quais habitadas; as cabanas aninhadas debaixo das orlas das florestas, perto do mar, com pequenas plantações e bananeiras ou cana-de-açúcar, lembram-me as gravuras que vi nas ilhas do mar do sul. A parte superior da baía tem as características de um lago. Cinco horas eram passadas desde que tínhamos partido da cidade, antes de chegarmos à entrada do rio da Estrela ou Anhum-mirim (em tupi, pequeno caminho) (BUNBURY, 1981, pp. 51-52).

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As viagens não eram rápidas o suficiente para serem feitas várias vezes ao dia, o que não significa que muitos barqueiros e remadores não as fizessem diariamente. Contudo, considerando-se o tempo de organização da tripulação e preparo de todos os equipamentos, somado ao tempo necessário para cruzar toda a extensão da Guanabara, era trabalho para um dia inteiro. É possível que muitas vezes as embarcações ficassem de um dia para o outro em determinada localidade, considerando-se o tempo de embarcar mercadorias ou aguardar clientes para serem deslocados de um lado para o outro.

Navegação fluvial, embarcações e tipos de serviço As perspectivas levantadas a partir do olhar dos viajantes possibilitam pensar a diversidade social e, sobretudo, as diferentes atividades comerciais ocorridas na dinâmica da navegação fluvial da Guanabara. De acordo com os registros da Polícia da Corte e do Arsenal de Marinha, havia 747 embarcações empregadas nas águas da Guanabara e nos seus rios adjacentes, responsáveis pelas atividades de transporte entre a cidade e o recôncavo. Eram, pelo menos, 25 tipos de embarcações, entre elas catraias, canoas, botes, bangulas, faluas, barcos, saveiros e lanchas. Os serviços prestados também eram variados, como fretes, pesca, descargas, cargas e quitandas. De modo geral, as embarcações de fretes eram as mais requisitadas, pois serviam para o transporte de pessoas e mercadorias5. Em suas memórias, o viajante inglês George Gardner registrou a caracterização de uma dessas embarcações: O barco em que viajamos é de um tipo muito comum no porto e muito utilizado para transportar mercadorias ao fundo da baía e trazer, de lá para o Rio, produtos do interior. Também é utilizado em viagens de passeio dos frequentadores das ilhas e praias da baía. Chama-se falua de passeio e tem tripulação de seis remadores e um timoneiro intitulado patrão. Este, que quase sempre é o dono, é, em geral, de origem portuguesa. Na falua há dois mastros, cada um dos quais com uma grande vela; a popa é coberta e fechada por cortinas (...). As faluas alugam-se a preço de dezoito xelins, por um dia inteiro (GARDINER, 1975, pp. 33-34).

Além do serviço de transportes, as águas da Guanabara também eram utilizadas para outras atividades. A pescaria era largamente praticada, sendo a freguesia da Praia Grande o principal lugar de concentração daquelas embarcações dedicadas a essa atividade. Algumas “canoas de pescar” eram registradas como “canoa de ajuda”. Normalmente, a primeira tinha tripulação registrada, mas na segunda não havia qualquer marinheiro registrado. É possível que se tratasse de uma precaução para que não faltasse espaço nos dias de boa pescaria. Outra peculiaridade era o “mestre de rede”, indicando o responsável pela embarcação. Também havia os chamados saveiros ou barcos de descarga. Como a envergadura de muitas embarcações não permitia uma aproximação com o cais, elas precisavam ser auxiliadas por outras, menores, capazes de transportar pessoas e mercadorias. O serviço de descarga se fazia necessário, pois evitava o risco de encalhe das embarcações maiores. n.9, 2015, p.91-103

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A cidade do Rio de Janeiro tem sido caracterizada por uma escassez de água potável que marcou sua história na longa duração. No período colonial e no século XIX, foram muitos os esforços para manter o abastecimento de água no Rio de Janeiro. Muitos aquedutos e chafarizes, atualmente edificações que embelezam a paisagem urbana, no passado foram fundamentais para minimizar os problemas hídricos da cidade. Considerando esse raciocínio, chama atenção a presença das canoas de água entre as embarcações autorizadas a circular pela Baía de Guanabara. Concentradas na região da Gamboa, eram responsáveis por transportar água das fontes naturais dos arredores para a cidade. Viajantes como Debret registraram as reuniões de escravos em torno de fontes e chafarizes como cenas cotidianas da cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Também é possível mencionar historiadores que trataram a atividade de buscar água nas fontes e chafarizes como uma espécie de pedagogia a que determinados escravos eram submetidos para serem treinados nas “atividades de rua” que poderiam oferecer vantagens para senhores e cativos (GRAHAM, 1992).

Identidades africanas nas águas da Guanabara: remadores, comandantes, barqueiros e marinheiros Os diferentes tipos de embarcações oferecem uma dimensão da diversidade das atividades econômicas desenvolvidas no processo de navegação fluvial que conectava a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores. Mas quem eram as pessoas envolvidas diretamente nesse processo? Os remadores e os barqueiros que atravessavam a Baía de Guanabara também foram descritos pelos viajantes europeus que alugaram seus serviços ao longo do século XIX. Muitas vezes, o etnocentrismo europeu se fez presente, caracterizando os trabalhadores escravizados de forma pejorativa, sem qualquer menção à importância do trabalho dessas pessoas. Um exemplo desse tipo de descrição pode ser encontrado nas palavras de Adèle Toussaint-Samson: Gordos vendeiros portugueses tiravam sapatos e coçavam os pés durante a viagem; outros estendiam-se nos bancos, semi-despidos e roncavam sem se importar com seus companheiros de viagem; negros sujos e malcheirosos, carregados de cestos e de gêneros de toda a natureza atravancavam o barco, de sorte que ficamos muito satisfeitos de deixar essa encantadora sociedade e desembarcar em Piedade (TOUSSAINT-SAMSON, 2003, p. 15).

Embora fossem palavras com forte teor etnocêntrico, marcado pelo desconforto de realizar aquela viagem acompanhada de pessoas que não estavam inseridas em um contexto social semelhante, as palavras acima também revelam o quanto o transporte entre a cidade e o recôncavo poderia ser plural, no sentido das diferenças sociais ali representadas. Homens livres, libertos e escravos compartilhavam o espaço das embarcações com mercadorias de diferentes tipos. As embarcações guardavam um ambiente favorável para se pensar uma 98

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síntese das diferenças sociais concentradas no cotidiano das pessoas que precisavam navegar por aquele trajeto. Os remadores eram trabalhadores que realmente provocaram o interesse dos viajantes europeus que utilizaram seus serviços. Em alguns casos, a atenção dada às belezas naturais da Baía de Guanabara era menor se comparada ao desempenho dos trabalhadores empregados naquele ofício. Gardner (1975), por exemplo, afirmou que os tripulantes empregados na navegação entre a Guanabara e seus arredores eram, em geral, fortes e musculosos. Normalmente sentavam-se em um banco e utilizavam os pés para dar apoio, enquanto levantavam o tronco para remar. O movimento era acompanhado por um canto que expressava certa melancolia, mas que oferecia um compasso necessário para o ritmo em que o trabalho deveria ser realizado. Do mesmo modo, Charles Bunbury descreveu o trabalho dos remadores, oferecendo detalhes sobre a prática desse ofício: Os negros têm um modo esquisito e aparentemente desajeitado de remar; em cada remada, eles não só se levantam dos assentos como ficam de pé sobre o barco em frente deles, e então se jogam para trás em posição de quem se senta, de modo a dar remada com todo o ímpeto do seu peso. Pode-se imaginar que os seus remos são pesados e difíceis de manejar, e seu progresso, lento (BUNDURY, 1981, pp. 114-115).

Os relatos de viajantes são valiosos em qualquer processo investigativo do passado. Entretanto, não se pode confiar cegamente neles. É preciso questionar, problematizar ou confrontar as falas deles com outras fontes que ofereçam uma dimensão diferente do mesmo contexto. Desse modo, as matrículas das embarcações da Baía de Guanabara, registradas na Polícia da Corte, são fundamentais para a melhor compreensão das identidades multiculturais representadas por aqueles trabalhadores, sobretudo os remadores e barqueiros. A Polícia da Corte registrou 2.740 pessoas distribuídas em 744 embarcações, contando com os remadores, marinheiros, barqueiros e arrais empregados na navegação fluvial da Baía de Guanabara que conectava a cidade do Rio de Janeiro aos seus arredores. Desses, 2.311 eram africanos, correspondendo a aproximadamente 84,5% do contingente de trabalhadores. Contudo, esses africanos não representavam uma identidade específica, mas inúmeras identidades que viviam nas fronteiras da etnicidade, como bem apontou Fredrick Barth. Segundo ele, os regimes coloniais favoreciam a aproximação social, suscitando o contato entre pessoas de diferentes grupos étnicos, mesmo que não ocorresse um completo entendimento do que os tornava diferentes. Assim, as restrições que normalmente operam nas relações interétnicas são minimizadas, oferecendo mais clareza sobre as complexidades dessas sociedades (BARTH, 2000, p. 64). Os africanos vieram para o Rio de Janeiro e formaram grupos identitários diversos que, para sobreviver, precisavam manter suas tradições, bem como construir novos laços sociais favoráveis ao convívio com pessoas de diferentes origens. Contudo, é preciso lembrar que n.9, 2015, p.91-103

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a condição de escravizados não impediu a construção de identidades próprias e que elas sofreram variações de acordo com a época e o contexto. A necessidade de renovação do estoque de africanos fez com que o perfil do tráfico atlântico variasse, e que indivíduos de diferentes partes da África tenham sido desembarcados no decorrer do tempo. Levando em conta esse raciocínio, para além da diversidade, o cativeiro e os ofícios nos quais estavam empregados também poderiam ser considerados como fatores de preponderância na construção de identidades individuais e coletivas. Assim, os africanos estavam inseridos na hierarquia da sociedade escravista como membros de grupos específicos que poderiam ser distinguidos por uma irmandade religiosa, por um ofício muito específico – como o dos barqueiros – ou por fazerem parte da tripulação de uma determinada embarcação. Com isso, entende-se que as denominações encontradas nas fontes são mais que simples nomenclaturas, pois se trata de elementos de um sistema de classificação que era utilizado no cotidiano escravista (SOARES, 2002). No caso das equipagens das embarcações na Baía de Guanabara, seus membros eram identificados como barqueiros, remadores, arrais ou marinheiros. Contudo, em suas matrículas, as nações africanas eram indispensáveis para a caracterização de cada indivíduo registrado. Tratava-se de pessoas reconhecidas por um ofício que, por si só, já oferecia uma distinção naquela sociedade, uma vez que trabalhavam nas águas da Guanabara, mas especificamente na navegação fluvial voltada para a conexão com o recôncavo. Além disso, essas pessoas eram identificadas entre si, tendo a nação e as características individuais registradas, de forma que fosse possível estabelecer um diferencial mais apurado entre elas. Mesmo quando os comandantes das embarcações não eram escravos, os africanos apareciam regularmente como remadores. Este era o caso do barco de frete do juiz de paz da Freguesia de Itambi, mais precisamente no Porto das Caixas, cujo mestre da embarcação era Sebastião Mouro, de origem turca, com 44 anos de idade, além de ser branco alto, ter olhos e cabelos pretos, e barba grande. Naquela embarcação eram remadores os africanos João Moçambique e Francisco Moçambique6. Em algumas embarcações de propriedade ou comandadas por austríacos (que possivelmente obtiveram sua entrada e sua permanência no Brasil em função dos acordos que envolveram o casamento de D. Pedro I), também havia a presença de Antônio Cabinda dividindo a tarefa de remador com Thomas, um austríaco. Em 1829, ambos trabalhavam a serviço de Luis Nicolau, natural da Áustria, morador de Praia Grande, proprietário de dois botes de quitanda, onde também exercia a função de comandante7. É certo que os africanos estavam em condição subalterna, pois, além de remadores – uma posição de inferioridade na hierarquia funcional das embarcações –, também eram escravos e carregavam consigo todas as implicações da condição de cativo no Brasil. Porém, a descrição demonstra a autonomia de trânsito que aquelas pessoas mantinham entre a cidade do Rio 100

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de Janeiro e seus arredores. O contato com turcos e austríacos representa bem a dinâmica multicultural da navegação na Guanabara e na rede fluvial que lhe estava conectada. Embora tenha me preocupado em apontar a pluralidade cultural dos trabalhadores da Guanabara, incluindo o contato de africanos com imigrantes de diferentes regiões da Europa, a parte mais expressiva daqueles marinheiros, barqueiros, remadores e comandantes era formada por africanos. Assim, é possível pensar na diversidade de culturas africanas representada nas águas da Guanabara. Para se ter uma ideia, entre os 323 comandantes de embarcações (nem todas as embarcações foram registradas com seu comandante), 119 eram africanos (37%). Desse modo, percebe-se o quanto os africanos dominavam o comando das embarcações. Dos 2.417 remadores, barqueiros ou marinheiros, 2.192 eram africanos (quase 91%), ficando bem clara a importância do trabalho dessas pessoas no cotidiano da navegação fluvial da Guanabara e seus arredores. A diversidade das nações africanas registradas para identificar os membros de cada tripulação era muito acentuada. Uma visão panorâmica sobre as informações obtidas na Polícia da Corte permitiu a identificação de pelo menos 31 diferentes identidades, incluindo as grandes procedências do tráfico, como moçambiques, benguelas e cabindas, e nações reconhecidas como minoritárias na população escrava da cidade do Rio de Janeiro, como calabar, baca, mussá e mufumbi, entre outras. É possível explicar a concentração de moçambiques, benguelas e cabindas entre os marinheiros africanos que trabalhavam na Guanabara em um período do século XIX em função da própria dinâmica global do tráfico, já que indivíduos dessas nações e procedências eram abundantes no Rio de Janeiro. Para pensar sobre a concentração de tripulantes identificados por essas nações, podemos pensar nas possibilidades de se utilizar o conhecimento de alguns indivíduos sobre a navegação fluvial antes mesmo de atravessar o Atlântico. Jaime Rodrigues (2005, p. 188) apontou que a presença de marinheiros de determinadas etnias africanas nas tripulações se dava pelo interesse dos oficiais europeus em função das habilidades que eles traziam consigo. Os cabindas, por exemplo, eram muito apreciados pelos capitães portugueses, uma vez que, em geral, já traziam experiência nas atividades de cabotagem na região ao norte de Angola. Além disso, havia inúmeras nações e procedências registradas para identificar os trabalhadores embarcados da Baía de Guanabara. Mesmo com uma quantidade bem reduzida desses grupos minoritários (não representavam nem 2% do total daquelas pessoas), a variedade de nações era muito grande, o que também indica a diversidade étnica da população africana do Rio de Janeiro. Entre os barqueiros da Guanabara, isto não seria diferente. Segundo Mariza Soares (2002), esses pequenos contingentes mostram que a procedência (nação) era um componente importante na identificação do escravo, sendo necessário manter cuidadoso olhar para todos os grupos identitários, mesmo para aqueles com poucos ou apenas um representante. n.9, 2015, p.91-103

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Considerações finais A cultura dos marinheiros, barqueiros e remadores da cidade do Rio de Janeiro e seus arredores estava marcada pelas identidades africanas introduzidas no Brasil pelos muitos africanos comercializados no tráfico atlântico de escravos. Nesse contexto, as identidades eram estabelecidas por meio de uma forte ressignificação de signos africanos mantidos e transformados por aquelas pessoas, mesmo que vivessem, muitas delas, na condição de escravizados. Essas ressignificações ganhavam maiores proporções quando ocorriam entre representantes de culturas diferentes que precisavam conviver em um mesmo espaço, que poderia ser um canto da cidade, uma freguesia rural ou uma embarcação. Entre os trabalhadores empregados na navegação fluvial do Rio de Janeiro e seus arredores, os africanos concentravam a maior parte da população, com destaque para as nações mais corriqueiras do tráfico, mas com a presença de procedências minoritárias, formando um emaranhado de nações que oferecia a diversidade cultural característica do cotidiano daquelas pessoas. Os remadores que, no olhar dos viajantes, eram vistos com uma perspectiva de unidade étnica, geralmente descritos como negros, de fato eram muitos e de origens diversas, que utilizavam aquele ofício em comum como uma miragem das identidades que carregavam consigo ao longo de suas vidas. As viagens para o recôncavo eram corriqueiras e cotidianas, embora se gastassem até seis horas para cada trecho. Isso fazia com que os escravos envolvidos nessas atividades tivessem um elevado grau de autonomia. Não era incomum ter apenas africanos escravizados nas embarcações responsáveis por atravessar a Guanabara e contornar os rios que conectavam a cidade e seus arredores. Havia casos de retornos mais demorados, às vezes, por terem que esperar mercadorias e passageiros atrasados. Desse modo, a cultura representada neste artigo demonstra autonomia e diversidade que os africanos mantinham ao longo de sua trajetória sob a condição escrava. Para isso, os mecanismos de controle social por meio da matrícula e das averiguações de embarcações pelas autoridades constituídas se faziam necessários, o que permitiu o registro das principais informações aqui analisadas. Notas 1 Arquivo Nacional. Polícia da Corte. Códice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832.

Comendador Bento Domingues Vianna. Vila de Iguaçu, 1869.

2 Arquivo Nacional. Polícia da Corte. Códice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832.

5 Arquivo Nacional. Polícia da Corte. Códice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832.

3 Arquivo Nacional. Inventário de Manoel Gomes Cardoso. Maço 451. Processo 8640. Juízo de órfãos. Inhomirim, 1814-1818.

6 Arquivo Nacional. Polícia da Corte. Códice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832, p. 71.

Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de História da Baixada Fluminense. Inventário do 4

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7 Arquivo Nacional. Polícia da Corte. Códice 413. Volume 1. Rio de Janeiro, 1829-1832, 10.

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Referências Bibliográficas BARTH, Fredrick. “Os grupos étnicos e suas fronteiras”. In: O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. BUNBURY, Charles James Fox. Viagem de um naturalista inglês do Rio de Janeiro a Minas Gerais (18331835). São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. FARIAS, Juliana Barreto. “Pombeiros e pequeno comércio no Rio de Janeiro do século XIX”. In: SOARES, Mariza Carvalho e BEZERRA, Nielson Rosa (Orgs.). Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-XIX). Niterói: EdUFF, 2011, p. 175-193. GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e patrões no Rio de Janeiro (1860-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (Províncias do Sul). Rio de Janeiro: Biblioteca Histórica Brasileira, 1972. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Itatiaia, 1941. SANTOS, Ynaê Lopes dos. “Viver na rua, viver a rua: usos e práticas da moradia escrava na Guanabara oitocentista”. In: SOARES e BEZERRA (Orgs.). Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-XIX). Niterói: EdUFF, 2011, pp. 85-100. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, 2003. Recebido em 25/03/2015 Aprovado em 08/04/2015

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Apresentação

Nos últimos anos, têm surgido vários estudos baseados em intensa pesquisa empírica que retomam temas clássicos e fundamentais da História do Brasil, principalmente sobre a formação social brasileira e a construção do Estado no século XIX e no início do XX. Nesses trabalhos, questões como política e eleições, as complexas relações entre liberalismo e escravidão e as lutas dos trabalhadores são abordadas a partir de novas perspectivas de análise e propostas metodológicas. Em primeiro lugar, essa leva de pesquisas é legatária das discussões historiográficas das décadas de 1980 e 1990, quando houve uma renovação dos paradigmas da História Social que somou a leitura de autores de grande influência no Brasil à originalidade do uso de novas fontes de pesquisa pelos historiadores brasileiros. Enquanto a History From Below (A história vista de baixo) objetivava atentar para a vida das pessoas comuns na história, novos caminhos metodológicos eram trilhados para propor uma aproximação entre a experiência cotidiana, a subjetividade dos indivíduos e as relações sociais, como no caso da redução da escala e da pesquisa nominativa aliada às práticas demográficas1. Cotejava-se assim, progressivamente, a análise de documentos oficiais, como relatórios e atas das instâncias legislativas e executivas, bem como censos demográficos, juntamente com documentos até então pouco reconhecidos como fontes para a escrita da História: periódicos, processos criminais e cíveis, inventários e testamentos, e literatura, na forma de romances amplamente reconhecidos e obscuros folhetins2. Inspiradas nesses trabalhos inovadores, pesquisas mais recentes incorporam de forma irrevogável a análise das relações raciais e de gênero na investigação de uma grande diversidade de categorias de trabalhadores e trabalhadoras. Longe de ser tratada como empecilho ou como problema a ser superado para a formação da classe trabalhadora, esta diversidade é parte desse processo histórico, numa articulação que se faz em diversas dimensões, escalas e sobreposições3. Em diálogo com essas tendências, este dossiê reúne trabalhos que, com grande densidade de pesquisa e propostas metodológicas claras, têm como principal característica compartilhada o tratamento dado aos poderes públicos: as esferas político-administrativas que compõem o Estado são aqui vistas de perto em sua complexidade e em seus conflitos internos. Mais precisamente, é a trama da organização municipal que informa algumas questões centrais em todos eles: por um lado, como se organizam as Câmaras ou a n.9, 2015, p.107-111

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municipalidade, os regulamentos, a legislação e as atribuições, e, por outro, os bastidores das disputas com outras instâncias de poder, seja a presidência, a assembleia provincial ou a polícia. Ambos os processos são sempre considerados à luz das relações sociais mais amplas que lhes deram forma. Deste modo, os autores enfrentam um problema recorrente encontrado pela historiografia prévia: como entender que, se o poder municipal tendia a ser visto em seu aspecto normatizador e de controle social da população pobre, esta era justamente a primeira e a principal instância a que esses homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, recorriam para reclamar seus direitos ou seu acesso à cidadania. Esta indagação remete ao tema das noções do justo, os conflitos em torno da construção da legislação e as lutas por direitos para diversos grupos, e, com isso, esses trabalhos se inscrevem numa tradição de pensar a lei como campo de disputas4. Torna-se uma questão fundamental para os autores aqui reunidos, portanto, o desafio de enfocar a trama mais específica das relações entre o Estado como um campo complexo de esferas administrativas, legislativas e normativas, em conjunto com a diversidade de identidades que se imbricam e se sobrepõem nas ações individuais e coletivas dos sujeitos históricos. Essas abordagens nos distanciam de uma visão exclusiva ou prioritariamente normativa e repressiva dos poderes públicos, e da interpretação unívoca que esgota as posturas, os editais, regulamentos e sua aplicação num intuito de controle social. O panorama mais complexo e matizado se constrói graças à atenção à agência histórica de homens e mulheres, escravos, escravas, livres e libertos, trabalhadores domésticos, prostitutas, policiais, talhadores e vendedores de rua, limitada, regulada e possibilitada por essas instâncias normativas. Neste sentido, os artigos a seguir renovam criativamente a velha busca do equilíbrio entre o reconhecimento de que homens e mulheres agem segundo sua própria racionalidade e suas estratégias, mas dentro de determinados limites. São tais relações e limites que os textos aqui reunidos exploram. As leis municipais da cidade de Campinas que incidiam sobre o comércio, presentes nos quatro Códigos de Posturas promulgados ao longo do século XIX, foram analisadas por Laura Fraccaro. A autora aborda o modo como a legislação municipal, ao regular o comércio e criar horários e espaços específicos para essa atividade, constitui-se em uma tentativa de controle sobre a população pobre e cativa. Ao longo do século XIX, ela identifica um processo de recrudescimento da fiscalização do cumprimento das disposições legais, o que tornava instável a permanência dos comerciantes na rua, principalmente devido à pressão de outros comerciantes, aqueles que pagavam impostos mais altos por possuírem bancas ou quartos no mercado e que denunciavam seus rivais por irregularidades. Contudo, como mostra Fraccaro, os pequenos comerciantes e produtores encontraram estratégias para resistir ao aumento de artigos e impostos que incidiam sobre seu trabalho. As disputas em relação a um projeto de regulamentação do trabalho doméstico pelo conselho municipal do Rio de Janeiro, analisadas no artigo de Flavia Fernandes, 108

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revelam a tensão que essa vasta categoria de trabalhadores provocava nos primeiros anos após a abolição. A intencionalidade do projeto não era, como no caso de outras categorias que se organizavam nesse momento, atender às suas demandas por direitos. Exigir a posse de cadernetas onde haveria registro até mesmo de sinais e características físicas de seus portadores configurava a tentativa de exercer um controle discricionário sobre esses homens e mulheres, em sua maioria libertos e afrodescendentes, vistos como potencialmente perigosos nos momentos iniciais do regime republicano. O debate sobre o projeto mostra o dissenso entre os próprios membros do conselho: alguns, na defesa de um conceito liberal de república e de liberdade do trabalho, alertaram para o perigo de se instaurar uma nova escravidão, caso a lei fosse aprovada; enquanto isso, outros não temiam avançar com este dispositivo de controle sobre os passos dos trabalhadores domésticos. O âmbito municipal também se revelou um lugar particularmente apropriado para a negligenciada pergunta sobre a relação entre trabalhadores e política no fim do século XIX. Felipe Azevedo e Souza e Ana Flávia Magalhães Pinto desenvolvem estratégias para contemplar esta dimensão. Ana Flávia Magalhães revisita temas caros à história política a partir de uma perspectiva de história social ao abordar o tema da cidadania na Primeira República. Ao apontar as contradições na exclusão dos analfabetos por meio de uma análise comparativa da legislação eleitoral entre o Império e a República e das listas de eleitores da freguesia da Sé, em São Paulo, Magalhães mostra o interesse da “arraia miúda” pelo seu direito político mais fundamental. Ela acompanha brevemente a trajetória de dois homens negros em sua luta pelo direito ao voto, mostrando que a legislação e as práticas fraudulentas de exclusão de uma vasta parcela da população não foram capazes de anular a expectativa daqueles homens após o fim da escravidão e com a novidade da República. Se a cidadania republicana não se concretizou como mais inclusiva e democrática do que o período anterior, não terá sido por falta de interesse. Já Felipe Azevedo e Souza dedicou-se a investigar o caso dos talhadores do mercado público do Recife, nas décadas finais da escravidão, para analisar as relações entre trabalhadores pobres e política partidária. Em um espaço que reunia talhadores escravizados e livres, um importante elemento detonador da luta e construtor de uma identidade coletiva foi a demanda pelo fim do trabalho escravo no exercício do ofício. Abaixo-assinados, petições, artigos em jornais e manifestações feitas pelos talhadores constituem indícios concretos da atuação política deles. Nesta perspectiva, o poder municipal é a instância mais próxima de reivindicação e de regulação da vida cotidiana e política desses trabalhadores. A escala municipal permite entrever um mosaico de relações de poder, tensões sociais e brechas legais só visíveis na abordagem de casos e de recortes locais, decorrentes da própria natureza do objeto de estudo. Lidos em conjunto, os artigos alertam para os riscos de generalizações sobre processos históricos que ganham forma em lugares tão diversos n.9, 2015, p.107-111

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como o Rio de Janeiro, Recife, Campinas e São Paulo. No entanto, também sugerem que talvez seja no campo das perguntas e dos problemas históricos que se possa desenvolver perspectivas comparativas que permitam elaborar análises mais sistêmicas de determinados processos. Para estimular esta reflexão como uma possibilidade futura, e para formular questões sobre o lugar do Estado nacional nessas análises, agregamos duas reflexões sobre a cidade de Buenos Aires. De organização muito mais recente que as municipalidades brasileiras, num contexto republicano muito mais descentralizado e conflituoso, o caso portenho surge como um contraponto instigante. Cristiana Schettini toma o caso da regulamentação municipal da prostituição para se perguntar como a municipalidade portenha foi se organizando entre múltiplas interlocuções sociais: com os médicos, com a polícia e com os grupos envolvidos no intenso processo de expansão urbana que teve início na década de 1870. Nesta correlação de forças, as donas das casas de prostituição foram diretamente afetadas, e também incidiram, com suas pequenas estratégias, no desenrolar do processo de construção do poder municipal. Por sua vez, Diego Galeano revisita o clássico tema da relação entre poderes municipais e policiais na Buenos Aires do fim do século XIX através da perspectiva do trabalho policial. A estratégia de inserir o trabalho de vigilantes no panorama mais amplo do mercado de trabalho portenho tem uma dupla função: em primeiro lugar, complica e põe em tensão os limites da história do trabalho e seus sujeitos “clássicos”. Por outro lado, é justamente este exercício que permite uma descrição rigorosa da administração urbana num momento em que a trama estatal costuma ser vista mais como promessa do que como realidade. Os artigos aqui reunidos voltam a colocar os grupos sociais e suas condições materiais de existência no centro de uma análise sobre a política e o Estado. Por isso, apostamos que a perspectiva municipal é particularmente apropriada para uma postergada reaproximação da história social com temas clássicos da história política. Cristiana Schettini

Professora da Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires (Unsam)

Fabiane Popinigis

Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Paulo Terra

Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Recebido em 15/07/2015 Aprovado em 25/07/2015 110

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Notas SHARPE, Jim. “A História Vista de Baixo”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum - Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 1

2 GOMES, Ângela de Castro; “Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate”, In: Revista Estudos Históricos, vol.2, n.34, 2004; CHALHOUB, Sidney e SANTOS, Fernando Teixeira dos. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”, In: Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2009.

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3 Por exemplo, os tipógrafos, as prostitutas, os caixeiros, os carroceiros, as quitandeiras: VITORINO, Arthur José Renda. Máquinas e operários. Mudança técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912); São Paulo: Annablume/Fapesp, 2000. SCHETTINI, C. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. POPINIGIS, F. Proletários de casaca – empregados no comércio carioca (1850-1911). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007; TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e Trabalhadores: Cocheiros e Carroceiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2011.  4 THOMPSON, E.P; Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1987. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes e LARA, Silvia Hunold (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de História Social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

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Vender e viver: posturas e comércio, Campinas, século XIX Selling and living: municipal law and trade, Campinas, 19th century Laura Fraccaro Mestre e Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) [email protected]

RESUMO: Ao longo do século XIX, foram quatro os Códigos de Posturas que vigoraram na cidade de Campinas. Esses códigos criavam novas taxas para exercer ofícios, atividades comerciais, e estabeleciam multas e prisão, para aqueles que não cumprissem suas determinações. Eram diversos os artigos que regulavam o cotidiano dos habitantes da cidade para além do comércio, como a construção de casas, calçadas, cuidados dos doentes, mendicância e outros. O comércio, que se apresentava como uma atividade para a população mais pobre adquirir seu sustento ou vender excedentes na cidade, começou a se tornar mais oneroso. Antes dos Códigos, a venda de animais, de quitutes ou excedentes de produção exigia um capital inicial muito pequeno e quase não apresentava riscos, permitindo que qualquer pessoa iniciasse a atividade. Porém, após a regulação da Câmara Municipal, comercializar transformou-se em uma atividade tributada e de riscos crescentes, como os de ter a mercadoria apreendida ou ir para a prisão. Pagava-se para ter licenças para o comércio e também para o tipo de produto que se vendia. Havia aferições regulares em balanças e medidores, e os indivíduos que não seguissem as posturas eram multados. A fiscalização e a normatização dessa prática transformaram a vida das pessoas que participavam do comércio.

ABSTRACT: Throughout the 19th century, four municipal codes of “Posture” went into effect in the city of Campinas. These codes created new taxes for trades, business activities and established penalties, including imprisonment, for those who did not comply with its provisions. Many clauses regulated the daily lives of the inhabitants well beyond trade matters, such as construction guidelines for houses, sidewalks, the care for the sick, begging and more. The trade which provided for the poorest in the city started to become more expensive. Before the Codes, the sale of animals, delicacies or surplus production required a very small initial capital and presented almost no risk, allowing anyone to initiate the activity. However, after regulation by the Municipal Chamber, selling goods became a taxed activity with increasing risks, such as having merchandise seized or being jailed. They had to pay for licenses in order to trade and also for the kind of product sold. Scales and gauges were constantly checked and the individuals who did not comply were fined. Inspections and regulations of this practice completely changed the lives of the individuals involved in commercial activities. Keywords: Municipal “Posture” Code, Freemen, Commerce, Campinas, 19th Century.

Palavras-chave: Posturas municipais, Libertos, Comércio, Campinas, Século XIX. n.9, 2015, p.113-125

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m 1774, foi fundada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso. Atualmente chamada de Campinas, a freguesia era localizada em um ponto estratégico do Caminho das Minas dos Goyazes, que passava pelas Capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo e se estendia até a região aurífera. A elevação do povoado a freguesia fazia parte de um plano estratégico engendrado por Morgado de Matheus para intensificar o “controle fiscal e combate ao contrabando” (SANTOS, 2002, pp.76-77) das mercadorias conduzidas pelo referido caminho e povoar a região, evitando, assim, o avanço dos espanhóis. Aos interessados em ocupar a região, o governador concedia terras, ferramentas e isenção do serviço militar. Em pouco mais de duas décadas, em 1797, Campinas do Mato Grosso deixou de ser freguesia e passou a ser vila, emancipando-se de Jundiaí. Nesse período, sua população passou de 475 (TEIXEIRA, 2004, p.4) habitantes para 2.4181. Apesar da produção de alimentos ser representativa, muitos habitantes da vila dirigiamse à cidade de Itu para vender suas colheitas ou criações. Era o caso de Pedro Ribeiro, que no recenseamento de 1799 declarou ter vendido em Itu mais de 85 alqueires de toucinho2. Em 1809, quando a produção de milho e de toucinho atingiu a expressiva quantidade de 60 mil alqueires e 20 mil arroubas, respectivamente, Campinas não possuía um espaço específico para seus comerciantes dentro da vila3. O comércio era feito de modo disperso pelas localidades vizinhas e nos arredores da própria vila de Campinas pelos vendedores que iam aos domicílios oferecendo seus produtos (LAPA, 2008, p. 276). Por causa dessa movimentação, as autoridades tinham que lidar com o atravessamento de mercadorias. Ao conduzir suas mercadorias para a região mais central da cidade, esses produtores eram abordados por comerciantes que queriam comprar gêneros mais baratos e revendê-los por preços mais caros, obtendo assim o monopólio do comércio. Preocupados com a circulação dessas pessoas e com o abastecimento da cidade, a municipalidade construiu as “Casinhas” em 1819 para tentar concentrar os vendedores em uma única região e mantê-los sob a vigilância do fiscal (LAPA, p.275). As Casinhas eram cômodos que deveriam ser arrematados em hasta pública para que pudessem ser ocupados por seus vendedores. Comerciantes de carne-verde, sal, cereais e toucinho poderiam ocupar esse espaço, e os vendedores de hortaliças, verduras, legumes e quitandas teriam que se instalar nos arredores do edifício. As pessoas que cultivavam alimentos para subsistência aproveitavam a oportunidade para vender o excedente nos arredores das Casinhas. Poderiam vender, por exemplo, milho, mandioca e amendoim, sem que por eles pagassem impostos. Uma década depois, em 1829, foi aprovado o primeiro Código de Posturas, com o qual a Câmara buscava registrar seus comerciantes para poder cobrar tributos, aplicar multas e fiscalizar estabelecimentos e mercadorias. As licenças para comércio eram exigidas apenas dos proprietários de “armazéns, botequins e tavernas”4. Os vendedores de hortaliças, verduras, frutas, ovos e outros gêneros similares de consumo ficavam isentos de qualquer tributo.

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Os roubos e o atravessamento de alimentos estiveram presentes nos discursos de autoridades e grandes comerciantes como justificativa para regular o comércio e criar espaços específicos para exercê-lo. Logo no primeiro Código de Posturas, em 1829, eram aplicadas multas de trinta mil-réis e oito dias cadeia para os indivíduos que atravessassem “qualquer gênero comestível” (MARTINS, 2001, p.30). Apesar dos inúmeros códigos aprovados e da atuação dos fiscais, o roubo e o atravessamento persistiram na cidade nas décadas seguintes. O primeiro Código de Posturas da cidade é o único de que se tem notícia para a primeira metade do século XIX. Com ele, estabelecia-se o toque de recolher às 21 horas, anunciado pelos sinos da igreja. As atividades comerciais deveriam também ser encerradas nesse momento (LAPA, 2008, p.291). A construção das casas e as delimitações das propriedades também estavam previstas; cada morador tinha a responsabilidade de manter de pé seus muros ou cercas, e as ruas livres de entulhos ou animais (LAPA, 2008, p.61). Aos infratores, aplicavam-se multas e algum tempo de cadeia, dependendo da infração. Os Códigos de Posturas Municipais que se sucederam ao longo do século XIX auxiliaram na normatização dos espaços de comércio e criaram novas taxas sobre a agricultura e as vendas. Essas cobranças passaram a exigir maiores gastos das pessoas que praticavam o comércio. Os artigos que compunham os Códigos de Posturas dividiam-se em grupos que geralmente versavam sobre construção e terrenos, serviços públicos obrigatórios, comércio e abastecimento, salubridade, criação de animais, armas e artigos inflamáveis. Para a redação dos códigos, os vereadores da Câmara se baseavam nas demandas frequentemente apresentadas à Câmara e nos problemas que poderiam ocorrer na vila. Pode causar estranhamento encontrar entre os artigos do Código de Posturas de 1829 um artigo inteiro sobre a extração de formigueiros, no qual se concedia o prazo de três meses, a partir da data da publicação do Código, aos habitantes para que esses retirassem o formigueiro de suas propriedades, sob pena de multa de seis mil-réis5. O problema com as formigas, no entanto, era bastante corriqueiro na cidade e trazia ameaças. Um viajante que passou pela vila na década de 1840 deixou registros sobre “os sérios danos causados pelas formigas” em casas da cidade, cujas paredes de taipa e estruturas ficaram comprometidas pela ação do inseto (KINDER, 2001, p.225). Os artigos reguladores, após aprovação, eram pregados nas paredes em volta da praça de maior circulação ou recitados várias vezes em voz alta pelo porteiro da Câmara, para que pudessem alcançar o maior número de habitantes. A fiscalização do cumprimento desses artigos era feita por um funcionário da municipalidade ou por meio de denúncias. Se o fiscal de posturas encontrasse alguma infração ao código, deveria autuar o infrator imediatamente e lhe aplicar a multa. A punição variava na quantia em dinheiro e no tempo de prisão, podendo também incluir a apreensão da mercadoria. Caso desejasse, o infrator tinha quinze dias para recorrer da autuação, dirigindo-se às audiências públicas específicas para esse fim. Reuniamse testemunhas, e a validade da autuação era julgada pelo juiz da Comarca. n.9, 2015, p.113-125

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Nas décadas seguintes ao primeiro código, as Casinhas não conseguiram abrigar todas as pessoas que exerciam o comércio na cidade. Para as autoridades municipais, era necessário um local maior que pudesse receber os comerciantes e, em 1859, a Câmara aprovou a construção do primeiro Mercado Municipal da cidade. Nesse ano, houve um grande aumento nos preços dos gêneros alimentícios atribuído às chuvas e à alta produtividade do café, que passou ser produzido em larga escala em detrimento da produção de alimentos (MARIANO, 1970, p.39). Além desses fatores, a prática de atravessar alimentos, muito utilizada na cidade desde as primeiras décadas do século XIX, continuava presente. Para evitar o atravessamento, foi estabelecida a “Alta.” Os vendedores só poderiam sair da praça com a “Alta”, um bilhete de autorização do inspetor, que o concedia a partir do meiodia (MARTINS, 2001, p.68). Os gêneros deveriam ser levados para venda primeiramente no Mercado. Só depois de terem passado um tempo no Mercado, os vendedores receberiam autorização para continuar suas vendas pelas ruas da cidade. A movimentação desses comerciantes ficava restrita e sob a vigilância do fiscal. Para o historiador Valter Martins, “mais do que a evidente intenção de tentar solucionar os problemas do abastecimento urbano, o mercado serviu para ajudar a controlar os movimentos da população crescente e heterogênea, surgindo como um espaço de normatização” (MARTINS, 2001, p.39). Apesar das iniciativas da Câmara de evitar a ação dos atravessadores de “gêneros comestíveis”, o atravessamento persistia. Em 1865, Vitorino José de Seixas foi autuado pelo fiscal por “ter comprado uma carregação de toucinho que se dirigia a esta cidade” antes de esse gênero ter sido conduzido para o mercado para obter alta. Vitorino fez o atravessamento “próximo a esta cidade [Campinas], na estrada que segue para Mogi-Mirim”. Foi multado em trinta mil-réis e oito dias de prisão6. Os cativos eram também acusados de desviar parte da produção das fazendas nas quais trabalhavam para vender aos atravessadores. Na seção “A Pedido” do jornal A Gazeta de Campinas, em 1869, “um munícipe” escreve à Câmara: Pedimos à nossa Ilma. Câmara que adicione ao seu Código de Posturas uma [Postura] que ponha cobro ao constante atravessamento de gêneros alimentícios que os pretos vêm vender aos domingos e dias santos. É uma verdadeira calamidade para a população o ter de comprar por preço duplo ou triplo aquilo que custaria muito menos, se certos mercadores de pequeno trato não se postassem pelas estradas a atravessar os gêneros que os escravos conduzem com licença de seus donos, e quem sabe se até a engoda-los para trazerem gêneros proibidos, como café e outros7.

Os comerciantes eram parte fundamental na venda das mercadorias atravessadas. Dirigiam-se até as estradas, buscando comprar dos viajantes ou produtores locais suas mercadorias antes que essas fossem levadas ao mercado. Joaquim Ferreira Timbres Queiroz, comerciante que tinha venda no mercado, foi acusado de comprar “no mesmo mercado no dia 28 de agosto de 1863 oito alqueires de arroz com casca e [ter] tornado a vender dois alqueires” na mesma praça. Joaquim havia ferido o artigo 11º do Regulamento do Mercado8. 116

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Esse artigo tentava evitar o atravessamento e o monopólio dentro do próprio mercado. É proibido comprar gêneros alimentícios sujeitos à Praça do Mercado dentro dela, para revender antes de obterem Alta, sob pena do Artigo 37º das Posturas; igual pena terão os que comprarem fora da Praça os gêneros mencionados cujos vendedores não apresentarem a nota da Alta. Os que fora da Praça comprarem para seu consumo sem a nota da Alta serão multado em dez mil-réis; igual pena terão os que venderem fora da Praça sem nota da Alta (MARIANO, 1970, p.82).

Outros comerciantes não viam com bons olhos essas práticas, já que seus colegas tinham acesso a mercadorias de forma mais barata, acirrando a competição. Porém, as denúncias nos periódicos tendiam a criminalizar a população mais pobre e escravos, e solicitavam que as autoridades retirassem esses grupos das áreas comerciais: O chafariz que há próximo ao mercado desta cidade, vê em torno de si quotidianamente uma aglomeração de escravos e pessoas de ínfimos costumes a fazerem algazarra, e, muitas vezes, sérios desaguisados, com prejuízo de todos e máximo da boa moral. Seria conveniente que se postasse ahí um guarda incumbido de policiar aquele theatro da vadiação; ou, ao menos, que uma patrulha, de quando em quando, fosse passear aqueles sítios. (Nós, do jornal) concordamos com esta excelente lembrança do nosso comunicante9.

No mesmo período em que essas denúncias foram feitas ao jornal, a Câmara criou mais um espaço para os comerciantes, e os gêneros de quitanda que não eram regulados passaram a ter um espaço específico. Em 1872, com a criação do Mercado de Hortaliças, as vendas consideradas de quitandas passaram a ser reguladas de modo semelhante ao do mercado, obedecendo à “Alta”. O comércio que antes era feito de modo livre em tabuleiros ou em vendas volantes pelas ruas da cidade, sem horário determinado, passou a ser praticado obrigatoriamente no Mercado de Hortaliças e seus arredores. Antes de se dirigirem às ruas, as quitandeiras, vendedores e vendedoras tinham que ficar até às dez horas no mercado (MARTINS, 2005, p.140). Anos mais tarde, a circulação desses comerciantes foi restringida ainda mais. Em 1880, o artigo 78º mostrava a reduzida movimentação que esses vendedores poderiam ter. Os gêneros chamados de quitanda, como frutas, aves, peixes e outros serão vendidos no respectivo mercado. O capim para animais e qualquer outro gênero idêntico será vendido nos lugares que a Câmara designar. § único. Os negociantes de gêneros acima especificados podem igualmente vende-los pelas ruas da cidade, contanto que os vendedores não estacionem senão nos lugares indicados. Os que vendem doces em tabuleiros poderão estacionar-se pelas ruas, contanto que não embaracem o trânsito. Os infratores incorrerão na multa de 10$000 e o duplo nas reincidências10.

As multas também se tornaram mais onerosas. Em 1829, quem vendesse gênero adulterado ou danificado, além de perder a mercadoria, pagaria uma multa de 2$000 réis. Em 1858, essa multa passaria a 30$000 réis e oito dias de prisão. A multa por estar com o estabelecimento aberto sem licença passaria de 20$000 réis em 1858 a 30$000 em 1880, n.9, 2015, p.113-125

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dobrando o valor se fosse reincidente. A punição para os comerciantes de aguardente também teve igual crescimento11. O pagamento de licenças ou de multa por aqueles que buscavam no comércio a possibilidade sazonal de vender um excedente da produção poderia levá-los à falência e ao endividamento. Antes da criação desses espaços para comércio e do estabelecimento de multas pelos Códigos, o imposto a ser pago era o Dízimo, imposto provincial e calculado proporcionalmente à produção, podendo ser essa manufaturada ou de gêneros agrícolas. O dízimo era uma “taxa antiga em Portugal, instituída por bula do Papa Júlio III” (PETRONE, 1968, pp.23-24), calculada por meio de porcentagens que variavam para cada gênero produzido. Era cobrado quando esses produtos saíam da província, podendo também ser cobrado sobre os gêneros que ficavam na vila. Quando o produtor não declarava sua produção nem pagava a respectiva porcentagem, poderia perder seus bens, que iam a leilão para quitar as dívidas. Avisado de que devia sete mil-réis de dízimos atrasados, Narciso, produtor de milho, recorreu a seu genro Pedro para ajudá-lo. No mesmo dia, o genro levou um cavalo para quitar a dívida12. A taxa proporcional à produção onera menos os produtores do que a taxa fixa, como a licença de venda, por exemplo (SCOTT, 1976, p.30). Imaginemos que um agricultor fosse ao mercado vender seu excedente. A quantidade vendida deveria ser maior que os tributos recolhidos de forma fixa, ou não sobraria nada para que o produtor sobrevivesse. Os indivíduos que tivessem uma porção de menor valor para vender, provavelmente se arriscariam a levar multas. Acumulariam mais dívidas e correriam o risco de perder seus bens se as não quitassem. A taxa proporcional, no entanto, permitiria que produções de qualquer monta fossem conduzidas ao mercado. Acostumados com esse tipo de cobrança, os produtores teriam que despender mais capital para a cobrança de impostos, como licenças e taxas de vendas específicas para produtos, todas fixas. Essas novas cobranças modificaram a participação de pequenos produtores de alimentos no comércio local, que se tornou uma saída menos segura para aumentar os rendimentos, além de mais onerosa. O processo das fiscalizações e do cumprimento das disposições legais ficou mais intenso, tornando a permanência dos comerciantes na rua muito instável, principalmente devido ao desconforto dos comerciantes de “portas adentro” com a concorrência do comércio feito nas ruas. Os comerciantes que pagavam impostos mais altos para terem quartos ou bancas de vendas no mercado denunciavam todo tipo de comércio irregular. Remetiam à Câmara reclamações de quitandas que vendiam gêneros de venda, ou vendendo qualquer mercadoria estragada. Os comerciantes e contribuintes de estabelecimentos de “portas adentro” viam os vendeiros e comerciantes de tabuleiro como rivais desleais, e cobravam das autoridades um aumento da fiscalização. Ainda que o fiscal da Câmara não conseguisse controlar todos os estabelecimentos, vendas e tabuleiros, as denúncias contribuíam muito para tornar o comércio 118

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feito pelas ruas uma atividade cada vez menos rendosa para os setores menos remediados. Na Gazeta de Campinas, um comerciante questiona o “Senhor Fiscal” se “uma quitanda tem licença para vender gêneros de venda, porque na Rua do Comércio há uma quitanda” fazendo isso e prejudicando aqueles que pagavam licença de venda13. A fiscalização transformava uma prática que deveria ser estável e fonte de renda em uma potencial fonte de enorme despesa e até em falência, caso não houvesse dinheiro para reaver o que fora recolhido pelo fiscal. O capital inicial necessário para se estabelecer um comércio, fosse de venda, botequim ou ambulante, não era mais tão acessível como na primeira metade do século. Não bastava ter um excedente de produção ou habilidade para vender merendas, era preciso investir parte de seus ganhos em licenças. Os comerciantes de “portas adentro” e os consumidores mais abastados exigiam das autoridades fiscalização e penalidades para os donos de vendas volantes e quitandeiras. A presença de pessoas pobres transitando livremente pelas ruas buscando consumidores incomodava as classes mais altas, que viam a venda de gêneros pelas ruas como um perigo para a cidade. Na Gazeta, um pai reclamava da dificuldade em resistir às delícias verdes que são vendidas em tabuleiros, mas poucos sabiam o mal que elas poderiam causar. Vendo seu filho revirar-se de cólicas por ter comido uma merenda, sentia-se impotente, mas avisava todos sobre os “perigos que andam livremente nos tabuleiros” pelas ruas, e ainda pedia às autoridades que coibissem esse tipo de comércio14. As denúncias sobre esse tipo de comércio poderiam atingir também libertos e pardos livres que tinham seus estabelecimentos de “portas adentro”. Em 1860, Joaquim Américo foi acusado de ter infringido o Código de Posturas, artigo 41º, referente à venda de algum produto corrompido. A punição para os infratores era o pagamento de 30$000 réis e oito dias de cadeia. Joaquim Américo era pardo, dono de açougue, e respondia à acusação de vender banha estragada15. Declarou que, apesar de homem pobre e miserável, pagou ao fiscal a multa de 30$000 réis a fim de não ir para a cadeia por oito dias e continuar mantendo os meios de sustentar sua família. Havia pedido emprestado o dinheiro de um amigo16. Joaquim afirmou ainda que tinha pagado a multa porque receava “meter-se em teias judiciais, porque tem medo da justiça, porque quase sempre rebenta a corda pelo mais fraco”, e para poder ter sossego. A interpretação de Joaquim sobre a lei é reveladora. Os infratores deveriam pagar a multa ou permanecer na cadeia. As penalidades seriam permutáveis, e ele escolheu ter uma dívida com um amigo em vez de permanecer na cadeia. Para o açougueiro, oitos dias de cadeia prejudicariam seu sustento, enquanto a dívida que fizera com seu amigo permitia que o açougueiro continuasse trabalhando. A interpretação do infrator mostra como os impostos, as multas e prisões eram nocivos à estabilidade dos comerciantes. Era impossível cumprir as duas penalidades sem que seu negócio fosse severamente prejudicado. Então, decide recorrer logo depois de ser notificado de que precisaria passar um tempo na cadeira. n.9, 2015, p.113-125

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Sua alegação centrava-se no fato de a banha que estava em sua loja ter apenas um pedaço deteriorado e que a mercadoria não tinha sido posta à venda. Ter a banha corrompida não seria uma infração e, portanto, a denúncia era improcedente. Para Joaquim, o denunciante também era um demérito para a acusação, pois não frequentava o açougue. Ricardo Gumbleton Daunt era médico, ocupou o cargo de vereador (PUPO, 1983, p.22) e, usando de sua influência, muitas vezes pediu ao fiscal que fosse investigar certos espaços, inclusive o de Joaquim. Esse mesmo vereador iria propor, em 1863, um método que estabelecesse ordem na lavagem das roupas e coibisse comportamentos imorais das lavadeiras (MARTINS, 2001, p.99). Após saber quem era o denunciante, o medo de Joaquim quanto ao funcionamento da Justiça tornou-se compreensível. A versão de um açougueiro pardo e a versão de um médico prestigiado na cidade disputavam a sentença do juiz. Joaquim poderia não conhecer profundamente os artigos que compunham as Posturas, mas entendia muito bem como funcionavam as relações sociais na cidade de Campinas e no Império. Ao analisar a atividade de homens e mulheres africanos em torno do Mercado Municipal de Desterro, Popinigis afirma: Os primórdios da história de sua construção correspondem à proibição do tráfico de escravos em 1831 e às revoltas escravas das décadas seguintes, que amedrontaram autoridades e proprietários na Bahia e no Sudeste, passando pelos primeiros ensaios nos debates sobre a substituição do braço escravo no Império brasileiro. O ano de sua conclusão, 1850, é o mesmo ano da abolição do tráfico atlântico. Sua história é parte integrante das progressivas tentativas de controle sobre a população escrava, livre e liberta. O avançar da segunda metade do século XX viu o aprimoramento da ideologia de higiene e sua influência nas políticas públicas, o acirramento em torno das tentativas de regulamentação, sobretudo da fiscalização e da arrecadação de impostos sobre a circulação e a venda de gêneros alimentícios (POPINIGIS, 2012, p.223-4).

A elaboração dos Códigos, a regulação do comércio e a criação de espaços e horários específicos para essa atividade em Campinas também compuseram a história das tentativas de controle sobre a população pobre e cativa. No mesmo ano da aprovação do primeiro Código de Posturas (1829), o governo da província solicitava que todo juiz de paz produzisse uma “relação dos vadios e jornaleiros que existissem em seu distrito”, para que fossem feitas “as necessárias averiguações”17 sobre essa população. Um dos artigos desse mesmo Código proibia que cativos jogassem búzios e outros jogos na vila, e previa multa de dois mil-réis ou dois dias de cadeia para os que não pagassem. Previa multa também para os indivíduos que admitissem em suas casas ou estabelecimentos jogos com a participação de cativos18. O Código seguinte, de 1858, era ainda mais restritivo, prevendo multas maiores e açoites. As autoridades formularam inúmeros artigos que objetivavam controlar os espaços 120

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nos quais os cativos poderiam ou não permanecer e os horários de permanência nas ruas e de fazer comércio. O artigo 60º do Código de Posturas Municipais de 1858 advertia que era: proibido aos escravos jogarem quaisquer jogos nas ruas, praças, estradas ou em casas alheias sob pena de 15$000 réis de multa ou 10 açoites, à escolha dos senhores: as pessoas livres que jogarem com escravos ou prestarem suas casas para isso terão a pena de 30$000 réis e oito dias de prisão19.

Esse mesmo Código estabelecia horário de recolher para os cativos, que, se fossem encontrados sem o bilhete do senhor, seriam presos e conduzidos “no dia seguinte a quem pertencer”. Não apenas os escravos ficavam sob os olhos dos fiscais, mas também os livres que os auxiliassem nas infrações. Seguia o artigo 68º, controlando a permanência dos escravos e estabelecendo multas. Art.68 − Todos os donos de tabernas, botequins e armazéns que consentirem ajuntamentos de escravos demorados mais tempo do que for necessário para comprarem ou venderem serão multados em 4$000 réis e dois dias de prisão; os escravos sofrerão dez açoites e poderão ser isentos pelos senhores, pagando uma multa de 2$000 réis20.

As posturas revelavam seu caráter controlador ao limitar a permanência dos escravos em estabelecimentos comerciais e proibir a participação em qualquer jogo. Para as autoridades, a movimentação dos escravos no município deveria ser feita para cumprir a função estabelecida pelo seu senhor. Se o escravo era autorizado a comercializar, sua permanência nos estabelecimentos deveria durar o tempo de compra e venda. É interessante notar que a população livre também era considerada infratora se permitisse aos cativos a permanência além do tempo do comércio ou se desse oportunidade para que os escravos participassem de jogos. A responsabilidade de controlar e vigiar a população escrava era estendida à população livre (GEBARA, 1986, p.104). No regulamento do Mercado de 1860, a proibição dos ajuntamentos passou a incluir também a população livre. O artigo 14º proibia o “ajuntamento de pessoas inertes que não estejam comprando ou vendendo e que possam incomodar o expediente do negócio de quem compra e vende” (MARIANO, 1970, p.83). No Código de Posturas de 1880, o conceito alargava-se ainda mais, ficando proibido o ajuntamento de escravos “quando o número passar de quatro”, ou de pessoas que fizessem vozerio ou tumulto21. O comércio apresentava-se como uma estratégia importante para se manter ou até ascender socialmente (FARIA, 2000, p.70). Homens e mulheres, livres ou libertos, que ingressavam nessa atividade passaram a ser cada vez mais regulados. Espaços e horários específicos foram estabelecidos para que os comerciantes vendessem seus produtos, fazendo com que a movimentação desse grupo fosse controlada pelas autoridades.

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O estigma de vadios que os libertos carregavam quando livres (XAVIER, 1996, p.46) parecia incluir também a população livre de cor, que era vista com desconfiança pela municipalidade e pelos comerciantes de “portas adentro” que não gostavam de sua presença nos arredores do mercado ou nas ruas de comércio. Assim, as autoridades municipais e representantes das classes mais altas uniam forças para regular e fiscalizar o comércio, os botequins e a movimentação da população. Formuladas pelo Poder Público, as posturas que regulavam a atividade e a movimentação da população livre e cativa encontraram legitimidade entre as classes dominantes e contribuíram para transformar a composição dos indivíduos que viviam de vender e comprar. Os registros de licença para comerciantes da vila de Campinas ajudam a perceber essa mudança na composição dos comerciantes. O comércio era uma importante estratégia para as mulheres livres se manterem e para escravas alcançarem a alforria22. Em 1836, eram 44 as mulheres que pagavam a licença e registravam seus estabelecimentos na Câmara de Campinas. Duas décadas depois, esse número caiu para apenas seis. Apesar de o Código de Posturas de 1829 estabelecer multas, cobrança de licenças e aferições de pesos e medidas, muitas mulheres gastaram suas economias para cumprir as disposições que regulavam o comércio. A partir da década de 1850, o número de mulheres com licença para comércio diminuiu, e nas décadas seguintes não ultrapassou duas dezenas23. A diminuição das licenças pagas por essas mulheres certamente estava relacionada com os ciclos inflacionários dos preços dos cativos a partir de 1831. Esses ciclos contribuíram para valorizar o montante de bens daqueles que possuíam cativos, mas aumentou a desigualdade social, pois distanciava cada vez mais os setores que tinham escravos daqueles que não os tinham (FRANK, 2004, p.91). Esse aumento da desigualdade social e dos preços de escravos pode indicar que essas mulheres não mais podiam despender parte de suas economias para pagar licenças, como fizeram na década seguinte ao primeiro Código de Posturas. O fato de não pagarem as licenças não significava que essas mulheres tinham deixado de praticar o comércio. Ana Joaquina Rodrigues pagou licença para seu botequim entre os anos 1859 e 1861. Ficou quatro anos sem recolher o imposto, retornando a pagá-lo em 186524. No período em que decidiu não pagar as licenças, Ana foi testemunha em um processo. Estava em frente à sua casa, no mesmo endereço do botequim que licenciara anos antes, vendendo fumo25. Outra comerciante, Joana Justina pagava apenas a licença para ter venda, não recolhendo o imposto sobre a venda de aguardente, apesar de ter um botequim, como evidencia seu inventário. Eram muitos os garrafões de aguardente, licor, cerveja, e 126 garrafas vazias. Tinha mais de oito bancos, um número não descrito de mesinhas e três jogos de baralho26. Não pagava os devidos impostos, mas mantinha seu botequim aberto. Para se manterem no comércio, muitas mulheres e homens devem ter feito como Ana Joaquina e Joana e decidiram deixar de pagar alguns impostos por um tempo. Outros vendiam em tabuleiros os gêneros específicos de venda, esperando assim desviar-se das cobranças 122

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dos fiscais. Porém, os olhos dos comerciantes de “portas adentro” estavam sempre muito abertos para essas infrações. À medida que a cidade crescia e se urbanizava, novos artigos eram adicionados às Posturas, que tiveram variadas versões ao longo do século XIX. O primeiro código tinha cinquenta artigos, e o último para esse período, mais de uma centena. Novas demandas foram apresentadas à municipalidade. As construções precisavam ser fiscalizadas, e os indivíduos com doenças contagiosas deviam postos em reclusão; a circulação de cavalos e carroças nas ruas centrais tinha de seguir as normas estabelecidas, e licenças eram concedidas aos condutores27. Com o aumento das fiscalizações, a venda de um excedente ou de merenda ficou mais caro e arriscado, pois, ainda que ficassem na marginalidade, os vendedores corriam o risco de ser severamente multados. A própria modernização da cidade, de acordo com Amaral Lapa, fez com que a aristocracia exigisse serviços de melhor qualidade e com maior refinamento, levando as atividades informais à marginalidade (LAPA, 2008, p.289). Pequenos comerciantes e produtores procuravam resistir ao aumento e à criação de artigos e impostos. Tinham ainda que lidar com denúncias e fiscalizações que tendiam a prejudicar o lado mais fraco da corda, como afirmava Joaquim Américo. Outros tantos comerciantes não deixaram registros de suas impressões sobre a cobrança de impostos. Continuaram praticando o comércio sem pagar as licenças, buscando sua subsistência por meio dessa atividade, apesar dos obstáculos. Ainda que fossem aprovados e aplicados, os artigos eram, por vezes, ignorados e desconhecidos pela população, que insistia em fazer suas próprias interpretações dos dispositivos legais. Esses Códigos funcionavam como as estruturas e os muros de taipa descritos pelo viajante. Eram atacados milhares de vezes pelos indivíduos que insistiam em desrespeitá-los. Se às vezes avistamos apenas algumas formigas, como foi o caso de Joaquim Américo, é porque outros milhares existiram. A história desses pequenos comerciantes em Campinas no século XIX ajuda a compreender as formas escolhidas tanto pelos subalternos quanto pelo poder público nessa disputa de forças. Notas 1 Os dados de 1797 foram calculados a partir dos Maços Populacionais de Campinas sob guarda do Arquivo do Estado de São Paulo e disponível no domínio: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/ site/acervo/repositorio_digital/macos_populacao. (acessado pela última vez em 31/03/2015)

Maço Populacional da Cidade de Campinas, 1799, fogo 82. 2

Os dados foram retirados do Maço Populacional da cidade de Campinas, 1809 (letras diferentes). 3

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4 Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Livro de Registro de Correspondências, 1829-1831, p.2v. Os Códigos de Posturas foram cedidos gentilmente já digitados por Miguel Henriques de Carvalho. 5 Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Caixa 1, Código de Posturas de 1829. 6 Centro de Memória da Universidade de Campinas, Acervo do Tribunal de Justiça, Comarca de Campinas, Processo: Infração de Postura nº:

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7538, Ano, 1865, Ofício: 2º, Acusado: Vitorino José Seixas. 7

A Gazeta de Campinas, 29/11/1870, p.2.

Centro de Memória da Universidade de Campinas, Acervo do Tribunal de Justiça, Comarca de Campinas, Ação: Infração de Postura, Processo: 7537, Ano, 1863, Ofício: 2º, Acusado: Joaquim Ferreira Timbres Queiroz. 8

9

A Gazeta de Campinas, 22/09/1870, p.2.

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Código de Posturas de 1880, Livro de Registro de Correspondências, Cap.6º, Art. 80º, pp.112-133.

10

A tentativa frustrada de Narciso pagar o que devia ao dizimeiro compõe um longo processo de sua enteada Ana, que tentou reaver as terras da família arrematadas por causa das dívidas. Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas, Tribunal de Justiça de São Paulo – Comarca de Campinas, Autora: Ana Brito, Réu: José Inácio Camargo e mulher, Ação: Libelo Cível, Ano: 1829, Of:1º P:1210. Gazeta de Campinas, 06/10//1872.

Cruzei os nomes dos pais de Joaquim Américo com os nomes coletados na Lista de Habitantes de Campinas de 1830, na qual encontrei o domicílio de sua família. AEL Lista de Habitantes, 5ª Companhia, nº40. “Lourenço Antônio e Maria” Um dos filhos é Joaquim, livre, cuja idade calculada a partir do Processo de Infração de Postura permite-me afirmar que é Joaquim Américo. Centro de Memória da Universidade de Campinas, Acervo do Tribunal de Justiça - Comarca de Campinas, Ação: Infração Posturas, Processo: 3347, Ano:1861. Ofício 1 º, Réu: Joaquim Américo. Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Registros Gerais 1825-1831, p.144.

17

Cf: Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Livro de Licenças para Negócios, 1832-1852 e 1853-1861, tombo 43 e 44, respectivamente.

23

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Livros de Licenças para Negócios, tombo 44 e 45.

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16

Para uma análise mais detalhada sobre a presença feminina no comércio, ver: FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória. Cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio/Edunb, 1993. FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras: riqueza e estima social”, In: Tempo, nº9, pp.65-92, 2000. SILVA, Maciel Henrique. “Delindra Maria de Pinho: uma preta forra de honra no Recife da primeira metade do século XIX.”, In: Afro-Ásia, 32, 2005.

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12

Gazeta de Campinas, 05/09/1872.

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Código de Posturas de 1858, Livro de Correspondências, Posturas e editais, pp.34-43, Cap. 9º, Artigo 68º.

20

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Código de Posturas de 1880, Livro de Registro de Correspondências, Art. 76º, pp.112133.

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Livro de Códigos de Posturas e editais, 1858 a 1872, pp.34-43, e Código de Posturas de 1880, Livro de Registro de Correspondências, pp.112-133.

14

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Código de Posturas de 1858, Livro de Correspondências, Posturas e editais, pp.34-43, Cap. 9º, Artigo 60º.

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Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Caixa 1, Código de Posturas de 1829, artigos 11º e 12º.

18

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Livros de Licenças para Negócios, tombo 45.

25

Centro de Memória da Universidade de Campinas, Acervo do Tribunal de Justiça - Comarca de Campinas, Ação: Inventário, Processo: 306, Ano:1865, Ofício 3 º, Inventariada: Joana Justina da Santa Cruz. 26

Biblioteca Municipal da Câmara Municipal de Campinas, Código de Posturas de 1880, Livro de Registro de Correspondências, Art. 76º, pp.112-133.

27

Referências Bibliográficas EISENBERG, Peter L. Homens Esquecidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1989. FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras: riqueza e estima social”, In: Tempo, nº9, pp.65-92, 2000. KINDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: Rio de Janeiro e Província de São Paulo. Tradução de Moacir N. Vasconcelos, Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. LAPA, Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas: 1850-1900. São Paulo: Editora da USP; Campinas: Editora da Unicamp, 2008. MARIANO, Júlio. Campinas de ontem e de anteontem: quadros históricos menos conhecidos da cidade-princesa, que se traçaram tendo como base documentos inéditos do Arquivo da Câmara Municipal de Campinas. Campinas: Editora Maranata, 1970. 124

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OS INTENDENTES MUNICIPAIS, OS CRIADOS DE SERVIR E A MATRÍCULA GERAL DO SERVIÇO DOMÉSTICO...

Os intendentes municipais, os criados de servir e a matrícula geral do serviço doméstico (Capital Federal, 1895-1896)1 Municipal Intendants, house servants, and the general housework registry (Federal Capital, 1895-1896) Flavia Fernandes de Souza Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Bolsista Nota 10 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) [email protected]

RESUMO: O artigo narra o processo de criação da matrícula geral do serviço doméstico na capital federal em 1896. Essa resolução foi sancionada após uma longa discussão no Conselho Municipal em torno de um projeto de lei que fora apresentado aos intendentes em 1895. O objetivo do texto é expor e analisar alguns pormenores de um debate que visava a normatizar o setor do mundo do trabalho formado pelos trabalhadores que prestavam serviços domésticos nos domicílios da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de um esforço de entendimento dos prós e dos contras envolvidos no processo de regulamentação municipal do serviço doméstico, bem como de alguns dos aspectos das relações estabelecidas entre a Municipalidade e os trabalhadores urbanos no período imediato pós-abolição da escravidão.

ABSTRACT: The article describes the creation process of the general housework registry in the Federal Capital, in 1896. The resolution was passed after a long discussion in the City Council of a bill presented to the Intendants, in 1895. The text aims to present and analyze some details of the debate to standardize the labor world sector composed of paid house workers in the city of Rio de Janeiro. It is an effort to understand the pros and cons involved in the process of municipal regulation of housework; as well as some aspects of the relations between the municipality and the urban workers in the period immediately after the Abolition of slavery. Keywords: Housework Regulation, Municipal Power of the Federal District, End of the 19th Century.

Palavras-chave: Regulamentação do serviço doméstico, Poder Municipal do Distrito Federal, Final do século XIX.

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m sessão de 30 de julho de 1895 do Conselho Municipal do Distrito Federal, o intendente Heredia de Sá apresentou, em parceria com o intendente Domingos Ferreira2, um projeto de lei para regulamentar o chamado serviço doméstico na cidade do Rio de Janeiro3. Tratava-se de uma proposta de criação da “matrícula geral do serviço doméstico”, que determinava, principalmente, a obrigatoriedade de os criados de servir fazerem um registro geral e utilizarem uma caderneta de identificação. A matrícula seria feita mediante a apresentação de atestados de boa conduta dos criados (passados por autoridades ou pessoas de responsabilidade provada), que conteriam os dados pessoais dos trabalhadores domésticos (como nacionalidade, sexo, idade, estado, sinais característicos, residência e especialidade e/ou profissão). Segundo o projeto apresentado ao conselho de intendentes, nenhum indivíduo poderia exercer a prestação de serviços domésticos na cidade do Rio de Janeiro sem a tal matrícula, incorrendo em multa os empregados e patrões que descumprissem as determinações do regulamento. A justificativa apresentada por Heredia de Sá para que o projeto fosse alvo de atenção do Conselho Municipal era que a aprovação e a execução da regulamentação proposta “concorressem para que a classe dos servidores domésticos, hoje completamente sem corretivo, sem ao menos estar sujeita a certas medidas policiais, possa melhorar de alguma forma”. Assim, fazendo referência a discussões anteriores realizadas na Câmara e na Intendência Municipal sobre outros projetos de regulamentação do serviço doméstico, o intendente indicou a importância e a urgência do debate e da aprovação de sua proposta, pois, em sua opinião, “diversos ensaios têm sido feitos a este respeito, porém, até hoje, nada se tem conseguido”4. A ideia era, então, estabelecer um regulamento municipal que pudesse fiscalizar o setor do mundo do trabalho formado pelos criados domésticos. Afinal, acreditava-se que este apresentava uma série de problemas, como a alta rotatividade de criados nos empregos; a falta de qualificação dos empregados domésticos para o desempenho de suas funções; as muitas exigências feitas aos patrões pelos empregados domésticos; a existência de agências de locação de trabalhadores que operavam por meios desonestos e, especialmente, o grande número de criminosos que se passavam por criados com o objetivo de dar prejuízos aos amos e seus familiares. Embora esse projeto apresentado por Heredia de Sá fosse pequeno – contendo apenas nove artigos – e, em certa medida, simples – visto que os detalhes do regulamento propriamente dito ficariam, caso o projeto virasse lei, a cargo do prefeito da cidade5 –, ele foi, provavelmente, o que mais provocou discussões na casa legislativa da cidade do Rio de Janeiro no que se refere à questão do serviço doméstico no século XIX6. Foram variados os pontos de discussão; porém, uma das primeiras temáticas que pautaram o debate sobre o projeto de criação da matrícula geral do serviço doméstico foi a da provável inconstitucionalidade da regulamentação daquela esfera ocupacional e da existência ou não de competência do Conselho Municipal para legislar sobre o assunto.

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OS INTENDENTES MUNICIPAIS, OS CRIADOS DE SERVIR E A MATRÍCULA GERAL DO SERVIÇO DOMÉSTICO...

A questão da constitucionalidade da regulamentação do serviço doméstico foi colocada, inicialmente, pelo próprio autor do projeto para a criação da matrícula geral. Ao apresentar a proposta ao Conselho, Heredia de Sá discorreu sobre a dificuldade de o poder municipal elaborar um regulamento dessa natureza. Segundo o intendente, a Constituição republicana vigente naquele momento praticamente impedia a formulação de qualquer legislação sobre esta matéria sem que afetasse os direitos civis, sobre os quais o Conselho Municipal não teria competência para legislar. Assim, afirmando não poder legislar sobre contratos, Heredia de Sá dizia: [...] O projeto seria mais completo se fosse legislado pela Câmara dos Deputados, que é quem tem atribuições, mais do que nós, para legislar em relação àquilo que possa alterar os princípios da Constituição. V. Ex. sabe que é a Câmara que tem de aprovar o nosso projeto do Código Civil. É só ela, portanto, que poderá fazer um projeto satisfatório sobre o assunto. Foi por estas razões que cortei algumas cláusulas do projeto, dentre outras, a de poder o patrão descontar oito dias de vencimentos dos criados quando se despedissem sem darem o tempo necessário para a sua substituição. [...]7

Expondo, portanto, a dificuldade de legislar sobre matéria de contratos de locação de serviços sem a existência de um Código Civil, o intendente Heredia de Sá, logo durante a apresentação do projeto, tocava na questão da sua possível inconstitucionalidade. Por um lado, ele versava sobre a fragilidade das bases em que se apoiava o projeto para a regulamentação do serviço doméstico ao afirmar que o projeto seria mais legítimo se elaborado pelos deputados – o que confirma, em parte, a violação, pelo projeto, de artigos prescritos na Constituição. Por outro lado, o intendente tratava da relação existente entre a regulamentação e o desrespeito aos direitos civis garantidos na legislação vigente, uma vez que o projeto não pôde conter determinações mais rígidas em relação aos criados8. Quando o projeto passou pela Comissão de Legislação e Justiça do Conselho Municipal, a questão da sua possível inconstitucionalidade foi indicada como o grande problema que deveria ser resolvido antes da sua discussão, ao mesmo tempo em que se colocou a dúvida acerca das atribuições do Conselho para criar esse tipo de lei. De acordo com os intendentes da referida comissão, fazia-se necessário “o maior cuidado na elaboração dessa lei”. Isso porque o projeto, além de esbarrar em determinações previstas nas Ordenações Filipinas (que já versavam sobre certos direitos ligados ao universo da domesticidade)9, não estava inteiramente de acordo com a Lei Orgânica do Município (que não especificava se ao Conselho caberia legislar sobre o assunto)10 e com a Constituição Federal (que garantia a plena liberdade individual, e, por conseguinte, o livre exercício de atividades profissionais)11. Desta forma, mesmo sendo a Comissão de Justiça favorável ao projeto, defendendo “as vantagens que adviriam se ele fosse transformado em lei”, o parecer da comissão era que os intendentes resolvessem, preliminarmente, sobre “a competência do Conselho em legislar sobre a matéria do projeto”. Até porque, segundo a comissão, n.9, 2015, p.127-142

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[...] não se pode contestar que o homem, tendo necessidades, é obrigado a trabalhar para obter a sua subsistência, sendo certo, portanto, que o trabalho é não somente um dever, mas ainda um direito. A necessidade de trabalhar, encarada sob o aspecto de direito, deve ser livre de qualquer restrição criada pela lei. [...]12

Como a Comissão de Justiça não se posicionou positiva e categoricamente a favor do projeto para a criação da matrícula geral do serviço doméstico, mas também não se opondo, Heredia de Sá procurou defendê-lo. Logo durante a primeira discussão, o intendente argumentou que o projeto não violava princípios da Constituição da República e da Lei Orgânica Municipal. Após comparar a necessidade do estabelecimento de regras para o serviço prestado pelos criados com aquelas que tratavam das normas para o exercício de outras profissões (como a de cocheiro)13, o intendente dizia que “o parecer da Comissão é improcedente e até contraproducente”. Além de argumentar o seguinte: [...] O projeto nem é inconstitucional, nem contrário à lei orgânica municipal. A Constituição, no seu art. 78, garantindo os direitos na liberdade, declara que não exclui outras garantias e direitos. [...] Se trata de fazer uma lei [...] que garanta os próprios serviçais de abusos por parte dos patrões. Dessa forma, tanto uns como outros ficam privados de praticarem esses mesmos abusos, que só redundam em prejuízos para a sociedade. [...] Não há no projeto coação da liberdade, porquanto não se obriga ninguém a trabalhar independentemente de sua vontade. Não afeta ele matéria de contrato, porque não estabelece o quanto que devem ganhar os serviçais. [...] A Lei Orgânica do Distrito Federal também não impede a passagem do projeto, porque [...] [essa] dá ao Conselho o direito de legislar sobre a polícia propriamente do Município, no que se refere à fiscalização. Ela, pois, não repele o projeto, porque é no policiamento municipal que repousa a sua razão de ser. [...] Este [o projeto], portanto, não é mais do que um regulamento policial, que tem por fim fazer cessar os abusos existentes por parte dos criados, colocando-os ao mesmo tempo ao abrigo de certas garantias. [...]14

É interessante observar que, ao justificar a não interferência do projeto de criação da matrícula do serviço doméstico na legislação vigente – particularmente a Constituição e a Lei Orgânica do Distrito Federal –, o intendente Heredia de Sá revelava mais claramente, do seu ponto de vista, as finalidades reais do seu projeto de regulamento. No discurso sobre a necessidade de pôr fim aos “abusos” que seriam cometidos por patrões e, principalmente, por criados domésticos, o intendente afirmava que, se de um lado o projeto visava a estabelecer garantias de “direitos e deveres” para ambas as partes envolvidas, por outro, aquele era, sobretudo, um “regulamento policial”. Não era à toa que Heredia de Sá afirmava que, se o projeto fosse aprovado, ele seria um grande auxiliar para a polícia, posto que, com a existência da matrícula dos criados, as autoridades policiais poderiam conhecer as pessoas empregadas no serviço doméstico, tendo-se, assim, facilidade para encontrar prováveis criminosos.

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OS INTENDENTES MUNICIPAIS, OS CRIADOS DE SERVIR E A MATRÍCULA GERAL DO SERVIÇO DOMÉSTICO...

[...] Este projeto convertido em lei não será até mesmo um grande auxiliar para a Polícia? [...] Desde que, portanto, a matrícula esteja estabelecida e por ela se possam conhecer as pessoas empregadas no serviço doméstico, a polícia não terá dificuldade na descoberta de criminosos. [...]15

Aqui se vê claramente qual seria o verdadeiro escopo do projeto de criação da matrícula para o serviço doméstico. Apesar de seu autor defender que a proposta de criação da matrícula geral tinha como objetivo o estabelecimento de “garantias” para patrões e empregados, regulando as relações nos contratos de prestação de serviços domésticos, a proposta visava a implementar, fundamentalmente, um regulamento policial com o fim de fiscalizar os trabalhadores domésticos. E isso não se dava por acaso. Na realidade, desde a conjuntura de abolição da escravidão, tornou-se cada vez mais comum, em discursos elaborados, sobretudo, por autoridades públicas, por intelectuais ligados à imprensa e por setores patronais, estabelecer uma relação direta entre os criados e os criminosos que atuavam na cidade. Acreditava-se que um número significativo de crimes ocorria nos domicílios da cidade com a ajuda ou sob a responsabilidade direta dos trabalhadores domésticos16. De modo geral, essa visão se associava também aos “fantasmas da desordem” que desde os anos 1870 assombravam mais intensamente os segmentos sociais dominantes e dirigentes. Como já discutiu o historiador Sidney Chalhoub (2012, pp. 64-89), com a emergência da “questão servil”, iniciou-se um processo de construção de uma nova ideologia do trabalho que pudesse legitimar a exploração dos trabalhadores que seriam juridicamente livres. Nesse processo, em que a noção de trabalho era positivada (tendo em vista o seu caráter aviltante e degradador na sociedade escravista), formaram-se os entendimentos em torno dos conceitos de vadiagem e/ou de ociosidade. As práticas entendidas como ligadas a tais noções eram vistas como ameaçadoras para a ordem estabelecida e deveriam ser combatidas por novas legislações, por sua vez mantidas pela repressão policial. E os principais alvos desse novo aparato ideológico eram, certamente, as “classes pobres”, que costumavam ser diretamente associadas às chamadas “classes perigosas”17. Nesse cenário, caraterístico do período entre os séculos XIX e XX, no imaginário dominante, a pobreza de um indivíduo era suficiente para torná-lo uma ameaça para a sociedade, visto que os pobres seriam, necessariamente, devido à sua condição material de vida, perigosos. E o projeto do intendente Heredia de Sá seria, assim, fruto de uma “suspeição generalizada”18 sobre a categoria profissional dos trabalhadores domésticos. Segundo ele, todo criado parecia já ser suspeito de alguma coisa, e por essa razão era necessário implementar a matrícula geral, que, estruturando-se em princípios da ação policial – como era o caso da realização de um registro geral e do uso de cadernetas de identificação –, facilitaria o controle daqueles “criminosos em potencial”. Desse ponto de vista, nota-se que a questão do serviço doméstico no ano de 1895 era identificada como um caso de polícia. E tanto isso era verdade

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que, ao justificar o uso da caderneta pelo criado e seu preenchimento pelo patrão, quando arguido por um membro do Conselho, o Sr. Heredia de Sá afirmou: [...] Se o empregado for bom, o patrão terá de atestar a sua boa conduta; se for mau, o mesmo patrão terá de atestar o seu mau procedimento. É para isto que se cria a caderneta, que não é mais do que uma fonte de informações, informações estas que não só aproveitam às pessoas que tenham de utilizar-se do serviço desse criado, como também à polícia, no caso da responsabilidade criminal de qualquer desses criados. [...]. E até o meu projeto é incompleto, porque nós não podemos ultrapassar os limites das nossas atribuições. [...]19

A relação existente entre o projeto do intendente municipal Heredia de Sá e a criação de um regulamento municipal de cunho policial, que visava a reprimir supostos “abusos” que estariam sendo cometidos pelos servidores domésticos, auxiliando patrões e autoridades policiais, foi duramente criticada por alguns membros do Conselho Municipal. Dentre esses, quem mais levantou a voz contra o regulamento proposto foi o intendente Sá Freire20 – um dos membros da Comissão de Legislação e Justiça, que havia avaliado o projeto antes de passar para as discussões gerais dos intendentes. Indagando sobre o conteúdo dos artigos do projeto, estudados pelos intendentes, Sá Freire questionou, na discussão estabelecida na sessão de 1º de outubro de 1895, o caráter da realização da matrícula pelos criados, principalmente no que se referia às exigências para esse procedimento, que incluía a declaração detalhada dos “sinais característicos”. Solicitando que o Conselho “meditasse bem sobre essa questão” antes de aprovar o projeto, Sá Freire promoveu uma discussão acalorada com o intendente Heredia de Sá. [...] O Sr. Heredia de Sá: − Sr. Presidente, é intuitivo o alcance dessa disposição. Desde que a caderneta não tem fim senão prestar as informações precisas relativamente à conduta do criado, desde que esse regulamento não é mais do que uma medida puramente policial, V. Ex. compreende que, para haver facilidade na descoberta, e se for o criado, é necessário que se lhe tomem os sinais característicos para que as autoridades policiais possam capturá-lo. O Sr. Sá Freire: − Pelo fato de ser criado há de nivelar-se ao criminoso? O Sr. Heredia de Sá: − Se V. Ex. fizer um exame em todos os regulamentos referentes a assuntos dessa natureza, há de encontrar esta providência. [...] A exigência dos sinais característicos do indivíduo não é uma medida vexatória e a caderneta, trazendo só o nome, não basta para dar os esclarecimentos necessários a fim de melhor conhecer o criado. O Sr. Sá Freire: − Não é vexatório, mas é rebaixamento do indivíduo. [...]21

Note-se que nessa discussão havia justamente um questionamento dos pressupostos que embasavam o projeto, ao apresentar concepções pré-definidas acerca do suposto caráter dos criados. E, nesse sentido, o intendente Sá Freire levantou dúvidas sobre a finalidade da matrícula para o serviço doméstico – que, sendo uma “medida puramente policial”, segundo o autor do projeto –, rebaixava o trabalhador, ao nivelá-lo ao criminoso. Sá Freire, no entanto, 132

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não foi o único a indagar sobre os fins e as consequências da criação de uma matrícula geral para o serviço doméstico no formato proposto por Heredia de Sá. O então primeiro secretário do Conselho, Sr. Júlio Carmo22, chegou a reprovar o cerne da determinação do projeto, o que gerou a imediata contestação do autor da proposta, visto que destruiria por completo o seu intento. O Sr. Júlio Carmo (1º secretário) – Sr. Presidente, não posso deixar de opor-me ao art. 4º do projeto. Neste artigo, obriga-se a todo indivíduo que se empregar de criado de servir, à matrícula, assim como obriga o amo a não aceitar, para o seu serviço, nenhum indivíduo que deixe de estar matriculado. Esta medida parece-me, Sr. Presidente, até certo ponto odiosa. [...] O Sr. Heredia de Sá dá um aparte. O Sr. Júlio Carmo: − Pelo art. 4º, o patrão e o criado estão sujeitos a uma pena; é iníquo! Vou propor uma emenda supressiva do artigo, esperando que o autor do projeto não lhe negará o seu voto. [...] O Sr. Heredia de Sá: − Se for adotada a emenda do Sr. Júlio Carmo, desaparecerá completamente o projeto. [...] Qual o fim do projeto? Dar um regulamento aos criados, fazendo com eles não estejam no gozo de uma independência ilimitada, como entende o Sr. Sá Freire, mas que, debaixo de certas condições, muito razoáveis, fiquem sujeitos a satisfazer essas mesmas condições. Desde que ninguém seja obrigado a ter caderneta, desde que não esteja sujeito à multa aquele que não tiver, o projeto será nulo. [...]23

Sendo acusada de ter um caráter profundamente coercitivo e injusto para com os trabalhadores, a proposta para a criação da matrícula do serviço doméstico foi seriamente questionada. Como apresentou de forma explícita o autor do projeto, a finalidade da matrícula era “dar um regulamento aos criados, fazendo com que eles não estivessem no gozo de independência ilimitada”, mas “debaixo de certas condições”. A crítica ao projeto foi tão intensa por parte de alguns intendentes – que levantavam questões relativas aos princípios e aos seus pressupostos que implicavam desrespeito às leis então vigentes – que foi proposta, inclusive, a suspensão da sua discussão pelo Conselho. Na opinião de alguns, como o intendente Sá Freire, a regulamentação restringiria a liberdade de trabalho, limitando direitos garantidos na Constituição e tratando de questões já presentes, de certa maneira, nas leis civis contidas nas Ordenações Filipinas. Além do fato de que não competiria ao Conselho Municipal legislar sobre assuntos de ordem policial, porque seria, aliás, impraticável tal regulamentação24. A posição do intendente Sá Freire contra a discussão do projeto para o serviço doméstico foi tão contundente que ele comparava a regulamentação ao estabelecimento de uma “nova escravidão”, ao não respeitar a Constituição e a lei civil então em vigor, e, sobretudo, ao “rebaixar a classe dos criados” a um nível inferior às outras. Assim, em outro debate acalorado, n.9, 2015, p.127-142

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o intendente Sá Freire procurou argumentar com o autor do projeto, o intendente Heredia de Sá, sobre o “absurdo” de se discutir, em plena República, a regulamentação dos servidores domésticos. [...] O Sr. Sá Freire: − Procuro fazer com que seja garantido um direito, e que a Constituição da República não seja violada, que não seja criada uma nova escravidão e que não se estabeleça a diferença entre plebeus e nobres, como no tempo dos Romanos. [...] Se a legislação civil já tratou da espécie, por que motivo, como e de que forma o Conselho Municipal vai agora modificar os princípios estabelecidos na legislação civil? Mas, Sr. Presidente, deixando de lado todas essas questões, eu acho que a classe dos criados não deve ser colocada em posição inferior às outras. Isto é uma nova escravidão. É preciso que o Conselho Municipal, em plena República, não trate da regulamentação de criados. O Sr. Heredia de Sá: − V. Ex. está fugindo para outro ponto. Quero que prove a inconstitucionalidade do projeto. O Sr. Sá Freire: − Isto está mais do que provado. Este projeto tem uma restrição de liberdade e por isso mesmo é inconstitucional. [...] Colocado sob o ponto de vista jurídico, o regulamento de criados é ou não uma restrição à liberdade? O Sr. Heredia de Sá: − Não é. O Sr. Sá Freire: − É até uma escravidão. O Conselho não pode aprovar este projeto. [...] O que devemos querer para nós é a consumação do direito da liberdade, e na República brasileira o Conselho Municipal deve garantir o decreto de liberdade em toda a sua plenitude, e não com a regulamentação ou escravidão de uma só classe. Tenho concluído. [...]25

É interessante perceber que aqui aparece uma nova questão, ou seja, a da proximidade da regulamentação proposta para o setor do serviço doméstico com a instituição de uma “nova forma de escravidão”. Para além das questões relativas à constitucionalidade do projeto ou da violação do direito de liberdade individual, a fala do intendente Sá Freire coloca o problema do rebaixamento a que estaria sujeita a “classe dos criados”. Para o intendente, caso o projeto fosse aprovado e posto em execução como uma nova lei municipal, isso implicaria uma espécie de discriminação dos domésticos em relação a outros segmentos de trabalhadores sobre os quais não recairiam as mesmas normas reguladoras. E levando em conta essa questão, Sá Freire apelava para os princípios da República brasileira, que deveriam defender “a consumação do direito de liberdade” em toda a sua “plenitude”. Nesse sentido, a regulamentação poderia ser entendida como próxima da experiência da escravidão, pois submeteria, de forma estigmatizante, apenas certos trabalhadores a uma regulamentação cujo cerne estava no controle do trabalho. O que significava impor limites à liberdade desse grupo social, que era, na pós-emancipação, formado por muitos egressos do cativeiro. Ao que parece, a liberdade, segundo Sá Freire, não deveria estar, como havia afirmado o próprio autor do projeto, “debaixo de certas condições”, como talvez fosse o caso daquelas que tinham o objetivo de controlar a vida profissional dos servidores 134

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domésticos, restringindo, talvez, a sua liberdade de negociação com os patrões no âmbito privado e, principalmente, colocando-os em uma situação desfavorável em relação a outros trabalhadores, já que estariam sujeitos a uma rigorosa fiscalização dos poderes públicos. Seguindo esse clima de discussões, o projeto para a criação da matrícula geral do serviço doméstico foi alvo de debates em várias sessões do Conselho Municipal do Distrito Federal durante o mês de setembro de 1895. Nas sessões realizadas no início de outubro daquele ano, todos os artigos do projeto foram postos em votação, sendo o projeto aprovado, com a maioria absoluta dos votos, da forma como foi apresentado aos intendentes – salvo uma ou duas pequenas alterações no texto de alguns artigos, mas que não alteram o seu conteúdo geral. E após passar pela Comissão de Redação do Conselho Municipal, o projeto foi remetido ao prefeito26, que, ao contrário do que era esperado pelos intendentes, opôs veto ao projeto em 30 de outubro de 189527. Os argumentos apresentados pelo então prefeito Francisco Furquim Werneck de Almeida caminharam no sentido de que o projeto aprovado pelo Conselho Municipal violava determinações da Constituição acerca das competências dos poderes públicos, além de tratar de assunto que excedia a alçada prevista na Lei Orgânica do Distrito Federal. No parecer do prefeito, não caberia aos intendentes regulamentar o serviço doméstico, visto que, além de ser matéria delicada, só caberia ser tratada pelo Congresso Federal, que teria as atribuições necessárias para “definir as relações e os deveres dos matriculados e dos que os tomarem a seu serviço”. Pontos, portanto, de Direito Civil e que não poderiam ser tratados pela Municipalidade. Além disso, o prefeito argumentou que o projeto, “inspirado na iníqua base da humilde condição social dos servidores domésticos”, “estabelecia o odioso regime de sujeição para determinado grupo do operariado”, ferindo “princípios constitucionais que asseguram a liberdade de trabalho”28. Entretanto, mesmo com a oposição inicial do prefeito ao projeto de criação da matrícula geral do serviço doméstico, este foi aprovado em 1896 pelo ainda prefeito Werneck de Almeida, após a decisão do Senado Federal que rejeitou o veto oposto pelo prefeito do Distrito Federal29. A resolução para a criação da matrícula geral do serviço doméstico foi oficializada no decreto de nº 284, de 15 de junho de 1896. E em outubro desse mesmo ano, por meio de outro decreto (de nº 45, de 24 de outubro de 1896), o Poder Executivo Municipal expediu o regulamento para o serviço doméstico que complementava o decreto anterior de criação da matrícula geral. Por meio de um texto longo, composto de 50 artigos (que tratavam das disposições gerais, das cadernetas, das relações entre amos e criados, dos menores e cocheiros, das agências de locação, das disposições penais e transitórias), a matrícula geral para o serviço doméstico foi estabelecida na cidade. Prevendo os problemas que possivelmente surgiriam quando da execução do regulamento para o serviço doméstico, o Conselho Municipal determinou que, a princípio, o regulamento fosse executado durante n.9, 2015, p.127-142

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seis meses. E, cumprido esse tempo, o prefeito enviaria ao Conselho um relatório sobre as reclamações que tivessem sido feitas e as mudanças que poderiam ser levadas a cabo30. No entanto, não se sabe se este relatório foi elaborado ou não, pois não foi possível encontrá-lo. Mas, ao que tudo indica, o regulamento não chegou a ser posto efetivamente em prática. Em 1906, em síntese sobre as tentativas de regulamentação do serviço doméstico na cidade do Rio, os organizadores da Coleção de Leis e Posturas Municipais afirmaram o seguinte: [...] Ou por falta de sala especial, no edifício acanhado da Prefeitura, para a escrituração e entrega das cadernetas, ou por quaisquer outros embaraços, certo é que ainda a prática não chegou, até hoje, a demonstrar evidentemente se é ou não exequível, nesta capital, a regulamentação do serviço doméstico. Continua-se, portanto, a lutar com dificuldades para iniciar e levar a cabo a empresa. [...]31

Como têm revelado as pesquisas atuais sobre o tema, o problema da regulamentação do serviço doméstico na cidade do Rio de Janeiro não se resolveu com a criação da matrícula geral de 1896. Como vinha ocorrendo desde os anos 1880, os projetos de regulamentos municipais voltados para os criados de servir, apesar de numerosos e recorrentes, enfrentaram várias dificuldades para serem aprovados e efetivamente executados. Em outras ocasiões já foram indicados alguns dos obstáculos para o sucesso da regulamentação do serviço doméstico na capital (SOUZA, 2011a, pp. 339-361 e SOUZA, 2011b, pp. 29-48). Isso porque o processo de estabelecimento de normas reguladoras dos contratos de prestação de serviços domésticos e das relações entre amos e criados ou patrões e empregados, muito propalado na imprensa carioca da época e defendido por setores dirigentes da sociedade, envolveu vários fatores. Entre eles estava o questionamento da constitucionalidade dos projetos de leis municipais, tendo em vista a garantia do direito de liberdade de trabalho, bem como as atribuições do Conselho Municipal no que se referia ao tratamento de matérias envolvendo contratos de trabalho. Outro problema foi a falta de consenso sobre os regulamentos no que dizia respeito às partes envolvidas. Havia uma clara rejeição por parte dos trabalhadores, que se manifestaram em várias ocasiões contra os regulamentos, tendo em vista o caráter coercitivo da maioria dos projetos propostos. Mas havia também dificuldades colocadas por setores patronais, que, se por um lado, lamentavam a ausência de regras para a prestação de serviços por parte dos criados, por outro lado, viam na regulamentação do serviço doméstico um mecanismo de interferência dos poderes públicos no âmbito privado. Contudo, mesmo sem obter os resultados esperados, o projeto de criação da matrícula geral do serviço doméstico apresentou algumas especificidades. Em primeiro lugar, as discussões ocorridas no Conselho Municipal em torno daquele projeto demonstram como não era completamente consensual a ideia de regulamentação do setor do trabalho formado pelos trabalhadores que prestavam serviços domésticos. Embora esse fosse um tema que emergia cada vez mais na imprensa e que era, de longa data, motivo de interesse das 136

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autoridades públicas por ser considerado assunto urgente que aguardava medidas específicas das autoridades competentes, o debate ocorrido entre os intendentes, em 1895, sobre o serviço doméstico apresentou dissensos importantes em torno da regulamentação. Havia, na realidade, uma série de discordâncias que se ampliavam em um contexto de pós-abolição e de consolidação do regime republicano. Nesse sentido, as discussões em torno do projeto de criação da matrícula geral do serviço doméstico na esfera legislativa do poder municipal da capital revelam algumas faces das disputas e dos conflitos existentes na elaboração das leis municipais e também aspectos da complexidade que elas poderiam representar na mediação das relações sociais daquele contexto histórico. Em segundo lugar, esse talvez tenha sido o primeiro projeto de regulamentação municipal direcionado para um setor do mundo do trabalho cuja importância foi justificada pelo seu caráter policial de fiscalização dos trabalhadores e de repressão a supostas ações de criminosos que se passavam por empregados domésticos. Ainda que a questão da identificação dos criados estivesse presente desde os primeiros projetos sobre o assunto e que, por exemplo, a questão do fim da escravidão tenho sido apontada como um processo desencadeador dos problemas que supostamente existiam no setor de prestação dos serviços doméstico, parece ter sido na discussão de 1895 que ficou nítida a noção de que a regulamentação era uma medida de controle necessária àquela esfera ocupacional. Tanto era assim que foram publicados em alguns jornais artigos de defesa do projeto do intendente Heredia de Sá, cujo argumento era a necessidade de impor limites à ação de criminosos que se passavam por trabalhadores domésticos. Não há ou quase não há quem, por experiência própria ou por testemunho pessoal, não tenha tido ocasião de verificar como é deficiente, irregular, vicioso o serviço doméstico tal como se acha organizado nesta cidade. [...] Além da falta que se pode dizer quase absoluta de competência profissional para os diversos misteres da economia doméstica, acresce-o que é incomparavelmente mais grave que muitas vezes o pessoal desse serviço é o de mais baixa espécie possível, recrutado nas mais ínfimas camadas sociais. Esses indivíduos, cujos antecedentes, cujas origens ninguém conhece e que só a necessidade imperiosa das cousas fez admitir no seio das famílias, não tardam em se valer das circunstâncias de colocação em que se acham em detrimento das casas em que exercem seus maus serviços. Pode-se afirmar sem receio de erro que, na sua grande maioria, os furtos e roubos de toda ordem que se dão no interior das casas são concertados de cumplicidade com os fâmulos das mesmas. É elementar na polícia o processo quase sempre seguido de bom êxito de ir procurar em mãos dos criados das casas o fio dos crimes de roubos nelas praticados. Encontrando as portas inteiramente franqueadas a este ramo de serviço, que não exige longo tirocínio, os desclassificados sociais precipitam-se nele, e assim temos como além de edificantes, são hoje as profissões servis tão viciosas, oferecendo mesmo, se não perigos, ao menos exigindo uma fiscalização rigorosa, contínua, que constitui constrangimento insuportável para a vida [...]32 n.9, 2015, p.127-142

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Como fica evidente neste trecho de um artigo do Jornal do Commercio publicado no momento em que estava em discussão o projeto de criação da matrícula geral, era argumento corrente na época que o setor de trabalho formado pelos prestadores de serviços domésticos precisava ser normatizado por um regulamento municipal. Muitos dos que defendiam a urgência de uma regulamentação para aquela categoria de trabalho acreditavam que o serviço doméstico se encontrava desorganizado, sendo prestado por criados que, em sua maioria, eram “viciados”, além de ser aquela ocupação alvo frequente da atuação de “desqualificados sociais”, que cometiam toda sorte de crimes nos locais em que trabalhavam. Daí a demanda por uma intervenção pública eficaz, que deveria ser feita pelo Conselho Municipal, tendo em vista a identificação do poder legislativo municipal como o mais próximo da organização da vida e da regulação de conflitos sociais urbanos, especialmente no que concerne à articulação, à implementação e à fiscalização de leis. Na verdade, a associação comum entre criados e criminosos revela indícios importantes sobre as relações entre o poder municipal – e os poderes públicos de modo geral – e a população trabalhadora empregada no setor de prestação de serviços domésticos na pósemancipação no Brasil. Sabe-se que era grande o número de libertos e de afrodescendentes que se ocuparam na prestação de serviços pessoais em domicílios, tendo em vista o peso da escravidão doméstica no mundo do trabalho urbano ao longo de todo o século XIX. Se no censo de 1872 é possível perceber um numeroso contingente de escravos alocados nos serviços domésticos, correspondendo a 41% dos trabalhadores domésticos da cidade do Rio de Janeiro, os quais constituíam um total de 55.011, o censo de 1890 oferece indícios do grande número de “negros” e “mestiços” empregados em serviços domésticos, ou seja, 52% dos 74.785 indivíduos pertencentes à categoria (SOUZA, 2010, p. 102-105). Era fato, portanto, que o trabalho doméstico continuou como lugar privilegiado para o emprego de libertos e dos pobres em geral, em especial mulheres, tendo em vista que estas correspondiam a cerca de 70% da força de trabalho do setor (GRAHAM, 1992, pp. 17-18). De outra parte, era considerável também o percentual de estrangeiros, oriundos dos crescentes fluxos imigratórios, que se inseriam, como empregados domésticos, no mercado de trabalho urbano. Entre 1872 e 1920, cerca de 20% a 26% dos trabalhadores domésticos atuantes na cidade eram estrangeiros. No caso das mulheres imigrantes que permaneciam na cidade, o serviço doméstico permaneceu por longo tempo como um dos principais espaços de trabalho procurados pelas trabalhadoras estrangeiras (MENEZES, 2007, pp. 103-119). No contexto que caracteriza a virada do século XIX para o século XX na cidade do Rio, parece ter ocorrido um processo em que o setor de trabalho formado pelos criados de servir tornou-se alvo privilegiado de ações de vigilância e de repressão social urbana. A construção de um cenário de suspeitas em relação aos trabalhadores domésticos certamente fazia parte de uma conjuntura em que representantes dos poderes públicos da capital estavam preocupados em formular e implementar leis de controle para o mundo do trabalho em um momento de 138

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constituição do mercado de trabalho livre no Brasil. Assim, entre as décadas de 1880 e 1890, marcadas pelo fim da escravidão e pela pós-emancipação, colocaram-se cada vez mais no âmbito dos poderes públicos, representados por vereadores, intendentes, prefeitos e agentes da polícia, as preocupações concernentes não só às relações entre empregados domésticos e patrões, mas, principalmente, problemas de ordem urbana que poderiam ser gerados pela ausência de trabalho. Este era um temor generalizado entre legisladores e autoridades policiais desde que a abolição da escravidão tornou-se fato, e não seria este um assunto sem relações com os supostos problemas do serviço doméstico na capital. Os esforços para o estabelecimento de uma organização do trabalho ganharam, porém, dimensões específicas no caso do serviço doméstico, que constituía uma parte do universo do trabalho que, no Brasil, estava historicamente ligado à estrutura social e ideológica da dominação escravista e à existência de relações sociais paternalistas. Um dos grandes problemas surgidos das discussões sobre a regulamentação do serviço doméstico nos anos 1890 foi que os regulamentos, na forma como estavam sendo propostos e implementados, traziam em si o risco de rearranjos de antigas formas de controle e de dominação sociais sobre grupos subalternos, como era o caso dos trabalhadores domésticos. Tratava-se também, como foi apontado pelos intendentes que se colocaram contra o projeto de criação da matrícula geral, de uma maneira de estigmatizar uma determinada categoria de trabalhadores que era vista e tratada a partir de imagens e pressupostos negativos. E não era por acaso que se falava em tais debates no perigo da institucionalização de uma “nova escravidão”. De qualquer forma, a criação da matrícula geral não significou o fim das tentativas de regulamentação do serviço doméstico, pois as iniciativas nesse sentido se estenderam pelo início do século XX, mobilizando o poder municipal, a polícia e os trabalhadores domésticos em torno do tema, num cenário de crescente suspeição e de conflitos. Notas 1 Este texto constitui parte da análise feita no terceiro capítulo da minha dissertação de mestrado, acrescido de informações e reflexões oriundas de pesquisas atuais em desenvolvimento sobre o tema. SOUZA, Flavia Fernandes de. Para casa de família e mais serviços: o trabalho doméstico na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX. São Gonçalo-RJ, Dissertação de mestrado em História – Centro de Educação e Humanidades, Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010. 2 Arthur Ambrosino Heredia de Sá era proprietário e Domingos Antunes Ferreira era médico. Ambos foram intendentes do Conselho Municipal do Distrito Federal durante a segunda legislatura (1895-1896). Cf. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da política: a Capital Federal, 1892-1902. Niterói-RJ, Tese de doutorado em

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História – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2004, p. 212 (anexos). 3 AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 3ª sessão extraordinária (de 19 de julho a 5 de agosto de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895 pp. 21-22. Denominase “serviço doméstico” a esfera ocupacional composta dos chamados “criados de servir” ou “criados domésticos”, os quais incluíam não só os empregados nos domicílios, mas também aqueles que desempenhavam funções em estabelecimentos de comércio e de prestação de serviços da cidade. Entre tais especialidades de trabalhadores domésticos estariam cozinheiros e ajudantes; copeiros; lavadeiras e engomadeiras; jardineiros e hortelãos; criados de quarto, camareiras e moços de hotel, cafés, casas de pasto

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ou hospedarias; mucamas e pajens; amas de leite e amas secas; cocheiros particulares e seus auxiliares. 4

Ibidem. Loc. cit.

Essa questão estava prevista no artigo 7º do projeto, que dizia o seguinte: “Art. 7º − O prefeito expedirá regulamento para execução desta lei, de acordo com a chefia de polícia, e poderá decretar multas até 30$, bem como prisão, em caso de não ser satisfeita a multa, definindo as relações e deveres dos matriculados e dos que tomassem a seu serviço”. Cf. AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, p. 141. 5

Sobre os regulamentos voltados para os trabalhadores do setor de transportes, ver: TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio/Casa Civil/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2013. Cap. 2.

13

AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, pp. 84-85.

14

6 É importante acentuar que o tema da regulamentação do serviço doméstico estava presente na pauta de discussões recorrentes dos representantes municipais pelo menos desde os anos 1880. Cf. SOUZA, Flavia Fernandes de. Op. cit. Cap. 3.

15

8 É importante lembrar, neste caso, que o primeiro Código Civil brasileiro foi criado somente em 1916. Na ausência deste conjunto de leis que garantisse direitos e deveres civis e organizasse as situações e os conflitos jurídicos entre os cidadãos, entre eles os de relações de trabalho, esteve em vigor, desde a Independência, a legislação civil portuguesa das chamadas Ordenações Filipinas, as quais, em seu Livro 4º, apresentavam títulos relativos às relações entre amos e criados. A historiadora Keila Grinberg discutiu as dificuldades impostas aos parlamentares brasileiros, desde 1830, para a criação de leis de contratos de trabalho, tendo em vista a existência da escravidão na sociedade imperial brasileira. Cf. GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, pp. 58-65.

As Ordenações Filipinas não tratavam necessariamente das regras dos contratos de trabalho, mas sim das relações estabelecidas no âmbito da domesticidade, que incluíam relações familiares e de dependência. Cf. LIMA, Henrique Espada. “Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade”, In: Cadernos AEL, Campinas, v. 14, nº 26, pp. 135177, 2009. p. 144. 9

Disponível em: .

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Entre os representantes municipais, esses discursos ficavam mais evidentes nos momentos de debates sobre projetos de regulamentação do serviço doméstico. Porém, em grandes jornais do período, é possível encontrar várias notícias em que os criados aparecem como responsáveis ou suspeitos de crimes cometidos nos lares em que trabalhavam. Da mesma forma em que eram veiculadas crônicas, escritas por conhecidos intelectuais cariocas, em que os criados eram descritos de modo extremamente negativo. A pesquisa sobre o tema encontra-se em desenvolvimento, mas sobre a construção social de representações dos domésticos na literatura, Sônia Roncador demonstra, a partir da obra de Júlia Lopes de Almeida, como ocorreu uma apropriação literária de imagens negativas dos trabalhadores domésticos, que muitas vezes apareciam nos discursos da época como portadores de “vícios morais” e “doenças contagiosas”. Cf. RONCADOR, Sônia. A doméstica imaginária: literatura, testemunhos e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasília: Editora da UnB, 2008. Ibidem. Sobre o conceito de “classes perigosas”, ver: PASSOS, Alberto. As classes perigosas: banditismo urbano e rural no Brasil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1981; CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 20-29.

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A noção de “suspeição generalizada” foi utilizada pelo historiador Sidney Chalhoub em análise dos debates parlamentares sobre o projeto de repressão à ociosidade de 1888. Segundo o autor, no contexto da abolição da escravidão no Brasil, uma das principais preocupações das classes dominantes e dirigentes dizia respeito à organização do mundo do trabalho “sem o recurso às políticas de domínio características do cativeiro”. Daí o surgimento de uma “teoria da suspeição generalizada”, que seria a essência da noção de “classes perigosas”. Segundo Chalhoub, “já que não era mais possível manter a produção por meio da propriedade da própria pessoa do trabalhador, a ‘teoria’ da suspeição generalizada passou a fundamentar a invenção de uma

18

Trata-se da Lei nº 85, de 20 de setembro de 1892, que estabelecia a organização municipal do Distrito Federal. Disponível em: .

11

Ibidem. Loc. cit.

16

7 AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 3ª sessão extraordinária (de 19 de julho a 5 de agosto de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, pp. 21-22.

10

AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, p. 33.

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estratégia de repressão contínua fora dos limites da unidade produtiva”. A partir desse princípio, a manutenção da ordem passa a ser compreendida como atribuição pública, expressa em instituições específicas como a polícia. E esta passa a agir “a partir do pressuposto da suspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova em contrário e, lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos que outros”. Como é o caso da população negra e liberta, em meio à qual havia muitos que se empregavam como criados domésticos. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Op. cit. pp. 22-24. AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, p. 86.

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Milcíades Mário de Sá Freire (1870-1947), natural do Rio de Janeiro e formado em Ciências Jurídicas pela Faculdade de São Paulo, teve uma trajetória política considerável no Rio de Janeiro. Foi intendente do Conselho Municipal durante a segunda legislatura, ou seja, entre os anos de 1895 e 1896. Ocupou vaga no Senado Federal em 1909. E assumiu o cargo de prefeito do Distrito Federal em 1919, por nomeação do presidente Epitácio Pessoa, deixando o cargo em 1920. Cf. Biografia de Sá Freire. Disponível em: . Acessado em 11 de julho de 2012.

20

AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, p. 138.

21

segunda legislatura (1895-1896). Cf. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Op. cit. p. 212 (anexo). AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, p. 139.

23

24

Ibidem, p. 129.

25

Ibidem, pp. 136-137.

AGCRJ. Anais do Conselho Municipal. 2ª sessão ordinária (de 29 de agosto de 1895 a 14 de novembro de 1895). Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1895, pp. 141, 182 e 185.

26

AGCRJ. Coleção de Leis Municipais e Vetos de 1895-1896. Organizada por Alvarenga Fonseca. Distrito Federal. v. II. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1897, pp. 429-432.

27

28

Ibidem. Loc. cit.

CONGRESSO NACIONAL. Anais do Senado Federal (terceira sessão da segunda legislatura – 28 de abril a 13 de junho de 1896). Vol. 1. Livro 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897, p. 220. Disponível em: Acesso em 10 de janeiro de 2012. CONARQ − Resolução nº 20 de 16 de julho de 2004. Dispõe sobre a inserção dos documentos digitais em programas de gestão arquivística de documentos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos. Brasília: Diário Oficial da União de 19 jul. 2004. ­­­­______ − Resolução nº 22 de 30 de junho de 2005. Dispõe sobre as diretrizes para avaliação de documentos em instituições de saúde. Brasília: Diário Oficial da União nº 126, de 4 jul. 2005, Seção 1. ______ − Portaria nº 93 de 18 de novembro de 2010. Brasília: Diário Oficial da União de 22 nov. 2010. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.821/2007. Aprova as normas técnicas concernentes à digitalização e uso dos sistemas informatizados para a guarda e o manuseio dos documentos dos prontuários dos pacientes, autorizando a eliminação do papel e a troca de informações identificada em saúde. Brasília: Diário Oficial da União de 23 nov. 2007, Seção 1, p. 252. COSTA, Célia Maria Leite. “Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 21. 1998, pp. 189-199. FERREIRA, Josivaldo Soares; FIDELIS, Marli Batista e LIMA, Maria José Cordeiro de. “A relação entre a gestão do sistema público de saúde e o acervo documental das instituições hospitalares”. In: DUARTE, Zeny e FARIAS, Lúcio (orgs.). A medicina na era da informação. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 343-357. FONSECA, Maria Odila. “Informação e direitos humanos: acesso às informações arquivísticas”. Revista Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, maio 1999, p.p 146-154. HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à Informação: Lei nº 12527/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2014. JARDIM, José Maria. “A pesquisa em Arquivologia: um cenário em construção”. In: VALENTIN, Marta Lígia Pomim (org.). Estudos avançados em Arquivologia. Marília: Oficina Universitária. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, pp. 135-153 MARIZ, Anna Carla Almeira. A informação na internet: arquivos públicos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2007, pp. 171-199. MORO CABERO, Manuela. “El archivo de empresa: un recurso a considerar desde la perspectiva TQM (Total Quality Management)”. Revista General de Información y Documentación, Madrid: Universidad Complutense, v. 7, n. 2, pp. 257-276, 1997. Disponível em: . Acesso em 13 de dezembro de 2012. NEVES, Dulce Amélia de Brito. “Representação temática da informação arquivística em saúde: construção de vocabulário controlado”. In: DUARTE, Zeny e FARIAS, Lúcio (orgs.). A medicina na era da informação. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 103-110.

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FRANCISCO JOSÉ TAVARES DO NASCIMENTO, PAULO ROBERTO ELIAN DOS SANTOS

ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Publicação Dom Quixote. Tradução: Magda Bigotte de Figueiredo, 1998. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1993. VIVAS MORENO, Agustín. “El tiempo de la archivística: un estudio de sus espacios de racionalidad histórica”. Ci. Inf., Brasília, v. 33, n. 3, set./dez. 2004, pp. 76-96. Disponível em: . Acesso em 30 de agosto de 2012. Recebido em 11/05/2015 Aprovado em 20/05/2015

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REVISTA DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

O arquivista e o mercado de trabalho no Estado do Espírito Santo The archivist and the labor market in the State of Espírito Santo Solange Machado de Souza Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e professora do curso de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). [email protected]

RESUMO: Este trabalho apresenta os resultados obtidos na pesquisa feita para a dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Aborda o desenvolvimento do mercado de trabalho no estado do Espírito Santo, bem como a inserção do arquivista nos postos de trabalho oferecidos nas instituições públicas do estado. Os resultados apontam para o reconhecimento de um mercado de trabalho potencial e em expansão no Espírito Santo. Identificou-se, também, mediante pesquisa feita entre arquivistas egressos do curso de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo, que os profissionais têm necessidade de aprofundar conhecimentos na área arquivística, e a maioria quer fazer curso de pós-graduação.

ABSTRACT: This paper presents the results from a research for a dissertation in the PostGraduate Program on Records Management and Archives at the Federal University of Rio de Janeiro. It deals with the development of a labor market in the State of Espírito Santo, as well as the inclusion of archivists in the jobs offered by public institutions in that State. The results recognize a potential and expanding labor market in the State of Espírito Santo. They also identified, -- through a research focusing on archivists graduated from the Archival Studies at the Federal University of Espirito Santo, -that these professionals lack a deeper knowledge in the archival field and that most of them wish to embark on a post-graduation course. Keywords: Archivist, Labor Market, Federal University of Espírito Santo.

Palavras-chave: Arquivista, Mercado de trabalho, Universidade Federal do Espírito Santo.

n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

Introdução Nos anos 1960, teve início o processo de industrialização no estado do Espírito Santo. Destaca-se que essa industrialização foi impulsionada pela “[...] criação de incentivos que possibilitaram o crescimento e a modernização de atividades tradicionais do setor secundário capixaba: produtos alimentícios, têxteis, minerais não metálicos e madeira” (PLANO, 2009, p. 30). Nesse período de crescimento industrial, iniciado na década de 1960, um grande contingente populacional começa a migrar para a Região Metropolitana. A população rural do estado do Espírito Santo, que em 1960 era de 71%, passa a 55% em 1970, 33% em 1980, e nos anos 2000 chega a 20,48%. O êxodo decorreu, principalmente, da aplicação da política de erradicação dos cafezais, que deixou sem sustento uma grande população que habitava o meio rural. O deslocamento da população rural para as cidades acelerou o processo de urbanização do estado do Espírito Santo (PLANO, 2009). E mais: as duas décadas seguintes foram marcadas pela instalação de grandes empresas no estado. Nas décadas de 1970 e 1980, o Espírito Santo recebeu grandes plantas industriais, como a Companhia Siderúrgica de Tubarão, a Aracruz Celulose, a Samarco e as usinas de pelotização da Companhia Vale do Rio Doce. O governo adotou uma engenharia institucional capaz de garantir êxito na condução do processo (ESPÍRITO SANTO, 2013, p. 18).

O crescimento da população urbana atraída por esse crescimento industrial no Espírito Santo, entre 1960 e 2010, pode ser visualizado no QUADRO 1. QUADRO 1 − CRESCIMENTO POPULACIONAL DO ESPÍRITO SANTO ENTRE 1960 E 2010 Ano 1960 1970 1980 1991 2000 2010

População urbana 403.461 734.756 1.324.701 1.922.828 2.460.621 2.931.472

População rural 1.014.887 883.101 738.978 675.677 633.769 583.480

Total 1.418.348 1.617.857 2.063.679 2.598.505 3.094.390 3.514.952

Fonte: Espírito Santo: Anuário, 2011, pp. 34-36.

O crescimento industrial decorreu de um conjunto de mecanismos de incentivos fiscais que estimularam a industrialização no estado. Esse crescimento industrial revelou a existência de um contingente expressivo de mão de obra não qualificada proveniente do meio rural, demandando por formação para inserção no mercado de trabalho. É nesse contexto de crescimento industrial, a partir dos anos 1970, que os cursos de formação profissional proliferam na Região Metropolitana do Espírito Santo. 256

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O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

[...]. O Estado apresentou significativa queda na participação de analfabetos no mercado de trabalho, reduzidos de 2,4% em 1998 para 0,7% em 2007, e elevada participação dos trabalhadores com ensino médio completo, de 24% para 37,2%, o que também ocorreu com os egressos do ensino superior, que aumentaram de 9,1% para 14,3%. Esse contexto enseja que o mercado de trabalho no Espírito Santo, além de estar se expandindo, tornou-se mais exigente, elevando pré-requisitos de entrada e de permanência no emprego. Embora tenhamos nas empresas inúmeras funções que requerem conhecimento (escolaridade), habilidade (experiência), competências (formação profissional) e atitudes (formação moral e ética do trabalho), para as pessoas se inserirem no mercado é inegável que os novos processos tecnológicos exigem pessoal mais bem preparado (PLANO, 2009, p. 33).

Capacitar profissionais ainda é um desafio a ser vencido no estado do Espírito Santo, que continua crescendo e atraindo grandes investimentos. Atualmente, o estado é sede de grandes indústrias ligadas ao comércio nacional e internacional, polarizando profissionais e empresas do Brasil e do mundo. É o maior exportador de rochas ornamentais da América Latina; tem a segunda maior indústria de suco de frutas do país; a terceira maior fábrica de chocolates do Hemisfério Sul. Tem, também, importantes indústrias de siderurgia, pelotização e celulose que estão entre as líderes mundiais. E em relação à indústria de petróleo e gás, destaca-se como segundo maior produtor do Brasil (FERREIRA, 2012). O Espírito Santo é uma região atraente para as empresas. Com posição geográfica e logística privilegiadas, o estado sedia mais de 600 empresas atacadistas, posicionando-se como o terceiro maior centro distribuidor brasileiro. Seu complexo portuário é um dos maiores da América Latina, o que favorece a corrente comercial com outras nações, destacando-se como o sétimo maior estado exportador e o oitavo importador do país. É responsável por 25% do volume de cargas e por 9% do faturamento do comércio exterior do Brasil (FERREIRA, 2012, p. 25).

O estado aguarda novas indústrias, que demandarão uma quantidade crescente de mão de obra qualificada, pois [...] a perspectiva é que nos próximos anos, com a chegada da indústria naval, de empresas do setor automobilístico, da fabricação de produtos da linha branca (fogão, geladeira, máquina de lavar roupa) e do complexo gás-químico, entre outros empreendimentos, o perfil atual de sua indústria (com foco em commodities) será profundamente modificado, o que deverá colocar o estado como uma das locomotivas do desenvolvimento nacional (DESAFIOS, 2012, p. 52).

Para dar conta de prover mão de obra capacitada, a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) anunciou o seu projeto de investimento para os anos de 2012/2015, cujos percentuais ficaram assim distribuídos: educação, 82,07%; saúde e segurança, 6,71%; cultura e lazer, 5,66%; acessibilidade, 4,34%; outros 1,22% (SISTEMA, 2012). A distribuição desses investimentos pode ser visualizada no GRÁFICO 1. n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

GRÁFICO 1 − PLANO DE INVESTIMENTO DO SISTEMA FINDES

Fonte: Sistema, 2012, p. 155.

Verifica-se que o percentual a ser aplicado em educação pela FINDES é substancialmente maior que os recursos destinados aos demais setores. Essa meta de investimento é compatível com o projeto do governo estadual, Espírito Santo 2030: plano de desenvolvimento, que prevê um crescimento significativo no nível de escolaridade da população capixaba nos próximos anos. O QUADRO 2 apresenta as metas relacionadas à educação para os anos de 2020 e 2030, explicitadas no projeto Espírito Santo 2030: plano de desenvolvimento. QUADRO 2 – METAS EDUCACIONAIS PARA O ESPÍRITO SANTO 2020 - 2030

Anos de estudo %

9,3 (2011)

Metas 2020 10,6

53,4 (2012)

70,0

90,0

%

15,7 (2011)

33,0

40,0

Indicadores

Situação atual

Escolaridade média da população de 25 anos a 34 anos Jovens com ensino médio concluído aos 19 anos de idade Taxa líquida de matrícula no ensino superior da população entre 18 e 24 anos

2030 14,0

Fonte: Espírito Santo 2030: plano de desenvolvimento (adaptação nossa), 2013.

Vale ressaltar que esses objetivos foram elaborados em função do perfil dos profissionais que o governo do Espírito Santo identifica como necessário ao crescimento do estado até 2030. O perfil do profissional na sociedade do conhecimento passa pela formação sólida e pelo desenvolvimento de competências diversas; pela capacidade de resolver problemas; pela polivalência do conhecimento; pela capacidade de inovar; e pelo domínio de informações culturais e tecnológicas (ESPÍRITO SANTO, 2013, p. 116). 258

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O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Nesse contexto de crescimento contínuo vivenciado no estado do Espírito Santo nos últimos cinquenta anos, vislumbra-se a possibilidade de um mercado de trabalho profícuo para o arquivista. Essa constatação sobre o crescimento da demanda pelo profissional no mercado de trabalho é corroborada pela literatura. Os espaços de trabalho estabelecidos pelas instituições formadoras do profissional de arquivo estão definidos nas diversas categorizações dos arquivos, seja pelo gênero documental, gênero audiovisual ou pela natureza dos acervos, arquivos médicos, de engenharia e outros. [...]. É uma profissão que conta com um mercado de trabalho em expansão. Além de abarcar os espaços mencionados anteriormente, os arquivistas revelam-se também como investigadores, na reconstituição da memória social (SOUZA, 2011, p. 69).

As empresas capixabas necessitarão de profissionais preparados para organizar o volume de informações gerado pelo negócio das diversas empresas já sediada no estado, bem como das novas empresas que chegarão ao Espírito Santo em decorrência das metas de crescimento que serão perseguidas pelo governo. Fazer a gestão dos arquivos que futuramente serão a base da história socioeconômica do estado e também fundamentar com documentação pertinente as decisões dos gestores nos diversos níveis das empresas são o desafio dos arquivistas.

O arquivista no setor público do Espírito Santo Para melhor compreensão das oportunidades de inserção do arquivista no mercado de trabalho relativas ao setor público no estado do Espírito Santo, foi feita uma distinção entre a oferta de vagas para as prefeituras dos municípios capixabas e para as demais instituições públicas sediadas no estado. O levantamento das informações, realizado mediante pesquisa na web, teve como foco a identificação dos editais dos concursos públicos com atribuição de pelo menos uma vaga para o exercício do cargo de arquivista no estado do Espírito Santo. A pesquisa sobre os editais compreendeu um período de dez anos, de 2004 a 2013. A escolha desse recorte temporal se deu em função da possibilidade de entrada no mercado de trabalho dos primeiros arquivistas graduados na UFES, no final de 2013.

Oportunidades para a atuação do arquivista nas empresas públicas sediadas no Estado do Espírito Santo A oportunidade de trabalho para o arquivista no estado do Espírito Santo é uma realidade. Pelo menos oito instituições públicas fizeram concursos e empossaram arquivistas que estão atuando no estado, a saber: Tribunal Regional do Trabalho (TRT 17ª Região); Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf); Tribunal Regional n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

Eleitoral (TER/ES); Secretaria de Estado de Gestão e Recursos Humanos do Estado do Espírito Santo (Seger); Tribunal de Justiça (TJ); Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Município de Vitória (IPAMV); Ministério Público (MP) e Tribunal de Contas (TCE). QUADRO 3 – EDITAIS DE CONCURSOS NO ÂMBITO ESTADUAL Edital

Cargo

Nº de vagas

Vencimento (R$)

Carga horária

TRT Edital n. 1/28 jan. 2009¹ IDAF Edital n. 1/20 out. 2010²

Analista Judiciário/ Especialidade Arquivologia Analista Organizacional/ Arquivologista

1

6.611,39

1

3.912,48

40h/ Semanal 40h/ Semanal

TER Edital n. 1/25 out. 2010³ SEGER Edital n. 1/10 dez. 20104

Analista Judiciário/ Especialidade Arquivologia Especialista em Desenv. Humano e Social/ Área de Formação Arquivologia

1

6.611,39

40h/ Semanal

2

3.344,00

40h/ Semanal

Tribunal de Justiça Edital n. 1/16 dez. 20105

Analista Judiciário/ Especialidade Arquivologia

1

3.662,80

30h/ Semanal

IPAMV Edital n. 1/20136

Arquivista

1

2.457,42

40h/ Semanal

Ministério Público Edital n. 2/7 jun. 20137

Agente Técnico/ Função Arquivista

1

3.802,73

40h/ Semanal

Tribunal de Contas Edital n. 1/19 set. 20138

Analista Administrativo/ Arquivologia

1

3.954,08

40h/ Semanal

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos

Em relação aos requisitos exigidos para investidura no cargo, além da comprovação da conclusão da graduação em Arquivologia, o registro profissional também foi uma exigência citada em quatro editais. QUADRO 4 − REQUISITOS EXIGIDOS PARA OS CARGOS TRT

IDAF

TRE

SEGER Tribunal de Justiça

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Diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso de graduação em Arquivologia, fornecido por instituição de ensino superior reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC). Certificado de conclusão ou diploma, devidamente registrado, de curso de graduação de nível superior, bacharelado, em Arquivologia, mais registro no respectivo Conselho de Classe, se houver. Diploma, devidamente registrado, de conclusão do curso de graduação de nível superior em Arquivologia, fornecido por instituição de ensino superior reconhecida pelo Ministério da Educação e registro na Delegacia Regional do Trabalho (Lei nº 6546/78 e Decreto 82590/78), ou registro no Conselho Regional da categoria, caso existente. Diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso de graduação de nível superior em Arquivologia, fornecido por instituição de ensino superior reconhecida pelo Ministério da Educação e registro profissional. Diploma, devidamente registrado, de curso de graduação de nível superior em Arquivologia, expedido por instituição de ensino superior reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), e registro no órgão de classe competente.

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QUADRO 4 (CONT.) − REQUISITOS EXIGIDOS PARA OS CARGOS IPAMV Ministério Público Tribunal de Contas

Ensino superior completo em Arquivologia realizado em instituição de ensino credenciada pelo MEC. Ensino Superior completo em Arquivologia. Diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso de nível superior em Arquivologia, fornecido por instituição de ensino superior reconhecida pelo MEC.

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos

Quanto às atribuições, vale ressaltar que são descritas em caráter geral, englobando conhecimentos diversos, mas compatíveis com a regulamentação da profissão, conforme explicitado no QUADRO 5. QUADRO 5 − ATRIBUIÇÕES DESCRITAS NOS EDITAIS TRT

IDAF

TRE

SEGER

Tribunal de Justiça

IPAMV

Executar atividades relacionadas à tramitação, utilização, avaliação e arquivamento de documentos; efetuar procedimentos de controle, identificação, classificação e descrição de documentos; avaliar e selecionar documentos para fins de preservação ou descarte; promover medidas necessárias à conservação, microfilmagem e destinação de documentos; prestar assistência em questões relacionadas à sua área de atuação; emitir informações e pareceres; redigir, digitar e conferir expedientes diversos e executar outras atividades de mesma natureza e grau de complexidade. Planejar, coordenar, elaborar, executar, supervisionar, avaliar projetos e subprojetos de estudos e de suporte à área fim do Instituto. Administrar, executar atividades técnicas, projetos e subprojetos nas áreas de administração, patrimônio e material, compras e serviços, orçamento, finanças, contabilidade, auditoria, tributação, custos, recursos humanos, marketing, negócios, editoração, produção, revisão de textos, desenvolvimento organizacional, biblioteconomia, serviço social, informática e outras atividades correlatas. Assessorar o Instituto na execução de atividades na área de comunicação. Executar atividades de nível superior relacionadas com a manutenção, conservação, divulgação e recuperação de documentos, bem como com implantação e desenvolvimento de arquivos. Atuação em qualquer área da Administração Direta do Governo do Estado do Espírito Santo para implementar e avaliar as políticas de assistência e bem-estar social, habitação, trabalho e geração de renda, educação social e de trânsito, segurança urbana, assistência ao preso e seus familiares, alinhados com as diretrizes gerais do Governo, conforme art. 7º da Lei Complementar nº 523, de 28 de setembro de 2009. Acompanhar vistorias das instalações prediais, observando normas técnicas e consultando relatórios e planilhas de gastos, além de prestar assistência em atividades inerentes à sua área de atuação e em outras de mesma natureza e grau de complexidade; executar atividades relacionadas à tramitação, utilização, avaliação e arquivamento de documentos; efetuar procedimentos de controle, identificação, classificação e descrição de documentos; avaliar e selecionar documentos para fins de preservação ou descarte; promover medidas necessárias à conservação, microfilmagem e destinação de documentos; prestar assistência em questões relacionadas à sua área de atuação; emitir informações e pareceres; informar processos inerentes ao acervo do arquivo; realizar estudos e pesquisas de documentos; realizar estudos e propor novas técnicas de conservação, restauração e consulta de documentos; redigir, digitar e conferir expedientes diversos; realizar trabalhos que exijam conhecimentos de informática; operar equipamentos disponíveis e os sistemas e recursos informatizados na execução de suas atividades; outras atividades de mesma natureza e grau de complexidade da função que venham a ser determinadas pela autoridade superior. Executar trabalhos relacionados ao arquivamento de processos, documentos, bens culturais, bem como atuar em diferentes áreas de IPAMV em atividades de classificação e arquivamento.

n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

QUADRO 5 (CONT.) − ATRIBUIÇÕES DESCRITAS NOS EDITAIS Ministério Público

Tribunal de Contas

Planejar, coordenar, executar, supervisionar, controlar e avaliar os serviços técnicos e o funcionamento do Arquivo Geral do MP-ES; organizar, coordenar, acompanhar e controlar as atividades de identificação, avaliação, seleção e manutenção de documentos dos mais diversos tipos; definir e coordenar o trabalho de avaliação e classificação de documentos; elaborar e manter atualizadas as tabelas de temporalidade dos documentos; restaurar material danificado; organizar e manter atualizado banco de dados e sistemas eletrônicos de controle documental; controlar e promover o acesso ao acervo; realizar estudos e pesquisas de documentos e auxiliar o usuário nas pesquisas; informar processos inerentes ao acervo do arquivo; emitir certidões de documentos arquivados e pareceres; controlar o serviço de triagem e eliminação; orientar as comissões de avaliação setoriais; acompanhar e controlar os arquivos setoriais; desempenhar outras atribuições afins ou que lhe forem determinadas. Planejar, coordenar, supervisionar e executar as atividades relacionadas a recursos humanos, materiais e serviços, patrimonial e documental do TCE/ES e realizar estudos para elaboração de normas destinadas à padronização de sua gestão; pesquisar dados, proceder a estudos comparativos, elaborar relatórios, compilar informações e elaborar pareceres nos assuntos relacionados à área de atuação; analisar atos e fatos administrativos, apresentando soluções e alternativas; organizar e revisar documentos e material informativo, de natureza técnica e administrativa, relacionados com as atividades desenvolvidas, possibilitando o armazenamento, busca e recuperação da informação; executar trabalho de natureza administrativa pertinente à sua formação, compatível com sua área de atuação; acompanhar e avaliar o desempenho e a execução das políticas e diretrizes de sua área de atuação; executar outras atividades compatíveis com o cargo e com sua habilitação profissional.

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos (grifo nosso), 2014.

Cabe destacar as atribuições específicas da área apresentadas nos editais do TRE, TJ, MP e TCE. Percebe-se uma ênfase nas funções arquivísticas de conservação, avaliação e classificação presentes nos editais do TJ e do MP. Já o edital do IPAMV destaca o arquivamento, citado duas vezes no mesmo parágrafo, e a classificação como atribuições do arquivista. Algumas atribuições relevantes valem ser destacadas, tais como: implantação e desenvolvimento de arquivos, apontada no edital do TRE; e orientar as comissões de avaliação setoriais, apontada no edital do MP. Entretanto, as atribuições descritas nos editais do IDAF, SEGER e TCE não mencionam qualquer função arquivística, sinalização de um provável desconhecimento da profissão. Outro fator relevante é a menção do termo biblioteconomia no edital do IDAF, como sendo uma atribuição da área. Os registros dos editais dos concursos do estado do Espírito Santo indicam interesse pela função de conservação/preservação da documentação, presente em quatro editais. Esse interesse pode ser decorrente da inexistência, até então, de políticas de conservação da documentação pública, que vem se deteriorando nos espaços de guarda.

O arquivista nas prefeituras municipais do Estado do Espírito Santo Os 78 municípios que formam o estado do Espírito Santo estão agrupados em cinco regiões geográficas, a saber: Metropolitana, Noroeste, Litoral Norte, Central e Sul, com uma 262

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O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

população de 3.839.363 habitantes estimada no ano de 2013, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Região Metropolitana, também conhecida como Região da Grande Vitória, compreende seis municípios: Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica, Viana e Guarapari. É na Região Metropolitana, ou Grande Vitória, que se encontra a capital do estado, a cidade de Vitória. O campus de Goiabeiras da UFES, no qual é oferecido o curso de Arquivologia, também está sediado nessa região, na capital do estado. Somente oito prefeituras dos municípios capixabas já fizeram concurso público para arquivista: • na Região Metropolitana, cinco municípios: Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica e Guarapari; • na Região Central, dois municípios: Domingos Martins e Santa Leopoldina; • na Região do Litoral Norte, apenas um município, Aracruz. O QUADRO 6 apresenta as informações constantes nos editais dos primeiros concursos públicos para o cargo de arquivista nos municípios capixabas, em ordem cronológica de realização, entre os anos de 2004 e 2013. QUADRO 6 − CONCURSO PARA ARQUIVISTA NOS MUNICÍPIOS DO ES Município

Edital

Cargo

Serra Vitória

Nº 01/20049 Nº 9/200710

Vila Velha Domingos Martins Aracruz Guarapari

Nº 1/200711 Nº 02/200812

Arquivista Arquivista Arquivologia [consta a área de formação] Arquivologista

Santa Leopoldina Cariacica

Nº 001/201115 Nº 01/201216

Nº 01/200913 Nº 01/200914

Arquivista Analista de Gestão Munic. AGM II Arquivologista Arquivista Analista Munic. nível superior – Arquivologista

Nº de vagas 02 06

Vencimento (R$) 1.000,00 1.862,70

Carga horária/ sem. 30 horas 40 horas

04 01

985,63 1.326,11

40 horas 30 horas

01

1.275,10

30 horas

01

1.000,00

40 horas

01

835,64

40 horas

01

1.643,63

40 horas

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos, 2014.

Vale destacar que o município de Vitória, capital do estado, realizou concurso no ano de 2007 para preenchimento de seis vagas, mas apenas um candidato, dentre os aprovados no concurso, foi convocado e empossado. Outro ponto a ser destacado refere-se ao município de Guarapari, que fez concurso público em 2009 para empossar um candidato, mas não convocou nenhum dos arquivistas aprovados. É significativa a constatação da não contratação dos aprovados nos concursos dos municípios de Vitória e Guarapari. Esse fato pode refletir o desinteresse pelo trabalho do n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

arquivista e/ou a desvalorização da profissão, além de um gasto público desnecessário no caso da prefeitura do município de Guarapari, que realizou concurso, aprovou candidatos, mas não preencheu a vaga. Os editais dos concursos dos municípios de Domingos Martins, Guarapari e Cariacica apresentam a denominação arquivologista para o cargo a ser exercido. Constata-se, nesses casos, um desconhecimento, por parte dos órgãos responsáveis pela preparação dos editais, sobre a denominação utilizada no Brasil para esse profissional. O baixo salário oferecido pelos municípios capixabas pode estimular a rotatividade de profissionais, dificultando a execução de um programa de gestão eficaz em seus arquivos. A realização de um trabalho satisfatório no setor público municipal depende, primeiramente, da existência e da permanência do profissional no arquivo, e, para tanto, é preciso que o arquivista receba gratificação que lhe seja atraente. O QUADRO 7 apresenta as atribuições dos arquivistas, conforme proposto nos editais dos primeiros concursos municipais realizados no estado do Espírito Santo. QUADRO 7 − ATRIBUIÇÕES DESCRITAS NOS EDITAIS DOS CONCURSOS MUNICIPAIS Município Serra Vitória

Vila Velha

Domingos Martins

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Atribuições dos arquivistas Graduação em Arquivologia. Planejar, organizar e executar trabalhos relacionados ao arquivamento e à preservação dos acervos e documentos históricos, científicos, literários, culturais, artísticos, funcionais, jurídicos nos centros de documentação, centro de informação e correlatos. Coordenar trabalhos de arquivamento de cartas, fichas, documentos, plantas de construções, fitas magnéticas, disquetes e outros materiais, classificando-os segundo critérios apropriados, para armazená-los, conservá-los e possibilitar sua consulta; estudar os documentos a serem arquivados, analisando o conteúdo e o valor dos mesmos, para decidir sobre a maneira mais conveniente de arquivá-los; classificar os documentos, agrupando-os e identificando-os por assunto, ordem alfabética, cronológica ou outro sistema, para facilitar e possibilitar sua localização e consulta; supervisionar o arquivamento dos documentos de acordo com o sistema de classificação adotado, colocando-os em arquivos, estantes ou outro local adequado, para preservá-los de riscos e extravios; promover a guarda e a preservação dos documentos; promover o empréstimo dos documentos solicitados, preservando-os de riscos e extravios através de registro do destino, nome do solicitante, tempo de empréstimo e outras informações necessárias; coordenar a preparação de publicações e documentos para arquivo, selecionando aqueles que periodicamente se destinem à incineração, de acordo com as normas que regem a matéria; realizar outras atribuições afins. Participar do planejamento, coordenar, controlar e avaliar o desenvolvimento dos trabalhos relacionados com armazenamento de documentos e com a recuperação de informações; organizar e atualizar os acervos técnicos e documentais, normatizando, classificando e catalogando documentos, livros e outros documentos dos arquivos institucionais; desenvolver pesquisas sobre documentos dos arquivos da municipalidade; redigir resumos descritos do conteúdo dos documentos arquivados; providenciar reproduções fotográficas e a manutenção dos elementos que compõem o arquivo; restaurar material do acervo utilizando técnicas, materiais e conhecimentos específicos; coordenar e supervisionar a divulgação dos documentos arquivados pela municipalidade; coordenar o atendimento a pesquisadores; atender usuários, internos e externos, identificando suas necessidades e buscando disponibilizar informações e/ ou documentos; conservar acervos, dando acesso à informação e desempenhar outras atividades correlatas à função ou ao cargo, nos termos do anexo IV da Lei Municipal nº 1.934/2007. REVISTA DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

QUADRO 7 (Cont.) − ATRIBUIÇÕES DESCRITAS NOS EDITAIS DOS CONCURSOS MUNICIPAIS Município Aracruz

Guarapari

Santa Leopoldina

Cariacica

Atribuições dos arquivistas - Estudar as peças que devem ser arquivadas, analisando seu conteúdo e valor documental para decidir sobre a maneira mais conveniente de guarda; - Classificar as peças, agrupando-as e identificando-as por matéria, por ordem alfabética, cronológica ou outro sistema, para facilitar sua localização e consulta; - Arquivar as peças de acordo com o sistema de classificação adotado, colocando-as em armários, estantes ou outro local adequado, para preservá-las de riscos e extravios; - Entregar as peças que lhe são solicitadas, anotando destino, nome dos solicitantes e outros dados, ou mediante recibo, para possibilitar sua utilização por particulares, unidades administrativas ou instituições; - Controlar a localização das peças emprestadas, verificando o tempo permitido de empréstimo e tomando outras providências oportunas para evitar o extravio das mesmas; - Manter atualizados os arquivos, complementando-os e aperfeiçoando o sistema de classificação, consulta e empréstimo, para torná-los instrumentos eficazes de apoio; - Planejar sistema de recuperação de informação e de conservação preventiva de documentos; - Planejar a implantação de programa de gestão de documentos; - Organizar índice das peças arquivadas, para facilitar as consultas; - Descartar documentos de arquivos; - Classificar documentos por grau de sigilo; - Identificar a produção e o fluxo documental; - Organizar e manter acervo de importância histórico-cultural da Prefeitura; - Fiscalizar a aplicação de legislação de direitos autorais e a reprodução e divulgação de imagens; - Desenvolver ações junto com profissionais da educação e junto à comunidade; - Planejar a adoção de novas tecnologias de recuperação e armazenamento de informações; - Executar outras atribuições afins. Participar do planejamento, coordenar, controlar e avaliar o desenvolvimento dos trabalhos relacionados com armazenamento de documentos e com a recuperação de informações. Organizar e atualizar os acervos técnicos e documentais, normatizando, classificando e catalogando documentos, livros e outros documentos dos arquivos institucionais. Desenvolver pesquisas sobre documentos dos arquivos da municipalidade. Redigir resumos descritos do conteúdo dos documentos arquivados. Providenciar reproduções fotográficas e a manutenção dos elementos que compõem o arquivo. Restaurar material do acervo utilizando técnicas, materiais e conhecimentos específicos. Coordenar e supervisionar a divulgação dos documentos arquivados pela municipalidade. Coordenar o atendimento a pesquisadores. Atender usuários, internos e externos, identificando suas necessidades e buscando disponibilizar informações e/ou documentos. Conservar acervos, dando acesso à informação. Organizar documentação de arquivos institucionais e pessoais, criar projetos de museus e exposições, organizar acervos; dar acesso à informação, conservar acervos; preparar ações educativas e culturais, planejar e realizar atividades técnico-administrativas, orientar implantação de atividades técnicas, além de outras atividades correlatas. Graduação em Arquivologia.

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos, 2014.

Os editais dos concursos dos municípios de Serra e Cariacica não registraram as atribuições dos arquivistas. Registrou-se apenas a indicação Graduação em Arquivologia em detrimento da descrição das atribuições do profissional, o que pode caracterizar um desconhecimento das funções a serem exercidas pelo profissional. O edital da prefeitura do município de Vitória não aponta o arquivo como o local onde o arquivista irá desempenhar suas atribuições, mas sim os centros de documentação, centro de informação e correlatos. Se o arquivo existe, como de fato existe, por que o arquivista é n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

demandado por outros setores? Será que o não lugar do arquivo mostra o grau de importância atribuído ao setor na capital do estado? As principais funções arquivísticas descritas por Rousseau e Couture (1998, p. 265) são: criação/produção; avaliação; aquisição; conservação/preservação; classificação; descrição; e difusão e acesso. O QUADRO 8 apresenta a incidência dessas funções arquivísticas nos editais divulgados pelas prefeituras dos municípios capixabas. QUADRO 8 − INCIDÊNCIA DAS FUNÇÕES ARQUIVÍSTICAS NOS EDITAIS

Serra Vitória Vila Velha Domingos Martins Aracruz Guarapari Santa Leopoldina Cariacica

Criação/ Prod. X -

Aval. -

Aquis. -

Cons./ Pres. X X X X X X -

Classif. X X X X -

Descr. -

Difus./ Acesso X X X X X -

Fonte: Elaboração própria com base nos editais dos concursos, 2014.

A preocupação com a função preservação e/ou conservação dos documentos foi pontuada em todos os seis editais que registraram as atribuições do arquivista. O dado nos permite inferir que essa frequência indica uma preocupação das prefeituras municipais com a preservação/conservação da integridade físicas de seus acervos. A segunda função mais citada diz respeito a difusão e acesso, presente em cinco editais: Vila Velha, Domingos Martins, Aracruz, Guarapari e Santa Leopoldina. Já a função classificação foi pontuada em quatro editais: Vila Velha, Domingos Martins, Aracruz e Guarapari. As expressões possibilitar consulta e dar acesso a usuários aparecem em quatro editais: Vila Velha, Domingos Martins, Aracruz e Guarapari. Já a expressão Acesso à Informação só é mencionada no edital do município de Santa Leopoldina. O edital da prefeitura de Aracruz apresenta funções que não são mencionadas nos editais das demais prefeituras. A função criação/produção é apresentada nos seguintes termos: Identificar a produção e o fluxo documental. Há nesse edital o único registro relacionado à classificação dos documentos quanto ao grau de sigilo, bem como à expressão Gestão de Documentos. Também a atividade referente à eliminação foi citada apenas no edital da prefeitura de Aracruz, que mencionou como atribuição do arquivista a responsabilidade de Descartar documentos de arquivos. É importante destacar que importantes funções ligadas à gestão de documentos, como avaliação, aquisição e descrição, nem sequer são mencionadas.

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O ARQUIVISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Verifica-se uma ênfase na atividade de arquivamento17, apontada em três editais: os de Vitória, Vila Velha e Aracruz. Essa ênfase na atividade de arquivamento pode refletir a necessidade de “guardar” os documentos que, em profusão e sem a devida preparação técnica, se acumulam nas secretarias dos órgãos municipais. Os editais das prefeituras de Domingos Martins e Guarapari não mencionam a palavra arquivamento, que parece ter sido substituída pela expressão Armazenamento de documentos. Vale destacar que essa expressão não consta do DTA, que apresenta a expressão Armazenamento de dados, definida como “Ato ou efeito de guardar documentos e informações em meio eletrônico” (DICIONÁRIO, 2014). Somente dois editais destacam o papel educativo que o arquivo pode e deve desempenhar: Aracruz e Santa Leopoldina. Segundo Freire (2009, p. 2), As atividades culturais e educativas desenvolvidas nos arquivos são as que melhor cumprem a função de transformá-los num bem social, popular e da comunidade. Seus acervos guardam a história das localidades onde estão inseridos, por isso podem ser utilizados efetivamente como fontes de conhecimento, não apenas para os pesquisadores e historiadores, mas de forma mais democrática – para os cidadãos comuns, e em especial para os alunos.

É importante enfatizar a atribuição criar projetos de museus, presente no edital do município de Santa Leopoldina, atividade que não condiz com a formação em Arquivologia. Pela análise feita nos editais municipais, podemos concluir que há um desconhecimento sobre o trabalho que o arquivista deve realizar e de como essas atividades profissionais devem ser orientadas, já que a função Avaliação, que orienta boa parte das atividades de gestão dos arquivos, não está mencionada em nenhum dos editais.

Considerações finais Espera-se que sejam adotadas iniciativas no sentido de ampliar as ofertas de postos de trabalho para o arquivista no estado do Espírito Santo. Espera-se também que os profissionais estejam preparados para atender às demandas desse mercado de trabalho. Ao arquivista egresso da UFES cabe a participação nos eventos da área, bem como uma aproximação constante com a universidade. É preciso receber conhecimentos, mas também fornecer ao Departamento de Arquivologia da UFES informações acerca das demandas suscitadas no espaço laboral. Sem a participação do egresso, as tentativas de adequações curriculares podem ser ineficazes ou estar aquém do desejado. Em relação ao engajamento do arquivista no mercado de trabalho do estado do Espírito Santo, percebe-se uma abertura gradual de sua inserção, mesmo com a constatação de que a profissão precisa ser mais divulgada e reconhecida. A execução de atividades laborais com nível de excelência por parte de profissionais capacitados contribuirá para elevar o reconhecimento da profissão e do profissional ante as instituições públicas e a sociedade em geral. n.9, 2015, p.255-268

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SOLANGE MACHADO DE SOUZA

Notas 1 Disponível em: . Acesso em 29 de maio de 2014.

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2 Disponível em: . Acesso em 3 de janeiro de 2014.

11

Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014.

3 Disponível em: . Acesso em 3 de janeiro de 2014.

Disponível em: . Acesso em 3 de janeiro de 2014. 4

Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014. Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014.

12

Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014.

13

5 Disponível em: http://www.cespe.unb.br/ concursos/tj_es2010/arquivos/ED_1_TJ_ES_ ABERTURA.PDF>. Acesso em 3 de janeiro de 2014.

14

6 Disponível em: . Acesso em 20 de maio de 2014.

15

7 Disponível em: . Acesso em 30 de janeiro de 2014.

16

8 Disponível em: http://www.cespe.unb.br/ concursos/tce_es_13_analista/arquivos/EDITAL__ DE_ABERTURA_N___1_TCE_ES.PDF. Acesso em 3 de janeiro de 2014. 9 Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014.

Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 de fevereiro de 2014. Disponível em: . Acesso em 20 de fevereiro de 2014. O Dicionário de Terminologia Arquivística (DTA) define o termo Arquivamento como: “1. Sequência de operações que visam à guarda ordenada de documentos; 2. Ação pela qual uma autoridade determina a guarda de um documento, cessada a sua tramitação” (DICIONÁRIO, 2014).

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Referências Bibliográficas DESAFIOS no presente, incerteza no futuro. In: Anuário: 200 maiores empresas Espírito Santo, edição 2012. Vitória: IEL, 2012. DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TERMINOLOGIA ARQUIVÍSTICA. Disponível em: . Acesso em 9 de janeiro de 2014. ESPÍRITO SANTO: 2030. Plano de desenvolvimento. Vitória: GSA, 2013. Disponível em: . Acesso em 15 de janeiro de 2014. ESPÍRITO SANTO: anuário 2011. Vitória: A Gazeta, 2011. FERREIRA, M. E. “O pequeno notável”. In: Anuário: 200 maiores empresas do Espírito Santo, edição 2012. Vitória: IEL, 2012. FREIRE, L. G. L. “Difusão educativa nos arquivos”. Histórica: Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, n. 34, 2009. Disponível em: . Acesso em 30 de maio de 2014. PLANO estadual de educação profissional do estado do Espírito Santo 2010. Secretaria da Educação; Subsecretaria da Educação Básica e Profissional; Gerência de Educação Profissional (org.). Vitória: Sedu, 2009. ROUSSEAU, J.; COUTURE, C. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. SISTEMA FINDES. A casa da indústria capixaba. In: Anuário: 200 maiores empresas do Espírito Santo, edição 2012. Vitória: IEL, 2012. SOUZA, K. I. M. de. Arquivista, visibilidade profissional: formação, associativismo e mercado de trabalho. Brasília: Starprint, 2011. Recebido em 28/05/2015 Aprovado em 05/06/2015 268

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GESTÃO DE DOCUMENTOS

Gestão de documentos: síntese de uma proposta de curso de capacitação à distância para o Poder Executivo Federal Records management: synthesis of a proposal to the Federal Executive Branch for a distance learning course Djalma Mandu de Brito Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected]

Gilda Helena Bernardino de Campos Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do departamento de educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) [email protected]

Luis Cleber Gak Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected]

RESUMO: Analisa mudanças na Administração Pública Federal no Brasil entre 2004 a 2012, com foco no Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos (SIGA), objetivando verificar se um curso de capacitação em gestão de documentos, fazendo uso da Educação à Distância (EAD) seria uma alternativa para suprir a carência na área. Analisa a abertura de concursos públicos para arquivistas e técnicos de arquivos; a criação de ministérios e órgãos equivalentes a ministérios; a criação de cursos superiores em Arquivologia e a entrada em vigor da Lei nº. 12.527/2011, a Lei de Acesso à Informação. Avalia o impacto desses fatores na demanda por cursos de capacitação no âmbito do Poder Executivo Federal (PEF). Identifica o perfil dos agentes públicos integrantes do SIGA. Apresenta uma proposta de curso de capacitação a ser oferecido com o uso da EAD. Conclui que a oferta de egressos de Arquivologia é insuficiente para atender aos integrantes do PEF e que o ingresso de mão de obra especializada por meio de concurso público nesse Poder serviu para repor a mão de obra equivalente na década de 1990. Palavras-chave: Gestão de documentos, Agentes públicos, Educação à Distância. n.9, 2015, p.269-285

ABSTRACT: The paper analyses the changes in Brazil’s Federal Public Administration, between 2004 and 2012, focusing on the Archive Records Management System (SIGA), aiming at verifying if a course on records management using Distance Learning could be an alternative to meet the needs of this area. The paper also analyzes the public tenders to hire archivists and archival technicians; the creation of ministries and equivalent public bodies; the creation of higher education courses in Archival Studies and the effectiveness of Law # 12.527/2011, the Law of Access to Information. The paper evaluates the impact of those factors on the demand for training courses within the Federal Executive Branch and identifies the profile of the public agents from SIGA. It also presents the proposal for a course to be offered using distance learning. It concludes that the offer of professionals graduated from Archival Studies is insufficient to meet the needs of the Federal Executive Branch and that the hiring of skilled personnel through public tenders in this Branch was only enough to replace the equivalent posts held in the 1990s. Keywords: Records Management, Public Agents, Distance Learning. 269

DJALMA MANDU DE BRITO, GILDA HELENA BERNARDINO DE CAMPOS, LUIS CLEBER GAK

E

ste artigo é um resumo da pesquisa de mestrado desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos (PPGARQ), da Escola de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). O tema da pesquisa voltou-se para a proposição de um produto técnico-científico: um curso de gestão de documentos de arquivo, a ser oferecido por meio da modalidade educacional à distância, pois foi identificada a necessidade de serem fomentadas ações de capacitação em gestão de documentos de arquivo para os agentes públicos1 que exercem suas atividades diárias nos diversos serviços de arquivo do Poder Executivo Federal (PEF) distribuídos pelo território brasileiro. Nesta investigação, entendeu-se que a capacitação engloba o treinamento em serviço, a reciclagem e o aperfeiçoamento profissional. Jardim (1998) aponta que a capacitação é específica, voltada para o cumprimento de tarefas definidas: [...] A capacitação objetiva dotar seus beneficiários de um tipo mais concentrado de instrução para cumprir tarefas definidas, num contexto específico. Visa a servir como ‘meio para se atingir um fim, ou seja, adquirir experiência em um tipo de trabalho e não constituir-se num fim em si mesmo’ (JARDIM, 1998, p.1, grifo do autor).

A atividade de gestão de documentos de arquivo requer a atuação de profissionais capacitados, cujos conhecimentos na área estejam em sintonia com a teoria, a prática arquivística e a legislação arquivística em vigor. Para tal, essa capacitação deve ocorrer de forma perene e sistemática. A pesquisa partiu do pressuposto de que: a) Existe a necessidade de se fomentar a capacitação em gestão de documentos de arquivo e que, b) a promoção de cursos de capacitação em gestão de documentos de arquivo ocuparia um espaço importante no panorama arquivístico do Brasil, principalmente aqueles que envolvam os agentes públicos do PEF (técnicos, auxiliares administrativos e gestores responsáveis pela guarda e a manutenção dos documentos de arquivo) que não têm formação de nível superior em Arquivologia, mas que trabalham nos diversos serviços de arquivo, nos protocolos, bem como nos arquivos setoriais, centrais ou gerais. Utilizou-se o entendimento de que agentes públicos no Brasil são constituídos de servidores públicos, terceirizados, empregados públicos e agentes públicos contratados por tempo determinado. Os serviços de arquivo apontados nesta pesquisa são os existentes nos órgãos públicos ou nas entidades públicas da administração direta do PEF, bem como os da administração indireta, como as empresas públicas e de economia mista que estão subordinadas a esse Poder, uma vez que essas instituições integram o Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos (Siga) da Administração Pública Federal (APF). Assim, o campo empírico dessa pesquisa foi o PEF. No Brasil, o curso de bacharelado em Arquivologia é uma das poucas opções para aqueles que desejam adquirir conhecimentos nessa área, conforme aponta Lopez (2012, 270

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GESTÃO DE DOCUMENTOS

p. 183). Por outro lado, salienta-se que, na atual conjuntura brasileira, são relativamente poucas as ofertas de cursos de curta duração que estejam voltados para a área arquivística. Nesse sentido, um curso de capacitação em gestão de documentos de arquivo com o uso da Educação à Distância (EAD) poderia promover a aprendizagem nessa área, colaborando para além da mitigação de eventuais prejuízos advindos da carência de conhecimentos técnicos, no que se refere à manutenção e ao tratamento dos conjuntos documentais públicos dos inúmeros serviços de arquivo do PEF distribuídos pelo extenso território brasileiro: poderia proporcionar economia de recursos humanos, financeiros e materiais. A EAD é uma modalidade educacional que faz uso dos inúmeros recursos oferecidos pelas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC), propiciando uma forma de aprender e ensinar distinta do modelo presencial (FILATRO, 2008, p. 13). Por meio da EAD podem ser criados cursos que dispensam, em parte, a presença do aluno em uma sala de aula física (são os cursos semipresenciais ou bimodais), assim como cursos que dispensam no todo esse encontro físico entre professor (que por vezes é denominado, entre outros termos, como mediador, tutor, facilitador, monitor, professor on-line, etc) e aluno (são os cursos virtuais). Existem ainda cursos à distância que não utilizam a intermediação de um professor – são os cursos autoinstrucionais. Dessa forma, a EAD consegue alcançar um público que a modalidade de ensino presencial, por seus meios tradicionais, não alcança. Uma das vantagens dessa modalidade em relação à educação presencial é a versatilidade, uma vez que ela proporciona aos seus discentes a possibilidade de estudar na hora e no local em que lhes forem mais convenientes (MORAN, 2002, p. 1). Ademais, em alguns casos inexiste a necessidade de deslocamentos físicos do discente até uma sala de aula presencial. O potencial que a EAD apresenta poderia ser utilizado também na capacitação e na atualização de conhecimentos de agentes públicos que trabalham na Administração Pública. De acordo com essa linha de pensamento, o público-alvo para o curso de capacitação em gestão de documentos de arquivos proposto são os agentes públicos dos órgãos ou das entidades integrantes do Siga que atuam em gestão de documentos de arquivo nos serviços de arquivo do PEF. Na pesquisa, foi proposta a análise de algumas transformações ocorridas no panorama do PEF entre 2004 − após a publicação do Decreto nº. 4.915, de 12 de dezembro de 2003, que dispõe sobre a implementação do Siga e estabeleceu as atribuições e responsabilidades dos integrantes do Sistema e do Arquivo Nacional, o seu órgão central − e 2012, com a entrada em vigor da Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011 – a Lei de Acesso à Informação (LAI). A pesquisa buscou levar em consideração as demandas do Sistema e seu universo nesse período para subsidiar a proposta do curso. O primeiro aspecto analisado foi a abertura de concursos para arquivistas e técnicos de arquivo no PEF, principalmente nos últimos dez anos, aspecto que potencializou n.9, 2015, p.269-285

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DJALMA MANDU DE BRITO, GILDA HELENA BERNARDINO DE CAMPOS, LUIS CLEBER GAK

a necessidade de capacitar esses agentes públicos em gestão de documentos de arquivo. De acordo com consulta feita ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP)2, foram disponibilizadas 279 vagas ao PEF, por meio de concursos públicos para arquivista (cargo de nível superior, de acordo com a Lei nº. 6.546, de 4 de julho de 1978). O MP3 reporta a disponibilização de 47 vagas para técnico de arquivo (cargo de nível médio, de acordo com a Lei nº. 6.546, de 4 de julho de 1978) para o PEF. Em relação à recomposição de pessoal no setor público brasileiro durante a primeira década de 2000, Pochmann (2011) pondera que esse movimento, embora tenha se dado de forma explosiva, foi suficiente apenas para “[...] repor, praticamente, o mesmo estoque e percentual de servidores que havia no país em meados da década de 1990” (POCHMANN, 2011, p. 8). De acordo com esse dado, na prática não ocorreu acréscimo à força de trabalho do PEF, embora seja significativo o fato de que mais de trezentos agentes com conhecimento na área de arquivos tenha passado a integrar a força de trabalho ativa desse Poder. A criação de ministérios e órgãos equivalentes a ministérios foi o segundo elemento pesquisado, pois demandou a entrada de agentes públicos, por meio da abertura de concursos públicos, que não necessariamente tivessem conhecimentos na área de arquivos. A análise de dados em relação à criação de ministérios e órgãos equivalentes a ministérios (secretarias especiais que equivalem a ministérios) foi considerada relevante, dada a forte influência que exerce no cenário do PEF. Em 2004 eram 37 ministérios e órgãos equivalentes4, face aos 39 existentes no corte da pesquisa, de acordo com dados disponibilizados pelo Palácio do Planalto. Houve um crescimento de pouco mais de 5% nesse quantitativo para o período. Nesse universo encontram-se 1.335 órgãos ou entidades (INDOLFO, 2013), e, segundo o Boletim Estatístico de Pessoal do MP5, em dezembro de 2004 o PEF contava com 889.762 agentes públicos ativos. Os dados relativos ao ano de 2013, de acordo com o MP, apontam para um universo de mais de um milhão de servidores públicos ativos, com um aumento de pouco mais de 10% no intervalo pesquisado. Para viabilizar suas funções e desenvolver suas atividades administrativas, os ministérios e órgãos equivalentes e seus respectivos órgãos ou entidades subordinados demandam um número elevado de agentes públicos, produzindo diariamente muitos documentos de arquivo, o que repercute diretamente na necessidade de recursos humanos capacitados na área de gestão de documentos. O terceiro elemento estudado foi o aumento da oferta dos cursos de graduação em Arquivologia, o que se entendeu, num primeiro momento, que teria contribuído para o acréscimo do número de egressos com formação de nível superior no PEF. No entanto, verificou-se que essa demanda por arquivistas não tem sido suprida, como apontam Gak, Belesse e Gomes (2012, p. 269). De acordo com informações disponíveis no sítio eletrônico do Ministério da Educação (MEC)6, o Brasil conta atualmente com 16 instituições credenciadas 272

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para o oferecimento do curso de bacharelado em Arquivologia, sendo doze federais, três estaduais e um curso particular. Segundo levantamento realizado por Gak, Belesse e Gomes (2012, p. 274) o total de alunos formados em Arquivologia no Brasil foi de 4.646 desde a criação do primeiro curso, em 1977, na UNIRIO, até 2010. Souza (2011, pp. 166-167) atualiza os dados, sinalizando um total de 4.906 egressos até o ano de 2011. Todavia, a mesma autora (SOUZA, 2011, p. 168) aponta que apenas 1.377 desses egressos tinham registro profissional no Ministério do Trabalho, condição indispensável para se exercer a profissão na área pública. O quarto elemento pesquisado foi a entrada em vigor da Lei nº. 12.5277, de 18 de novembro de 2011, e as possíveis novas demandas aos serviços de arquivo do PEF. Essa lei regulamentou o direito, anteriormente previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de qualquer pessoa solicitar e receber informações produzidas ou custodiadas nos órgãos e entidades públicos. O dispositivo legal entrou em vigor em 16 de maio de 2012, passando a ser conhecido como Lei de Acesso à Informação (LAI), cuja essência é que a publicidade da informação seja a regra e o sigilo seja uma exceção. A partir da LAI, os órgãos e entidades públicos passaram a ter o dever de dar publicidade por meio da Rede Mundial de Computadores às informações públicas que sejam de interesse coletivo ou geral. Nesta pesquisa, partiu-se do entendimento de que a entrada em vigor da LAI ocasionaria novas demandas aos arquivos do PEF, conforme aponta a arquivista francesa Perrine Canavaggio8 (2012). No Brasil, a Controladoria-Geral da União (CGU) recebeu a atribuição de monitorar o funcionamento da LAI em todo o PEF, atuando como seu órgão central (CGU, 2013, p. 9). Buscou-se conhecer o nível de participação dos arquivos em relação à LAI pela leitura do Relatório de Pedidos de Acesso à Informação e Solicitantes, gerado a partir do sítio eletrônico da CGU, com período da pesquisa compreendido entre maio de 2012 e maio de 2013, portanto um ano após a entrada em vigor da LAI. O Relatório de Pedidos de Acesso à Informação e Solicitantes não apresenta informações sobre o nível de participação dos arquivos, nem quantas consultas demandaram a intervenção dos arquivos, embora o documento registre que nesse período foram realizados 8.322 pedidos de acesso a informações. Essa ausência de informações suscita pelo menos dois questionamentos: 1) Qual seria o percentual de participação dos arquivos nas consultas; e 2) Quantas consultas demandaram a intervenção dos arquivos. De acordo com o Relatório, cerca de 30% dos pedidos (2.786 respostas) tiveram como resposta “informação inexistente”. Trata-se de um percentual bastante alto em relação ao total de pedidos. Esse dado suscita mais questionamentos: a informação é inexistente por qual motivo? Desorganização da documentação? Falta de pessoal capacitado na busca e recuperação da informação? A publicação da LAI representa inegável avanço no fomento à transparência das ações do Estado brasileiro. Entretanto, as informações obtidas sugerem que a participação dos arquivos não tem sido representativa, dado o alto percentual de solicitantes n.9, 2015, p.269-285

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que não conseguiram obter a informação solicitada. A pesquisa realizada não é conclusiva, já que as informações obtidas não permitem fazer tal afirmação com maior fundamentação. O quinto elemento pesquisado foi o perfil do agente público do órgão ou da entidade que integram o Siga, a partir do cadastro nacional de seus integrantes. Os dados evidenciaram que se trata de um público majoritariamente de nível superior e, dentre esses, cerca de 10% são formados em Arquivologia. Estão mais concentrados nas regiões Centro-Oeste (Distrito Federal) e Sudeste (estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais). São experientes em suas atividades, e quase a metade tem mais de dez anos no serviço público. A maioria é constituída de profissionais que provavelmente desenvolveram ou adquiriram sua experiência profissional em atividades práticas do dia a dia nos próprios serviços de arquivo, sem formação especializada na área arquivística. A maioria dos agentes atua fora dos Protocolos e dos Arquivos Centrais ou Gerais. Quase um terço dos agentes do Cadastro está ocupando um cargo em comissão, sendo que, na maioria, são profissionais de nível médio. Quase 5% dos agentes exercem alguma atividade ligada à Coordenação do Siga, ao passo que mais de 10% integram a CPAD do seu órgão ou entidade. O Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo da Administração Pública Federal foi criado pelo Decreto nº. 4.915, de 12 de dezembro de 2003, tendo o objetivo de fomentar a integração e a coordenação das atividades de gestão de documentos de arquivo desenvolvidas pelos órgãos setoriais e seccionais da administração direta ou indireta integrantes do PEF. Por meio da promoção de ações em gestão de documentos, o Siga tem a finalidade de proporcionar aos cidadãos e aos órgãos e entidades do PEF o acesso, de forma ágil e segura, aos documentos de arquivo e às informações neles contidas, observados as restrições administrativas ou os impedimentos legais. O Arquivo Nacional (AN) é a autoridade arquivística que atua como órgão central do Sistema. Suas competências são o acompanhamento e a orientação, junto aos órgãos setoriais do Siga, da aplicação das normas relacionadas à gestão de documentos de arquivos; a orientação e a implementação, coordenação e controle das atividades e rotinas de trabalho relacionadas à gestão de documentos nos órgãos setoriais; a promoção da disseminação de normas técnicas e informações de interesse para o aperfeiçoamento do sistema junto aos órgãos setoriais do Sistema; a promoção e o intercâmbio de cooperação técnica com instituições e sistemas afins, nacionais e internacionais; e o estímulo e a promoção da capacitação para os agentes atuantes na área de gestão de documentos de arquivo.

Síntese de uma proposta de curso de capacitação em Gestão de Documentos à distância O curso em proposição não visou ao simples repasse de informações e conhecimentos técnicos do fazer arquivístico, mas partiu da constatação de que os serviços de arquivos do PEF, distribuídos em cerca de 1.335 órgãos ou entidades desse Poder (INDOLFO, 274

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2013), carecem de agentes públicos com conhecimentos mínimos da teoria arquivística na aplicação e no uso adequado de instrumentos técnicos de gestão de documentos, conforme levantamento de perfil do agente público do SIGA e trabalhos de autores que pesquisam o tema. A carga horária total do curso sugerido perfaz 40 horas, sendo 30 horas destinadas às leituras propostas e mais 10 horas para a realização das atividades de fixação e avaliativas. Em relação à organização curricular, por se tratar de um curso de curta duração, sugere-se uma proposta metodológica que contemple um conteúdo que permita a proposição de situações didáticas ao aluno, estimulando a apreensão de conceitos e noções básicas da Arquivologia, de uso constante na área de gestão de documentos. A subdivisão do material em partes faz-se necessária em razão de algumas mudanças ocorridas nos últimos anos nos marcos conceituais, normativos e legais de assuntos relativos à gestão dos documentos produzidos e recebidos pelos órgãos e entidades do PEF, no que tange aos documentos digitais e, sobretudo, em relação ao acesso à informação. O conteúdo deve ser apresentado por meio de um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), com situações didáticas9 e estratégias de aprendizagem10 de modo que o estudante se aproprie de meios, mecanismos e instrumentos que lhe permitam realizar intervenções com maior grau de precisão em suas atividades laborais na área de arquivos. Portanto, optou-se pela divisão em módulos do conteúdo escolhido para o curso, contemplando quatro temas, com assuntos que dizem respeito aos fundamentos da área arquivística, sua respectiva legislação e normativas, que se vinculam entre si e que permeiam toda a atividade de gestão de documentos de arquivo, conforme ilustração a seguir: QUADRO 1 – Conteúdo do curso básico de gestão de documentos

Módulos:

Noções básicas de arquivo Noções básicas de gestão de documentos de arquivo Documentos arquivísticos digitais

Conteúdo

Princípios arquivísticos; Teoria das Três Idades; documentos de arquivo; arquivos; gestão de documentos de arquivo; noções de classificação; noções de ordenação; mensuração de acervo arquivístico; avaliação, temporalidade e destinação; recolhimento de documentos; documentos arquivísticos digitais; microfilmagem; acesso a informações; documentos em meios eletromagnéticos; segurança da informação; Lei de Arquivos; SIGA;CPAD; Resoluções do CONARQ; Instrução Normativa.

Legislação e normas Fonte: Autoria própria.

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Proposta curricular − O órgão ou a entidade interessados em implementar o curso proposto devem, a partir do conteúdo apresentado, elaborar seu próprio material didático e as respectivas atividades, considerando as suas necessidades e especificidades. Devem ainda observar a redação a ser utilizada nos módulos que necessitam de linguagem diferenciada para os agentes de níveis fundamental e médio, principalmente porque esse público tem pouca afinidade com a EAD. Na elaboração da proposta de matriz curricular foram incluídos aspectos que têm o objetivo de apontar atividades a serem realizadas pelos alunos e que encaminhem para a proposição de soluções em seus locais de trabalho. Assim, as situações didáticas utilizadas consideram o aluno o centro do processo de aprendizagem, encaminhando-o para além dos métodos e das técnicas arquivísticas existentes (CAMPOS; ROQUE; AMARAL, 2007, p. 17). A temática dos módulos foi proposta de modo que sua apresentação ocorra de forma encadeada e complementar. Cada módulo oferece um assunto completo, cujo estudo é necessário para o entendimento do assunto subsequente. Existe a possibilidade de que cada módulo origine um curso independente, caso o órgão ou a entidade julguem pertinente. Ademais, os conteúdos dos módulos foram desenvolvidos para abranger a diversidade dos cargos dos agentes que devem estudá-los. Destacamos que os assuntos do conteúdo − portanto, o material didático − devem ser redigidos de forma dialógica, proporcionando o entendimento por parte do público ao qual se destina, principalmente os agentes com cargos de níveis fundamental e médio, que compõem grande parte da força de trabalho do PEF. Os assuntos abordados nos módulos destinam-se, sobretudo, aos profissionais de cargo fundamental, médio, e aos profissionais de nível superior que não são formados em Arquivologia. Os módulos são optativos para o arquivista, uma vez que os assuntos de que tratam devem ser de amplo domínio do mesmo. Desta forma, recomenda-se que o arquivista os estude, mesmo que conheça os conteúdos propostos, de modo que possa atualizar seus conhecimentos e/ou esclarecer dúvidas eventuais que tenha, bem como familiarizar-se com os recursos disponíveis no AVA, uma vez que poderá ser convidado a se tornar um tutor em futuras edições do curso. É altamente recomendável que sejam disponibilizadas duas turmas para cada módulo: • A primeira deverá ser oferecida exclusivamente aos agentes de níveis fundamental e médio. Essa divisão por cargos fundamenta-se no fato de que esse público possui um domínio específico de linguagens, códigos e tecnologias (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2000). Orienta-se que a equipe responsável pela redação dos assuntos propostos o faça de modo que sua leitura seja compreensível para esses agentes, respeitando o seu nível de estudo e viabilizando a apreensão do conteúdo por parte deles (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007, p. 4).

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A segunda turma deve ser voltada exclusivamente para arquivistas e profissionais de nível superior que não são arquivistas, dado que esse público tem, em tese, um nível maior quanto ao domínio de linguagens, códigos e tecnologias.

Módulo 1: Introdução ao estudo dos arquivos − O conteúdo do módulo tem o objetivo de proporcionar ao aluno do curso o contato com as noções básicas de arquivo, partindo da apresentação dos princípios arquivísticos, cujo conhecimento é fundamental para a realização das atividades que apoiam o fazer arquivístico. A teoria das três idades é abordada neste módulo, de cuja concepção decorreu a gestão de documentos. Entende-se que seu domínio é fundamental para as atividades de seleção e avaliação de documentos. Por fim, esse módulo prevê a abordagem da conceituação e da caracterização do que são os documentos de arquivos (e o que não são), bem como a conceituação e a caracterização, além da apresentação dos diferentes significados do verbete arquivo e a utilização de cada um. QUADRO 2 – Módulo 1: Introdução ao estudo dos arquivos Módulo 1: Introdução ao estudo dos arquivos Assuntos Tópicos Princípios arquivísticos • Proveniência ou respeito aos fundos • Respeito à ordem original Teoria das três idades • Apresentação do conceito e características dos arquivos correntes, intermediários e permanentes Conceituação e caracterização dos • Apresentação do conceito, características, gênero, documentos de arquivo espécie, tipo e natureza do assunto Conceituação e caracterização • Apresentação do conceito, características e utilização dos arquivos Fonte: Elaboração própria

Módulo 2: Noções básicas de gestão de documentos − Este módulo apresenta um conteúdo que julgamos constituir os principais elementos da gestão de documentos, em uma carga horária total de 10 horas. É apresentado o conteúdo especifico da gestão de documentos, seu conceito, os objetivos de sua aplicação, as fases e níveis de aplicação segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), bem como o ciclo vital dos documentos e suas fases. O aluno aprenderá e/ou aprofundará os conhecimentos relativos à atividade fundamental da gestão de documentos: a classificação de documentos de arquivo. Para tal, propõe-se que seja disponibilizado ao aluno um exemplar digital (em arquivo com extensão em .pdf, .doc ou .odt) do Código de Classificação de Documentos de Arquivo Relativo às Atividades-Meio da Administração Pública, instrumento técnico de gestão de documentos aprovado por meio da Resolução nº. 14, de 24 de outubro de 2001, do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ)11. O assunto seguinte do módulo é a ordenação, que são as diversas configurações possíveis para o arquivamento dos conjuntos documentais. A mensuração do acervo foi contemplada nesse módulo, com o objetivo de n.9, 2015, p.269-285

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dar aos alunos meios para fazer diagnósticos simplificados, relativos ao quantitativo de acervo documental arquivado no seu local de atuação. A avaliação, atividade vital da gestão de documentos, encontra-se disposta nesse módulo, e a abordagem deve considerar sua conceituação e seus objetivos, demonstrando o significado do verbete “temporalidade” e sua utilização, bem como da expressão “destinação de documentos de arquivo”. O cursista deverá ter contato com a Tabela Básica de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo Relativa às Atividades-Meio da Administração Pública, instrumento técnico de gestão de documentos aprovado por meio da Resolução nº. 14, de 24 de outubro de 2001, do CONARQ. Também é cabível a mesma recomendação para a utilização da tabela de temporalidade relativa às atividades-fim do órgão ou entidade, caso o órgão ou a entidade tenha elaborado a sua e obtido a aprovação por parte do Arquivo Nacional. É feita uma abordagem sobre a Comissão Permanente de Avaliação de Documentos (CPAD), cuja criação é obrigatória, de acordo com o Art. 18 do Decreto nº. 4.073, de 2002. Outros assuntos são os procedimentos referentes à eliminação de documentos públicos, com o módulo terminando com uma abordagem mais verticalizada sobre os procedimentos de recolhimento de documentos de guarda permanente ao Arquivo Nacional. QUADRO 3 – Módulo 2: Noções básicas de gestão de documentos Módulo 2: Noções básicas de gestão de documentos Assuntos Tópicos Gestão de documentos de • Apresentação do conceito, dos objetivos, fases e níveis de apliarquivo cação, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Classificação de documentos • Apresentação do conceito e dos objetivos de arquivo • Os procedimentos para classificar documentos de arquivo • Instrumento de classificação: o código (ou plano) de classificação de documentos de arquivo (relativo às atividades-meio e fim) Avaliação, temporalidade e • Apresentação do conceito e dos objetivos da avaliação destinação de documentos de • Apresentação do instrumento de avaliação: a tabela de arquivo temporalidade e destinação de documentos de arquivo relativa às atividades-meio e fim • O que é prazo de guarda e destinação final: guarda permanente e eliminação • Comissão Permanente de Avaliação de Documentos (CPAD): sua composição, âmbito de atuação e atividades desenvolvidas, como a elaboração de instrumentos de gestão, o levantamento da produção documental e a eliminação de documentos • Procedimentos para a eliminação de documentos de arquivo: elaboração de Listagem de Eliminação de Documentos, Edital de Ciência e Termo de Eliminação de Documento. Gestão de documentos de • Apresentação do conceito, dos objetivos, fases e níveis de apliarquivo cação, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Classificação de documentos • Apresentação do conceito e dos objetivos de arquivo • Os procedimentos para classificar documentos de arquivo • Instrumento de classificação: o código (ou plano) de classificação de documentos de arquivo (relativo às atividades-meio e fim) Mensuração de acervo arqui• Técnicas para mensurar conjuntos documentais em estantes, vístico armários ou em massa documental acumulada (MDA)12 278

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QUADRO 3 (Cont.) – Módulo 2: Noções básicas de gestão de documentos Módulo 2: Noções básicas de gestão de documentos Assuntos Tópicos Recolhimento de documentos • Procedimentos arquivísticos a serem observados ao Arquivo Nacional • Procedimentos de conservação preventiva • Elaboração de termo de recolhimento Fonte: Elaboração própria.

Módulo 3: Documentos arquivísticos digitais − O terceiro módulo foi reservado para focalizar alguns assuntos que dizem respeito à gestão de documentos, mas que por sua especificidade e contínua necessidade de atualização, pois estão afetos à tecnologia digital, precisam ser abordados em um módulo separado: os documentos digitais. A carga horária total é de 10 horas. Neste módulo serão desenvolvidas considerações a respeito da produção, manutenção e destinação final dos documentos digitais, inclusive no que diz respeito à contratação de soluções de tecnologia da informação. QUADRO 4 – Módulo 3: Documentos arquivísticos digitais Módulo 3: Documentos arquivísticos digitais Assuntos Tópicos Produção, manutenção e uso de • Aspectos referentes à tecnologia envolvida (formatos) documentos digitais • Espaços de produção dos documentos • Organização: classificação e ordenação • Controle de acesso. Segurança. Arquivamento, pesquisa e localização • Noções do e-ARQ Brasil, modelo de requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos Contratação de soluções de Tec• Noções sobre os procedimentos de contratação de soluções nologia da Informação de Tecnologia da Informação Destinação final de documentos • Guarda permanente ou eliminação digitais Fonte: Elaboração própria.

Módulo 4: Legislação e dispositivos normativos − O quarto módulo aborda exclusivamente o aparato legislativo e normativo que dispõe sobre as atividades arquivísticas, com carga horária total de 5 horas. Devido à necessidade de atualização contínua do agente em relação a estes assuntos, sugere-se que os mesmos sejam amplamente discutidos em fóruns e não somente disponibilizados para leitura, para dar ao estudante a oportunidade de esclarecer dúvidas que possivelmente surgirão durante o estudo do material. A proposição desse módulo pretende fornecer ao agente público um contato mínimo com a legislação arquivística em vigor e fomentar a composição de uma bibliografia legislativa e normativa básica para as suas atividades nos serviços de arquivos. Os alunos podem ser informados sobre a existência de uma coletânea arquivística, mais completa do que o conteúdo indicado e cuja atualização se dá de forma periódica, disponível para consultas e/ou download no sítio eletrônico do CONARQ13. n.9, 2015, p.269-285

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QUADRO 5 – Módulo 4: Legislação e dispositivos normativos Módulo 4: Legislação e dispositivos normativos Assuntos Tópicos Microfilmagem • Microfilmagem de documentos oficiais, com base na Lei n°. 5.433, de 8 de maio de 1968 e no Decreto nº. 1.799, de 30 de janeiro de 1996 • Resolução nº. 10, de 6 de dezembro de 1999, do CONARQ − Dispõe sobre a adoção de símbolos ISO nas sinaléticas a serem utilizadas no processo de microfilmagem de documentos arquivísticos. Gestão de • Resolução nº. 39, de 29 de abril de 2014, do CONARQ − Estabelece documentos digitais diretrizes para a implementação de repositórios digitais confiáveis para a transferência e o recolhimento de documentos arquivísticos digitais para instituições arquivísticas dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos (Sinar) • Resolução nº. 38, de 9 de julho de 2013, do CONARQ − Dispõe sobre a adoção das “Diretrizes do Produtor - A Elaboração e a Manutenção de Materiais Digitais: Diretrizes para Indivíduos” e “Diretrizes do Preservador − A Preservação de Documentos Arquivísticos Digitais: Diretrizes para Organizações” • Resolução nº. 37, de 19 de dezembro de 2012, do CONARQ − Aprova as Diretrizes para a Presunção de Autenticidade de Documentos Arquivísticos Digitais • Resolução nº. 36, de 19 de dezembro de 2012, do CONARQ − Dispõe sobre a adoção das Diretrizes para a Gestão Arquivística do Correio Eletrônico Corporativo pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos (Sinar) • Resolução nº. 32, de 17 de maio de 2010, do CONARQ − Dispõe sobre a inserção dos metadados na Parte II do Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos − e-ARQ Brasil • Resolução nº. 24, de 3 de agosto de 2006, do CONARQ − Estabelece diretrizes para a transferência e o recolhimento de documentos arquivísticos digitais para instituições arquivísticas públicas • Resolução nº. 20, de 16 de julho de 2004, do CONARQ − Dispõe sobre a inserção dos documentos digitais em programas de gestão arquivística de documentos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos Contratação • Instrução Normativa nº 4, de 12 de novembro de 2010 − Dispõe sobre o de soluções de processo de contratação de Soluções de Tecnologia da Informação pelos Tecnologia da órgãos integrantes do Sistema de Administração dos Recursos de Informação Informação e Informática (Sisp) do Poder Executivo Federal Acesso à Informação • Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011 e Decreto nº. 7.724, de 20 de maio de 2012 Lei de Arquivos • Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro de 1991 e Decreto nº. 4.073 de 3 de janeiro de 2002 Sistema de Gestão • Decreto nº. 4.915, de 12 de dezembro de 2003 de Documentos de Arquivo (Siga), da Administração Pública Federal Comissão • Composição e atribuições da CPAD, com base no Art. 18, do Decreto nº. Permanente de 4.073, de 3 de janeiro de 2002 Avaliação de Documentos de Arquivo (CPAD)

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QUADRO 5 (cont.) – Módulo 4: Legislação e dispositivos normativos Módulo 4: Legislação e dispositivos normativos Assuntos Tópicos Instrumentos • Resolução nº. 14, de 24 de outubro de 2001, do CONARQ − Código de técnicos de gestão Classificação e Tabela Básica de Temporalidade e Destinação de Documentos de documentos de Arquivo relativo às atividades-meio da Administração Pública • Resolução nº. 21, de 4 de agosto de 2004, do CONARQ − Dispõe sobre o uso da subclasse 080 - Pessoal Militar do Código de Classificação de Documentos de Arquivo para a Administração Pública: Atividades-Meio, e da Tabela Básica de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo Relativos às Atividades-Meio da Administração Pública, aprovados pela Resolução nº 14, de 24 de outubro de 2001, Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) • Resolução nº. 35, de 11 de dezembro de 2012, do CONARQ − Altera o Código de Classificação de Documentos de Arquivo para a Administração Pública: Atividades-Meio e a Tabela Básica de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo Relativos às Atividades-Meio da Administração Pública, aprovados pela Resolução nº 14, de 24 de outubro de 2001 Procedimentos • Resolução nº. 40, de 9 de dezembro de 2014, do CONARQ − Dispõe sobre para a eliminação os procedimentos para a eliminação de documentos no âmbito dos órgãos e de documentos entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos (Sinar) públicos Recolhimento de • Resolução nº. 2, de 18 de outubro de 1995, do CONARQ − Dispõe sobre as documentos medidas a serem observadas na transferência ou no recolhimento de acervos documentais para instituições arquivísticas públicas  • Instrução Normativa nº. 1, do Arquivo Nacional, de 18 de abril de 1997 − Estabelece os procedimentos para a entrada de acervos arquivísticos no Arquivo Nacional • Decreto nº. 4.073, de 3 de janeiro de 2002 • Decreto nº. 7.430, de 17 de janeiro de 2011 Fonte: Elaboração própria.

Do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) − De forma resumida, podemos afirmar que o ambiente virtual de aprendizagem (AVA) é o espaço onde os alunos acessam o material didático e realizam as atividades previstas no curso. Existem muitas opções de AVA, o que permite optar por configurações que viabilizam as mais diversificadas aplicações. Para o curso de capacitação proposto, sugere-se a utilização de um ambiente colaborativo equivalente ao E-ProInfo, cujo acesso pode se dar por meio de computador, tablet e telefone celular, o que facilita o estudo por parte do aluno. A interatividade é o processo no qual tanto os alunos quanto o tutor têm a oportunidade de trocar conhecimentos e experiências, oportunizando aos alunos o esclarecimento de dúvidas com seu tutor. Aqui cabe destacar que a tutoria a ser adotada deve ser a proativa, na qual o tutor tem amplitude de visão e imediatismo de ação, com foco na análise contínua da metodologia empregada. A participação do tutor tem foco nas dificuldades eventualmente apresentadas pelos cursistas, seja com ações presenciais ou à distância, visando ao aperfeiçoamento e à proposição de melhorias ao ambiente virtual e ao seu conteúdo, diminuindo a evasão (AGUIAR; FERREIRA; GARCIA, 2010, p. 46). Nesse sentido, o tutor precisa atuar no processo de apreensão do conteúdo por parte do cursista. n.9, 2015, p.269-285

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Considerações finais Das análises feitas, constatou-se que a capacitação permanente é um importante elemento, tanto para a valorização do agente público que atua na área arquivística do Estado − possibilitando sua realização pessoal e profissional e o cumprimento eficiente de seu papel − quanto no aspecto institucional, no que se refere à adequação das suas competências no exercício de suas atividades. A gestão dos documentos públicos é uma atribuição legal do Estado brasileiro, e a capacitação nessa atividade é uma das principais ferramentas e políticas de meio para a obtenção dos fins administrativos do Estado, que são a boa prestação dos serviços públicos e a obtenção das metas traçadas pelo governo gestor. Compreendeu-se que o PEF não pode prescindir da adoção de programas de gestão de documentos, que contemplam propostas para o tratamento técnico-arquivístico de seus conjuntos documentais digitais e não digitais, potenciais integrantes do seu patrimônio histórico documental. A inexistência de uma política arquivística no Brasil, talvez a peça-mestra do que alegoricamente chamamos de mecanismo arquivístico, pode ser considerada um dos obstáculos que têm provocado a falta de continuidade e de ampliação das atividades de capacitação promovidas pelos órgãos ou entidades integrantes do PEF. A análise dos dados contidos no cadastro do Siga possibilitou a obtenção de uma série de informações inéditas sobre o perfil do agente público que trabalha com gestão de documentos de arquivo no PEF, que serviram de subsídio para o desenho do curso proposto, principalmente pelo fato de que seu oferecimento utiliza a metodologia de ensino à distância, que faz uso de recursos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), principalmente a rede mundial de computadores, proporcionando uma forma diferenciada de ensinar e aprender. Essa modalidade de ensino potencializa a oferta e o alcance do público-alvo que precisa receber capacitação, uma vez que este se encontra disperso pelo território nacional, embora existam pontos de concentração, como as regiões Centro-Oeste e Sudeste. A análise dos dados referentes ao crescimento da quantidade de ministérios e órgãos equivalentes no Brasil, aliado ao universo de cerca de 1.330 órgãos ou entidades que a estes são subordinados, revelou ter ocorrido o ingresso de 279 arquivistas e de 47 técnicos de arquivo, por meio de vagas oferecidas por concurso público, no período de 2004 a 2012. No entanto, esse quantitativo teria servido apenas para repor a força de trabalho ao equivalente na década de 1990. Quase a metade dos agentes cadastrados no Siga ingressaram no serviço público antes de 2003, o que sugere que esse público apresenta uma demanda por atualizar seus conhecimentos na área de gestão de documentos. Embora tenha ocorrido um crescimento de quase 60% no número de cursos superiores de Arquivologia a partir de 2007, os dados no período que a pesquisa compreende demonstram que esse aumento não exerceu forte influência no que diz respeito à entrada por concurso público de agentes públicos nos quadros do PEF. O número de egressos da 282

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Arquivologia é ainda muito pequeno diante das necessidades do Poder Público, o que se reflete no número de arquivistas com registro no cadastro do Siga, que corresponde a 0,01% do total de servidores ativos do PEF. Mesmo que todos os egressos dos cursos de Arquivologia, desde a fundação do primeiro curso até o corte temporal da pesquisa, fossem agrupados e distribuídos na proporção de um para cada órgão ou entidade do PEF, atenderiam a pouco menos de 5% desse universo. A entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação (LAI) representou uma série de desafios para os integrantes do PEF, uma vez que uma nova cultura – a da transparência no fornecimento de informações públicas – precisava ser implantada. Entretanto, a análise de informações fornecidas pela Controladoria-Geral da União (CGU) referentes ao primeiro ano de implementação dessa lei não apresentou dados concretos quanto ao grau de participação dos serviços de arquivo nas demandas oriundas da LAI. A análise do período de maio de 2012 a maio de 2013 revelou que cerca de 30% das solicitações de informações não foram atendidas, uma vez que os órgãos ou entidades justificaram que elas tinham sido consideradas inexistentes. Os dados permitem concluir que a capacitação em gestão de documentos de arquivo no âmbito do Siga é uma necessidade premente, e que a promoção de cursos de capacitação em gestão de documentos de arquivo à distância ocuparia um espaço importante no panorama arquivístico do Brasil, pois serviria como canal de integração e interação dos agentes que atuam nos arquivos do PEF, fomentando a atuação em rede, por meio dos fóruns de discussão virtual ou de outros recursos passíveis de serem oferecidos por meio dos ambientes virtuais de aprendizagem (AVA). Notas De acordo com o Art. 2º da Lei nº. 8.429, de 2 de junho de 1992, agente público é todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual.

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Consulta realizada por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), em 16 dez. 2013, que recebeu o protocolo nº. 03950004623201333.

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Consulta realizada por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC),

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em 16 dez. 2013, que recebeu o protocolo nº. 03950004624201388. 4 Disponível em: . Acesso em 19 de fevereiro de 2014. 5 Número 104. Disponível em: . Acesso em 28 de junho de 2014. 6 Disponível em: . Acesso em 21 de março de 2014. 7 Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.

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DJALMA MANDU DE BRITO, GILDA HELENA BERNARDINO DE CAMPOS, LUIS CLEBER GAK 8 Consultora da Unesco, foi secretária-geral adjunta do Conselho Internacional de Arquivos (ICA, sigla em inglês) entre 2002 e 2009. Em 2004, participou em São Paulo do seminário Documentos Privados de Titulares de Cargos Públicos. Em 2011, no Rio de Janeiro, do 7º Seminário Internacional de Arquivos de Tradição Ibérica, com a apresentação do trabalho “El acceso a la información pública en el mundo: Un derecho humano emergente”. Entrevista concedida ao Observatório da Imprensa em abril de 2012. 9 “Segundo Bordenave (1999), uma situação didática é formada por atividades que podem ser definidas como sendo os veículos usados pelos professores para trabalhar os conceitos que permitirão ao aluno viver experiências necessárias para a própria transformação. A essas atividades damos o nome de estratégias pedagógicas.” (CAMPOS; ROQUE; AMARAL, 2007, p. 19, grifo do autor).

“As estratégias de aprendizagem são as atividades planejadas pelo aluno para permitir a construção de mecanismos que possibilitem a sua aprendizagem.” (CAMPOS; ROQUE; AMARAL, 2007, p. 21, grifo do autor).

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Pode ser obtida uma cópia em cada uma das extensões apontadas em: . Acesso em 27 de maio de 2014.

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Disponível em: . Acesso em 16 de julho de 2014.

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Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2014.

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Referências Bibliográficas AGUIAR, Juliana; FERREIRA, Cristina; GARCIA, Ana Beatriz. “Aplicação de modelo de tutoria proativa na modalidade semipresencial de ensino à distância utilizando ferramentas de interatividade e personalização”. Revista EAD em Foco. Rio de Janeiro, nº 1, v.1, abr/out. pp. 43-57, 2010. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988. ______. Lei n°. 6.546, de 4 de julho de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de Arquivista e de Técnico de Arquivo, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 5 jul. 1978. Disponível em: . Acesso em: 10 de maio de 2012. ______. Lei n°. 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 9 jan. 1991. Disponível em: . Acesso em: 10 de maio de 2012. ______. Lei n°. 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº. 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº. 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 18 de novembro de 2011. Disponível em: . Acesso em 10 de maio de 2012. ______. Decreto n°. 4.073, de 3 de janeiro 2002. Regulamenta a Lei nº. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 4 de janeiro de 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2012. ______. Decreto n°. 4.915, de 12 de dezembro de 2003. Dispõe sobre o Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga), da administração pública federal, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 15 de dezembro de 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2012. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referenciais para elaboração de material didático para EAD no ensino profissional e tecnológico. 2007. Disponível em: . Acesso em 10 de outubro de 2013, pp. 1-13.

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A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE DOCUMENTOS ESPECIAIS NA ARQUIVOLOGIA

A construção da noção de documentos especiais na Arquivologia The construction of the notion of special records in Archival Studies Anna Carla Almeida Mariz Arquivista, Mestre em Memória Social e Documento pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) [email protected]

Thiago de Oliveira Vieira Arquivista, Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e arquivista do Arquivo Nacional (AN) [email protected]

RESUMO: O artigo busca compreender a construção da noção de documentos especiais na Arquivologia a partir do surgimento de novos suportes de informação e a utilização de novas linguagens de comunicação – audiovisual, visual e sonora. Para alcançar este objetivo, recorre-se à literatura arquivística nacional e internacional. Discutem-se os conceitos de arquivo e documento de arquivo, além da noção de informação arquivística, fruto de uma abordagem informacional da Arquivologia. Utiliza-se como eixo central da noção de documentos especiais a linguagem usada na comunicação da informação.

ABSTRACT: THe article seeks to understand the construction of a ‘special records’ notion in Archival Studies, as new information media appeared and the use of new communication languages – audiovisual, visual, and sound – became regular. In order to reach that goal we resorted to the national and international archival literature. The concepts of archive and archival records are discussed, beyond the notion of archival information derived from an informational approach of the Archival Studies. The language used in the communication of information is also used as the central axis of the notion of special records.

Palavras-chave: Arquivologia, Documentos especiais, Arquivos especiais.

Keywords: Archival Studies, Special Records, Special Archives.

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Introdução Este artigo tem como objetivo discutir a construção da noção de documentos especiais na Arquivologia. Para isso, recorre-se predominantemente à literatura arquivística, traçando um diálogo entre autores nacionais e internacionais, desde o marco fundador da área (1898, Manual dos Holandeses) até os dias atuais. A noção de documentos especiais tem origem no surgimento de novos suportes onde as informações passaram a ser registradas, diferentes do suporte tradicional papel. Tais registros, produzidos em razão das funções e atividades de uma instituição, pública ou privada, ou pessoa, passaram a ser considerados documentos de arquivo. Para Rousseau e Couture (1998, p. 227), somente nas décadas de 1960 e 1970 esses documentos são integrados aos arquivos. Uma hipótese que pode justificar o tardio reconhecimento, por parte dos arquivistas, desses novos suportes é o fato de eles trabalharem em arquivos “históricos” do Estado, composto, em sua grande maioria, de documentos oficiais, registros das ações governamentais. A ideia de outros documentos, além do texto, como fonte histórica, a partir da fundação da Escola dos Annales, amplia a concepção de documento. A Escola dos Annales tinha como proposta ir além da visão positivista da História. No espírito positivista, o documento é o texto. Para Fustel, “o melhor historiador é aquele que se mantém o mais próximo possível dos textos” (FUSTEL DE COULANGES, 1888, apud LE GOFF, 2003, p. 536). Para Samaran, “há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, pela imagem, ou de qualquer outra maneira” (SAMARAN, 1961, p. XI,I apud LE GOFF, 2003, p. 540) O reconhecimento desses novos suportes como documentos de arquivo resulta de um processo de ampliação da ideia de arquivo. Paul Otlet propõe o alargamento da definição de documento; para o autor, “o documento é o livro, a música; é, também, atualmente, o filme, o disco e toda parte documental que precede ou sucede a emissão radiofônica” (1937 apud FONSECA, 2005, p. 15). A ampliação da ideia de arquivo permite a utilização de “novos documentos” no âmbito da administração, no exercício de suas funções/atividades e como prova das suas ações. Neste artigo, trabalha-se a categoria “documentos especiais” como uma noção1, pois percebe-se que não há na Arquivologia consistência teórica que permita defini-la como um conceito2.

O Arquivo e o documento de arquivo O Manual de Arranjo e Descrição de Arquivos, publicado pela Associação dos Arquivistas Holandeses em 1973, define arquivo como: Conjunto de documentos escritos, desenhos e material impresso, recebidos ou produzidos oficialmente por determinado órgão administrativo ou por um de seus 288

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funcionários, na medida em que tais documentos se destinavam a permanecer na custódia desse órgão ou funcionário. (ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES, 1973, p.13).

Alguns pontos na definição de arquivos, apresentada pelos arquivistas holandeses, merecem destaque:

1. O conjunto, ou seja, o arquivo como um todo − composto pelo conjunto de documentos. Se o arquivo, por alguma razão, contiver apenas uma parte do conjunto, esta parte constitui o arquivo. Implícito na ideia do conjunto está a relação orgânica entre os documentos de um arquivo. Os arquivistas holandeses afirmam que o arquivo é “um todo orgânico, um organismo vivo que cresce, se forma e sofre transformações segundo regras fixas. Se se modificam as funções da entidade, modifica-se, concomitantemente, a natureza do arquivo”. (1973, p. 18)



2. Para o Manual, apenas os documentos escritos, desenhos (mapas e cartas) e material impresso fazem parte de arquivos. Segundo o Manual (1973, p. 14), “a definição se refere apenas aos documentos escritos, desenhos e matéria impressa”. P ode-se pressupor que a decisão de outros documentos não fazerem parte de arquivos se deve à prática estabelecida nos Arquivos de Estado do Reino da Holanda. Conforme o próprio Manual, os outros objetos fazem parte de museus e coleções de antiguidades (1973, pp.14-15).



3. Ao destacar “[...] recebidos ou produzidos oficialmente por determinado órgão administrativo ou por um de seus funcionários [...]” (ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES, 1973, p.13), apreende-se que a definição proposta pelos arquivistas holandeses contempla os documentos recebidos e produzidos por um organismo (pessoa jurídica), público ou privado, e por uma pessoa física. Contudo, para o Manual, os arquivos privados de uma pessoa ou família, constituídos de documentos diversos, não são arquivos por não possuírem relação orgânica, não formarem um todo. “As regras para o arquivo, em sua acepção própria, não se aplicam, pois, aos arquivos de família”. (1973, p. 21)

Hilary Jenkinson, arquivista inglês, em seu Manual de Administração de Arquivos, com 1ª edição publicada em 1922 e 2ª edição publicada em 1937, escreve que arquivo: são os documentos produzidos ou utilizados no curso de uma atividade administrativa ou executiva (pública ou privada), ou que faça parte, e posteriormente preservados em sua custódia para uso da pessoa ou das pessoas responsáveis ​​por essa transação e seus sucessores legítimos. (1937, p. 11, tradução nossa).

Ao afirmar que os documentos se tornam arquivos a partir do momento em que, “terminado o seu uso corrente, sejam definitivamente separados para preservação uma vez julgada conveniente a sua guarda” (JENKINSON, 1937, pp.8-9), Schellenberg frisa que Jenkinson, “embora essencialmente interessado em arquivos do passado, formula observações n.9, 2015, p.287-302

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posteriormente enunciadas por arquivistas que se ocupam de documentos modernos.” (1974, p. 16) O arquivista italiano Eugenio Casanova, em seu manual Archivistica, publicado em 1928, define que “o arquivo é a acumulação ordenada de documentos produzidos por uma instituição ou indivíduo durante o exercício da sua atividade e conservados para a consecução dos objetivos políticos, legais e culturais dessa instituição ou indivíduo” (1928, p.19, tradução nossa). Para o autor, o arquivo tem uma dupla função: administrativa e cultural. Além disso, Casanova assinala que um indivíduo pode produzir arquivos, diferentemente do que aponta o manual dos holandeses, quando afirma que uma pessoa ou uma família não produzem arquivos. Schellenberg (1974, pp.18-19) salienta que o arquivista moderno necessita de uma nova definição para o termo arquivo. Uma definição que leve em conta o elemento seleção, implícito na própria definição, que, segundo o autor, selecionar da massa de documentos criados por instituições públicas ou privadas os que irão ser preservados permanentemente constitui o maior problema para os arquivistas. Nesse sentido, Schellenberg define arquivo como: Os documentos de qualquer instituição pública ou privada que tenham sido considerados de valor, merecendo preservação permanente para fins de referência e de pesquisa, e que tenham sido depositados ou selecionados para depósito num arquivo de custódia permanente. (1974, p. 19)

O autor enfatiza que as características basilares de um arquivo são as razões pela quais os documentos foram criados e as razões pelas quais os documentos foram preservados. (SCHELLENBERG, 1974, p. 19) Para Elio Lodolini, arquivo é: O conjunto de documentos acumulados por uma pessoa física ou jurídica (ou um grupo de serviços ou órgãos do último) − ou mesmo, acrescentamos, de uma associação − no curso de sua atividade, e, portanto, ligado por um vínculo orgânico, que, uma vez perdido o interesse para a função/atividade para a qual foram criados, tenham sido selecionados para preservação permanente, como patrimônio cultural. (1970, p. 355, apud Lodolini, 2011, p. 185, tradução nossa).

Lodolini afirma que o arquivo é constituído de dois elementos: o conjunto de documentos e as complexas relações entre os documentos (2011, p. 185). Além disso, ele aborda os documentos selecionados para preservação permanente como patrimônio documental. Jean Favier considera o arquivo um: Conjunto de documentos produzidos ou recebidos por uma pessoa física ou jurídica, ou por um órgão público ou privado, como resultado de sua atividade, organizado em consequência dela e preservado para uma eventual utilização. (1959, p. 5, apud TANODI, 2009, p. 12, tradução nossa). 290

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Portanto, um arquivo é composto de um conjunto de documentos organicamente acumulados, produzidos ou recebidos em razão das funções e atividades de uma instituição, pública ou privada, de uma pessoa física ou jurídica, ou de uma família. Os elementos “organicamente acumulados” e “produzidos ou recebidos em razão das funções e atividades” conferem ao documento o status de documento de arquivo. O documento de arquivo tem a característica de provar a existência de uma transação, pois ele é criado para a execução de um ato, em razão das funções e atividades de seu produtor. Schellenberg define documento, no âmbito arquivístico, como: Todos os livros, papéis, mapas, fotografias ou outras espécies documentárias, independentemente de sua apresentação física ou características, expedidos ou recebidos por qualquer entidade pública ou privada no exercício de seus encargos legais ou em função das suas atividades, e preservados ou depositados para preservação por aquela entidade ou por seus legítimos sucessores como prova de suas funções, sua política, decisões, métodos, operações ou outras atividades, ou em virtude do valor informativo dos dados neles contidos. (1974, p. 18)

O autor chama atenção para o uso do termo entidade, que, segundo ele, “aplica-se também a organizações como igrejas, firmas comerciais, associações, ligas e até mesmo famílias” (1974, p. 19). É importante destacar que Schellenberg não restringe, no conceito acima, nenhuma característica ou apresentação física de um documento de arquivo. Isso significa que qualquer suporte onde são registradas as informações, qualquer linguagem utilizada na comunicação e qualquer forma utilizada na captação/gravação da informação podem ser considerados documentos de arquivo e, consequentemente, constituir arquivos. Cruz Mundet, considerando a difusão dos documentos eletrônicos e entendendo que algumas definições de documento de arquivo não os consideram, afirma que um conceito de documento mais completo seria: Entidade de informação de caráter único, produzida ou recebida na iniciação, no desenvolvimento ou na finalização de uma atividade, cujo conteúdo estruturado e contextualizado se apresenta como evidência e suporte das ações, decisões e funções próprias das organizações e das pessoas físicas e jurídicas. Os componentes de um documento são conteúdo (a mensagem), estrutura (o uso de cabeçalhos e outros dispositivos para identificar e etiquetar partes do documento), contexto (o entorno e a rede de relações nas quais o documento tenha sido criado e utilizado) e apresentação (consiste na combinação do conteúdo, da estrutura e, no caso dos documentos eletrônicos, também do software de apresentação utilizado). (2012, p. 57, tradução nossa).

O documento é a informação registrada num suporte. O documento produzido em razão de uma função/atividade e dotado de organicidade é considerado um documento de arquivo. Segundo Bellotto, “o documento de arquivo só tem sentido se relacionado ao meio que o produziu. Seu conjunto tem de retratar a infraestrutura e as funções do órgão gerador”. (1991, p. 28) n.9, 2015, p.287-302

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Bellotto deixa clara a relação orgânica existente entre os documentos de arquivo. Os documentos isolados de seu contexto orgânico não possuem sentido no todo ao qual pertencem. É a estruturação orgânica dos documentos produzidos e recebidos que vai refletir a estrutura e as funções de seu produtor. [...] organicidade, que está vivamente presente na própria conceituação de fundo, é o fator que melhor esclarece a diferença entre os conjuntos documentais arquivísticos e as coleções características das bibliotecas e dos centros de documentação [...]. (BELLOTTO, 1991, p. 85).

A organicidade, ou inter-relacionamento, é uma característica singular que diferencia os documentos de arquivo dos outros conceitos de documento presentes em outras áreas do conhecimento. Esta característica, inerente ao documento de arquivo, trata um conjunto de documentos como um todo orgânico, no qual um documento isolado não reflete seu contexto de produção. Para o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, a organicidade é a “relação natural entre documentos de um arquivo em decorrência das atividades da entidade produtora.” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 127) Os documentos de arquivo são produzidos para o cumprimento das funções e atividades de uma instituição ou pessoa; nesse sentido, diversos tipos documentais são produzidos em razão dessas funções e atividades. Os documentos produzidos em razão de uma determinada atividade possuem um vínculo orgânico que efetivam a ação e são capazes de comprovar esta atividade, e considerados, portanto, documentos de arquivo. A manutenção da organicidade é basilar em um fundo de arquivo, reflete a ordem de acumulação dos documentos e as funções e atividades do organismo produtor. Para Delmas, há, portanto, unanimidade a respeito da definição dos arquivos: documentos reunidos por uma pessoa ou instituição em razão de suas necessidades, formando, assim, um conjunto solidário e orgânico denominado fundo de arquivo, conservado para usos posteriores. Tais utilizações são, [...], numerosas, diversas, mutáveis e imprevisíveis. (2010, p. 56)

A partir das definições apresentadas por diversos autores para documento de arquivo, sintetizam-se os elementos fundamentais que caracterizam o documento de arquivo em forma de uma definição: o documento produzido e/ou recebido por uma instituição, pública ou privada, por uma pessoa ou família, dotado de organicidade, produzido em razão das funções e atividades desta instituição ou pessoa, independentemente da linguagem (textual, audiovisual, sonoro, iconográfico, etc.), do suporte (papel, filme, disco, etc.) e das formas de registro (magnético, óptico, etc.).

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Um novo objeto para a Arquivologia: a Informação Arquivística A Arquivologia não tem contemplado as relações interdisciplinares com a Ciência da Informação. Nesse sentido, a informação não tem sido considerada como objeto da Arquivologia, e sim como uma consequência do documento de arquivo. (FONSECA, 2005, pp. 9-10) Fonseca (2005, p.57) destaca as reflexões de Theo Thomassen, que identifica uma primeira revolução científica na Arquivologia com a publicação do Manual dos Holandeses, no final do século XIX. Fonseca enfatiza ainda que, para Thomassen, uma nova mudança de paradigma está em curso na Arquivologia, fruto do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. Para Thomassen, “o objeto da arquivologia, na perspectiva de um novo paradigma, desloca-se do ‘arquivo’ para a informação arquivística, ou a ‘informação registrada orgânica’.” (1999, apud FONSECA, 2005, p. 59, grifo do autor). Como afirmam as definições, os documentos de arquivo, ou melhor, as informações orgânicas, têm uma natureza própria que não depende do suporte nem da forma, nem da escrita ou da antiguidade. Tal natureza é consubstancialmente essa informação, fora de toda contingência, acontecimento ou acidente. No instante em que foi criada ou recebida por um organismo ou por uma pessoa no decorrer de sua atividade, uma informação, por isso mesmo, é uma informação de arquivo e faz parte do fundo de arquivo do seu autor ou do seu destinatário, tanto quanto os documentos mais antigos. (DELMAS, 2010, p. 132, grifo nosso).

Fonseca identifica dois níveis de informação presentes em um arquivo: a informação registrada no documento de arquivo e a informação contida no arquivo, que revela sobre seu produtor. (2005, p. 59) Silva et al. destaca “os defensores de uma nova corrente que encontra na informação arquivística uma individualidade própria, articulada com um modelo teórico preciso − é a defesa da Arquivística como Ciência da Informação”. (2009, p. 156). A noção de informação arquivística vem sendo construída na Arquivologia desde a década de 1980. Embora a Arquivologia ainda privilegie, hegemonicamente, como seu objeto o documento de arquivo, a informação arquivística vem sendo cada vez mais verticalizada na área. Em 1999, Jardim apontava que: A noção de informação arquivística é recente na literatura da área e ainda carece de verticalização teórica. Na verdade, a Arquivologia tende a reconhecer os arquivos como seu objeto, e não a informação arquivística. (1999, pp. 29-30, grifo do autor).

A partir das citações acima, é possível observar que a noção de informação arquivística é fruto de uma aproximação da Arquivologia com a Ciência da Informação, evidenciando uma forte relação interdisciplinar entre essas duas áreas do conhecimento.

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Ao que Ampudia Mello (1988) denomina informação institucional, Couture, Ducharme e Rousseau (1988, p.51) intitulam informação registrada orgânica. Os arquivos expressam, portanto, o conjunto dessas informações orgânicas, quaisquer que sejam sua data de produção, seu suporte material, sua natureza, acumuladas por uma organização (ou pessoa física), em decorrência das suas ações. (JARDIM, 1999, p.30, grifo do autor).

De acordo com Silva (2008, p. 45), informação arquivística é “aquela produzida, recebida e acumulada por um organismo em razão das competências e atividades necessárias à realização de seus objetivos”. Entendemos informação dentro de uma perspectiva arquivística como uma representação registrada a partir de sua inserção em contexto administrativo de uma entidade coletiva ou de vida de uma pessoa ou família, passível de organização, tratamento, preservação, contextualização e comunicação, e como recurso para geração de conhecimento ou para o processo de tomada de decisões, podendo ser utilizada por multiusuários e produzir vários sentidos. (OLIVEIRA, 2006, p. 31).

Num contexto de ampla difusão das tecnologias de informação e comunicação, percebese no uso da noção de informação arquivística uma abordagem informacional dos arquivos. Com a aproximação entre a Arquivologia e a Ciência da Informação, novas abordagens emergem na Arquivologia.

A noção de Documentos Especiais Rousseau e Couture (1998, p. 227) afirmam que, entre as décadas de 1960 e 1970, os arquivos passaram a receber, tratar e preservar os documentos em outros suportes e linguagens, diferentes dos documentos textuais em suportes papel, papiro e pergaminho. Estes foram chamados pela Arquivologia de documentos especiais. Lacerda (2008, pp. 28-29) assinala que, embora os profissionais da área de arquivo tenham se preocupado mais profundamente com os documentos visuais a partir da década de 1930, a fotografia já era encontrada, de forma incipiente, nos arquivos, nas bibliotecas e nos museus no século XIX. [...] a notícia mais antiga recolhida é a dos arquivos públicos do Canadá, que fizeram uma seção especial desse tipo de documento em 1908. Com relação à legislação, por exemplo, o decreto dos comissários do povo na URSS, de fevereiro de 1926, parece ser a mais antiga iniciativa nesta área, ordenando a integração, nos arquivos centrais, dos positivos e negativos fotográficos e cinematográficos que tiveram interesse para a história da Revolução de Outubro. Na Alemanha, depois da I Guerra Mundial, se recolheu todo o material fotográfico do Reicharchiv fundado em 1920, produzindose um desdobramento entre fotografias e filmes, em 1935, ao criar para estes uma instituição especial. Os arquivos nacionais em Washington também constituíram seção especial para esses documentos em 1934. Em outros países, formaram-se arquivos independentes, como já mencionado na URSS, cujo exemplo seguiu a

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Polônia em 1955, criando arquivos especiais para a “documentação mecânica.” (PESCADOR DEL HOYO, 1986, p. 20. apud LACERDA, 2008, pp. 41- 42).

Em trabalho apresentado no XI Congresso Internacional de Arquivos, em Paris, no ano de 1988, Fedor M. Vaganov discorre sobre a conservação dos “novos documentos de arquivo” (filmes cinematográficos, fotografias, fitas e discos magnéticos, discos fonográficos, entre outros). Segundo Vaganov (1990, p. 89), em alguns países esses “novos documentos” estão sob a custódia das instituições arquivísticas, enquanto em outros países estão a cargo dos museus (Museu de Cinema dos Países Baixos, Museu de Cinema da Dinamarca e Museu de Arte Moderna dos Estados Unidos), das bibliotecas (Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos) ou de instituições especializadas (Arquivo Cinematográfico do Instituto de Cinema da Noruega e Instituto de Cinema da Suécia). Nos países que responderam ao questionário, a conservação dos materiais audiovisuais segue modelos diferentes; em uns existem arquivos especializados em documentação audiovisual (Arquivo de Documentos Cinematográficos da China, Arquivo Estatal de Cinema da República Democrática da Alemanha, Arquivo Estatal de Cinema da Finlândia). Na Checoslováquia, nos Estados Unidos, Canadá e Espanha (Arquivo do Reino de Galícia), os documentos audiovisuais são depositados em seções especiais dentro dos arquivos gerais. Nestes países também se guardam documentos audiovisuais em depósitos especializados anexos aos organismos de rádio, cinema e televisão. (VAGANOV, 1990, pp. 89-90, grifo nosso, tradução nossa).

O panorama apresentado por Vaganov em 1988 ainda pode ser observado nos dias de hoje, ou seja, além de instituições e serviços arquivísticos, outras instituições guardam, preservam, tratam e disponibilizam para consulta documentos audiovisuais, iconográficos e sonoros. No caso brasileiro, citam-se como exemplos a Cinemateca Brasileira, a Biblioteca Nacional, Museus da Imagem e do Som, entre outras instituições.

Ainda que os documentos ditos não tradicionais já fossem encontrados de forma escassa em alguns arquivos muito antes das décadas de 1960 e 1970, esta pesquisa assume esse período como referência para a maciça entrada desses documentos em arquivos e a consequente preocupação dos profissionais de arquivo com sua conservação e seu processamento técnico. Apesar do tardio reconhecimento das instituições, dos serviços arquivísticos e dos profissionais de arquivo com relação aos documentos especiais como documentos de arquivo, pode-se observar que esses registros já eram produzidos há muitos anos. Os documentos especiais provocaram a inquietação dos profissionais de arquivo quanto à sua conservação. Muito mais do que o tratamento técnico arquivístico visando ao seu acesso, os profissionais de arquivo estavam preocupados com a maneira de preservar esses documentos. Nesse sentido, os documentos especiais3 foram assim denominados porque seus suportes n.9, 2015, p.287-302

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exigiam condições específicas de preservação. Para Vaganov (1990, p. 88, tradução nossa), “dada a proliferação e a importância crescente dos ‘novos documentos’, é cada vez mais urgente resolver os problemas de seu armazenamento e da conservação nos arquivos”. De acordo com Lacerda (2008, pp. 80-81), a ausência de questionamentos sobre a metodologia de processamento arquivístico dos documentos fotográficos4 dá lugar a uma abordagem que privilegia questões relativas à preservação dos suportes. Em nome da preservação, os documentos especiais são fisicamente desmembrados do conjunto ao qual pertencem. Cada suporte exige condições específicas de preservação: o acondicionamento, a forma de armazenamento, a temperatura, a umidade, etc. Como aponta Camargo, “os suportes não convencionais de informação, [...], apresentam propriedades físicas e químicas particulares que determinam a maneira como deve ser assegurada sua conservação”. (1990, p. 119, tradução nossa). Lacerda chama atenção para o risco que essa separação física, em nome da preservação, pode acarretar. [...] a justificativa da separação desses registros de seu conjunto original para intervenções de conservação encontra no argumento da preservação dos suportes seu tom mais eloquente e, via de regra, imprime ao tratamento peça a peça uma legitimidade naturalizada pela necessidade de preservar. O termo “documentos especiais”, aplicado tanto às fotografias quanto aos documentos fílmicos e sonoros, nasce da mistura, de um lado, da dificuldade em contextualizar esses registros de natureza tão peculiar, se comparados aos documentos textuais nos arquivos, e, de outro, da facilidade da substituição do tratamento arquivístico pelo tratamento de conservação, dada a fragilidade de seu suporte, se comparado, mais uma vez, à estabilidade do papel. Atualmente, não é mais possível manter a afirmação da qualidade “especial” desses registros, pois ela carrega em si a falta de conhecimento mais profundo acerca da sua natureza documental bem como o enfoque exagerado no tratamento de conservação em detrimento de sua organização contextualizada. (2008, pp. 80-81, grifo nosso).

Do que Lacerda chama de organização contextualizada, pode-se apreender o documento especial, neste caso, o fotográfico, contextualizado com os demais documentos do fundo de arquivo ou coleção. Expressando, portanto, o inter-relacionamento dos documentos de arquivo. Agrupá-los por suporte seria romper com sua procedência e desvincular a relação existente entre o conteúdo informativo dos documentos: em materiais magnéticos, pode-se ter a mesma informação textual, iconográfica, sonora ou audiovisual. Contudo, em um arquivo fotográfico, independentemente de existirem suportes magnéticos, película, papel ou plástico, entre outros, persistirá sempre a mesma linguagem que responderá às necessidades de administração da entidade produtora. (DAMIAM CERVANTES, 2008, p. 59, tradução nossa).

A organicidade reflete as relações entre os diversos documentos que compõem um fundo 296

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de arquivo, criados em razão das funções e atividades de uma instituição ou pessoa. Essas relações orgânicas dos documentos evidenciam a relação entre o arquivo e seu organismo produtor. Sendo os documentos especiais produzidos e recebidos em razão das funções e atividades de uma instituição ou pessoa, estes são documentos de arquivo e, portanto, possuem vínculo orgânico com os demais documentos, independentemente da linguagem, do formato e do suporte. A separação física apontada por Lacerda pode acarretar a separação lógica dos conjuntos documentais. Nesse caso, temos a perda do vínculo orgânico dos documentos que compõem o fundo de arquivo. Ao discutir as diferenças entre os métodos empregados, abordarei primeiro as técnicas que se aplicam a materiais especiais, que tanto podem ser mantidos por bibliotecas como por arquivos. Esses materiais, convém lembrar, têm em comum a característica de serem peças individuais, separadas umas das outras, cada qual com significado próprio, independentemente de sua relação com os demais. (SCHELLENBERG, 1974, p. 25, grifo nosso)

Schellenberg chama atenção para o fato de os materiais especiais serem tratados como peças individuais e isoladas de seu contexto. A posição do autor ratifica a ideia da separação física e lógica (orgânica) de documentos especiais dos demais documentos de um fundo de arquivo por causa da preservação. Nesta pesquisa, defende-se a importância do vínculo orgânico dos documentos de arquivo, independentemente da linguagem, do formato e do suporte. Devem-se separar fisicamente os documentos especiais, em determinados suportes, dos outros que compõem o fundo de arquivo, por causa da forma de preservação específica, mantendo-se o interrelacionamento desses documentos. A preservação não deve ser o único tratamento dado a esses documentos; eles precisam passar por todas as etapas do processamento arquivístico, como documentos de arquivo. Lacerda (2008, p. 42) corrobora este ponto de vista ao mencionar que: Com frequência, depósitos especiais são reservados a filmes, até mais do que a fotografias, e esta especialização em relação aos locais de armazenamento – que deve ter como argumento a questão da preservação – pode ter contribuído para a prática de separação desses registros do restante de documentos já depositados nos espaços tradicionais dos arquivos.

Segundo Pearce-Moses (2005, tradução nossa), o documento especial é aquele armazenado separadamente de outros documentos, pois sua forma física ou suas características exigem tratamentos específicos, ou seu formato é de grandes dimensões, como os documentos cartográficos, audiovisuais, eletrônicos. Na concepção de Pearce-Moses, a forma física define o que são os documentos especiais. Para o autor, por causa da forma física, esses documentos necessitam de tratamentos n.9, 2015, p.287-302

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específicos. Rousseau e Couture utilizam a expressão documento não textual” para se referirem ao que outros autores chamam de documento especial. Segundo os autores, documento não textual é o “documento cuja informação é constituída de sons, imagens, etc. (vídeo, filme, iconografia, mapa e plano, etc.)” (1998, p. 288). Segundo Paes, o documento especial é: Aquele que tem sob sua guarda documentos de formas físicas diversas – fotografias, discos, fitas, clichês, microformas, slides – e que, por esta razão, merecem tratamento especial não apenas no que se refere ao armazenamento, como também ao registro, acondicionamento, controle, conservação, etc. (PAES, 1986, p. 6).

A autora também chama atenção para o fato de os documentos especiais serem diferenciados dos tradicionais por causa de sua forma física. Para Paes, o documento especial necessita de tratamento especial, diferente do documento tradicional, com enfoque na preservação ao ser abordado o armazenamento, o acondicionamento, a conservação. No âmbito do XII Congresso Internacional de Arquivos, em Montreal, no ano de 1992, Magdaléna Cséve e Zoltá Bódi apresentaram um trabalho intitulado “O arquivista de suportes especiais: uma crise de identidade”. Nessa apresentação, as autoras utilizam a expressão suportes especiais e a definem: “a expressão suportes especiais é geralmente contraposta aos suportes chamados ‘tradicionais’” (1992, p. 2, tradução nossa). Cséve e Bódi dividem os suportes, fontes de informação, em duas categorias: suportes escritos (documentos escritos e documentos impressos) e suportes audiovisuais (registros sonoros, fotografias, filmes cinematográficos e vídeo). (1992, p. 2). Consideramos que as diferenças [entre os suportes escritos e os audiovisuais] não são meramente técnicas. Obviamente, as propriedades físicas dos documentos audiovisuais determinam seu manejo; porém, também consideramos que o caráter da informação contida nos diferentes suportes é um fator importante na hora de determinar seu tratamento. Isto é, distinguimos os suportes não pelos diferentes tratamentos que requerem, mas porque podem ser fontes de diferentes tipos de informação. Os suportes escritos ou impressos transmitem a informação em forma escrita, o que significa que é um veículo ideal para a comunicação verbal. Os suportes audiovisuais podem, por exemplo, conter também informação verbal, tal como a língua falada, material escrito à mão ou impresso. Contudo, uma qualidade muito mais importante é que são adequados também para o armazenamento da informação não verbal. Tudo o que não seja falado ou escrito (tanto informação acústica, como música, ruído, etc., ou informação visual, como imagens em movimento ou fixas) entra nesta última categoria. (CSÉVE; BÓDI, 1992, p. 2, tradução nossa).

As autoras utilizam as expressões suportes especiais e suportes audiovisuais como sinônimos. Além disso, elas usam o termo documento audiovisual para se referirem aos documentos com imagem e/ou som. González Gárcia (1992) trabalha com a ideia dos documentos em novos suportes. Para 298

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ele, os novos suportes se dividem em duas categorias: documentos audiovisuais e documentos em suporte informático. Sustentando esta ideia, González Gárcia traz uma definição para “documentos audiovisuais” do Congresso Nacional dos Arquivistas Franceses, em Paris, em 1986, que teve como temática “Os novos arquivos: formação e coleção: documentos que consistem em reproduções de imagens fixas ou em movimento e registros sonoros sobre qualquer suporte” (1992, tradução nossa). O uso do termo documento audiovisual englobando os documentos iconográficos e os documentos sonoros é muito comum. No entanto, nesta pesquisa, o documento audiovisual, o documento iconográfico e o documento sonoro são trabalhados como categorias independentes, mas todos pertencentes à categoria de documentos especiais. Brandão e Leme trazem o termo documentação especial, que segundo eles: Trata-se, repetimos, de uma categoria muito ampla, mas que abrange essencialmente documentos não escritos e/ou com características especiais, tais como o suporte não convencional (composição físico-química diversa do papel comum), ou, no caso da utilização do papel, em formatos excepcionais, além da linguagem diferenciada (não textual) etc. (1986, p. 51).

Para Molina Nortes e Leyva Palma, “os documentos considerados especiais são aqueles que apresentam um formato e um suporte diferentes dos documentos textuais em papel.” (1996, p. 96, tradução nossa). Mais uma vez, observa-se o suporte e o formato (físico) na identificação dos documentos especiais. Damiam Cervantes, em trabalho de licenciatura intitulado “Os documentos especiais no contexto da arquivística”, define arquivos especiais como: Aqueles que apresentam uma ou as duas características seguintes: a) a linguagem que empregam para transmitir a informação é distinta da textual, podendo ser iconográfica, sonora ou audiovisual; b) o suporte em que se apresentam é distinto do papel. Mesmo sendo de igual material, seu formato é diferente dos que usualmente se encontram nos arquivos, exigindo condições particulares para sua guarda. (2008, p. 56, grifo nosso, tradução nossa).

A definição proposta por Damiam Cervantes leva em conta dois elementos que identificam os documentos especiais: a linguagem e o suporte. Esta acepção, portanto, considera como documentos especiais os documentos iconográficos, audiovisuais e sonoros. Ou seja, a definição não está ligada apenas às características físicas de um documento, e sim ao sistema de signos utilizados na transmissão do seu conteúdo. O que dizem os dicionários ou glossários de terminologia arquivística? O Dicionário de Terminologia Arquivística define documentação especial como “documentação composta de gêneros documentais não textuais. Ver também: documentação audiovisual, documentação fonográfica e documentação iconográfica.” (CAMARGO;

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BELLOTO, 2010, p. 40). O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística traz o termo documento especial, que tem como significado: Documento em linguagem não textual, em suporte não convencional − ou, no caso de papel, em formato e dimensões excepcionais −, que exige procedimentos específicos para seu processamento técnico, guarda e preservação, e cujo acesso depende, na maioria das vezes, de intermediação tecnológica. (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 75)

O Glosario de terminología archivística y de ciertas expresiones de administración, da Escuela Nacional de Biblioteconomía y Archivonomía (Enba), propõe o seguinte conceito para arquivos especiais: a) São assim considerados em relação à natureza do material que os forma […] b) São os que se integram com documentos ou materiais diferentes dos tradicionais, conhecidos como documentos escritos”. (1980, apud DAMIAM CERVANTES, 2008, p. 3, tradução nossa). Aponta-se a ausência do verbete “documento especial” no dicionário multilíngua on-line de terminologia arquivística, do Conselho Internacional de Arquivos5. Neste artigo é usada a seguinte definição para a noção de documentos especiais: são aqueles que utilizam, para comunicar uma informação, a linguagem audiovisual, iconográfica ou sonora, e que necessitam, por causa de sua linguagem, de processamento técnico específico para análise e representação de sua informação; e por causa de seu suporte, de procedimentos técnicos diferenciados de preservação e acesso. São documentos especiais os documentos audiovisuais, os documentos iconográficos e os documentos sonoros. Nesta definição, as ênfases recaem na linguagem, no suporte, no tratamento arquivístico e na preservação/ conservação.

Considerações finais Este artigo buscou verticalizar acerca de uma categoria pouco explorada na literatura arquivística, os documentos especiais. Com o avanço das tecnologias de informação e de comunicação, a produção e a utilização de documentos de arquivo em linguagem audiovisual, visual e sonora crescem de forma vertiginosa. Este crescimento tende a impactar a prática das instituições arquivísticas ou serviços arquivísticos. Nesse sentido, o desenvolvimento desta pesquisa revelou a emergência do tema na teoria e na prática arquivísticas. Como mencionado no decorrer deste artigo, a preservação dos documentos especiais tende a ser o único ou o maior enfoque quando comparado com os documentos textuais. Se produzidos ou recebidos no decorrer de uma função/atividade e dotados de organicidade, os documentos especiais são considerados documentos de arquivo, devendo ser tratados

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arquivísticamente. As especificidades no tratamento arquivístico dos documentos especiais − classificação, avaliação, arranjo, descrição, entre outros − imprimem uma agenda de pesquisa importante para a teoria e a prática arquivísticas. Diferentemente da abordagem da maioria dos autores mencionados antes, esta pesquisa trabalhou com uma noção de documentos especiais centrada na linguagem utilizada na comunicação de uma informação, seja visual, audiovisual ou sonora. A ideia do documento especial como um documento frágil, tendo como eixo central o seu suporte, não tem mais sentido na perspectiva de uma Arquivologia contemporânea. O advento de novos suportes e formatos proporcionados pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação desafia cada vez mais os arquivistas e profissionais de arquivo quanto ao tratamento e à preservação das informações neles contidas, independentemente da linguagem utilizada (textual, audiovisual, visual, sonora, etc.). O documento especial não deve estar à margem do tratamento arquivístico dado aos demais documentos de arquivo. Portanto, a ideia de documento “especial” como algo “fora do comum” ou “distinto” deve ser suprimida, devendo estes documentos fazer parte do seu conjunto orgânico, com os demais documentos que compõem um fundo de arquivo. Na dimensão de uma abordagem informacional da área, cada vez mais induzida pelas novas formas de produção e armazenamento da informação arquivística, proporcionadas pelo crescente avanço das tecnologias da informação e da comunicação, não há limites entre as diversas linguagens utilizadas na transmissão de uma mensagem. Onde a informação arquivística está registrada torna-se secundário; o foco é a preservação da informação, Notas “Noções dizem respeito aos elementos de uma teoria que ainda não têm clareza suficiente para alcançar o status de conceito e são usados como ‘imagens’ para explicações aproximadas do real.” (MINAYO, 2010, p. 176).

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2 “Conceitos são unidades de significação que definem a forma e o conteúdo de uma teoria.” (MINAYO, 2010, p. 176).

3 Também chamados de não textuais, não tradicionais, novos documentos, materiais especiais, etc. 4 Embora Lacerda, em sua tese de doutorado, trabalhe especificamente sobre documentos fotográficos, a autora destaca esses documentos como documentos especiais. 5

Pesquisa feita no dia 23 de maio de 2014.

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O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

O aspecto simbólico do arquivo pessoal de Dom Adriano Hypólito1 Symbolic aspect of the personal archive of Dom Adriano Hypólito Bruno Ferreira Leite Arquivista, Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e funcionário da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) [email protected]

RESUMO: Com o presente artigo, busca-se analisar a relevância e os usos feitos do arquivo pessoal de Dom Adriano Mandarino Hypólito, terceiro bispo da Diocese de Nova Iguaçu, RJ, na sustentação de um projeto identitário que visava manter as práticas e a imagem dessa Diocese ligada à vertente progressista adotada pelo bispo durante seu governo (1966-1994) à frente da Cúria Diocesana. Para atingir esse objetivo, adotamos o Estudo de Caso, elegendo o arquivo pessoal do bispo como objeto de estudo, os anos de sua atuação à frente da Diocese como recorte temporal e o contexto de Nova Iguaçu à época como recorte espacial. Foram feitas pesquisas in loco, no Arquivo Diocesano, custodiado na sede da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, onde está seu arquivo pessoal. Entrevistamos o responsável pelo Arquivo Diocesano, o Sr. Antônio de Menezes, e a Sra. Sada, “braço-direito” de Dom Adriano à época. Identificamos uma relevante projeção da imagem de Dom Adriano como símbolo de luta contra a ditadura civil-militar brasileira. Concluímos que tal projeção é reforçada pelos usos de seu arquivo pessoal, principalmente por agentes da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Palavras-chave: Dom Adriano Mandarino Hypólito, Arquivo Pessoal, Identidade.

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ABSTRACT: We seek in the present article to analyze the relevance and uses of the personal archives of Dom Adriano Mandarino Hypólito, third bishop of the Nova Iguaçu Diocese in Rio de Janeiro, by means of sustaining an identity project aiming at supporting the practices and the image of the Diocese, linked to a progressive stance adopted by the bishop during his term as the Head of the Diocese Curia (1966-1994). In order to reach that goal we conducted a Case Study, choosing the bishop’s personal archive as its object, his years in charge of the Diocese as a temporal framework and the context of Nova Iguaçu in those days, as the spatial framework. We performed field research in the Diocesan Archives, under the custody of the Curia’s headquarters in Nova Iguaçu, home to his personal archives. We interviewed the head of the Diocesan Archive, Mr. Antônio de Menezes, and Ms. Sada, Dom Adriano’s right hand at that time. We identified a relevant projection of Dom Adriano’s image as a symbol of the struggle against the Brazilian civil-military dictatorship. We concluded that such projection is reinforced by the use of his personal archive, especially by agents from the Nova Iguaçu Diocesan Curia. Keywords: Dom Adriano Mandarino Hypólito, Personal Archives, Identity.

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Introdução Uma das premissas da análise arquivística, seja no trabalho de pesquisa acadêmica ou na prestação de serviços especializados, é o estudo sobre os produtores do arquivo por meio de sua história ou biografia, seu contexto de atuação e inserção social, seus objetivos, funções, atividades, o estado de conservação dos documentos, etc. Há, portanto, um levantamento de dados sobre o arquivo e seu produtor antes de qualquer afirmação ou intervenção. Nesta linha, vide a importância da produção desses conhecimentos acima relacionados para se compreender o próprio arquivo, fizemos um esforço de contextualizar a trajetória de Dom Adriano para, posteriormente, apresentar um levantamento de seu arquivo pessoal. Contudo, antes cabem algumas observações. O sociólogo Charles Wright Mills sustenta a ideia de que, para compreendermos as modificações de muitos ambientes pessoais, temos a necessidade de olhar além deles (MILLS, 1982, p.17). De acordo com este autor, e direcionando seu raciocínio para esta pesquisa, devemos reconhecer Dom Adriano como um homem de seu tempo, situado em determinados contextos socioespaciais. Para essa tarefa, podemos percebê-lo como um intelectual de ação, que viveu o auge de sua vida produtiva como bispo da Diocese de Nova Iguaçu, entre 1966 e 1994, em pleno período do regime civil-militar brasileiro (1964-1985). Para ratificar nossas afirmativas, retomamos Mills, ao ressaltar que a vida de um indivíduo não pode ser compreendida adequadamente sem referência às instituições dentro das quais sua biografia se desenrola (MILLS, 1982, p. 175). Portanto, é preciso perceber Dom Adriano como um membro da Igreja Católica, e não simplesmente como militante civil. Sua posição eclesiástica implicou, certamente, facilidades e dificuldades para a realização de algumas de suas ações. Também é importante lembrarmos que a Diocese de Nova Iguaçu é percebida ainda hoje como um símbolo de luta contra a ditadura civil-militar. Esta imagem da Diocese ancora-se – mas não totalmente – no que Dom Adriano representou enquanto bispo à sua frente, sendo identificado como adepto da Teologia da Libertação2. Informações que nos levam, inclusive, a perceber a não linearidade das trajetórias individuais, pois, segundo o próprio Dom Adriano, foi o povo da Baixada Fluminense que o “converteu”. Nesse caso, esta conversão remete à mudança de relação de Dom Adriano com a população mais carente, ou seja, antes de ele ter contato mais direto com o “povo sofrido da Baixada” 3 − como ele mesmo caracterizava −, suas preocupações seriam mais formalistas, eclesiais e voltadas para o interior da Igreja, e não tanto para a vida cotidiana dessa população. Nascido em 18 de janeiro de 1918, em Aracaju, Sergipe, foi batizado com o nome de Fernando Polito. Em 1929, aos 11 anos, mudou-se para Salvador, Bahia, para cursar o ginasial, a mando de seu pai, Nicolau Polito, que lá passou a residir.

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De acordo com publicação da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, sua vocação religiosa era alimentada por sua mãe, Isabel Mandarino Polito, e estimulada por seu contato com os padres franciscanos (CÚRIA DIOCESANA DE NOVA IGUAÇU, 2010, p. 35). Em outubro de 1942, o então frei Adriano Hypólito é ordenado padre na Igreja de São Francisco, em Salvador. Em janeiro de 1943 é transferido para o Colégio Seráfico de Santo Antônio, em Ipuarana, Paraíba, para exercer as funções de professor de Português e Música. Em julho de 1948, viaja para Portugal e outros países da Europa para estudar Língua Portuguesa e História. Retorna ao Brasil em 1955, para o Colégio Seráfico de Ipuarana, onde permanece por mais de oito anos e chega a ser diretor de estudos. Em 1961, foi transferido para o Convento de São Francisco da Bahia para atuar como mestre dos clérigos e diretor espiritual da Arquidiocese de Salvador, a pedido do CardealArcebispo Dom Augusto. Em 1962 é nomeado vigário-geral da Província Franciscana da Imaculada Conceição, com sede em São Paulo. Logo em seguida, em 22 de setembro de 1962, é nomeado Bispo-Auxiliar de Salvador pelo então Papa João XXIII. Como Bispo-Auxiliar, participa do Concílio Vaticano II, nas sessões de 1963, 1964 e 1965. Dom Adriano é então nomeado bispo da Diocese de Nova Iguaçu pelo Papa Paulo VI, em 1966, cargo em que permaneceu até 1994. Nesse período, tocado pela experiência do Concílio Vaticano II, o então bispo de Nova Iguaçu provocou repercussão devido a seus atos e à forma de pensar a Igreja e a sociedade. De acordo com publicação recente da Cúria, a acolhida que lhe deu o povo foi afetuosa e marcada pela esperança. Na nova missão, Dom Adriano conseguiu conscientizar aquela gente para lutar por direitos essenciais e, nessa empreitada, acabou por revolucionar positivamente a própria existência. Conscientização passou a ser uma palavra-chave para o bispo de Nova Iguaçu, convicto de que um cidadão informado e consciente luta pelos próprios direitos e os da coletividade. (CÚRIA DIOCESANA DE NOVA IGUAÇU, 2010, pp. 36-37).

Agindo nessa linha, destacamos sua participação e seu apoio explícito a movimentos populares na região da Baixada Fluminense, principalmente em Nova Iguaçu. Não se denominava militante de esquerda e julgava-se a favor dos Direitos Humanos. Ajudou na criação e manutenção do Movimento de Amigos do Bairro (MAB)4, em Nova Iguaçu. Nas várias participações em reuniões, o bispo mantinha contato com representantes das comunidades da região da Baixada Fluminense e com representantes da Igreja (do Brasil e do exterior, principalmente da Alemanha, de onde recebeu apoio financeiro e ideológico). Encontram-se em seu arquivo pessoal algumas fotos nas quais podemos identificá-lo junto a manifestações populares, tais como comunidades em posse de terras, apoiando a população que o recebia, em encontro com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dom Adriano também lecionou música durante algum tempo. Buscava sempre registrar suas visitas às comunidades carentes, geralmente com a ajuda de Fernando Leal n.9, 2015, p.303-322

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Webering, seu sobrinho. Escrevia para o semanário litúrgico de sua Diocese, o periódico A Folha, no qual sempre redigia crônicas sobre o cotidiano que posteriormente, em 1982, foram reunidas em um livro intitulado Imagens de Povo Sofrido, publicado pela Editora Vozes. Dom Adriano faleceu pouco tempo depois de sair da administração da Cúria, em 10 de agosto de 1996. Até aqui se percebe a amplitude de atuações de Dom Adriano, e isso se reflete na construção de seu arquivo pessoal, sendo que o período em que ele foi bispo de Nova Iguaçu destaca-se fartamente documentado e preservado até então em seu arquivo pessoal. Com relação à gestão de Dom Adriano à frente da Diocese de Nova Iguaçu, pode-se dizer, então, que ele participou de seu contexto estando não só inserido nele, mas participando ativamente como um agente na construção e manutenção desta vertente “de esquerda” da Diocese. Sua atuação trouxe também represálias. Uma das mais marcantes foi a do dia em que o bispo foi sequestrado. Este fato foi amplamente noticiado, pois era a demonstração clara de um acirramento entre setores mais conservadores do regime civil-militar e setores mais progressistas dentro da Igreja Católica, no qual Dom Adriano se enquadrava. O jornal O Dia foi um dos veículos de informação que divulgaram as notícias sobre o sequestro do bispo diocesano. Esse fato, que ocorreu no dia 22 de setembro de 1976, foi amplamente divulgado pelas mídias impressas nacionais. Sobre ele, dispomos de alguns documentos também encontrados no arquivo pessoal do bispo, como alguns recortes de jornais com notícias do sequestro que quais foram organizados, encadernados e contaram com a elaboração de um sumário. Como pudemos observar, jornalistas de O Dia estiveram na coletiva de imprensa do dia 28 de setembro de 1976, no Centro de Formação de Líderes, onde o bispo relatou como foi seu sequestro (O DIA, 29/9/1976). Na edição do dia 29 de setembro, o jornal dedicou espaço ao relato de Dom Adriano. Segundo o próprio bispo, sua entrevista coletiva expõe as mesmas informações que comunicou ao delegado Borges Fortes, responsável pelo caso, e disse não saber o motivo de ter sido sequestrado, pois alegou que não tinha ligação com partidos políticos, e seu trabalho consistia apenas em pregar o Evangelho da melhor forma possível (O DIA, 29/9/1976). Com base em um panfleto publicado após o sequestro de Dom Adriano, assinado pela Aliança Anticomunista Brasileira (AAB), podemos estabelecer um breve “diálogo” entre este documento, também guardado no arquivo pessoal do bispo, e a entrevista coletiva de Dom Adriano. Nesse panfleto, o bispo de Nova Iguaçu é acusado de ser comunista. Publicado após seu sequestro, destacamos no texto as seguintes passagens: “A AAB [...] combate os comunistas de batina, como D. ADRIANO HIPÓLITO [...]” e “Não era intenção da AAB abandonar D. ADRIANO HIPÓLITO nu, na via pública, quando menos fosse, pelo respeito aos moradores locais. Todavia, o fizemos [...]”. No final do panfleto, destacamos a frase que 306

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O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

dá início ao último parágrafo do texto: “Cuidem-se e aproveitem a vida que lhes resta, bispos vermelhos!” (ALIANÇA ANTICOMUNISTA BRASILEIRA, [1976?]). Não tendo fontes suficientes para confirmar a relação entre algumas informações, atentamos para uma reportagem do jornal O Dia, datada de 1º de outubro de 1976. Com o título “Outro bispo sofre ameaças e pede proteção às autoridades”, é publicada a denúncia de intimidações sofridas por Dom Waldyr Calheiros uma semana após o sequestro de Dom Adriano. Na época, Dom Waldyr era bispo de Volta Redonda (O DIA, 1/10/1976). Além desse veículo, outros também deram visibilidade ao caso, como o jornal O Fluminense, que afirma que na entrevista coletiva, Dom Adriano falou cerca de 75 minutos para aproximadamente 30 jornalistas (O FLUMINENSE, 29/9/1976). Outro jornal, a Gazeta de Notícias, também publicou o resumo da coletiva de imprensa de Dom Adriano. Nesse jornal, pudemos observar que Dom Adriano relata que os sequestradores o ameaçaram, dizendo que havia “chegado a hora dele” e que depois seria a vez do bispo Calheiros, de Volta Redonda. Mais à frente, o bispo afirma que eles disseram que “o chefe deu ordem para não matar [...] só para aprender a deixar de ser comunista” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 29/9/1976). Outros documentos, além desses recortes de jornal, permitem a observação da repercussão do caso do sequestro, inclusive o posicionamento de algumas entidades e organizações. Uma carta elaborada por algumas entidades estudantis, endereçada ao secretário-geral da CNBB, começa dizendo: As entidades estudantis abaixo relacionadas vêm por meio desta manifestar sua solidariedade à CNBB e particularmente à pessoa do Excelentíssimo bispo D. Adriano Hipólito, da Diocese de Nova Iguaçu, diante dos lamentáveis fatos ocorridos no dia 22 de setembro, que causaram repúdios não só aos estudantes como a todo o povo brasileiro (Rio de Janeiro, setembro de 1976).

Esta carta contou com as seguintes assinaturas: UFRJ – Conselho de Representantes da Faculdade de Medicina; PUC – Diretório Central dos Estudantes, Diretório Acadêmico Galileu Galilei, Diretório Acadêmico Adhemar Fonseca, Centro Acadêmico Roquete Pinto, Associação de Pós-Graduação; Fefierj– Diretório Acadêmico Benjamim Batista; UFF – Diretório Acadêmico da Escola de Comunicação. Todos os documentos até então citados foram pesquisados no arquivo pessoal de Dom Adriano. De acordo com Assis, “Dom Adriano é evocado por muitos como idealizador e efetivador de uma organização eclesial voltada para a ação sociotransformadora com base em ‘comunidades’ de convívio e atividades ao mesmo tempo religiosas e sociopolíticas” (ASSIS, 2008, p. 96). Contudo, este mesmo autor ressalta que “[...] é possível encontrar opiniões que o consideram como propagador de uma visão unilateral de Igreja, ao forçar a opção dos fiéis para um estilo político da religião” (ASSIS, 2008, p. 96).

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Assim, podemos relacionar o trabalho socioreligioso de Dom Adriano como inserido no contexto de reivindicações contrárias ao governo militar e pela retomada do regime democrático no país em pleno regime ditatorial. Podemos, então, identificá-lo como influenciado pela Teologia da Libertação, pois, de acordo com Leonardo Boff e Clodovis Boff, “a Teologia da Libertação busca inspiração na fé e no Evangelho como forma de refletir o cotidiano dos pobres e agir sobre ele” (BOFF e BOFF, 1986, p. 20). A título de ressalva, ressaltamos que toda representação, como a que estamos fazendo agora sobre a trajetória do bispo, mesmo que baseada em informações orais, documentais e bibliográficas, é passível de distorções, suplementos e subtrações (JODELET, 2001, p. 36). Isso não significa que estamos construindo uma mera ficção sobre a história que tentamos compreender. Não chegamos a essa afirmação, mas compreendemos que as representações são reconstruções, ou seja, são versões ou interpretações de uma realidade que, por serem reapresentadas, são cópia imperfeita de uma matriz que não existe mais: o passado. Por isso, entre um extremo de “ficcionalização” da realidade e uma verdade irrefutável, optamos pela ideia da representação: imperfeita, mas baseada em uma realidade. Nesta opção, Denise Jodelet (2001) expressa bem a nossa interpretação sobre a representação. Feitas essas abordagens sobre “quem foi Dom Adriano”, passamos a uma breve descrição do que levantamos em seu arquivo. Vamos relatar, então, “o que ficou no arquivo”. A expressão “o que ficou” é proposital para ressaltar aquilo que Henry Rousso (1996) buscou explicar ao identificar os arquivos como o indício de uma falta. Este autor diz que podemos perceber os arquivos como vestígios do que se passou um dia, uma marca, ou seja, apenas um sinal, e não o que de fato aconteceu. Por outro lado, por serem vestígios, também acabam sendo indícios do que não “ficou”, do que muitos nem saberão que existiu (ROUSSO, 1996, p. 90). Isto posto, ressaltamos que encontramos no parecer n° 16/2011 da Comissão Técnica para Avaliação de Acervos Privados de Interesse Público e Social5 um diagnóstico da situação arquivística dos documentos custodiados no Arquivo Diocesano da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Essas informações são relevantes para contextualizar o local onde o arquivo de Dom Adriano é custodiado. Assim, seguindo com as informações referentes ao diagnóstico, de acordo com Comissão citada acima, apontamos que o arquivo tem um único funcionário, o Sr. Antônio de Menezes, conhecido popularmente por Lacerda. Filósofo e historiador, tem formação religiosa e é conhecedor de práticas arquivísticas, sendo responsável pela administração, pelo tratamento e pelo atendimento ao usuário. O Sr. Menezes dispõe de amplo conhecimento do acervo, tanto de seu conteúdo quanto de sua localização, sendo imprescindível para o funcionamento do mesmo. (CONARQ, 2011, p. 4, grifo nosso).

Fica clara, portanto, a grande importância que o Sr. Menezes tem para esta pesquisa. Percebemos, tanto nas visitas que fizemos à Cúria quanto no próprio texto do parecer, que “não há quadro de arranjo, nem uma organização, ou separação, intelectual formal em séries, 308

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fundos e coleções, não havendo, por conseguinte, instrumentos de pesquisa constituídos ou algum tipo de base de dados” (CONARQ, 2011, p. 4). É importante ressaltar que o arquivo pessoal de Dom Adriano constitui-se em um fundo arquivístico dentro do acervo da Cúria Diocesana. Foi adquirido, e não produzido por ela. Isso diz algo sobre a importância do arquivo do bispo para essa instituição, uma vez que não foi produzido para atingir os objetivos administrativos e pastorais da Diocese, embora atualmente seja custodiado por ela e possa servir a seus interesses. Em visitas ao arquivo da Cúria, verificamos que o arquivo pessoal de Dom Adriano é formado pelos seguintes documentos: correspondências (cartas recebidas e expedidas); documentos referentes à formação eclesiástica do bispo; vida profissional (referentes à sua carreira desde padre, em 1942, até ser designado bispo de Nova Iguaçu, de 1966 a 1994); publicações próprias (textos escritos para jornais em que foi colunista e um livro editado como coletânea de alguns de seus escritos para o semanário A Folha); publicações de terceiros (entrevistas concedidas, artigos e livros acumulados); documentos referentes a homenagens (formalizando títulos, como o de cidadão de Nova Iguaçu, comendas e medalhas); fotografias (registrando diversos momentos); partituras (feitas pelo próprio Dom Adriano); e documentos audiovisuais (fitas VHS, fitas K-7 e filmes de rolo)6. Nos documentos referentes às publicações de terceiros, destacamos a existência de alguns artigos, como entrevistas concedidas pelo bispo a periódicos de grande, média e pequena circulação. Tais documentos foram utilizados na elaboração do livro Diocese de Nova Iguaçu, 50 anos de missão. A título de exemplo, no texto do livro encontramos a seguinte passagem, com referência a uma entrevista de Dom Adriano concedida à revista Playboy: ‘Eles puseram um capuz na minha cabeça e me obrigaram a entrar num automóvel, arrancaram minhas roupas e passaram a chutar e pisar o meu corpo. Estava certo de que iam me matar’, relatou Dom Adriano em entrevista ao repórter Audálio Dantas, na edição de outubro de 1978 da revista Playboy. E prosseguiu o bispo: ‘Refleti sobre os motivos que levariam aqueles homens a me tirar a vida e concluí que aquilo tudo só podia ser consequência de minha atuação. A consciência disso me acalmou: preparei-me para morrer, enquanto eles prosseguiam com toda sorte de humilhações. Depois de esguicharem um spray de tinta vermelha pelo meu corpo, abandonaramme, algemado e nu, numa rua escura de Jacarepaguá. (CÚRIA DIOCESANA DE NOVA IGUAÇU, 2010, p. 37).

O trecho acima se refere ao sequestro sofrido por Dom Adriano em 1976. Este exemplo mostra um dos usos do arquivo de Dom Adriano feitos pela Cúria, assunto que será analisado mais adiante. Após a análise dos usos do arquivo pessoal de Dom Adriano, trataremos da declaração de interesse público e social do arquivo permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, e discutiremos a relevância, a princípio determinante, que tiveram a trajetória de Dom

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Adriano e boa parte dos documentos que compõem seu arquivo pessoal, para que tal pedido de declaração tivesse a aprovação do CONARQ. Desta forma, de maneira implícita, buscaremos retratar a relevância e o que representam Dom Adriano e seu arquivo tanto para a Cúria Diocesana de Nova Iguaçu quanto para aqueles que demandaram e aqueles que aprovaram a declaração que, de forma clara, destaca o arquivo de Dom Adriano como um fundo de relevância para o acervo da Diocese de Nova Iguaçu e para a história recente do Brasil. Fundo este, por consequência, também declarado de interesse público e social, pois se encontra custodiado no arquivo permanente da referida Cúria. Com base nas observações expostas sobre nosso objeto de estudo até este trecho, já fica notório que cada arquivo, seja ele público ou privado, institucional ou pessoal, tem características que o distingue dos demais, ou seja, cada arquivo é único. Essas características são impelidas pelo produtor do arquivo, pois este é “reflexo” daquele, levando-se também em conta as influências externas que impelem a produção dos arquivos. Em suma, quem faz com que essa diferenciação exista entre os arquivos são seus próprios produtores, pois suas intenções e ações produzem documentos para fins específicos, gerando, portanto, um conjunto de documentos organicamente relacionados que representam seu produtor.

A aquisição, o tratamento e os usos do arquivo pessoal de Dom Adriano pela Cúria Diocesana A aquisição do arquivo pessoal de Dom Adriano pela Cúria Diocesana de Nova Iguaçu foi um assunto abordado em entrevista feita com o Sr. Menezes (2014), pois é uma pessoa do quadro da Cúria que conhece e participou desse processo. Com as informações transmitidas por Menezes, descobrimos que o arquivo foi doado à Cúria por iniciativa de Pilar, esposa de Fernando, sobrinho de Dom Adriano. Após o falecimento do bispo aos 78 anos, de infarto, ocorrido em agosto de 1996, seu arquivo pessoal permaneceu em sua casa, e só depois foi doado à Cúria. Segundo Menezes (2014), “o arquivo dele estava na casa dele quando ele morreu [...]. Depois a sobrinha viu que tinha aqui [na Cúria] um arquivo formado, tinha uma pessoa cuidando do arquivo, então ela se sentiu, assim, segura em entregar o arquivo aqui para a Cúria”. A justificativa para a doação, segundo Menezes, seria porque tinha um arquivista aqui [na Cúria], tinha um funcionário, tinha uma pessoa que gostava do arquivo [...], que tem uma admiração sem limite pela pessoa de Dom Adriano. Então isso gerou uma certa confiança das pessoas, da família, em trazer. Então a pessoa [Pilar], quando trouxe, quando vem visitar aqui, ela sempre vai... Os olhos... Ela se enche de... Vão às lágrimas. Por isso, até que ela, às vezes, evita vir aqui, porque ela se emociona muito, a Pilar. Acho que isso não só com o arquivo de Dom Adriano, mas também com outros acervos. As pessoas têm uma confiança muito grande em mim, o que transcende o próprio arquivo da Cúria. Não sei se eu 310

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O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

consigo ser claro. Porque as pessoas me identificam muito com aquela pessoa que gosta da história de Nova Iguaçu (MENEZES, 2014).

Continuando a entrevista, Menezes nos conta que o acúmulo de arquivos pessoais de padres diocesanos vem sendo encarado como um processo que está se tornando padrão na Diocese. Segundo ele, a partir da aquisição e da custódia do arquivo pessoal de Dom Adriano, “[...] também criou-se uma prática na Diocese de que todo arquivo pessoal de padres, após o seu falecimento, venha para o arquivo da Cúria. Então já [se] criou essa prática na Diocese” (MENEZES, 2014). Quando perguntamos se é dado algum tratamento especial ao arquivo pessoal de Dom Adriano, Menezes diz que não. Não teve nenhum tratamento especial o arquivo de Dom Adriano. Única coisa que ele teve, que ele sofreu, ele foi limpo, vamos dizer, higienizado, foram tirados os clipes de ferro, e colocado dentro das caixas, caixas de papelão, caixas de arquivo. Sem nenhum tratamento, assim, e dentro de pastas, como estavam na casa dele. Do jeito que estava. A gente somente trocou as caixas, porque as caixas estavam muito velhas, mas preservou a mesma coisa. Não foram digitalizados. A única coisa que foi digitalizada do arquivo foram as fotos. As fotos dele. Foram digitalizadas. Algumas... Muitas entrevistas foram transcritas [...]. O boletim diocesano foi digitalizado, mas isso é uma parte muito pequena do arquivo dele. Muito pequena mesmo. Então, a gente não teve um tratamento arquivístico adequado, como manda hoje o arquivo moderno, o arquivo antenado. Nós não fizemos isso. (MENEZES, 2014).

Contudo, mesmo que Menezes afirme que não houve tratamento especial, percebemos que ações importantes foram adotadas, mesmo que preliminares, no âmbito da conservação preventiva. Como foi contado por Menezes, verificamos no Arquivo Diocesano a higienização e o reacondicionamento, que são práticas simples, mas que podem ter um efeito relevante para a sobrevida dos documentos de arquivo, embora, no caso, as caixas-arquivo não tenham sido as mais apropriadas. Quanto à digitalização das fotografias e à transcrição das entrevistas concedidas por Dom Adriano, essas tarefas, também simples, contribuem ainda mais para a preservação de tais materiais, pois evitam o acesso direto às fotografias e entrevistas, proporcionando, inclusive, facilidade de acesso de forma mais rápida, e, se necessário, compartilhada. Esse trabalho de digitalização serviu a esta pesquisa, pois os documentos se encontravam em uma página da internet sobre Dom Adriano, no site da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, onde os encontramos pela primeira vez. Menezes deixa claro na entrevista e em conversas informais que tem um conhecimento arquivístico aprofundado, pois antes de assumir o Arquivo Diocesano fez alguns cursos sobre arquivo no Arquivo Público do Estado de São Paulo, estado onde ele residia quando foi convidado a assumir sua atual função na Cúria. Por isso Menezes responde fornecendo algumas informações de interesse arquivístico, como ao afirmar implicitamente que respeitou a ordem original do arquivo de Dom Adriano. Esse respeito à ordenação original n.9, 2015, p.303-322

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dos documentos se confirma na entrevista com Sada (2014), pois quando falamos dos documentos acumulados por Dom Adriano acerca de seu sequestro, ela lembrou o trabalho que teve com a encadernação dos recortes de jornais deixados até então, como nos contou. Com relação aos usos feitos pela Cúria do arquivo pessoal do bispo, podemos destacar aqueles com fins práticos e os que chamaríamos de simbólicos. Com relação aos usos práticos, identificamos quatro de fácil percepção em meio ao processo de pesquisa, especialmente quando da pesquisa de campo. Temos, então, para citar: dois produtos resultantes da comemoração dos 50 anos da Diocese de Nova Iguaçu, ocorrido em 2010, quando foram produzidos um (i) livro comemorativo e um (ii) documentário sobre esse aniversário da Diocese, criada em 26 de março de 1960. Ambas as produções retratam a história de Dom Adriano na Diocese, inclusive fazendo uso de alguns documentos de seu arquivo pessoal, especialmente das fotos, para reprodução, e de alguns textos, como material de pesquisa. Um terceiro produto fruto do uso do arquivo de Dom Adriano por parte da Cúria foi a divulgação em um (iii) site hospedado no portal da Diocese, hoje fora do ar, onde era possível encontrar digitalizações de alguns documentos originários do arquivo pessoal do bispo, como algumas de suas entrevistas. Quando fomos pela primeira vez à Cúria, não havia certeza de que teríamos acesso aos documentos de Dom Adriano. Mas, com o passar do tempo e com novas visitas para fins de pesquisa na instituição, percebemos que dar acesso aos documentos permanentes custodiados no Arquivo Diocesano é uma prática comum. Ou seja, mesmo sendo uma instituição privada, e por isso não sabíamos da possibilidade de acesso, buscávamos pesquisar sobre um arquivo pessoal, e, mesmo assim, o acesso é franqueado. Bem, então temos o último exemplo de uso percebido: o (iv) provimento de acesso aos documentos sobre (e de) Dom Adriano para fins de pesquisa, fonte importante para se estudar a história da Baixada durante o período do regime civil-militar. Neste uso, a Cúria acaba proporcionando a divulgação de várias coisas, como parte da história de Dom Adriano, da Baixada, de seu contexto político, e parte da própria constituição identitária da Diocese. Nesse último uso do arquivo, no provimento de acesso aos documentos permanentes, encontra-se outro tipo de uso, de caráter simbólico e, na leitura aqui feita, intencional, de divulgação da figura do bispo e daquilo que ele representa para a Diocese. Tal processo, que proporciona a divulgação da história do bispo, contribui para reforçar a importância de seu arquivo pessoal, e também para ampliar a legitimidade da Cúria em falar sobre o bispo e “usar” sua história como um dos alicerces identitários da Diocese. Desta forma, não só, mas também, o arquivo serve de instrumento de legitimação de um viés identitário da instituição Neste aspecto, podemos perceber novamente que “os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’”. (BOURDIEU, 2007, p. 9). Segundo Bourdieu, o poder simbólico é de difícil identificação, pois é produzido e mantido por aqueles que talvez nem percebam que o produzem e o projetam. Segundo este 312

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O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

autor, “[...] o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2007, pp. 7-8). Talvez, refletindo sobre alguns agentes da Cúria, mesmo que estes saibam de sua posição quanto à produção e manutenção desse poder simbólico, explicitar tal ciência limita sua legitimidade e seu alcance, pois, ao demonstrar saber que sustenta um poder dependente de um símbolo, que, neste caso, remete a um passado, é, por consequência, desnaturalizar um discurso e evidenciar uma construção com base em uma representação, o símbolo. Dessa forma, o poder simbólico na representação de Dom Adriano, legitimado, entre outros alicerces, pela custódia de seu arquivo pessoal pela Cúria, simbolicamente possibilita um discurso supostamente “verdadeiro” e fundamentado que confere força ao seu orador, servindo, a priori, para a manutenção de uma identidade entre a Diocese de Nova Iguaçu, sua trajetória e seus leigos. A força que mantém o laço entre Diocese e leigos vai além da fé, como se afirma, e se vale de instrumentos baseados, também e não somente, na manutenção de símbolos que conferem legitimidade à representação dessa Diocese diante de seus fiéis e da sociedade. Como percebem Barros e Amélia, “[...] o arquivo está impregnado de práticas e sentidos mnemônicos e rememorativos que compõem a identidade de um povo” (BARROS & AMÉLIA, 2009, p. 55). Isso, mesmo se pensarmos sobre um arquivo pessoal, que acumula parte das lembranças de seu produtor, refletindo assim, mesmo que não “cristalinamente”, informações com as quais poderíamos identificar suas filiações identitárias. Essas autoras reforçam o caráter instrumental relacionado à manutenção identitária na rememoração proporcionada pelas sedimentações informacionais feitas nos arquivos, pois, segundo elas, “[...] a principal justificativa para a existência do arquivo é a sua capacidade de oferecer a cada cidadão um senso de identidade, de história, de cultura e de memória pessoal e coletiva” (Ibid., p. 58). Cabe ressaltar que, além dessas instrumentalidades, os arquivos existem para dar conta de mais do que o expresso pelas autoras, o que não significa que a afirmação delas deva ser excluída, mas apenas acrescida. Assis e Panisset chegam a uma conclusão ao perceberem os documentos eclesiais católicos como meios para a compreensão de identidades e de memórias7. Para esses autores, “[...] os arquivos diocesanos católicos permitiriam observar, por meio de seus conjuntos documentais, as construções identitárias elaboradas pelas seleções, organização e arranjo do que deve ser resguardado” (ASSIS & PANISSET, 2006, p. 190). Ainda sobre o caráter simbólico e identitário do qual os arquivos podem ser instrumentos, levando em consideração o caso de Dom Adriano e a Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, podemos encontrar na produção de Heymann uma explicação que se adequa à situação aqui analisada. Esta autora afirma que as “instituições criadas com a vocação declarada de preservar a memória têm sempre caráter político, na medida em que a memória n.9, 2015, p.303-322

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BRUNO FERREIRA LEITE

é instrumento político, capaz de criar identidades, de produzir um discurso sobre o passado e projetar perspectivas sobre o futuro” (HEYMANN, 2005, p. 10). Em suma, com relação à legitimidade do discurso diocesano ancorado no legado de Dom Adriano, mas não só nele, podemos perceber que o arquivo pessoal do bispo, como parte do que ele deixou como vestígio de sua existência, pode ser entendido como um recurso material e simbólico. Para reforçar esta última afirmação, lembramos que os arquivos pessoais e institucionais circulam em espaços que os dotam de significado, ao passo que esses arquivos qualificam e legitimam esses mesmos espaços (HEYMANN, 2005, p. 9).

A relevância do arquivo pessoal de Dom Adriano para a declaração de interesse público e social do Arquivo Diocesano de Nova Iguaçu Este trecho focará em compreender por que os documentos permanentes do Arquivo Diocesano foram declarados de interesse público e social, de acordo com a Lei 8.159/1991 e o Decreto 4.073/2002, e, se possível, em que medida o arquivo pessoal de Dom Adriano foi relevante para que a citada declaração fosse aprovada em plenária do CONARQ e decretada pela Presidência da República do Brasil, em 9 de maio de 2012. Tabela 1 Data

Documento

29/06/2010

Ofício nº 2203/10 MPF/PRM/ SJM/SCOJUR

314

Descrição sintética do conteúdo Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ solicitando verificar se os arquivos históricos da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu são de interesse público e social nacional.

Descrição analítica do conteúdo Ofício expedido por Renato de Freitas Souza Machado, Procurador da República da Procuradoria da República no Município de São João de Meriti, encaminhado ao Presidente do CONARQ, Jaime Antunes da Silva, solicitando verificar [...] se os arquivos históricos da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu são de interesse público e social nacional. Na ocasião, foi anexado a este Ofício o Inquérito Civil Público nº 1.30.017.000191/2005-59, que contém (1) uma reportagem do jornal O DIA online, de 26/06/2005, que trata sobre o conteúdo e estado de conservação do acervo do Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, bem como explicita alguns projetos de pesquisa participante oriundas de algumas universidades, dentre elas a UFRRJ e UFF, que são desenvolvidos neste Arquivo; e (2) uma cópia do ofício nº 109/08/GAB-COPEDOC-IPHAN, de 18/04/2008, respondendo à solicitação de tombamento do acervo arquivístico da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Isso, em resposta ao ofício MPF/PRM/SJM/ SOTC/N 259/08, também expedido por Renato Freitas Souza Machado, Procurador Regional da República de São João de Meriti, encaminhado ao IPHAN. Na ocasião, Lia Motta, Coordenadora-Geral

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Tabela 1 (cont.) Data

Documento

29/06/2010

Ofício nº 2203/10 MPF/PRM/ SJM/SCOJUR

24/09/2010

Ofício nº 3141/10 MPF/PRM/ SJM/SCOJUR

Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ cobrando informações sobre o processo de declaração.

11/10/2010

Ofício nº 75/2010/CONARQ

Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ cobrando informações sobre o processo de declaração.

n.9, 2015, p.303-322

Descrição sintética do conteúdo Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ solicitando verificar se os arquivos históricos da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu são de interesse público e social nacional.

Descrição analítica do conteúdo de Pesquisa, Documentação e Referência do IPHAN, em resposta ao Procurador da República, encaminha, anexo ao ofício, um diagnóstico preliminar do acervo arquivístico da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, informando sobre boas condições de preservação do mesmo e aproveita para anunciar que serão tomadas as providências necessárias para a abertura do processo de tombamento do acervo em questão. Neste mesmo diagnóstico, Mônica Muniz Melhen e Zenaide de Freitas Santos, ambas servidoras do IPHAN, informam a necessidade de uma análise mais aprofundada do acervo a fim de proceder ao tombamento do mesmo, com base na Portaria nº 11, de 11/09/1986, do IPHAN, bem como aproveitam para sugerir outra possibilidade de medida preventiva a ser adotada com a finalidade de preservar e captar recursos para o tratamento do acervo da Cúria, ou seja: encaminhar uma solicitação de declaração de interesse público e social do acervo do Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu ao CONARQ. Isso foi feito e deu origem a este documento, que abriu o processo de declaração. Ofício expedido por Renato de Freitas Souza Machado, Procurador da República da Procuradoria da República no Município de São João de Meriti, encaminhado ao Presidente do CONARQ, Jaime Antunes da Silva, solicitando informações atualizadas “[...] sobre as providências em relação ao Ofício nº 2203/10 MPF/PRM/SJM/SCOJUR”. O Procurador fixa prazo de 30 dias para a resposta e informa que usará a resposta do CONARQ para instruir o Inquérito Civil Público nº 1.30.017.000191/2005-59. Ofício expedido por Renato de Freitas Souza Machado, Procurador da República da Procuradoria da República no Município de São João de Meriti, encaminhado ao Presidente do CONARQ, Jaime Antunes da Silva, solicitando informações atualizadas “[...] sobre as providências em relação ao Ofício nº 2203/10 MPF/PRM/SJM/SCOJUR”. O Procurador fixa prazo de 30 dias para a resposta e informa que usará a resposta do CONARQ para instruir o Inquérito Civil Público nº 1.30.017.000191/2005-59.

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BRUNO FERREIRA LEITE

Tabela 1 (cont.) Data

Documento

11/10/2010

Ofício nº 75/2010/ CONARQ

17/11/2010

Processo nº 00321. 000002/2010 CONARQ DV

Registro de abertura do processo que visa avaliar o interesse público e social do arquivo permanente da Cúria.

17/11/2010

Minuta do parecer nº 16/2011

Minuta do parecer técnico que conclui pela pertinência da declaração. A versão final foi encaminhada e aprovada em sessão plenária do CONARQ.

08/02/2011

Ofício nº 322/11/ MPF/ PRM/SJM/S COJUR

Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ cobrando informações sore o processo de declaração.

316

Descrição sintética do conteúdo Ofício expedido pelo presidente do CONARQ informando ao solicitante da declaração que alguns dos documentos custodiados na Cúria são automaticamente de interesse público e social, e que os demais serão avaliados por comissão técnica competente.

Descrição analítica do conteúdo Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então Presidente do CONARQ, em resposta ao Ofício nº 2203/10 MPF/ PRM/SJM/SCOJUR. Neste documento, o Procurador da República é informado que (1) os registros de Batismo, Casamento e Óbito custodiados na Cúria Diocesana de Nova Iguaçu e anteriores ao Código Civil, datado de 1916, são automaticamente considerados de interesse público e social, vide regulamentação da Lei 8.159/1991; (2) o restante dos documentos custodiados no acervo da Cúria serão avaliados por Comissão Técnica constituída pelo CONARQ com o objetivo de produzir parecer sobre a declaração de interesse público e social dos documentos a ser julgado pelo Conselho, vide disposto no Decreto 4.073/2002; (3) explicita que a referida Comissão Técnica entrará em contato com a Cúria a fim de avaliar in loco o seu acervo; e (4) por fim, afirma positivamente sobre o adequado tratamento técnico dispensado ao acervo por parte de seu responsável. Processo aberto pelo CONARQ com a finalidade de avaliar o acervo privado permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu para declará-lo ou não de interesse público e social, de acordo com a Lei 8.159/91, Decreto 4.073/2002 e Resolução nº 17 do CONARQ. Minuta expedida por Marilena Leite Paes, Coordenadora do CONARQ, encaminhando o texto do parecer que visa à declaração de interesse público e social do acervo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu para a Comissão Técnica, a fim de que esta analise a pertinência da Declaração e tome as providências decorrentes desta análise. Ofício expedido por Renato de Freitas Souza Machado, Procurador da República da Procuradoria da República no Município de São João de Meriti, encaminhado ao então Presidente do CONARQ, Jaime Antunes da Silva, solicitando informações atualizadas sobre o processo de declaração de interesse público e social da documentação permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. O Procurador fixa prazo de 30 dias para a resposta e informa que usará a resposta do CONARQ para instruir o Inquérito Civil Público nº 1.30.017.000191/2005-59.

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Tabela 1 (cont.) Data

Documento

02/03/2011

Ofício n° 14/2001/CONARQ

13/07/2011

Ata da 62a Reunião Plenária do CONARQ

Ata da sessão plenária que aprova o parecer que conclui pela pertinência da declaração de interesse público e social do arquivo permanente da Cúria.

16/09/2011

Ofício nº 400/11 PRM-JOA 2925/11

Ofício encaminhado ao presidente do CONARQ cobrando informações sore o processo de declaração.

03/10/2011

Ofício nº 91/2011/CONARQ

Ofício expedido pelo presidente do CONARQ informando ao solicitante da declaração que o parecer favorável à declaração foi aprovado pelo CONARQ.

n.9, 2015, p.303-322

Descrição sintética do conteúdo Ofício expedido pelo presidente do CONARQ informando ao solicitante da declaração que a comissão técnica foi à Cúria e que o parecer produzido por esta comissão será avaliado em sessão plenária do CONARQ.

Descrição analítica do conteúdo Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então Presidente do CONARQ, encaminhado a Renato Freitas Souza Machado, Procurador Regional da República de São João de Meriti, em resposta ao Ofício nº 322/11/ MPF/PRM/ SJM/SCOJUR, informando ao Procurador que a Comissão Técnica de Avaliação foi à Cúria Diocesana de Nova Iguaçu no dia 30/11/2011, e o parecer resultante desta visita será avaliado na Plenária do CONARQ, em sua próxima reunião, em 8/6/2011, para “[...] decisão terminativa a respeito do assunto”. Na Ata fica registrada a apresentação do parecer nº 16 por Marcelo Siqueira, membro da Comissão Técnica de Avaliação, que [...] conclui pela pertinência da Declaração de Interesse Público e Social do Acervo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu produzido e acumulado entre o século XIX e o ano 2000. Ofício expedido por Renato de Freitas Souza Machado, Procurador da República da Procuradoria da República no Município de São João de Meriti, encaminhado ao Presidente do CONARQ, Jaime Antunes da Silva, solicitando informações atualizadas sobre o processo de declaração de interesse público e social da documentação permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. O Procurador fixa prazo de 30 dias para a resposta e informa que usará a resposta do CONARQ para instruir o Inquérito Civil Público nº 1.30.017.000191/2005-59. Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então Presidente do CONARQ, encaminhado a Renato Freitas Souza Machado, Procurador Regional da República de São João de Meriti, em resposta ao Ofício nº 400/11 PRM-JOA 2925/11, informando ao Procurador que a Comissão de Avaliação julgou procedente a declaração de interesse público e social da documentação permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu e que este parecer favorável será encaminhado, primeiro, à assinatura dos membros da Comissão e, posteriormente, à sanção presidencial. Junto ao Ofício segue cópia do parecer.

317

BRUNO FERREIRA LEITE

Tabela 1 (cont.) Data

Documento

Descrição sintética do conteúdo Ofício expedido pelo presidente do CONARQ encaminhando o processo e minuta do Decreto para o Ministro da Justiça.

08/11/2011

Ofício nº 095/2011/ CONARQ

29/10/2012

Ofício nº 029/2012/ CONARQ

Ofício expedido pelo presidente do CONARQ para informar a Dom Luciano Bergamin, bispo da Mitra Diocesana de Nova Iguaçu, que o processo de declaração chegou ao final, tendo a solicitação sido aprovada.

30/10/2012

Ofício nº 030/2012/ CONARQ

Ofício expedido pelo presidente do CONARQ informando ao solicitante que o processo de declaração chegou ao final, tendo a solicitação sido aprovada.

Descrição analítica do conteúdo Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então presidente do CONARQ, enviando em anexo o processo nº 00321.000002/2010, do CONARQ, e a minuta do Decreto de Declaração de Interesse Público e Social do acervo privado do Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu para a apreciação do então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso. Nesta data o Arquivo Nacional encontra-se subordinado ao Ministério da Justiça. Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então Presidente do CONARQ, encaminhado a Dom Luciano Bergamin, bispo da Mitra Diocesana de Nova Iguaçu, para informá-lo de que foi decretado no dia 9 de maio de 2012, e publicado no Diário Oficial da União no dia seguinte, a declaração de interesse público e social do arquivo privado da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Segue anexo ao ofício uma cópia do citado Decreto e um diploma emitido pelo CONARQ ratificando o título em questão. Ofício expedido por Jaime Antunes da Silva, então Presidente do CONARQ, encaminhado a Renato Freitas Souza Machado, Procurador Regional da República de São João de Meriti, para informa-lo de que foi decretado no dia 9 de maio de 2012, e publicado no Diário Oficial da União no dia seguinte, a declaração de interesse público e social do arquivo privado da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu.

Com o intuito de representar a sequência de acontecimentos que culminaram nesta declaração, fomos ao CONARQ a fim de acessar os documentos que relatam esses fatos. A seguir, expomos o resultado da pesquisa baseada na consulta do processo administrativo nº 000002/2010DV, aberto em 17/11/2010 pelo CONARQ. Considerando esse processo, cujo objeto é a declaração do arquivo permanente da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, procuraremos analisar a relevância que teve o arquivo de Dom Adriano para o êxito da solicitação formalmente feita ao CONARQ pelo procurador da República Renato Machado. Para compreendermos isso, algumas informações são relevantes. Quanto à situação do arquivo do bispo, pode-se afirmar que ele não passou por um tratamento arquivístico completo, como já explicitado, mesmo − como se perceberá mais à frente − sendo um fundo de grande importância para a Cúria e para pesquisadores em geral. Ratificando isso, a Comissão Técnica para Avaliação de Acervos Privados de Interesse Público e Social registra em parecer que 318

REVISTA DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

a atuação do bispo Dom Adriano Hipólito, fartamente documentada pelo próprio e conservada originalmente como produzida, é exemplo da atividade de resistência promovida por diversos setores da sociedade, da ação empreendida para a consolidação de políticas sociais em nosso país e da proposta de um novo modelo de sociedade baseada em ideias mais progressistas da Igreja e da Teologia da Libertação. (CONARQ, 2011, p.7).

Quanto aos demais usuários do Arquivo Diocesano, além dos internos da Cúria, podemos dar alguns exemplos destacados pela própria Comissão, pois, segundo ela inúmeros historiadores e pesquisadores vêm utilizando seu acervo em trabalhos acadêmicos e jornalísticos, propiciando ao cidadão uma leitura ampla e plural da história recente de nosso país. Podemos citar os historiadores Daniel Aarão Reis Filho, Carlos Fico, o jornalista Elio Gaspari e o americano brasilianista Keneth Serbin como pesquisadores de sua documentação. Além disso, a documentação referente aos movimentos sociais apoiados pela Diocese reflete a política adotada por uma significativa parcela da Igreja Católica no Brasil, servindo de análise para uma compreensão sociológica e histórica do período. (CONARQ, 2011, p.7).

Percebe-se, portanto, que outros atores buscam informações para suas pesquisas no Arquivo da Cúria Diocesana, inclusive o Grupo de Pesquisa Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais (CDOC-ARREMOS)8. Além deste Grupo de Pesquisa, outros projetos acadêmicos dialogam com o Arquivo Diocesano. Porém, não contamos com o levantamento desses usuários externos que pesquisam especificamente sobre o arquivo pessoal de Dom Adriano. Contudo, ratificando novamente a existência desses usuários, a Comissão registra que

alguns pesquisadores que utilizam o Arquivo colaboram na identificação e localização do acervo, da mesma forma que estudantes de Arquivologia e História que atuam em alguns projetos, tudo sob orientação do Sr. Menezes. Em um desses projetos, em parceria com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, foi realizada a higienização, o acondicionamento e a digitalização da documentação manuscrita, como os registros de batismo, casamento e óbito (1686 – 1930). (CONARQ, 2011, p.4).

Ainda de acordo com a mesma comissão, o acervo da Cúria é de propriedade do Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu (CONARQ, 2011, p. 4), e quanto às condições de acesso, a consulta é realizada em mobiliário próprio no mesmo local de guarda do acervo. O acesso é realizado no mesmo dia da visita, mas poderá ser concedido por agendamento em alguns casos. Parte da documentação de Dom Adriano Hipólito, constituída de correspondências particulares, possui restrição de acesso em virtude da intimidade e privacidade do titular. Não há serviço de reprografia, mas o usuário pode fotografar os documentos. (CONARQ, 2011, p.5).

Percebe-se, na leitura do referido parecer, que o arquivo de Dom Adriano teve peso especial na declaração de interesse público e social do arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, ressaltando ainda mais seu caráter representativo da Diocese. Em 2011, com o falecimento do padre Agostinho Pretto, que também obteve destaque por seu posicionamento n.9, 2015, p.303-322

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BRUNO FERREIRA LEITE

contrário ao regime civil-militar brasileiro, seu arquivo pessoal passou a ser custodiado pela Cúria Diocesana. Prática esta, como mencionada pelo Sr. Menezes em entrevista, que vem se tornando procedimento de rotina na Cúria. Contudo, não temos mais informações sobre essas aquisições de arquivos pessoais de outros casos que não seja o de Dom Adriano. Ressaltando a relevância do arquivo pessoal de Dom Adriano para o Arquivo Diocesano9, a comissão registra que uma considerável parcela do acervo é constituída pela documentação produzida, recebida e acumulada por Dom Adriano Hipólito, terceiro bispo de Nova Iguaçu e um dos principais nomes da Igreja Católica na luta contra o regime militar do Brasil (1964-1985). (CONARQ, 2011, p. 2).

Segundo Menezes (2014), quando indagado sobre a importância do arquivo pessoal do bispo, ele respondeu que “o arquivo de Dom Adriano é importantíssimo pela pessoa dele”. Após Menezes fazer este comentário, acabamos tratando de outros assuntos, mas, posteriormente, ele completou esta resposta dizendo: o arquivo de Dom Adriano é a maior riqueza do arquivo, de uma certa forma. Uma outra riqueza que nós temos.... Tudo aqui é importante [...] Mas o arquivo de Dom Adriano é ele, é todo esse acúmulo que ele foi criando, formando desde a época em que ele era um jovem frei. Toda a correspondência, toda a vida pessoal dele está neste arquivo. Então, é um arquivo muito rico. (MENEZES, 2014).

Percebe-se, por fim, que essa importância não é conferida apenas por Menezes, mas ratificada no texto do parecer10 feito pela Comissão Técnica, aprovado pelo CONARQ. Não que o arquivo pessoal de Dom Adriano tenha sido o único elemento responsável pela justificativa da declaração, mas esse arquivo fica evidenciado como um forte instrumento de legitimação de tal declaração. Concluímos, portanto, que ficou clara a relevância desse arquivo pessoal para a Cúria, tendo em vista a própria projeção de seu produtor enquanto esteve à frente da instituição, de 1966 a 1994.

Considerações finais Tendo em vista todo o exposto, percebemos a pluralidade de enfoques que podemos dar aos arquivos no âmbito da Arquivologia e por meio de diálogos interdisciplinares. No caso desta pesquisa, optamos por compreender especialmente o contexto de produção, o interesse institucional em relação a um arquivo pessoal e os usos feitos deste arquivo. Tais enfoques tinham o intuito de compreender o caráter simbólico de que o arquivo de Dom Adriano Hypólito é imbuído, no sentido de ser instrumento para a manutenção de um modelo identitário para a Diocese de Nova Iguaçu. Identificamos que este labor faz parte de um projeto capilar sustentado por agentes internos e externos à administração da Cúria, pois, como percebemos, a produção de sentido em torno do bispo como símbolo daquela Diocese, que tem hoje em seu arquivo 320

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O ASPECTO SIMBÓLICO DO ARQUIVO PESSOAL DE DOM ADRIANO HYPÓLITO

um instrumento importante neste contexto, só sobrevive se tiver ressonância social. Essa ressonância do aspecto simbólico pode ser reproduzida de forma consciente ou inconsciente. Contudo, dificilmente será revelado o caráter intencional ou planejado desta produção simbólica, pois assim o símbolo aparenta ser natural. Essa construção, apoiada na noção de naturalidade, tanto do símbolo quanto da produção documental, confere uma legitimidade ao “projeto” que, como percebemos, não é natural. Em suma, esperamos que este artigo fomente a produção de conhecimentos dentro da Arquivologia que trabalhem o aspecto simbólico, identitário e político que envolvem a produção documental, seus usos, sua avaliação, conservação, aquisição, classificação, descrição e difusão, ou seja, estamos sugerindo a análise dos trabalhos arquivísticos e dos usos e usuários dos arquivos, com um olhar sobre os impactos dessas ações. Com isso, buscamos desenvolver perspectivas de estudo que poderíamos tentar classificar como uma “Sociologia dos Arquivos”11. Notas 1 Este artigo apresenta resultados obtidos com a elaboração da dissertação defendida em 2014, no Programa de Pós-Graduação em Arquivologia da UNIRIO, cujo titulo é “Percepções sobre a produção, custódia e uso do arquivo pessoal de Dom Adriano Mandarino Hypólito”.

A Teologia da Libertação (TdL) é uma corrente de pensamento que visa solucionar problemas relativos às injustiças sociais fundamentando-se no exemplo de Jesus Cristo. 2

Dom Adriano caracterizava o povo da Baixada como “povo sofrido”, tanto que, em 1982, lançou um livro de crônicas sobre a vida na região da Diocese com o título de Imagens de Povo Sofrido. Livro publicado pela Editora Vozes, que reuniu algumas das crônicas que Dom Adriano escrevia e acrescentava à leitura litúrgica das missas da Diocese. 3

4 Movimento surgido na década de 1970 que congregava associações de moradores, que se articulavam para reivindicar seus direitos. Foi institucionalizado no início dos anos 1980, transformando-se em federação. 5 Parecer n° 16/2011, da Comissão Técnica para Avaliação de Acervos Privados de Interesse Público e Social do Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ. Este parecer, que propõe declarar de interesse público e social o acervo documental privado da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, foi promulgado pela presidente Dilma Rousseff em 9 de maio de 2012. Este decreto não tem número,

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mas pode ser encontrado no Diário Oficial da União de 10 de maio de 2012, seção 1, página 4. 6 Talvez existam mais documentos, porém, como não tivemos acesso ostensivo a eles, não pudemos conhecer com certeza a totalidade desse arquivo. 7 Este trecho em itálico é o próprio título do artigo publicado por Assis e Panisset, na revista eletrônica Arquivística.net, em 2006. 8 Grupo de pesquisa do qual faço parte desde 2009. É coordenado pelo Prof. Dr. João Marcus Figueiredo Assis, docente do curso de Arquivologia da UNIRIO e do PPGARQ. 9 O arquivo pessoal de Dom Adriano representa um fundo arquivístico custodiado na Cúria Diocesana pelo Arquivo Diocesano.

O texto do parecer a respeito do Arquivo Diocesano e outros podem ser lidos na íntegra acessando o site do Conselho Nacional de Arquivos (http://www.conarq.arquivonacional.gov.br), no menu “Declaração de Interesse Público e Social”.

10

Esta perspectiva de análise da Arquivologia, dos Arquivos e do fazer arquivístico vem sendo amadurecida no âmbito do Grupo de Pesquisa Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais, vinculado à UNIRO e coordenado pelo Prof. Dr. João Marcus Figueiredo Assis. Caracterizamos a expressão “Sociologia dos Arquivos” como uma noção possível de ser desenvolvida no intuito de categorizar e fomentar determinados estudos arquivísticos.

11

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BRUNO FERREIRA LEITE

Referências Bibliográficas ASSIS, João Marcus Figueiredo; PANISSET, Bianca Therezinha Carvalho. “Os documentos eclesiais católicos como meios para a compreensão de identidades e de memórias sociais”. Arquivística.net, Rio de Janeiro, v.2, n.2, pp.185-196, ago./dez. 2006. ASSIS, João Marcus Figueiredo. Negociações para o convívio no catolicismo na Diocese de Nova Iguaçu. Tese de Doutorado (Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Rio de Janeiro, 2008. BARROS, Dirlene Santos e AMÉLIA, Dulce. “Arquivo e memória: uma relação indissociável”. TransInformação, Campinas, 21(1): 55-61, jan./abr., 2009. BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Manifesta-se sobre a declaração de interesse público e social do acervo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu (RJ). Parecer nº 16/2011, de 28 de março de 2011. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2012. CÚRIA DIOCESANA DE NOVA IGUAÇU. Diocese de Nova Iguaçu, 50 anos de missão. Rio de Janeiro, 2010. DAVID, Sada Baroud. Sada Baroud David: depoimento [25 jan. 2014]. Entrevistador: Bruno Leite. Nova Iguaçu: Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais da UNIRIO. HEYMANN, Luciana Quillet. “Os fazimentos do arquivo Darcy Ribeiro: memória, acervo e legado”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 36, jun./dez. pp. 43-58, 2005. JODELET, Denise. “As representações sociais”. In: Representações sociais: um domínio em expansão. Tradução de Lilian Ulup. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. cap. 1, pp.17-44. MENEZES, Antônio. Antônio Menezes: depoimento [23 jan. 2014]. Entrevistador: Bruno Leite. Nova Iguaçu: Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais da UNIRIO. MILLS, Charles Wright. “A imaginação sociológica”. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, 1996. Recebido em 28/05/2015 Aprovado em 14/06/2015

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Dossiê: 450 anos da cidade do Rio de Janeiro

n.9, 2015, p.325-326

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Cinema Metro Passeio, [s/d] / BR RJAGCRJ.ICO.CIN.MPA.071B.01.03. Acervo AGCRJ 324

REVISTA DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Apresentação

O Rio de Janeiro não é uma cidade fácil. Cidades, em geral, não são fáceis. Quando uma cidade contém em seu espaço uma evidente exuberância topográfica, convertida há tempos em ícones mundialmente conhecidos e constantemente reafirmados, as dificuldades se adensam. Afinal, a expressão que essa cidade deseja oferecer aos seus habitantes e aos demais moradores do planeta terá sempre de lidar com essa beleza que lhe dá corpo e que, inevitavelmente, mesmo quando negada ou desfigurada, irá mediar sua relação com o mundo. Levando-se em conta mais uma característica particular do Rio de Janeiro, a de ser, talvez, a cidade que confundiu de forma mais visceral sua trajetória local com a história do país, sendo capital do Brasil nos períodos colonial, imperial e republicano, é sabido, então, que ela nunca irá ofertar um caminho fácil a quem se aventurar a contar um pouco – ou muito – de suas histórias. Tão ligada ao Estado brasileiro, aos jogos de poder, aos truques do turismo e do dinheiro, a cidade vive um cotidiano em que o cultivo dos privilégios, da opressão e da violência evidencia como o Brasil vem lidando ao longo de sua história com a ideia de civilização e com a experiência da democracia – tão recém-conquistada e ainda pouco exercitada. Sem se acovardarem diante do desafio proposto pelos editores da Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro para a elaboração de um dossiê sobre o aniversário de 450 anos da cidade, estão reunidos aqui os autores de quatro artigos que apresentam fatos, personagens e locais do Rio de Janeiro que tentam explicitar esse caráter de acúmulo histórico adensado que ela tão unicamente conquistou. Os artigos tratam de assuntos relacionados ao século XX, um século nem menos nem mais importante do que os anteriores – os quatro anteriores, neste caso, quando a cidade já existia –, mas que dá a ilusão a alguns vivos deste tempo presente de ser um período que está “logo ali”, com referenciais que ainda nos soam como próximos e que nos permitem reflexões um pouco mais seguras sobre os processos históricos que ainda se desenrolam nesses dias. A imagem em movimento, um dos signos fundamentais do século XX (apesar de ter surgido, sabemos, no finalzinho do século XIX), está presente no texto sobre o acervo audiovisual da Academia Brasileira de Letras, instituição consagrada ao universo literário brasileiro, mas que também guarda em seus arquivos um significativo acervo de imagens em n.9, 2015, p.325-326

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movimento relacionado aos imortais da Academia. O cinema (como era chamado no século XX, antes de ser rebatizado de audiovisual neste século XXI) também é assunto do artigo sobre a coleção do cineasta amador Paschoal Nardone, que integra o acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e traz imagens da então capital federal realizadas entre as décadas de 1920 e 1930. O teatro carioca – ou seria o teatro brasileiro? – está presente no artigo sobre a montagem de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov, no Teatro Ipanema em 1968, momento de intensas e corajosas pesquisas cênicas de atores, diretores, dramaturgos, autores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores e toda a classe teatral, ainda que já sob o regime ditatorial iniciado em 1964 e às vésperas do Ato Institucional n° 5. O ativismo LGBT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros – sim, todos eles, todas elas e todos nós) é abordado no artigo que apresenta os grupos organizados que atuaram e vêm atuando no Rio de Janeiro desde o último quarto do século passado. Suas conquistas em favor da igualdade de direitos civis para as pessoas que vivem fora de uma configuração social – pública e privada – heteronormativa alcançaram repercussão nacional e vêm contribuindo decisivamente para o estabelecimento de políticas públicas e marcos legais que buscam atender às demandas da população LGBT. Os quatro artigos aqui apresentados tentam compartilhar com os leitores a inescapável vitalidade artística e social do Rio de Janeiro, mostrando que suas instituições culturais e suas lutas políticas, aliadas à preservação e à pesquisa de seus acervos, permitem que suas histórias sejam contadas e recontadas com a complexidade, a clareza e a dúvida que esta cidade difícil merece. Fabricio Felice Mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Recebido em 10/07/2015 Aprovado em 20/07/2015

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REVISTA DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

ENTRE LETRAS E IMAGENS

Entre letras e imagens: o acervo audiovisual no Arquivo da Academia Brasileira de Letras Between letters and images: the audiovisual collection from the Archive of the Brazilian Academy of Letters Ana Renata Tartaglia Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Coordenadora do Arquivo Institucional da Academia Brasileira de Letras (ABL) [email protected]

Débora Butruce Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Preservadora audiovisual e Fundadora e diretora da empresa Mnemosine [email protected]

RESUMO: Este artigo pretende mostrar um aspecto pouco conhecido do Arquivo da Academia Brasileira de Letras: seu acervo audiovisual. Partindo da trajetória da Academia desde o seu surgimento, assim como a constituição e a posterior revitalização de seu arquivo e as divisões conceituais que o caracterizam, aponta para a formação de seu acervo audiovisual, ainda na década de 1960, quando se inaugurou a “Filmoteca”. Questões gerais ligadas à conservação dos suportes e dos conteúdos e os desafios que a atualidade impõe aos arquivos audiovisuais são observadas, explicitando-se mais detalhadamente o tratamento técnico realizado com os materiais em suporte fotoquímico e as especificidades dos itens que compõem esta coleção. Considerando que a problemática da salvaguarda dos conteúdos audiovisuais está relacionada tanto à preservação das mídias quanto de seus dispositivos de leitura e reprodução, além da necessidade de sua digitalização, questões sobre a preservação digital também são levantadas. Palavras-chave: Audiovisual, Arquivo, Academia Brasileira de Letras.

n.9, 2015, p.327-340

ABSTRACT: This article aims to shed light over a little known aspect of the Archive of the Brazilian Academy of Letters: its audiovisual collection. We start from the history of the Academy, since its inception, the creation and subsequent revitalization of its Archive, to the conceptual divisions that characterize it and led to the creation of its audiovisual collection, still in the 60s, when the “Film Library” was launched. General issues related to the conservation of the media and the contents, as well as the current challenges imposed upon the audiovisual archives were observed, explaining in detail the technical treatment performed on the materials supported by photochemical media and the specificities of the items that compose this collection. I Some issues are raised, such as the protection and safeguard of audiovisual contents that relates to the preservation of the different media and of its reading and reproduction devices, in addition to the need for scanning and also issues about digital preservation. Keywords: Audiovisual, Archive, Brazilian Academy of Letters.

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ANA RENATA TARTAGLIA, DÉBORA BUTRUCE

Breve história da Academia A Academia Brasileira de Letras foi fundada em 20 de julho de 18971 na cidade do Rio de Janeiro. Embora sua criação fosse uma aspiração antiga entre os homens de letras do país, só foi possível concretizá-la nesse período por uma conjunção de fatores que favoreceram o seu surgimento. Um dos principais fatores foi a mudança do regime monárquico para o regime republicano, em 1889. Criada nos moldes da Academia Francesa, numa época em que a França exercia grande influência na sociedade carioca, a Academia Brasileira de Letras surgiu com a missão de cultivar a língua portuguesa e de propagar a literatura e a cultura nacionais. Por ter sido o Rio de Janeiro, sucessivamente, capital da colônia, do império e da república, tudo o que acontecia na cidade tinha repercussão nacional, inclusive pelo fato de atrair muitas pessoas de outras províncias e estados brasileiros, tanto para desenvolver suas atividades profissionais quanto estudantis. Ideia reforçada nos estatutos da Academia, formulados durante as sessões preparatórias2, em cujo § 1º do seu Art. 1º condiciona-se que a Academia seja composta de um determinado número de residentes na cidade do Rio de Janeiro: “§ 1º - A Academia compõe-se de 40 membros efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos, residentes do Rio de Janeiro [...]” (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2004, p.5). É importante assinalar que os primeiros anos da Academia transcorreram em uma atmosfera política e literária bastante tumultuada, marcada por várias greves, revoltas e transformações urbanas: o bota-abaixo de Pereira Passos; a reurbanização do Centro da cidade e o surgimento da Avenida Central; a Revolta da Vacina e as reformas sanitárias de Oswaldo Cruz; o surgimento dos primeiros automóveis e a modernização de alguns meios de transporte coletivo, como os bonds; o advento de novas formas de comunicação, como o telefone e, posteriormente, o rádio; e de registro do real, como a fotografia e o cinema, só para citar alguns dos acontecimentos que expressaram essas mudanças. Em 1923, a Academia conseguiu, por meio de uma doação do governo francês, o prédio que havia sido construído para servir de pavilhão da França na Exposição Internacional de 1922, festividade do centenário da Proclamação da Independência do Brasil. O Petit Trianon, uma réplica do palácio de Maria Antonieta, em Versailles, funcionou como sede da Academia até a construção dos prédios anexos, o Palácio Austregésilo de Athayde e o Centro Cultural do Brasil3, inaugurados em 1979. Atualmente, o Petit funciona como sede histórica e abriga ainda importantes eventos acadêmicos, como as cerimônias de posse, as sessões acadêmicas e o tradicional chá das quintas-feiras. Para o público, existe a possibilidade de conhecer o espaço e suas histórias por meio de visitas guiadas ao prédio histórico. Nos prédios anexos funcionam a diretoria, os setores de arquivo, produção de áudio e vídeo, museologia, informática e núcleo de conservação, uma das bibliotecas4 e 328

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ENTRE LETRAS E IMAGENS

demais setores da instituição. Além disso, também abrigam a Galeria Manuel Bandeira e o Espaço Machado de Assis, bem como a maioria dos eventos públicos: conferências, shows de MPB, concertos de música clássica, peças teatrais e exposições diversas. A maior parte desses eventos públicos, bem como os eventos acadêmicos é registrada pelo Setor de Áudio e Vídeo e pela Assessoria de Imprensa da instituição. Este material produzido, depois de finalizado é encaminhado ao arquivo, onde recebe o adequado tratamento da informação e armazenamento de acordo com suas características. Adiante, apresentaremos rapidamente a história do Arquivo da ABL.

O Arquivo da ABL Desde as primeiras sessões plenárias, em 1896, a existência de um arquivo da Academia Brasileira de Letras aparece em algumas falas de acadêmicos. Tais falas, registradas nas atas da instituição, indicavam a necessidade de preservação de determinados documentos, bem como da existência de um serviço ou setor que se encarregasse dessa atividade institucional. Contudo, somente em 19435, época em que se discutia o Projeto de Reforma do Regimento Interno, foi feita a primeira referência “direta e explícita” à estruturação de um arquivo (SILVA, 2003, p.17). Eleito no mesmo ano para ser o primeiro diretor do Arquivo, o acadêmico Múcio Leão, então presidente e autor da proposta, se encarregou da primeira fase de sua organização. O acadêmico ocupou o cargo de diretor do Arquivo até seu falecimento, em 12 de agosto de 1969. Por sua dedicação e contribuição ao Arquivo da Academia, este recebeu o nome de Múcio Leão, como uma homenagem póstuma ao acadêmico. No ano do primeiro centenário da Academia, em 1997, durante a presidência da acadêmica Nélida Piñon, foi instalado o Centro de Memória6 e iniciado o projeto de revitalização do Arquivo da ABL. Nessa época, o arquivo funcionava de maneira discreta. Tinha apenas duas funcionárias, de formação técnica, para fazer o trabalho de organização dos documentos e de pesquisa interna, uma vez que não havia consulta pública – salvo por indicação de algum acadêmico. Não existia também nenhum tipo de gestão da documentação institucional. Foi contratada uma consultoria com um arquivista7 para a concepção, o planejamento, a coordenação e o desenvolvimento de um projeto para a revitalização do arquivo. A partir desse projeto de revitalização, o Arquivo ganhou novo desenho e novas rotinas, baseadas nos conceitos da Arquivística moderna, quando passou a contar também com uma estrutura própria, espaço físico para arquivamento e atendimento a usuários, rotinas e práticas arquivísticas estabelecidas, além de uma equipe técnica composta somente de arquivistas e estagiários de Arquivologia. Os acervos arquivísticos da ABL revelam-se uma fonte abundante de conhecimento não só para as áreas de História e de Literatura. Inúmeros outros aspectos sociais e culturais podem ser observados em sua documentação, de maneira que este conjunto de documentos ali preservados é de interesse de toda a sociedade. A revitalização e a reestruturação de seu n.9, 2015, p.327-340

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Arquivo proporcionaram melhor acesso à documentação existente. Da mesma maneira, o desenvolvimento de instrumentos de pesquisa (índices, manuais, inventários etc.) deve ser entendido como o principal recurso para equipar adequadamente pesquisadores e usuários. Proporcionar acesso, inventariar o acervo e preservá-lo torna possível que qualquer pessoa interessada acesse e produza conhecimento. Esta dinâmica revela o importante papel que os arquivos desempenham em qualquer sociedade: representar um manancial onde se busca e se acessa a informação, contribuindo para a construção do conhecimento e a compreensão e transformação da sociedade. Entre 2012 e 2013, a acadêmica presidente à época Ana Maria Machado empreendeu uma reestruturação no Centro de Memória da instituição. Sob a direção do historiador e acadêmico José Murilo de Carvalho, o Arquivo da Academia Brasileira de Letras passou por mais uma reforma para a modernização de suas instalações físicas. Além de ganhar um desenho mais contemporâneo e moderno mobiliário para suas acomodações, o Arquivo passou a contar com novos sistemas de segurança para extinção de incêndio, para o controle ambiental de toda a área de guarda e o monitoramento por câmeras de vigilância. Estas melhorias foram essenciais para tornar o arquivo mais seguro e funcional para pesquisadores, funcionários e para o próprio acervo.

As duas linhas conceituais do Arquivo da ABL Quando o projeto arquivístico para a revitalização e a reorganização do Arquivo da ABL começou a ser desenvolvido, a partir de fevereiro de 1997, os primeiros levantamentos do acervo existente identificaram o predomínio de conjuntos de documentos privados e pessoais dos acadêmicos, em meio a documentos administrativos e funcionais da instituição. Como resultado, optou-se pela separação conceitual do arquivo para se trabalhar com duas linhas de acervo arquivístico: o Arquivo dos Acadêmicos e o Arquivo Institucional. Assim, os documentos privados e pessoais dos acadêmicos, entregues à custódia da instituição, passaram a constituir o Arquivo dos Acadêmicos; enquanto os documentos administrativos e funcionais, produzidos, recebidos e acumulados em decorrência das atividades-meio e atividades-fim da instituição, formaram o Arquivo Institucional. O acervo arquivístico da ABL é composto de documentos textuais, originais manuscritos, datilografados e impressos sobre suporte papel, recortes de jornais e revistas, películas cinematográficas, registros magnéticos e ópticos (fitas de áudio e de vídeo, CDs e DVDs), fotografias, diplomas, cartazes, plantas arquitetônicas, etc. No caso do Arquivo dos Acadêmicos, o conteúdo dos documentos consiste de depoimentos pessoais e profissionais, originais literários, discursos, correspondências, entrevistas, etc.. Já no caso do Arquivo Institucional, o conteúdo varia de acordo com as atividades mantenedoras e finalísticas. Como a Academia, todos os anos, cumpre uma programação cultural diversificada, todos esses eventos são registrados não só em fotografias, mas também em áudio e/ou vídeo. Todo 330

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material produzido para o registro das atividades da ABL é encaminhado ao arquivo para tratamento e arquivamento, como será descrito a seguir.

Documentos audiovisuais no Arquivo da ABL O acervo de documentos audiovisuais8 do Arquivo da Academia Brasileira de Letras abrange uma grande variedade de registros dos eventos institucionais e acadêmicos. São aproximadamente 4.000 itens documentais armazenados em quase 9.000 suportes9 variados, como fitas magnéticas para áudio e para vídeo (abertas ou em cartucho), discos de vinil e acetato, películas filmográficas e discos ópticos (CD e DVD). Assim como a fotografia, os registros audiovisuais só ultimamente passaram a ser compreendidos como documentos e reconhecidos como patrimônio a ser preservado e divulgado. Contribuíram para este reconhecimento duas publicações importantes: a Recomendação para a salvaguarda e preservação das imagens em movimento, documento

Foto: Guilherme Gonçalves/Arquivo da ABL n.9, 2015, p.327-340

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produzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1980, e, posteriormente, a obra de Ray Edmondson10 Audiovisual archiving: philosophy and principles, em 1998. Esta última teve uma recente tradução para o português11, publicada em conjunto pela Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com o título de Filosofia e princípios da arquivística audiovisual. Sem dúvida, a tradução de um texto já consagrado mundialmente ajuda a preencher a lacuna de publicações sobre a área no Brasil e a minimizar a carência de informação desses profissionais. Apesar do tardio reconhecimento de seu valor patrimonial, a presença de gravações sonoras e imagens em movimento dentro dos arquivos começaram a se fazer notar desde as primeiras décadas do século XX. Essas tecnologias de comunicação passaram a representar novas maneiras de acumulação e transmissão de memórias às próximas gerações e assumiram um importante papel, sobretudo para o registro biográfico. No caso do acervo da ABL, tais registros constituem um importante patrimônio que conta boa parte da sua história, bem como a de seus membros. Este acervo possui a característica de reunir material tanto do Arquivo Institucional quanto do Arquivo dos Acadêmicos. O Arquivo Institucional é constituído de documentos cujos assuntos representam as atividades-fim da instituição, ou seja, todos os eventos produzidos pela ABL: homenagens, conferências, seminários, mesasredondas, inaugurações, exposições, posses, sessões acadêmicas, depoimentos e demais atividades extras. Já o Arquivo dos Acadêmicos, no que se refere ao acervo audiovisual, contempla obras, entrevistas, imagens e filmes dos acadêmicos e/ou sobre eles e suas obras. É constituído, em sua maioria, por doações de familiares, instituições, colecionadores e dos próprios acadêmicos. De acordo com documentos existentes no arquivo da ABL, seu acervo audiovisual começou a se formar com a inauguração da “Filmoteca”. Duas atas da instituição fazem referência ao seu surgimento. A primeira é a ata do dia 07/04/1960, onde se lê na página 32: FILMOTECA - o Sr. José Renato dos Santos Pereira, Diretor do Instituto Nacional do Livro, doou à Academia o filme-documentário sobre o acadêmico Manuel Bandeira, permitindo-nos, desta forma, inaugurar a nova seção do Arquivo da Academia12.

E a segunda referência está na página 52 da ata do dia 19/05/1960: FILMOTECA DA ACADEMIA - O Sr. Presidente iniciou a sessão declarando inaugurada a filmoteca da Academia. A seguir, procedeu-se à projeção dos filmes: “Academia Brasileira de Letras”, “Um apólogo”, “Vicente de Carvalho”, “O mestre de apípucos”[sic] e “O poeta do castelo”13. Concluída a apresentação do documentário, foram fixados, pela TV Tupi, vários flagrantes da sessão, com o que a Academia começa a ampliar a nova seção de seu Arquivo.

Durante o projeto de revitalização do arquivo, iniciado em 1997, as películas da Filmoteca que ali se encontravam foram enviadas para o Arquivo Nacional a fim de terem seus conteúdos 332

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corretamente identificados e receberem tratamento preliminar, antes de serem enviados ao laboratório para telecinagem. Na época, os filmes foram encaminhados para o laboratório e copiados para fitas magnéticas Betacam e VHS. Infelizmente, um dos primeiros filmes doados ao arquivo na década de 1960 mostrou-se completamente inutilizado, segundo o parecer técnico do chefe da Seção de Documentos Sonoros e de Imagens em Movimento do Arquivo Nacional à época, Clóvis Molinari Júnior. Tendo sido descartado “por absoluta impossibilidade de recuperação”, pois apresentava “sinais do processo denominado ‘síndrome do vinagre14’”, bem como abaulamento e oxidação proveniente do carretel e da lata, resultado de anos de exposição às variações climáticas típicas do nosso Rio de Janeiro: calor intenso e umidade relativa instável. O registro feito pela TV Tupi não pôde ser localizado no arquivo. Acredita-se que também tenha se perdido pelas mesmas razões acima expostas. A acumulação do gênero audiovisual dentro do arquivo institucional dá-se atualmente por meio da produção do Setor de Áudio e Vídeo e da Assessoria de Imprensa da instituição. São eles os setores responsáveis pelo registro de todas as atividades culturais e institucionais que acontecem na Academia. Ela mantém uma agenda anual de eventos culturais bastante intensa, com ciclos de conferências, seminários e mesas-redondas; espetáculos de música clássica e popular; peças de teatro e leituras dramatizadas; prêmios e concursos; exposições; e outros eventos em que aparece como apoiadora. Por eventos institucionais nos referimos às sessões acadêmicas ordinárias, às cerimônias de posse de acadêmicos e das diretorias, ao aniversário da ABL, às homenagens e entrega de medalhas, e, por fim, aos depoimentos acadêmicos, um dos produtos culturais realizados pela instituição. Algumas dessas atividades são eventuais, mas a maior parte tem periodicidade semanal ou mensal. Algumas delas têm somente o áudio registrado (como as sessões ordinárias, por exemplo), porém a maioria é registrada em áudio e vídeo.

O projeto das películas cinematográficas O conjunto em suporte fotoquímico que integra o Acervo Audiovisual da Academia Brasileira de Letras, embora seja constituído, majoritariamente, de itens do Arquivo dos Acadêmicos, também possui itens do Arquivo Institucional. Esta coleção é formada por registros da vida pública e privada de acadêmicos, além de registros de eventos da instituição e algumas obras de ficção e documentários, totalizando 41 títulos. Conforme descrito anteriormente, a formação desse acervo se iniciou em 1960, quando da inauguração da Filmoteca, a partir da doação do filme “O poeta do Castelo”, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, sobre o professor, poeta, cronista, crítico e historiador literário Manuel Bandeira, que ocupou a Cadeira 24 da Academia. Uma das principais características da constituição desse acervo já estava presente nesse momento: a incorporação por meio de doação. Este traço o difere da maioria das instituições brasileiras de salvaguarda do patrimônio audiovisual, n.9, 2015, p.327-340

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que formaram seus acervos pelo regime de comodato. Sendo a Academia uma instituição dedicada à literatura, é fator relevante que tenha promovido a criação de uma filmoteca, demonstrando entendimento sobre a importância do registro audiovisual ainda na década de 1960. Austregésilo de Athayde, presidente da Academia entre 1959 e 1993, conhecido como grande realizador, foi, provavelmente, um dos responsáveis por essa incorporação. O acervo fílmico da instituição é composto de materiais nas bitolas 35mm, 16mm e Super8mm, sendo que a maior parte é de obras combinadas, ou seja, que apresentam imagem e som no mesmo suporte. Os 41 títulos que constituem o conjunto de películas correspondem a 54 rolos, concentrados nos arquivos15 dos acadêmicos Rachel de Queiroz, Marcos Vilaça, Arnaldo Niskier e Ivan Lins, além dos Diversos, este integrante do Arquivo Institucional. O tratamento técnico realizado em 2014 identificou que os materiais que integram este conjunto encontram-se, em sua maioria, em bom estado de conservação, apresentando apenas danos superficiais em gradações diversas. Entretanto, alguns títulos já se encontram em processo de deterioração acética, apresentando a chamada síndrome do vinagre, com diferentes intensidades de danos e, por conseguinte, com possibilidades de intervenção. 334

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O tratamento técnico executado consistiu em higienização, análise do estado de conservação, catalogação aprofundada de todos os materiais, reacondicionamento adequado, medição de acidez de cada rolo e a troca de todos os invólucros, além do desenvolvimento de ferramentas de análise para ações específicas com o acervo. A quase totalidade da coleção fílmica da ABL é composta de filmes no formato curto, com exceção dos títulos sobre a obra de Rachel de Queiroz, todos longas-metragens – Dora Doralina é uma ficção dirigida por Perry Salles; o título Rachel de Queiroz parece ser um documentário inacabado sobre a escritora; e os materiais de O Quinze fazem parte de um projeto de ficção de Augusto Ribeiro Jr., que também não foi finalizado. Por serem registros únicos, podemos considerar que os filmes oriundos das doações de acadêmicos e familiares são os títulos que singularizam a coleção. Entre eles, o maior conjunto é o do acadêmico Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça, que conta com 24 obras. São registros da vida familiar e de sua vida pública, feitos entre a década de 1960 e os últimos anos da década de 1970, nos formatos Super8mm e 16mm. Nessa época, estas bitolas eram utilizadas sobretudo em filmes domésticos e em registros amadores, o que esse conjunto de filmes aparenta ser à primeira vista. Entretanto, o acabamento da maior parte dos títulos é o que mais chama a atenção: os materiais encontram-se montados, a maioria com pista sonora – em som magnético ou ótico –, e alguns apresentam até mesmo créditos de abertura e de fim, características consideradas incomuns para este tipo de registro. Foram localizados os nomes das seguintes produtoras: Fotorama Filmes, Produções de desenhos animados Terrecife e Rali Produções Cinematográficas, todas baseadas em Recife, de acordo com as informações coletadas nos próprios materiais. Em entrevista concedida em maio de 201516, Marcos Vilaça afirma que deve à formação familiar, em especial à sua mãe, Evalda Rodrigues Vilaça, a atenção ao valor da documentação e ao cuidado com a conservação da memória. Segundo ele, sua mãe sempre coletou e colecionou fotografias da família, além de estimular filmagens e gravações sonoras de momentos familiares importantes, tanto da vida privada quanto da pública. Sobre os registros fílmicos, Vilaça recorda que não eram os membros da família que faziam as filmagens, mas sim empresas especializadas que eram contratadas para tal fim. Geralmente realizavam os serviços com uma equipe pequena, de duas a três pessoas, sendo que a família não interferia no resultado final. A exibição dos filmes era circunscrita ao âmbito doméstico, embora tenham ocorrido projeções públicas em alguns momentos da vida de Vilaça. O acadêmico relata que, quando foi presidente da Academia Pernambucana de Letras, alguns trechos dos filmes referentes a este assunto foram exibidos na televisão, em sua cidade natal, em um programa de José de Souza Alencar chamado Hora do Coquetel. O acervo fílmico da ABL ainda conta com outros dois títulos que compartilham essas características: Bar Mitzvá 1976, integrante do Arquivo Arnaldo Niskier, e Funeral do Acadêmico 17/06/75, integrante do Arquivo Ivan Lins. O primeiro título documenta a n.9, 2015, p.327-340

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celebração da cerimônia judaica de passagem para a vida adulta de Celso Niskier, filho de Arnaldo. Já o segundo título registra o funeral do acadêmico Ivan Monteiro de Barros Lins, jornalista, professor, pensador, ensaísta e conferencista. Os dois filmes não têm som, mas estão devidamente montados. É importante notar que esses registros, concebidos inicialmente para permanecerem no contexto doméstico, saíram da esfera do privado para o público quando passaram a integrar o acervo, transformando-se em patrimônio não só da Academia, mas de toda a sociedade. Filmes, independentemente de suas qualidades artísticas e técnicas, são um testemunho de determinado momento histórico. Estigmatizados durante muito tempo como obras secundárias, os filmes domésticos ou amadores vêm adquirindo relevância crescente nas últimas décadas. O aumento de produções audiovisuais que incorporam imagens e sons oriundos desse tipo de registro fez com que o interesse por sua preservação se intensificasse, permitindo que esses filmes passem a ocupar papel importante na produção, na transmissão e na conservação da memória coletiva. Os outros 11 filmes que integram o acervo são de perfil institucional e reúnem, sob o título de Diversos, os registros de cerimônias e eventos acadêmicos, além de contar com obras educativas e biografias produzidas pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), órgão federal criado em 1936 com o intuito de promover e utilizar o cinema como ferramenta educacional. As obras doadas à ABL têm ligação estreita com a instituição e/ou com os acadêmicos, como o título homônimo de 1937, Academia Brasileira de Letras, que registra o 91º aniversário do barão de Ramiz Galvão; uma aula do acadêmico Roquette-Pinto, em Coração físico de Ostwald, de 1942; e biografias de Vicente de Carvalho e Ruy Barbosa. O conjunto desses filmes constitui um acervo precioso e heterogêneo. A Academia Brasileira de Letras teve sensibilidade suficiente para compreender a importância do registro audiovisual como documento histórico e incorporar a preservação destes materiais como uma de suas missões, contribuindo para a salvaguarda do patrimônio audiovisual brasileiro.

Pensando no futuro do acervo A obsolescência de grande parte dos suportes ou de mídias presentes nos arquivos audiovisuais é uma preocupação constante de arquivistas e conservadores. Não basta conservar o suporte visando a salvar seu conteúdo, é preciso também manter a capacidade de leitura e de reprodução do documento. No caso do suporte fotoquímico, com o fechamento de muitos laboratórios especializados ao redor do mundo durante os últimos anos, foi drasticamente reduzida a capacidade de duplicação desses materiais. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Labocine, último laboratório remanescente na cidade, encerrou suas atividades no início deste ano. Em relação ao processo de reprodução e digitalização da coleção fílmica da ABL, a maior parte do acervo é constituída de materiais nos formatos 16mm e Super8, 336

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o que dificulta e torna ainda mais urgente sua duplicação para fins de preservação, além da indispensável migração para outros formatos a fim de permitir o acesso permanente e evitar a manipulação desnecessária das obras originais. No que se refere aos suportes eletrônicos, não é possível garantir a durabilidade dos aparelhos leitores, seja pela descontinuidade de sua produção, seja pela impossibilidade de encontrar peças de reposição quando necessário. A solução adotada é a migração de conteúdos para mídias contemporâneas e a atualização de formatos para versões mais recentes. Essa atualização deve procurar atender a dois objetivos: atualização dos suportes e preservação dos conteúdos. De acordo com Dreer, no artigo Preservação de vídeo para milênios17, “estamos vivenciando não apenas uma mudança em como preservar conteúdo em vídeo, mas também uma mudança nas nossas habilidades enquanto preservacionistas e arquivistas” (DREER, 2014). Dentre as habilidades que precisamos adquirir está a de planejar e executar as ações para a preservação de arquivos digitais. Deve-se avaliar a capacidade institucional para a manutenção das rotinas de preservação necessárias ao armazenamento, a migração e a atualização de hardware/software, uma vez que a preservação digital é dinâmica e requer ações dirigidas constantes. Por capacidade institucional entenda-se que não falamos só de recursos humanos e financeiros, mas também da capacidade de comprometimento com uma política mais ampla de preservação. Analisando o acervo audiovisual da instituição, podemos perceber que a questão da preservação digital tem que abranger dois universos. Um universo é o dos conteúdos produzidos totalmente em meio digital, ou seja, o do documento “nato digital”; e o outro é o dos conteúdos analógicos que serão digitalizados. No nosso caso, a digitalização tem sido feita no próprio arquivo da ABL, de acordo com a demanda dos pesquisadores ou dos setores da própria Academia. A captura digital, quando o documento é textual ou iconográfico, é feita por um escâner, mas, dependendo da finalidade de utilização do representante digital, também pode ser feita por fotografia. Os documentos audiovisuais são digitalizados no próprio Setor de Áudio e Vídeo. Está em fase de elaboração na instituição, e envolve os Setores de Informática, de Áudio e Vídeo e o Arquivo, um programa de Preservação Digital que pretende contemplar tanto os documentos natos digitais quanto os documentos digitalizados, estabelecendo para cada gênero documental padrões e requisitos específicos e já experimentados por outras instituições, que têm o objetivo de garantir a guarda de longo prazo para tais conteúdos. As ações de preservação devem ser integradas e simultâneas, embora reconheça-se que a natureza dos conteúdos analógicos exige uma urgência maior por causa dos problemas apontados anteriormente. Assim sendo, foi iniciada em 2014 uma agenda de atividades visando este último objetivo. O planejamento destas atividades inclui ações para a conversão digital de todas as fitas cassete e fitas-rolo de áudio, dos discos, e a migração das fitas DAT; para a análise do estado de conservação e digitalização das películas filmográficas; e, por fim, para n.9, 2015, p.327-340

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a digitalização das fitas VHS, BETA e U-MATIC. Além de determinar prioridades a partir das mídias, também se leva em consideração a importância ou a raridade do conteúdo. Foi realizado um levantamento no acervo para identificar esses conteúdos e em quais suportes estão contidos, e, a partir de tabelas e de reuniões entre o Arquivo e o Setor de Áudio e Vídeo, foram definidas as prioridades. Assim, o primeiro conjunto a ser contemplado foi o das películas filmográficas. Por ter características muito específicas devido à sua própria constituição e por necessitar de aparato próprio para sua visualização e análise, ficou claro que deveríamos contratar um profissional habilitado que pudesse fazer o correto tratamento técnico das películas e nos orientar quanto aos padrões e as melhores práticas para o processo de digitalização18. Além disso, entre os suportes fílmicos que estão arquivados conosco, conforme citado anteriormente, temos uma série de filmes domésticos ou amadores que se tornaram objetos interessantes e raros por mostrarem um lado mais humano e acessível de alguns imortais. Assim como as atividades da Academia não cessam, seu acervo audiovisual não para de crescer. E para que se possa continuar a exercer devidamente as atividades de organização, conservação e acesso ao material produzido, é necessária a reflexão constante sobre as estratégias utilizadas para o prolongamento da vida desses materiais, que demandam migrações periódicas e, por conseguinte, metodologia e planejamento integrados e dinâmicos. Ademais, a enorme variedade de suportes e de formatos digitais que não param de surgir atualmente, consequência da permanente transformação tecnológica na área audiovisual, obriga-nos a acompanhar de perto as mudanças e a providenciar medidas seguras que visem a preservação destes conteúdos a longo prazo.

Notas 1 A Academia comemora a sua fundação todos os anos a 20 de julho, por ter sido nesta data que, em 1897, deu-se a sessão inaugural. O período que antecedeu este momento foi o das sessões ditas preparatórias, que ocorreram entre 15 de dezembro de 1896 e 28 de janeiro de 1897. Foram realizadas na redação da Revista Brasileira, na Travessa do Ouvidor, 31, no Centro do Rio de Janeiro − endereço geográfica e culturalmente importante para a cidade. Naquele tempo, a Travessa do Ouvidor era o centro difusor das influências da belle époque francesa no Rio de Janeiro. Reunia maisons com variados artigos de moda feminina e masculina, cafés e confeitarias que espalhavam suas mesinhas pelas estreitas calçadas, e as livrarias, que eram redutos de vários escritores. A mais famosa delas era a Garnier, frequentada assídua e pontualmente por Machado de Assis. 2 Formulados por Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Silva Ramos e Inglês

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de Sousa. Apresentados e aprovados na sessão preparatória do dia 28 de janeiro de 1897. 3 Trata-se dos prédios vizinhos ao Petit Trianon, que foram erguidos em terreno contíguo, doado pelo governo brasileiro à ABL em 1967. Neste terreno localizava-se o Pavilhão Inglês, outra construção erguida para a mesma Exposição de 1922. A finalidade da doação era a construção de um novo prédio, para que a Academia tivesse uma sólida base patrimonial. Além disso, o prédio (que acabou virando dois prédios: um com cinco e outro com 30 andares) serviria de local para a promoção da cultura e da memória no país, segundo a visão do presidente Austregésilo de Athayde. 4 A biblioteca a que me refiro é a Biblioteca Rodolfo Garcia, que ocupa o segundo andar do Palácio Austregésilo de Athayde, tendo sido inaugurada em 2005, na presidência de Alberto da Costa e Silva. A outra é a Biblioteca Acadêmica Lúcio

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de Mendonça, que ocupa o segundo andar do Petit Trianon, e foi inaugurada em 1905, sob a presidência de Machado de Assis. 5 Houve uma primeira tentativa de se estruturar um arquivo e se criar o cargo de “archivista” independente das funções do bibliotecário, porém não foi adiante. A proposta, apresentada pelo acadêmico Constâncio Alves, está registrada na ata da sessão do dia 09/12/1926. 6 O Centro de Memória reúne os seguintes setores: o Arquivo Múcio Leão, o Setor de Produção de Áudio e Vídeo, Setor de Museologia, o Núcleo de Conservação Guita Mindlin, a Galeria Manuel Bandeira e o Espaço Machado de Assis.

O arquivista-conservador e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Conde de Albite Silva, foi o encarregado do projeto de revitalização e da adoção das novas rotinas arquivísticas. 7

Segundo o Dicionário de Terminologia Arquivística do Arquivo Nacional, o documento audiovisual diz respeito a um “Gênero documental integrado por documentos que contêm imagens, fixas ou em movimento, e registros sonoros, como filmes e fitas videomagnéticas.” (2005, p. 73)

8

9 Estes dados se referem ao período até maio de 2015. A diferença que se nota entre o número de itens documentais e o número das mídias em que estão registrados deve-se ao fato de o mesmo evento estar gravado em dois ou mais suportes diferentes, por exemplo: a Sessão Ordinária do dia 03/08/2006 foi registrada em duas fitas cassete e, posteriormente, gravada em um CD.

EDMONDSON, Ray. Audiovisual Archiving: Philosophy and Principles. Paris: Commemorating the 25th anniversary of the UNESCO Recommendation for the Safeduarding and Preservation of Moving Images, April 2004. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ images/0013/001364/136477e.pdf 10

A tradução ficou a cargo de Carlos Roberto de Souza, profissional da área audiovisual que trabalhou por longo tempo na Cinemateca Brasileira, onde fez vários estudos sobre cinema e diversas mostras de filmes.

11

Trata-se do filme “O poeta do Castelo”, de 1959, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. Embora não mencionado no texto da ata, esta doação incluía também o filme sobre Gilberto Freyre “ O mestre de Apipucos”, realizado no mesmo ano e pelo mesmo diretor.

12

Atualmente, os dois filmes estão disponíveis no You Tube, podendo ser acessados através dos links: (O poeta do Castelo) e (O mestre de Apipucos). Acessados em 22/05/2015.

13

Denomina-se síndrome do vinagre a deterioração do filme em suporte de acetato de celulose. O processo de degradação química faz com que seja liberado o ácido acético (CH2COOH), que é a base do nosso conhecido “vinagre”, usado na cozinha de casa.

14

Cabe um esclarecimento quanto ao sentido da palavra arquivo utilizada neste parágrafo. Quando houve a revitalização do Arquivo da ABL, em 1997, notou-se que o Arquivo dos Acadêmicos, além de reunir os conjuntos documentais formados por documentos privados e pessoais produzidos, recebidos e acumulados pelos acadêmicos, também reunia outros documentos, artificialmente acumulados pela instituição ou por terceiros em nome do acadêmico. Havia, então, fundos arquivísticos mesclados a coleções de documentos, e um ou outro. A solução proposta na época tinha o objetivo de não fragmentar ou desvalorizar os conjuntos documentais. Em vista disso, todos estes conjuntos receberam a denominação maior de arquivo, tanto para fundos quanto para coleções, seguidos do nome do acadêmico titular como referência. Assim, quando nos referimos ao Arquivo do Acadêmico X, podemos estar nos referindo a um fundo, a uma coleção ou aos dois juntos.

15

Esta entrevista foi concedida especialmente para a elaboração deste artigo à equipe do Arquivo da Academia Brasileira de Letras: Maria Oliveira, chefe do Arquivo, Ana Renata Tartaglia, coordenadora do Arquivo Institucional, e Débora Butruce, profissional da área de preservação audiovisual.

16

Este texto é uma tradução do original Video Preservation for the Millennia, de Linda Tadic. A tradução de Marco Dreer está disponível em: Acessado em 22/05/2015.

17

O tratamento técnico das películas cinematográficas foi realizado pela especialista em preservação audiovisual Débora Butruce.

18

Referências Bibliográficas ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Estatutos e regimento interno. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004, p.46. _________. Livros de atas das sessões da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1960. n.9, 2015, p.327-340

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ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 232. (Publicações Técnicas, 41) BROCA, Brito. A vida literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: José Olympio e Academia Brasileira de Letras, 2004, p. 406. BLANK, Thais. Políticas e estratégias de patrimonialização do cinema amador e familar. Revista Laika, dossiê Pensar o cinema amador, São Paulo, volume 2, número 4, pp. 1-20, dez. 2013. DREER, Marco. Preservação de vídeo para milênios. VIA78, set. 2014. Disponível em: Acesso em: 22/05/2015. EDMONDSON, Ray. Filosofia e princípios da arquivística audiovisual. Tradução de Carlos Roberto de Souza. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2013, p. 224. LEE, Anna. O sorriso da sociedade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 203. MENDES, Monique e AMPARO, Flávia (orgs.). Anuário 2007 - 2011. Academia Brasileira de Letras: Rio de Janeiro, 2011, p.766. MOLINARI JÚNIOR, Clóvis. Parecer Técnico. Academia Brasileira de Letras, Centro de Memória, Arquivo. Rio de Janeiro, 1998. (Documento Interno). SILVA, Sérgio Conde de Albite (org.). Arquivo dos acadêmicos: guia geral. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2003, p. 232. ________. Proposta de conservação e de apresentação em sessão especial do acervo de filmes do arquivo do Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras. Academia Brasileira de Letras, Centro de Memória, Arquivo. Rio de Janeiro, 1998. (Documento Interno). Recebido em 10/07/2015 Aprovado em 30/07/2015

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A PRESENÇA DA PATHÉ-BABY NO RIO DE JANEIRO E A COLEÇÃO PASCHOAL NARDONE NO ACERVO DO AGCRJ

A presença da Pathé-Baby no Rio de Janeiro e a coleção Paschoal Nardone no acervo do AGCRJ The presence of Pathé-Baby in Rio de Janeiro and the Paschoal Nardone collection in the AGCRJ archive Lila Foster Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) [email protected]

Roberto Souza Leão Mestre em Estudos do Cinema e do Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Coordenador do Setor Audiovisual do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) [email protected]

RESUMO: No começo dos anos 1920, a empresa Pathé-Frères lançou no mercado francês a sua linha de equipamentos para o cinema no lar: o projetor e a câmera PathéBaby. Esta nova tecnologia de reprodução e captação de imagens em movimento, com características mais acessíveis de processamento e de comercialização, permitiu o surgimento de uma rede de cineastas amadores. No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro se tornou polo de uma série de atividades que consolidaram tal cultura. Partindo da presença da empresa Pathé-Baby no Rio de Janeiro, das colunas amadoras publicadas na revista Cinearte e da coleção de filmes do cinegrafista Paschoal Nardone, integrante da coleção audiovisual do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, o presente artigo delineará um breve cenário do cineamadorismo no Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930. Palavras-chave: Cinema amador, Rio de Janeiro, Pathé-Baby.

n.9, 2015, p.341-353

ABSTRACT: In the early 1920s, the PathéFrères company released in the French market a line of equipment for home cinema: the Pathé-Baby projector and camera. This new technology for moving images recording and reproduction, more affordable and easier to commercialize, allowed the emergence of a network of amateur filmmakers. In Brazil, the city of Rio de Janeiro became the hub of a series of activities to consolidate such a culture. Starting with the presence of Pathé-Baby in Rio de Janeiro, plus the amateur columns published on Cinearte magazine and the collection of films by cinematographer Paschoal Nardone, -- which takes part in the audiovisual collection of the General Archive of the City of Rio de Janeiro, -- this article will outline a brief overview of the amateur cinema in Rio de Janeiro in the 1920s and 30s. Keywords: Amateur Cinema, Rio de Janeiro, Pathé-Baby.

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o início dos anos 1920, a fotografia já fazia parte da cultura visual carioca. Publicadas em jornais e ocupando as paredes de famílias ricas e pobres, as fotografias estavam presentes na esfera pública e privada, registrando o presente para o uso imediato em jornais ou compondo álbuns de famílias feitos para sobreviverem ao tempo. Uma atividade que no início do século era realizada por amadores/artesãos1, na década de 1920 a cidade já contava com uma boa estrutura técnica e comercial para o desenvolvimento da prática fotográfica. Um conjunto de lojas de artigos especializados, fornecedores de produtos químicos, venda de filme virgem, serviços de revelação, estúdios e os famosos lambe-lambes permitiram um amplo acesso da prática fotográfica para profissionais e amadores. Na época, companhias estrangeiras como Ernemann, Kodak, Lutz, Goerz, Pathé e Gevaert já tinham suas representações comerciais instaladas no Centro da cidade, estabelecendo o Rio de Janeiro como um importante polo de comercialização da indústria fotográfica no Brasil (MAUAD, 1990). Em termos culturais, a massificação da imagem captada mecanicamente significou a entrada em um regime moderno de visualidade, mesmo que periférico, um olhar mediado pela técnica, o registro do fato, os instantâneos, a captação do real e a velocidade da comunicação visual. A apreensão da técnica fotográfica vinha acompanhada de uma sensação de atualização até os tempos modernos. Na década de 1920, a presença das câmeras não era mais uma novidade, assim como o seu uso entre o público não profissional. Algo novo, porém, surgiu em 1922: a cinematografia para amadores. A cultura cineamadora, iniciada nessa década, instaurou uma nova cultura visual, em franco diálogo com a fotografia, mas com novas feições. Mais que um mero desenvolvimento da fotografia familiar, o cineamadorismo configurou-se como uma nova possibilidade para a feitura de filmes em um país cuja economia cinematográfica era ainda incipiente, e o Rio de Janeiro foi a sede de uma série de atividades que consolidaram essa cultura no Brasil. A cidade foi personagem de filmes produzidos por pessoas interessadas em registrar os eventos locais como “correspondentes amadores”, atentos ao fato e ao impacto causado pela projeção desses filmes-evento em sessões privadas. O surgimento de um circuito cineamador permitiu que ambições cinematográficas fossem postas em prática pelos interessados em apreender e praticar a linguagem que dominava o imaginário local, incentivado, principalmente, pelas revistas ilustradas: o filme narrativo norte-americano e o seu poderoso star system hollywoodiano. No âmbito doméstico, o dia a dia das famílias cariocas foi captado em filmes rodados por encomenda ou feitos por pais de família que podiam arcar com os altos custos dos equipamentos na época. Uma pequena mudança de formato conferindo praticidade na manipulação das câmeras, a tecnologia introduzida no mercado pela Pathé reorganizou alguns padrões de consumo de filme. O cinema doméstico era um sistema que compreendia não somente a feitura de filmes, mas a projeção de títulos que compunham o catálogo Pathé, cópias reduzidas de filmes de sucesso, como as comédias de Harold Lloyd e Charlie Chaplin, cinejornais, animações. Os

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catálogos eram vastos, levando a experiência do cinema para as salas de estar, criando assim um espaço alternativo de exibição. Como veremos, a coleção de filmes Paschoal Nardone espelha as variadas formas de produção amadora no período e é um dos raros registros no formato Pathé-Baby (9.5mm) preservados até hoje. Um universo pouco explorado pela historiografia, buscaremos delinear aqui o surgimento da cultura cineamadora no Rio de Janeiro a partir de diversas fontes e perspectivas − a história tecnológica, as revistas ilustradas, atas comerciais e filmes amadores − variedade que também reflete a diversidade da produção e dos ideários envolvidos na prática amadora no período. Partindo da presença da empresa Pathé-Baby no Rio de Janeiro, das colunas amadoras publicadas na revista Cinearte e da coleção de filmes do cinegrafista Paschoal Nardone, integrante da coleção audiovisual do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, comporemos um breve cenário da cultura cineamadora no Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930.

O surgimento da cinematografia para amadores Ontem, a fotografia. Hoje, a cinematografia. Sem conhecimentos especiais. Sem instalação especial. O cinema familiar encanta as crianças. Interessa aos pais. O presente ideal. (Propaganda da câmera Pathé-Baby no Correio da Manhã, 27 de dezembro de 1927)

Assim como a busca por novos mercados catapultou o desenvolvimento tecnológico que possibilitou a simplificação dos processos fotográficos e a disseminação da fotografia, o mesmo aconteceu com o cinema. Durante os anos 1910, a cinematografia para amadores evoluiu em ritmo e formatos variados. Diversos aparelhos e formatos surgiram no período, mas nenhum deles alcançou amplo sucesso comercial, devido, principalmente, aos altos custos da produção do filme em suporte de acetato de celulose2 e aos custos elevados da feitura de cópias. A empresa Pathé Frères teve importância fundamental na sedimentação e na ampliação do nicho amador. No final da Primeira Guerra Mundial, a empresa francesa, que até então dominava o mercado de produção e locação de filmes em escala mundial3, perdeu sua hegemonia no ramo de distribuição e de produção, e parte em busca de novos campos de exploração comercial; o desenvolvimento do cinema doméstico passou a ser uma prioridade. A Pathé investe em uma série de desenvolvimentos tecnológicos que permitiriam o uso mais seguro do filme no ambiente doméstico, como a produção em larga escala da película no formato acetato de celulose (o safety film) e a utilização do filme reversível, que suprimia a necessidade da feitura de cópias a partir de um negativo original, barateando assim todo o processo (PINEL, 1994). n.9, 2015, p.341-353

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Foi somente no começo da década de 1920, portanto, que o cinema amador/doméstico se tornou uma realidade mais concreta para um público de massa. No Natal de 1922, na França, foi lançado o projetor Pathé-Baby, um equipamento de tamanho reduzido no formato 9.5mm, e em 1924, a câmera do mesmo formato chegou ao mercado. Em termos administrativos, a comercialização do sistema Pathé-Baby, que incluía a locação de filmes, comercialização de equipamentos, venda e processamento de película, passou a ser feita por empresas subsidiárias da matriz Pathé Cinéma, com representantes em diversos países, incluindo o Brasil. A Société Franco-Brésilienne du Pathé Baby foi criada no dia 5 de setembro de 1923, em Paris, e dois meses depois, o Diário Oficial da União, por meio do decreto nº 16.218 de 28 de novembro, anunciou a concessão de autorização para funcionamento da sociedade anônima no Brasil. No princípio, algumas demonstrações diárias e gratuitas do novo equipamento de projeção eram realizadas na Rua Uruguaiana, 9, um sobrado no Rio de Janeiro, e na Avenida 15 de Novembro, 473, em Petrópolis4. A seção de vendas instalada na Rua Rodrigo Silva, 36, na capital carioca, centralizou os serviços de demonstração, revelação de película e venda de equipamentos. Pelas propagandas do sistema Pathé-Baby, publicadas em revistas ilustradas como A Scena Muda e Cinearte, fica evidente o ideal de produção incentivado pelos departamentos de marketing: o cinema amador como um prolongamento da fotografia de família, um registro da harmonia familiar, dos tempos de férias e do crescimento dos filhos. O ideário familiar, no entanto, era somente uma das facetas da produção amadora. Junto com a comercialização dos equipamentos, surge no mercado editorial uma série de catálogos, publicações especializadas e revistas de cineclubes internacionais, fontes de informação que circularam, mesmo que de forma reduzida, entre os amantes da cinematografia, cumprindo um papel educativo. Atenta a esse novo público, a revista Cinearte publica, desde a sua primeira edição, colunas dedicadas ao amador interessado em cinematografia. Uma importante revista ilustrada do período, Cinearte foi publicada entre 1926 e 1942, e tinha distribuição nacional. Dedicada ao cinema norte-americano, suas páginas eram recheadas de fotos e fofocas sobre atores e atrizes de sucesso, materiais estes enviados pelos departamentos de marketing de grandes estúdios, como Fox e Paramount. Ao cinema brasileiro também eram dedicados textos de divulgação e análise da conjuntura do meio cinematográfico, muitos deles com fortes críticas à produção local, em grande parte constituída de filmes documentais de encomenda, os denominados filmes de cavação. Contra esses filmes de cavação, os redatores defendiam um cinema brasileiro feito nos moldes hollywoodianos. O domínio da técnica narrativa e da estrutura dos estúdios norte-americanos era o caminho desejado para o progresso do cinema nacional. As primeiras colunas dedicadas ao cinema amador tinham perfil técnico e eram intituladas Um pouco de técnica. Suas páginas traziam receituário para revelação de filmes e informações sobre as câmeras disponíveis no mercado, e nelas os equipamentos Pathé tinham 344

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Cinearte, v.03, n.147,1928. n.9, 2015, p.341-353

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grande destaque. Os textos publicados eram basicamente artigos traduzidos de manuais estrangeiros, sendo que, aos poucos, a coluna assume uma voz e defende de forma mais clara o seu ideário em relação ao cinema amador. O grande responsável por essa mudança foi o redator Sérgio Barreto Filho, que assinou as colunas O desenvolvimento do cinema de amadores em nosso país e Cinema de Amadores entre 1928 e 1933. Sérgio Barreto Filho defendia o mesmo ideário de Cinearte. Para o redator, a prática amadora compromissada devia ir além da simples filmagem de família: a apreensão bemsucedida do código narrativo contribuiria fortemente para a melhoria da produção e para a consolidação de uma indústria nacional. Seus textos eram um incentivo para que os fãs e leitores assíduos da Cinearte se aventurassem na produção de ficções à la Hollywood, um ideal de produção que misturava a admiração pelo cinema norte-americano e o apreço pela técnica a um ideal nacionalista: “Amadores a princípio, profissionais daqui a pouco, industriais por fim. É uma indústria, e que indústria!” (FILHO, 1929). Incentivados por esse ideal, amadores de todo o Brasil mandaram cartas, criaram associações e enviaram fotos de filmagens que eram recebidas com grande empolgação. No Rio, foram criados grupos em Bangu, em Pilares (Amadores Brasileiros Cinematográficos,

A Scena Muda, v.03, n.152, 1924. 346

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18/12/1929), no Méier (Sociedade Cinematográfica de Amadores, 07/11/1931), na Tijuca (Berrylus Film) e em Niterói. Dentre os equipamentos mais utilizados estava a câmera Pathé-Baby. Polo centralizador de informações, Sérgio Barreto também atuou como cronista das atividades que aconteciam na cidade e de tudo que envolvia o cineamadorismo. Por ocasião da visita do Graf Zepellin ao Rio de Janeiro, em maio de 1930, o redator narra a agitação para capturar a chegada do dirigível alemão. A venda de filme virgem para fotografia e câmeras de cinema havia superado todas as expectativas. Com os filmes em mãos, restava aos amadores se posicionarem bem para a chegada do dirigível à cidade. A falta de notícias seguras sobre a descida do dirigível no Rio de Janeiro vem dificultar aos que desejavam apanhar vista do pouso da grande nave aérea lá no Campo dos Affonsos. As vistas, porém, das evoluções que se realizaram sobre a cidade, essas todos os amadores obtiveram. Não deixaram de ocorrer, porém, certas dificuldades (...) O Graf Zepellin entrou por sobre a barra a dentro, exatamente às seis horas e quarenta e cinco minutos. As nossas noites são agora frias. E embora o nosso sol nasça cedo, a hora em que a aeronave alemã surgiu pela primeira vez sobre a terra carioca, ainda aquela neblina da noite de sábado não se tinha dissipado. Conhecese a dificuldade com que lutaram os amadores para poderem gravar no seu filme a visita do dirigível alemão. (...) A princípio desanimados, visto que muitos estavam até roncando, os amadores do filme de reportagem esperaram por momentos mais favoráveis. Estes, afinal, chegaram. (FILHO, 1930, v.5, n.224, p.21)

A estrutura comercial disponível na cidade para atendimento do público amador também era alvo de críticas e elogios. A Casa Lutz foi criticada pelo seu péssimo serviço de atendimento. A Société Franco-Brésilienne du Pathé Baby, por outro lado, recebeu elogios e atenção especial. A proximidade entre o redator e os funcionários da casa pode ser facilmente percebida no anúncio da saída do gerente F. Nicout: “foi uma perda para os amadores, porque Nicout era muito estimado e se distinguia principalmente pela bondade com que tratava todos. Ao antigo gerente, a Cinearte deseja muitas prosperidades no seu novo negócio”. Substituído por outro francês, R. Gadin, diversas atividades são desenvolvidas em conjunto com os funcionários da casa, uma estratégia de marketing evidente para a difusão dos equipamentos franceses. São nas notícias dedicadas à Pathé que encontramos informações sobre Paschoal Nardone, laboratorista e funcionário da casa. Na coluna do dia 29 de Janeiro de 1930, Sérgio Barreto Filho elogia o trabalho laboratorial executado por Nardone. As notas sobre o casamento de Ruy Galvão e Glória Santos, atores e produtores do filme “Meu primeiro amor!”, dizem que a Casa Pathé presenteou o casal com um filme de casamento. Paschoal Nardone foi o cameraman convocado para a ocasião: É-me impossível deixar de apontar aqui o cavalheirismo do Sr. R.Gadin, presidente da Casa Pathé. Quando a Pathé soube que no dia 26 o diretor de um filme brasileiro ia

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casar-se com a própria estrela do filme, encarregou o chefe dos laboratórios Pathé de filmar toda a cerimônia. Esse chefe dos laboratórios já foi apresentado aos amadores pela nossa seção e por mim mesmo. É o Paschoal. Embora no dia 26 o nosso amigo tivesse já um compromisso, antes das 4 horas lá se achava presente o Paschoal com outra motocâmera ao lado, vários chassis, e uma objetiva Zeiss de primeira ordem. (...) Ao sair, reconduzindo o Paschoal as laboratórios, lembrei-me de agradecer a Monsieur Gadin a gentileza da Casa Pathé. Depois de revelado, cortado, colado e enrolado numa bobina de 100 metros, o filme será oferecido ao Ruy Galvão. Ruy terá o seu casamento para mostrar a filhos e netos (FILHO, 1930, v.5, n.220, p.9)

Filho dos imigrantes italianos Natale e Concetta Nardone, Paschoal Nardone nasceu no Rio de Janeiro em 7 de agosto de 1896. Trabalhou em uma joalheria antes de assumir o cargo técnico na firma Pathé. No início dos anos 1980, a coleção de filmes de Nardone foi recolhida pelo pesquisador Fernando Campos e depositada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Um trabalho de catalogação inicial dos 123 rolos em 9.5mm foi realizado, em 2013, pela equipe do arquivo, um primeiro olhar para este acervo que permitiu a identificação de filmes ficcionais, filmes de família e registros de eventos públicos. Segundo Fernando Campos, que na época era funcionário do setor iconográfico da referida instituição, a transferência dos filmes foi quase acidental. Um dos familiares de Paschoal Nardone comentou que havia um conjunto de filmes antigos guardado num sobrado na Rua do Matoso, no bairro da Tijuca. Esses filmes seriam de um parente que tinha como hobby fazer registros domésticos. O interesse do pesquisador pela história do cinema brasileiro das primeiras décadas do século XX despertou sua atenção para esse material raro. Certo de que, fatalmente, esses filmes seriam descartados pela família, Fernando Campos intermediou a transferência para os depósitos do AGCRJ. Esse recolhimento não foi registrado pela instituição, o que aumenta ainda mais as lacunas na reconstrução do histórico desse material. As únicas fontes de consulta encontradas na documentação do AGCRJ indicam a transferência desses rolos para a Embrafilme. Em 1982, o AGCRJ não dispunha de um depósito climatizado que pudesse proporcionar condições adequadas de temperatura e umidade para os rolos de filmes. Assim, o acervo de películas cinematográficas foi transferido para a antiga Embrafilme, que posteriormente se tornaria o Centro Técnico Audiovisual (CTAv), e lá permaneceu por 30 anos em guarda temporária. Somente após a reestruturação do sistema de climatização e a modernização dos depósitos, em 2007, o AGCRJ pôde reaver esse material e iniciar um projeto sistemático de tratamento. A partir de 2013, com a criação do setor de preservação audiovisual, iniciou-se o trabalho de catalogação dos 123 rolos em 9.5mm que compõem a coleção. De modo geral, filmes em bitolas menores, como 9.5mm, 8mm e Super-8, tendem a ser relegados a segundo plano em acervos audiovisuais, principalmente pela dificuldade de reprodução dessas bitolas. No caso específico dos filmes domésticos, a falta de informações acerca dos depositantes e das pessoas retratadas torna a catalogação desses materiais uma 348

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tarefa bastante complexa. Outro complicador era o fato de não haver, no momento da transferência do material, um catálogo ou uma listagem de títulos que descrevessem a coleção, apenas um quantitativo de latas e rolos. A necessidade de delinear contornos mais definidos para a coleção motivou a primeira incursão a esse universo até então desconhecido. Mesmo diante da fragilidade de alguns materiais, optou-se pela abertura dos rolos que estavam ressecados, mas sem desprendimento de emulsão. Os rolos foram incorporados, catalogados, e receberam um novo acondicionamento5. Esse trabalho foi feito com o uso de uma mesa enroladeira manual, permitindo a anotação dos letreiros e a atribuição de títulos. No caso dos filmes de família amadores, que muitas vezes não têm letreiros, os títulos foram atribuídos de acordo com o conteúdo das imagens. O trabalho acima descrito permitiu uma radiografia inicial da coleção e a identificação de imagens e de títulos raros, revelando a coleção como um importante documento sobre a história dos registros domésticos no início do século XX e da própria história da cidade do Rio de Janeiro. Um primeiro olhar para esse acervo identificou categorias comuns aos filmes produzidos e projetados em ambientes domésticos, como filmes ficcionais e documentais, filmes de família e registros de eventos públicos6. Diante da variedade da produção e da ausência de informações complementares, não é possível dizer se todas essas imagens foram feitas pelo próprio Paschoal Nardone ou se esses rolos pertenciam ao espólio da Pathé-Baby, posteriormente recolhido e guardado pelo ex-funcionário. Mesmo sem termos clareza quanto à autoria das imagens, a análise de alguns rolos permitiu identificar lugares e delimitar um eixo temporal que balizou essa análise inicial. Considerando as datas dos eventos públicos registrados, que incluem obras de reurbanização da cidade do Rio de Janeiro e a chegada do novo cardeal da cidade, podemos inferir que as imagens foram captadas em um período que se estende da metade da década de 1920 até o ano de 1930. Os filmes ficcionais e documentais identificados incluem três títulos: Amor Sertanejo, Copacabana e Punhal Malaio. Os dois primeiros foram preservados na íntegra, e do terceiro, somente pequenos trechos. O principal traço distintivo desta categoria é a presença de edição final e acabamento com cartelas, letreiros e intertítulos indicando atores e diálogos. Tais informações permitiram a compreensão do encadeamento narrativo de Amor Sertanejo, cujos personagens são descritos nos créditos iniciais. O filme conta a história da paixão não correspondida de José por Maria, que é apaixonada por Paulo. Em um ataque de raiva, José mata o rival, acaba preso e sem o amor de Maria. O rolo de Punhal Malaio não possui muitas informações devido à perda de emulsão do rolo. Poucos fotogramas podem ser identificados, entre eles a cartela de título e a indicação de que se trata da segunda parte do filme. Copacabana apresenta nos créditos a inscrição de autoria de Paulo MacDowell. Pelas características do rolo, parece tratar-se de um registro documental da calçada do Copacabana Palace, com um pequeno fluxo de automóveis. n.9, 2015, p.341-353

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Com letreiros em português, esses títulos poderiam ser versões brasileiras de filmes que faziam parte da filmoteca Pathé-Baby. No entanto, não foram encontrados quaisquer registros de filmes nacionais ou estrangeiros com esses títulos. Como são filmes que trazem lugares e temas nacionais, outra hipótese é que poderiam ser filmes produzidos por amadores brasileiros finalizados com intertítulos nos laboratórios de Nardone. O segundo conjunto de rolos é composto de registros de eventos familiares nos mais diversos formatos, entremeados com trechos de filmes do catálogo Pathé. Em um rolo, cenas de uma família em uma casa de campo são acompanhadas de outras imagens de uma das comédias de Harold Lloyd e Bebe Daniels7. Intertítulos descrevem como uma mulher jovem, interpretada pela atriz Bebe Daniels, foi arremessada para as margens do Mar Vermelho. Em outra cartela, narra-se a chegada ao país de um arqueólogo de nome Harold e seu secretário. Essas duas ações são seguidas do último intertítulo legível do rolo, onde identificamos uma fala do secretário ao arqueólogo: “Vamos, patrão! Já chegamos! Pode descer”. Outros rolos não apresentam cartelas de títulos que possibilitem uma identificação plena dos conteúdos captados. Esses rolos tiveram seus títulos atribuídos a partir da identificação das ações observadas nos fotogramas, mas não foi possível um avanço dessa identificação, dadas as já mencionadas lacunas no processo de incorporação do acervo. Assim como o restante da coleção, não se pode aferir que essas imagens sejam da família de Paschoal Nardone. Contudo, foi possível observar a recorrência de registros descontraídos do cotidiano e de afazeres banais que, em certa medida, são representações do uso recreativo das câmeras Pathé-Baby. Crianças brincando em um quintal, Um homem fumando na varanda ou Uma senhora ao lado de uma mulher e criança, Homens, mulheres e crianças posando para câmera são títulos que não dão detalhes quanto à origem dos materiais, mas condensam o impulso de preservar em imagens eventos cotidianos. Mesmo com essas lacunas, em alguns filmes é possível identificar eventos mais marcantes, como casamentos – possivelmente a já citada cerimônia de casamento entre os atores Ruy Galvão e Glória Santos, relatado na coluna de Sérgio Barreto Filho, em Cinearte –, paradas militares e outras cerimônias religiosas. Existe uma recorrência de algumas imagens nos rolos, mas não é possível estabelecer uma unidade ou conexão entre os eventos registrados. Em pelo menos um caso, essa unidade espaço-temporal pode ser notada em diferentes rolos. Em um rolo, uma senhora aparece ao lado de uma mulher e uma criança, o que a princípio parece mostrar três gerações de uma mesma família. Em outro rolo, podemos identificar a mesma senhora, agora sem a criança em seu colo. No terceiro conjunto, destaca-se uma série de registros de eventos públicos, onde podemos identificar o carnaval e diversos lugares da cidade do Rio de Janeiro. Em um pequeno filme, crianças, mulheres e homens fantasiados brincam pelas ruas da cidade do Rio entre blocos e corsos. A irreverência das fantasias revela-se em placa segurada por um dos foliões, rodeado por jovens e crianças fantasiadas de nobres e plebeus, onde se lê “Morte ao Rei”. 350

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Títulos como As obras de remodelação do Largo da Carioca, A Chegada de Dom Sebastião Leme, A procissão de Nossa Senhora da Salete, Ressaca acontecida no Rio de Janeiro em Julho de 1925 e Festa da milagrosa Senhora da Penha merecem atenção por revelarem lugares específicos da cidade, oferecendo pistas de que Paschoal Nardone registrou eventos em vários bairros do Rio de Janeiro, não se restringindo à já conhecida paisagem da Zona Sul da cidade. Quase todos os títulos tinham letreiros no início dos rolos, indicando um material editado e finalizado. Outros, como Câmara dos Vereadores, Arredores da Avenida Central ou Casa Magalhães em Inhaúma, traziam anotações nas pontas dos rolos, únicas fontes para identificação do material. As filmagens de procissões e eventos católicos não se limitavam ao perímetro central do Rio de Janeiro. A procissão de Nossa Senhora da Salete, realizada em 1929, mostra imagens da região do Catumbi, onde está localizada a referida igreja. Da mesma forma, A festa da Milagrosa Senhora da Penha mostra uma paisagem ainda mais desconhecida da cidade do Rio de Janeiro, principalmente na época em questão: os registros dos subúrbios da cidade. Alguns aspectos devem ser observados nesta terceira categoria de filmes. O primeiro é a existência de pelo menos três eventos bastante conhecidos na história do Rio de Janeiro. Um deles é a famosa ressaca de 1925 − cujas filmagens realizadas por Paulo Botelho são dadas como perdidas pela Cinemateca Brasileira. O que se conhece dessas imagens são basicamente fotos do momento da ressaca. Nesses registros, é possível observar os estragos da ressaca feitos na Praia do Flamengo, no trecho em frente ao Hotel Glória, e numa casa nos arredores. Já A chegada de Sua Excelência Dom Sebastião Leme ao Rio de Janeiro mostra a carreata que apresentou o novo arcebispo, sucessor do cardeal Arcoverde, à população do Rio de Janeiro. São momentos importantes da história da cidade e do Brasil que coincidem com o período pré-Revolução de 1930. É possível identificar no rolo que o cortejo segue pela Avenida Central, paralela à rua onde se localizava a sede da empresa Pathé. Essa proximidade talvez tenha facilitado alguns dos registros importantes da coleção, como, por exemplo, As obras municipaes de remodelação do Largo da Carioca, onde é possível ver raras imagens em movimento do desmanche do morro do Castelo e a abertura da Avenida Beira-Mar. Iniciado em 1921 pelo prefeito Carlos Sampaio, seu processo se estendeu até o fim da década. As cartelas indicam o uso de “possantes escavadeiras” fazendo o carregamento do aterro e as igualmente “possantes bombas hydraulicas”, demonstrando o rápido andamento das obras municipais para a abertura da Avenida Beira-Mar. Essas cartelas presentes nos registros feitos por Paschoal Nardone poderiam perfeitamente ser entendidas como uma celebração do progresso, o triunfo do projeto civilizador. No entanto, um cidadão fantasiado carregando uma placa com os dizeres “Antonico8, espanta-me daqui esse bode que está me incomodando” mostra a trupe dos descontentes com os transtornos causados pelas obras. De certa forma, esses dois registros e a própria localização da firma Pathé em uma das ruas adjacentes à Avenida Central simbolizam os novos rumos do projeto de reurbanização n.9, 2015, p.341-353

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iniciado na cidade anos antes. Gradativamente, a cidade, outrora caracterizada pelas estreitas vielas, aderia a um modelo civilizador inspirado por um projeto urbanístico europeu. Nada mais adequado que essas grandes transformações fossem também registradas pelas câmeras cinematográficas. A tecnologia utilizada por Paschoal Nardone não exigia do usuário um conhecimento técnico apurado e dispensava o uso de uma aparelhagem complexa. A introdução dessa cinematografia para amadores reconfigurou a cultura visual, disseminando a prática de captação de imagens em movimento para uma escala cada vez maior de pessoas. De certa forma, o surgimento das câmeras Pathé-Baby integra uma espécie de genealogia dos registros domésticos, que compreendem o uso de diferentes tecnologias ao longo dos anos, como as câmeras Super-8 na década de 1970, as camcorders e as fitas magnéticas nos anos 1980, e os registros contemporâneos feitos via smartphones, na atual cultura digital. Hoje, as transformações urbanas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro estão ao alcance de milhares de documentaristas em potencial. Recuperar e disponibilizar as imagens de Paschoal Nardone para o público, em certa medida fecha este ciclo, tornando o acesso a essas imagens objeto de pesquisa, estudo e conhecimento. É difícil imaginar que essas imagens possam ter sobrevivido, dado o histórico trágico da preservação audiovisual no país. A grande maioria dos filmes desse período se perdeu. Pensar que os filmes amadores dessas primeiras décadas possam ter sido preservados é quase um milagre. Nesse sentido, a descoberta de uma coleção de filmes em 9.5 mm de Paschoal Nardone, no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, torna-se motivo de celebração. Notas 1 Entre 1840 e 1900, “a profissão de fotógrafo era bastante valorizada pelo caráter artesanal e artístico que eles imprimiam ao seu trabalho e, principalmente, porque a maior parte do material utilizado na confecção dos clichês era feito pelos próprios fotógrafos. Aos poucos, no entanto, o processo fotográfico industrializou-se, e o fotógrafo deixou de confeccionar o seu material de trabalho, uma vez que poderia ser adquirido nas recém-inauguradas casas comerciais de material fotográfico, reservando-se, somente, bater a chapa e revelá-la” (MAUAD: 1990). 2 O filme padrão, utilizado pelo cinema comercial, era o 35mm com suporte de nitrato de celulose, material extremamente inflamável e que entrava em autocombustão quando exposto a altas temperaturas. As cabines de projeção dos cinemas comerciais contavam com estruturas para prevenção de incêndio, um sistema inviável para o uso do filme em ambientes domésticos. Era necessário, portanto, desenvolver filmes e equipamentos seguros para o lar. O desenvolvimento do filme em acetato de celulose, o chamado safety film, foi o que permitiu

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a criação de um sistema para filmagem e projeção doméstica. 3 No Brasil, a empresa Marc Ferrez e Filhos foi representante nacional da Pathé Frères no ramo de distribuição de filmes e venda de equipamentos profissionais. 4

In: Correio da Manhã, 5 de fevereiro de 1924.

Geralmente, em um arquivo de filmes, as etapas de revisão e catalogação acontecem em momentos distintos. No entanto, dada a já mencionada ausência de equipamentos de reprodução, optouse por catalogar os filmes no momento da revisão, a fim de se extrair o máximo de informações no primeiro contato com os filmes. 5

6 Uma diferença importante entre essas categorias é o fato de o material estar finalizado ou não. Alguns materiais que constituem a coleção são fragmentos ou materiais brutos que não passaram pelo processo de montagem. Outros são filmes no sentido estrito do termo, com montagem e cartelas. Filmes de família, por exemplo, na maioria dos casos não passaram por um processo de

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finalização. São registros, muitas vezes incoerentes em sua estrutura, capturando tempos diferentes, com irregularidades na qualidade da filmagem e sem letreiros.

8 Suspeita-se que a faixa seja uma alusão ao prefeito do Distrito Federal, Antônio da Silva Prado Júnior, que ficou no cargo entre 1926-1930.

7 A Pathé foi a distribuidora de uma série de filmes do comediante Harold Lloyd, dirigidos por Hal Roach e coestrelados por Bebe Daniels.

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LIA FOSTER, ROBERTO SOUZA LEÃO

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Cerejeiras em Ipanema, 1968 Cherry Blossoms in Ipanema, 1968 Reinaldo Cotia Braga Ator e pesquisador teatral [email protected]

RESUMO: O Artigo desenvolve algumas reflexões sobre a contribuição da obra cenográfica de Marcos Flaksman no Teatro Ipanema, na ocasião de sua inauguração com a peça “O Jardim das Cerejeiras” de Anton Tchekhov, em 9 de outubro de 1968. Nesta montagem teatral investigamos a participação do Cenógrafo no contexto da linguagem de encenação e a participação como co-autor do Espetáculo do ponto de vista do espectador/ fruidor da obra bem como os fenômenos de espectação levando em conta o momento histórico, político e cultural brasileiro a partir do Ato Institucional Nº 5. Palavras-chave: Teatro Ipanema, Cenografia, Tchekhov, Kalma Murtinho, Ivan de Albuqueque, Jardim das Cerejeiras.

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ABSTRACT: The article poses some reflections on the contribution of Scenographer Marcos Flaksman and his set designing in Teatro Ipanema, at the time of its opening with Anton Chekhov’s play “The Cherry Orchard”, on October 9th 1968. We investigate the role of the Scenographer in the context of the mise en scène language and his participation as coauthor of the Spectacle from the viewpoint of the spectator/appreciator of the work, as well as the phenomena of the spectatorship, taking into account the Brazilian historical, political, and cultural moment, after the Institutional Act #5. Keywords: Teatro Ipanema, Scenography, Chekhov, Kalma Murtinho, Ivan de Albuqueque, The Cherry Orchard.

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CEREJAS... − Quem desconhece a angustiosa espera diante / do palco sombrio do próprio coração? Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário / de um adeus. Fácil de compreender. O jardim habitual a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino. / Ele não. Basta. E enquanto se move com desenvoltura, muda de aspecto; torna-se um burguês./ E entra na casa pela porta da cozinha. Não quero essas máscaras ocas, prefiro / o boneco de corpo cheio. Susterei o títere, os cordéis e o rosto / feito de aparência. Estou aqui, à espera. Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda / que me digam: “acabou-se”,- ainda que do palco se evole o vácuo na corrente de ar cinzento, / ainda que os antepassados silenciosos não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo / a criança de olhos castanhos e estrábicos, − ficarei à espera. Sempre há o que ver. RAINER MARIA RILKE, Quarta Elegia

Anton Pavlovitch Tchekhov1 (1860-1904) escreveu O Jardim das Cerejeiras2 em 1904, treze anos antes da Revolução Bolchevique de 1917. O Jardim chega ao Teatro Ipanema em 1968 por meio de “excelente tradução de Eugênio Kusnet feita diretamente do original russo, especialmente para a produção”, segundo Ivan de Albuquerque3. Esse fato, pode-se cogitar, talvez tenha contribuído para certa aproximação, em termos interpretativos e de encenação, entre a produção do Ipanema, em 1968, e a de Stanislavsky, em 1917. Pretendia o núcleo que a inauguração do teatro apresentasse uma montagem de texto de peso que possibilitasse o exercício do trabalho de ator e de uma direção que valorizasse a composição de personagens, sua caracterização e interpretação, refletindo também a realidade brasileira da década de 1960. Com O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, O Diário de um Louco, de Gogol, e A Mãe, de Gorki/Brecht, peças consideradas clássicas que, além de falarem per si, permitiriam ao grupo do Ipanema a abordagem do ideário social desses autores, bem como do pensamento de Freud e de Sartre, compondo um painel temático que reunia Marxismo, Psicanálise e Existencialismo nas especulações sobre a libertação da sociedade e do indivíduo. As duas primeiras foram encenadas. O Serviço de Censura de Diversões, da Polícia Federal, proibiu o texto de Gorki/Brecht, e os ensaios foram suspensos. Mesmo não se apoiando na crítica social para o desenrolar de seu drama, a variedade das personagens que povoam o cerejal é bastante rica em seus elementos humanos. O dramaturgo parece antever, naquele momento, as transformações políticas, econômicas e sociais que se processariam quase imediatamente na sociedade russa, com reflexos na história do século XX. Porém, o que faz a peça de Tchekhov ser considerada uma obra-prima da dramaturgia moderna é, sem dúvida, a construção de atmosferas no contraponto que se estabelece entre as personagens. 356

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Frances Fergson (1964, pp. 144-145) coloca esse texto num conjunto dramatúrgico por ele denominado teatro do realismo moderno. A respeito desse conceito dedica um capítulo em que analisa Tchekhov, em O Cerejal4, ao lado de Henrik Ibsen, em Os Espectros, e fundamenta essa denominação “no sentido amplo da imitação estritamente fotográfica da cena humana”, assim descrito: Nesse sentido, o realismo moderno é uma língua franca, uma gíria da imaginação, que todos em nossa época podem compreender. A câmera e o rádio, continuando um processo que começou há pelo menos cem anos, reproduzem cada vez com mais perfeição as superfícies, os sons e as imagens da vida moderna: vastamente distendidos em uma tela ou murmurados nos ouvidos de milhões de donas de casa. Se perdemos nossos alicerces, se automaticamente rejeitamos qualquer quadro estável da condição humana, ainda nos resta mexericar sobre os vizinhos ou bisbilhotar a vida dos outros. Poderia parecer que esse processo e a estreita faixa da vida humana que ele permite alcançar fossem muito raquíticos para qualquer tipo de drama. Ibsen e Tchekhov, entretanto, aceitaram suas limitações e fizeram peças esplêndidas.

Nessa abordagem, Fergson concorda com Henry James ao observar que esse tipo de dramaturgia exercitada por autores da envergadura de Ibsen e Tchekhov, ao retratar a realidade estreitada numa “pequena cena”, pode sugerir, num primeiro contato, certa mesquinhez, mostrando apenas a superfície sem a profundidade poética e visceral de Sófocles ou de Shakespeare. Disso resulta, no entanto, um teatro com poesia, não de palavras, mas do próprio teatro, que passa a depender da encenação para que se revele toda a gama poética contida nas entrelinhas, nas atmosferas, nos silêncios do mundo interior de suas personagens. Sutileza, meios-tons, gestos esboçados são a sua maior característica, especialmente no caso da dramaturgia tchekhoviana e, de modo peculiar, no Jardim das Cerejeiras. Trata-se, portanto, de uma “poesia oculta, disfarçada em reportagem”, poesia do teatro, para usar expressão cunhada por Jean Cocteau5. Não são as palavras que fazem o ofício cênico aflorar sua magnitude e sua força dramática. É, pois, “poesia que só pode ser percebida durante a representação”, afirma Fergson, para quem nem Ibsen nem Tchekhov se valem do mito e do ritual para situar a ação dramática, característica do teatro tradicional. Tchekhov, mesmo lançando mão de uma concatenação de acontecimentos que fazem progredir a ação dramática, renova a fórmula aristotélica pelo “movimento da psique” que não é a ação individual da personagem, mas de todas elas relacionando-se num movimento progressivo da ação que se estabelece como conflito básico. Nesse sentido, as personagens, protagonistas ou não, carregadas por suas características individuais, conduzem o drama numa ação genérica em que “todos participam por analogia”. Assim, o cerejal é a imagem metafórica de uma situação que vem à tona no palco com as transformações das personagens que o circundam, no espaço de suas existências sociais, éticas, diante do inevitável destino que destruirá o belo pomar das cerejeiras. É um texto que instiga a sensibilidade poética sem querer doutrinar ou fazer uma crítica social aguçada n.9, 2015, p.355-371

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o drama se constrói no conflito gerado pelas transformações que a ordem histórico-social impulsiona. O curso da história, nesse sentido, assume a dimensão de um discreto e delicado drama; porém, seus alicerces camuflam a trágica e inexorável morte do passado. Todas as personagens serão tocadas pela destruição do cerejal, mesmo Lopahin, que o arremata num leilão, determina o corte das árvores e o retalhamento da propriedade em lotes. A cada uma das personagens corresponde um valor atribuído ao cerejal, de ordem sentimental, econômica, social ou cultural. Na verdade, pode-se dizer que o cerejal é, num plano simbólico, a personagem principal. Entretanto, não precisamos vê-lo, ele está presente todo o tempo nas palavras e atitudes das personagens, como também na imaginação dos espectadores. Assim, John Gassner aborda o uso discreto de simbolismos que “sumariam a configuração ou o sentido da peça”, afirmando que, no caso de O Cerejal, “o pomar de cerejeiras é o símbolo onipresente”6.

Cerejas no Ipanema A ficha técnica do espetáculo O Jardim das Cerejeiras, no Ipanema, contava com 17 atores, três músicos, um coreógrafo, além do cenógrafo, do executante do cenário, da figurinista e do diretor: A AÇÃO SE PASSA NA FAZENDA DE RANHÉVSKAIA NO ANO DE 19037 Anha (sua filha) - Leyla Ribeiro Vária (sua filha adotiva) - Vera Gertel Leonid Andrêievitch Gáiev (irmão de Lhubóv) - Hélio Ary Iermolái Aleksêievitch Lopákhin (negociante) - Carlos Eduardo Dolabella Piotr Serguêievitch Trofimov (estudante) - Rubens Corrêa Boris Borisovitch Semionov Pistchik (fazendeiro) - José de Freitas Charlotta Ivanovna (governante) - Ivone Hoffmann Semion Pantelhêievitch Iepikhodov (administrador) - Nildo Parente Firs (mordomo) - Antonio Victor Dunhacha (empregada) - Suzana de Moraes Iacha (criado) - Enio Carvalho Um passante - Ivan de Albuquerque Chefe da Estação - Adauto Novaes Empregado do Correio - Antonio Miranda Empregados - Lionel Linhares, Ney Mandarino Músicos - Luiz Paulo Horta, Nilton Cavalcanti Filho, Eliseu Miranda Cenários de Marcos Flaksman Figurinos de Kalma Murtinho 358

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Tradução de Eugenio Kusnet Direção de Ivan de Albuquerque Coreografia de Klaus Viana Execução de Cenário - Luciano Trigo

Antonio Victor e Vanda Lacerda

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Yan Michalski, em suas críticas intituladas “Um jardim florido e amigo (I), (II) e (III)”, publicadas no Jornal do Brasil em três dias consecutivos, assim descreve o enredo da peça: Como sempre em Tchecov, o enredo é extremamente simples: uma decadente família aristocrática, que se obstina em continuar vivendo no mundo irreal de sua grandeza passada, perde a sua fazenda - orgulho e símbolo vivo dos seus bons velhos tempos - que é vendida em leilão, em conseqüência das dívidas acumuladas pelos imprevidentes e desorientados proprietários. O novo dono da fazenda é filho de antigos servos da família, agora um negociante objetivo, prático e próspero8.

A direção de Ivan de Albuquerque esmerou-se em explorar as atmosferas engendradas nos diferentes pontos de vista das personagens sobre o cerejal e seu significado, extraindo certa duplicidade estilística do texto, que transita equilibradamente entre o drama e a comédia, o espontâneo e o patético, o passivo e o crítico, o sorriso e a dor. Michalski observa que Tchekhov não deixa de ser “tradicionalmente realista”, sabendo dosar a emoção que perpassa o espectador, de início com suavidade, depois num crescendo, até ser cortada com “um irresistível efeito cômico”. Sua opinião, nesse aspecto, se constitui na maior dificuldade para a encenação, lembrando que Stanislavsky, na visão de Tchekhov, exacerbou os aspectos trágicos em prejuízo da comicidade inclusa em determinadas situações evidenciadas, sobretudo, por algumas personagens. Para Tchekhov, a comicidade deveria ser primordial, talvez porque esta funcione como fator de harmonia dramática e estilística, o que faz de O Jardim das Cerejeiras um texto brilhante. Assim, Michalski comenta o espetáculo enfocando o que para ele revela acerto no que tange à direção e sua inventiva apoiada na homogeneidade de toda uma equipe bem afinada: (...) o aspecto possivelmente mais importante − pelo menos do ponto de vista polêmico − da admirável direção de Ivan de Albuquerque reside, a meu ver, no fato de ela revelar o quanto pode haver de invenção numa encenação realista, quando ela se empenha em esmiuçar meticulosamente as infindáveis sugestões de um grande texto, também ele realista. Invenção não no sentido de criar novas convenções, mas no sentido de criar, dentro das convenções antigas, novas inflexões, novos gestos, novas trocas de olhares, novos detalhes de relacionamento entre os personagens − em suma, novas maneiras de extrair do fundo da alma humana os seus mais íntimos segredos e dar-lhes um significado pessoal e inconfundível. Neste sentido, não hesito em definir a direção de Ivan de Albuquerque como intensamente inventiva9.

“Comédia de um mundo em transformação” Esta frase, impressa em um painel que dominava a cena, indicava aos espectadores que a encenação queria ressaltar o aspecto crítico, tragicômico, presente no texto. Tal epígrafe funcionava como uma advertência constante ao olhar e à imaginação da plateia. Recorreuse, assim, a um mecanismo à moda brechtniana (sic), que em nada turvou a opção por uma realização cênica coerente com a natureza realista do texto. Pelo contrário, deu às palavras 360

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e às suas inflexões o tom de atualidade que permitia aflorar o contexto histórico brasileiro que estava por traz das falas banais e das situações sem grandes manifestações de conflito. Aqui se pode perceber, em sua didática de feição brechtniana (sic), o desejo de articular uma ideia épica com o texto que tipifica o teatro do realismo moderno, e assim alcançar a dose equilibrada entre a empatia e a consciência crítica da plateia. A propósito, vale transcrever as palavras de Stanislavsky, publicadas no programa da peça no Ipanema: A força do poder cênico que Tchekov exerce sobre o espectador apareceu com relevo especial para mim num memorável espetáculo realizado às vésperas da Revolução de Outubro (1917). Naquela noite, as tropas se dirigiam para o Kremlin, certos preparativos misteriosos estavam sendo feitos, e uma multidão silenciosa encaminhava-se para algum lugar. Ao mesmo tempo, no Teatro Solodénikov, se reunia uma multidão de mais de mil pessoas para assistir à representação de O Jardim das Cerejeiras, de A. Tchekov, na qual se pinta precisamente a vida das pessoas contra as quais se estava preparando a sublevação. A sala, repleta de um público excitado, estava muito agitada, e a atmosfera, de ambos os lados da ribalta, estava carregada de angústia. Nós, atores, já maquiados e vestidos esperando o começo do espetáculo, estávamos junto ao pano de boca ouvindo o rumor confuso que vinha do outro lado da cortina. − Não vamos conseguir chegar ao fim do espetáculo! − dizíamos. − Seremos expulsos do palco. Quando o pano se abriu, nossos corações começaram a bater nervosamente, esperando possíveis excessos. Mas... o lirismo tchekoviano, a beleza da poesia ao pintar a decadência da aristocracia russa − mesmo quando tudo era tão pouco adequado para o momento que se vivia − exerceu seu influxo mágico. Quanto à atenção que o público dispensou ao espetáculo, esse foi um dos que mais sucessos tiveram. Parecia que os espectadores queriam se dar um descanso no meio desse clima impregnado de poesia, despedir-se para todo o sempre daquela vida antiga que exigia vítimas expiatórias. O espetáculo terminou com uma ovação extraordinária, e os espectadores foram deixando o teatro em silêncio. Mas, quem sabe? Talvez entre eles houvesse alguns que se preparavam para a batalha do dia seguinte, para a luta por uma vida nova. Pouco depois começou o tiroteio. Escondendo-nos das balas, chegamos com grande dificuldade a nossas casas.

Esse, provavelmente, foi um dos aspectos de identificação dos espectadores da montagem de 1968 com os conflitos em que se debatiam as personagens de O Jardim das Cerejeiras, e que não foram ignorados pela concepção cênica adotada pelo diretor. Apoiando-se na densidade de Tchekhov, nessa espécie de tensão provocada por sentimentos antagônicos, presente em suas derradeiras obras e notável em O Jardim das Cerejeiras, Ivan de Albuquerque fez aflorar as sutilezas em meios-tons que lembram as palavras de Robert Brustein sobre o n.9, 2015, p.355-371

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escritor e dramaturgo: “por baixo existem abismos de teatralidade, fervor moral e revolta: entre a superfície e esse substrato há uma constante tensão irônica”. A análise de Brustein quer demonstrar o que existe de protesto e revolta sem apelar para o autobiográfico, reforçando a ideia de que Tchekhov “é o mais impessoal dos autores dramáticos” em comparação com Ibsen, que ele considera usar o drama “como veículo de auto-realização individualista”, ou Strindberg, “como meio de auto-expressão exorcista”, e cita Tchekhov, que assim escreveu em 1888: O artista não deve ser o juiz de suas personagens ou do que elas dizem, mas, unicamente, um observador objetivo. Escutei uma confusa e indecisa conversa de dois russos sobre pessimismo, e assim devo transmitir essa conversação da mesma forma que ouvi, mas compete ao júri, isto é, aos leitores, conferir-lhe uma avaliação. Meu papel é apenas o de ter talento, isto é, estar apto a projetar luz sobre algumas figuras e falar a linguagem delas10.

Pode-se observar que Tchekhov parece confiar no leitor-espectador, uma vez que a qualidade literária de suas peças permite uma leitura que, não sendo apartada da encenação, pelo menos pode ser, até certo ponto, independente desta. Ele declara ainda, por volta de 1890, que, quando escreve, confia plenamente no seu leitor, “partindo do princípio de que ele próprio adicionará os elementos subjetivos que faltam na narrativa11.” Essas são características presentes tanto nos contos como nas peças do autor. A dramaturgia de Tchekhov, ao fornecer à obra os elementos indispensáveis à sua interpretação, deixa um problema a ser resolvido pela sensibilidade do encenador e de seus atores, para melhor comunicá-la aos espectadores. Nas peças de Tchekhov, as cenas do cotidiano decorrem de um estado de meditação sonhadora, lembranças, memórias e pensamentos utópicos. Os acontecimentos tornamse incidentais, e os diálogos como forma de expressão interpessoal são quase monólogos reflexivos. A oposição entre o subjetivo e o objetivo determina uma nova dimensão, que parte de uma fórmula aristotélica para alcançar um sentido hodierno... “Nas peças de Tchekhov, os personagens vivem sob o signo da renúncia ...”12. O encenador é, por vezes, o leitor primeiro e privilegiado da obra dramatúrgica, cabendolhe a transposição de uma linguagem, nesses termos, literária, para a que é própria da cena - encenação. Coube, portanto, a Ivan de Albuquerque e seu elenco a tarefa de aproximar os espectadores do Teatro Ipanema do cerejal da distante Rússia. O fato é que, segundo Albuquerque, o texto bem traduzido por Eugenio Kusnet foi imediatamente lido por todos os participantes da produção no momento em que se dava início aos ensaios. Isso, sem dúvida, suscitou um discurso do tipo aqui agora13! Vale lembrar que os anos 60 e 70 foram marcantes na vida cultural brasileira, com reflexos na contemporaneidade da produção artística. Boa parte da chamada classe teatral se via diante de circunstâncias político-culturais que provocavam o despertar da consciência de 362

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seu papel social, levando os criadores de espetáculos - dramaturgos, encenadores, cenógrafos e intérpretes - a posturas crítico-partícipes das transformações que então se processavam. Nunca na história do teatro brasileiro foram tão acentuados a reflexão e o consequente discurso sobre suas próprias realidade e identidade. Foi o momento de se contemplar a figura do trabalhador do teatro, ao encarar o que seria seu primeiro esboço e tentar compreender sua função na sociedade brasileira. Esse processo não se deu a priori, mas veio no roldão dos fatos histórico-políticos que moldavam a vida cultural da época. Aqui já se pode perceber que os grupos teatrais formados nesse período adotaram um tipo de organicidade que garantia a independência dos trabalhadores do palco na defesa de seus interesses como artistas. Leslie Hawkins Damasceno, na introdução teórica de seu livro sobre Oduwaldo Vianna Filho, questiona: Quem é o público de teatro e como esse público reflete a organização social de uma sociedade e seus valores? O público é formado pelas elites financeiras ou sociais? Classe média, alta ou aristocracia? Um grupo social ou político de caráter periférico que, a despeito de sua origem social, contesta o sistema de valores e/ou as políticas da sociedade? E em que medida o teatro contribui para o desenvolvimento da autoimagem por parte do público14?

Além de salientar essas questões ligadas a valores culturais, Damasceno aborda também outros aspectos relacionados com os modos de percepção e indaga sobre a imagem que a classe teatral faz de seu público: ele é real ou virtual? Ela afirma que muitas vezes “o teatro de experimentação estética e/ou política trabalha mais na nebulosa zona problemática que fica entre o real e o virtual15”. Porém, se o teatro de Tchekhov pertence à categoria de um “teatro íntimo”, qualquer tentativa de experimentação estética e/ou política deve levar em consideração a distinção observada por Brecht quanto à oposição entre o naturalismo e o realismo: “o teatro intimista, como todo o naturalismo visto por Brecht, será uma arte da discreção e o teatro íntimo, uma arte da indiscreção16”. Nesse sentido, Diderot pôde antever que o teatro exploraria um triângulo temático articulado entre o eu, a casa e o mundo. Pode-se concluir, portanto, que, para o público contemporâneo, esse triângulo envolve, no acontecimento teatral, uma discussão do âmbito da sociologia, onde o caráter real ou virtual do público é uma questão inerente à encenação moderna, que acompanha as mutações dramatúrgicas. Para Fergson, Tchekhov, assim como Ibsen, “também usa a ocasião social para expor o indivíduo quando ele está menos preso em sua lógica particular e mais aberto às percepções desinteressadas”. Observa ainda que o dramaturgo russo, na sua “arte de estruturar os enredos”, age consciente e deliberadamente para revelar, aos poucos, as histórias de seus personagens e escolher quais “momentos de suas vidas” serão transpostos para o palco17. n.9, 2015, p.355-371

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No texto transcrito adiante, Fergson parece adotar o estilo poético do dramaturgo ao descrever a atmosfera inicial da peça: (...) dá vida e flexibilidade ao seu próprio ambiente a despeito dos elementos visíveis no palco e sem apelar para a poesia das palavras, apenas usando a variação da compreensão que seus personagens têm dele. Quando a cortina é aberta, vemos a cena na hora sentimental do crepúsculo (...)18

Uma parede, “pequenas ilhas”, luz, movimento... A cenografia de Marcos Flaksman optou por um palco nu, onde se podia avistar inclusive a parede do fundo da cena com seus tijolos recém-inaugurados, apenas fazendo uso de reguladores pretos para definir as coxias. Todos os outros elementos cenográficos eram despojados, simples e esquemáticos. Flaksman chamou essas soluções de pequenas ilhas19, ou seja, uns poucos recursos de mobiliário a indicar os espaços de ação. A esse respeito, comenta Yan Michalski: A solução de Marcos Flaksman para a cenografia de O Jardim das Cerejeiras me pareceu extremamente inteligente. Impedido por motivos técnicos de realizar os três cenários realistas que a peça em princípio pedia, o cenógrafo construiu uma única estrutura básica, cujo elemento principal é uma única parede no fundo do cenário. Os diferentes ambientes são obtidos através de mudanças de elementos menores, procedidas brechnianamente (sic) à vista do público e através de variações do clima luminoso. O resultado é excelente, um verdadeiro tour de force: por meio de um trabalho eminentemente anti-realista e moderno, Flaksman criou uma atmosfera perfeitamente realista, de grande força sugestiva, a tal ponto que nem sequer sentimos falta da presença física das cerejeiras; elas não aparecem visualmente, e, no entanto, sente-se que estão presentes, logo ali, ao alcance da vista20.

Flaksman valorizou as indicações contidas nas falas das personagens que situavam os espaços interiores e externos, mais ou menos como um cenário verbal, a exemplo das obras de Shakespeare. Quando o texto tchekhoviano não dava conta disso, ele se valia de poucos elementos, como o armário, objeto de cena no primeiro ato, ou cálices de cristal, no terceiro ato. No mais, apenas simples sugestões que iriam se complementar na imaginação do espectador. Ubersfeld observa que o uso do fundo negro sugere uma interiorização do espetáculo, transportando-o para a cena psíquica. O fundo claro, no caso a parede de tijolos da caixa do palco do Ipanema, confere ao espetáculo um caráter mais objetivo; imprime, ainda, um sentido voltado para o social, o político ou mesmo o passional e o psíquico que estão presentes no texto, e são remetidos a um mundo exterior21. O palco estava aberto para a movimentação dos atores sem nenhum compromisso com a construção do tipo naturalista-realista. Assim, a direção podia explorar a frontalidade do espetáculo que se projetava para a plateia como o painel que dominava a cena, onde se lia: “comédia de um mundo em transformação”. 364

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Como já foi observado anteriormente, esse tipo de recurso tinha por finalidade aguçar o espírito crítico dos espectadores e, ao mesmo tempo, abrir a cena, da caixa do palco para a plateia. Evitava-se, desse modo, uma construção ilusionista da encenação, conferindo-lhe uma inventividade mais ao gosto de valores hodiernos. Com essa concepção, o trabalho dos atores ganhava maior ressonância, pois dependia de suas interpretações comunicar com eficácia todo o lirismo e toda a humanidade existentes no cerejal. Neutralizando o espaço cênico, isto é, empregando elementos essenciais para a mecânica da encenação, oferecia um fundo para o desenvolvimento naturalista e um tanto hiper-realista dos intérpretes. A iluminação do espetáculo daria o tom para definir os espaços de ação e também concretude ao drama, apoiada nos atores. Sem a quarta parede, aos espectadores se oferecia uma panorâmica da cena, e assim não precisavam espreitar por um buraco de fechadura, convocados para uma direta e objetiva relação palco-plateia. Esse dado evidencia aspectos renovadores no âmbito da linguagem e da escrita cênica e cenográfica.

Na ausência, a presença... Já foi dito que o cerejal não aparece, nessa montagem, à vista do público. Era projetado para a platéia, quando referido pelos atores-personagens em suas falas, lançando-o com o olhar um pouco acima da fronte do público e, assim, verbalizado. Teria sido un coup de théâtre que partiu do palco para sublinhar o imaginário poético dos espectadores? Havia em cena o tronco de uma árvore. Como esse objeto extrapolava sua função meramente utilitária - servindo como banco para os atores em algumas cenas - para se converter em signo, quem nos fornece a pista é Bakhtin: Todo corpo físico pode ser percebido como símbolo (...) toda imagem artísticosimbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade22.

Claude Lévi-Strauss também afirma que “toda metáfora acaba em metonímia” e que “toda metonímia é de natureza metafórica”23. Assim, temos a parte pelo todo. Para Ubersfeld, o mundo dos objetos na encenação é elemento que se caracteriza, como figura de linguagem, num contexto específico, “sobretudo quando a metáfora repousa sobre um rapport culturalmente codificado, passando da metáfora ao símbolo”24. Para exemplificar a questão, Bakhtin se refere a dois instrumentos de produção: a foice e o martelo, que a princípio não produzem sentido, não representam coisa alguma, mas têm funções específicas. Somente a partir do momento em que são transformados em insígnias adquirem um sentido ideológico: “Portanto, ao lado dos fenômenos naturais do material tecnológico e dos artigos de consumo existe um universo particular, o universo dos signos”. Bakhtin admite ainda que é n.9, 2015, p.355-371

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possível dar ao instrumento uma forma artística que assegure uma “adequação harmônica” da forma à sua função na produção, conduzindo a uma espécie de “aproximação máxima”, quase uma fusão, entre o signo e o instrumento. Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc.Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc). O domínio do ideológico coincide com os domínios dos signos: são mutuamente correspondentes. Aí onde reside o signo encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiológico25.

Como um objeto que exerce aparentemente uma função utilitária pode se constituir em elemento de linguagem? Como extrapola sua utilidade para outras instâncias de significação como a simbólica e a dramático-cênica? O tronco de árvore pode ser visto no sentido “mesmo da representação e a incessante relação do visual e do verbal que ela supõe, privilegiando a retórica teatral e, particularmente, a retórica do objeto, o funcionamento metonímico”26. A parte do todo (tronco cortado) evoca, chama à destruição do cerejal. Considerando-se que o cerejal é uma espécie de mito de um passado aristocrático rural que será destruído inexoravelmente, a presença desse tronco é uma metáfora da destruição, confirmada ao final da peça pelo som dos machados ceifando as árvores. Curiosamente, O Jardim das Cerejeiras estreou no Rio de Janeiro alguns meses antes de ser decretado o Ato Institucional Nº 5 (AI-5). O painel Comédia de um mundo em transformação que dominava a cena, o tronco situado na direita baixa junto ao proscênio e o programa da peça em que estava reproduzido o testemunho de Stanislavski sobre uma certa noite de 1917 indicavam aos espectadores como proceder na leitura do espetáculo a que assistiriam.

Figuras e figurinos É importante ressaltar o esmero dos figurinos de Kalma Murtinho. Se os elementos cenográficos eram singelos e despojados, os figurinos, ao contrário, eram detalhistas e indicativos da personalidade, da condição social, e até mesmo com discretos contornos críticos que ajudavam o espectador na identificação do universo objetivo e subjetivo das personagens. Quanto a esse aspecto, Yan foi bastante enfático: Os deslumbrantes figurinos de Kalma Murtinho estão entre os melhores figurinos de época que eu já tenha visto no Brasil. A harmonia do seu colorido, a contribuição desse colorido para a criação do clima geral do espetáculo, a perfeição do caimento, a adequação de cada peça do vestuário à psicologia e à posição social do personagem que a usa, a pesquisa do detalhe, a imaginação na escolha dos materiais usados no 366

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sentido de criar a ilusão de outros materiais, impossíveis de serem empregados numa produção teatral - tudo isso contribui decisivamente para que o impacto visual do espetáculo se torne comparável ao das produções de alto gabarito internacional. Uma única exceção: o figurino de Nildo Parente [Semion Pantelhêievitch Iepikhodov, o administrador] que dá ao ator um aspecto muito brasileiro27.

Sobre essa exceção de um único figurino “muito brasileiro”, pode-se aventar a hipótese de que, para o espectador comum, esse pequeno detalhe aproxime realidades distantes, ou seja, a Rússia de 1904 e o Brasil de 1968. A direção, a cenografia e os figurinos formaram, no caso, um triângulo harmonioso que, belo em sua plasticidade e funcionalidade, estava a serviço do texto, dos atores e dos espectadores, alargando as fronteiras da encenação. A luz, mais uma vez, irá solucionar e dar acabamento à cena, não somente no que diz respeito à sua visibilidade28 impressionista, física e espiritual, mas também conferindo um sentido de fábula metafórica, colorida e transcendente. A cor era suave, pastel, sem abrir mão do chiaroscuro, luz branca para fixar alguns flashes, ressaltar as figuras e destacá-las na cena. Se elementos do cenário, figurinos e luz constituem signos próprios à sintaxe da encenação, dando conta de sua espacialidade, então emerge um sentido arquitetural do espaço dramático, relacionado com pressupostos, no que toca ao in e ao out, na arquitetura de habitações, seu desenho exterior, e com o espaço externo que a circunda. Certa dualidade se estabelece também com relações do tipo palco-plateia, teatro-bairro, cidade-espaço, polisurbis e seu theatron, e tudo que ele tem de imagens cênicas.

Memória do efêmero... Se a ideia era não iludir o espectador, a partir do desértico palco nu que até expõe, revela suas entranhas, seus tijolos, então o espetáculo afirma o seu próprio nascimento entre as coxias, uma parte íntima do bairro de feitio residencial. Dioniso ganha nova morada, desta feita num estilo do tipo realismo e, de certo modo, jornalístico, fotográfico, não para defender doutrinas, teses, comportamentos, o que seria trair Tchekhov, mas para instigar os espectadores ao exercício da opinião pública. No primeiro ato, o dramaturgo descreve o cenário como um quarto que ainda é chamado quarto das crianças. Indica também que uma das portas dá para o quarto de Anha. “É madrugada. Daqui a pouco surgirá o sol. É maio, já as cerejas estão floridas, mas o jardim está gélido, coberto de uma fina camada de gelo. As janelas estão fechadas”29. As relações estabelecidas entre as ideias de localização do interior da casa e o exterior estão, assim, enunciadas nas rubricas do autor. No quarto ato, a cena se desenvolve no mesmo espaço do primeiro. Não existem mais cortinas nas janelas, nem quadros nas paredes. “Ficarão só alguns móveis agrupados num canto como se tivessem que ser vendidos. Ao lado da porta de saída, no fundo da cena, n.9, 2015, p.355-371

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veem-se pacotes, malas, etc”30. O autor dá sequência à rubrica indicando que a porta esquerda “está aberta e dali se ouvem as vozes de Vária e Anha”. Aqui se pode perceber que as relações entre o interior e o exterior, presentes na didascália, indicam a casa e o resto da propriedade, como também as relações de um cômodo com o outro, como se Tchekhov não ocultasse nenhum detalhe sobre aquele cotidiano e intimidade, não para servir a uma reprodução mimética, mas para apoiar a visão poética daquela realidade. Fergson observa que no segundo ato, que situa, a cena mais parece um poema lírico, e a transcreve para afirmar que o dramaturgo “descreve o ambiente nos seguintes termos realistas”: Um campo. Uma velha capela há muito abandonada, com paredes rachadas; próximo, um poço, grandes pedras, que aparentemente foram lápides tumulares, e um velho banco. Pode-se ver uma estrada para a propriedade de Gaev. De um lado erguemse álamos, projetando sombras; o cerejal começa aí. À distância, uma fila de postes de telégrafos, e longe, muito longe, em traços apagados no horizonte, uma grande cidade, visível apenas quando o ar é bastante límpido. Em breve, o sol desaparecerá31.

Fergson sustenta também que, nas sugestões para o cenário, o dramaturgo “está incomodamente preso às convenções de seu tempo”, e cita como exemplo as soluções adotadas por Robert Edmund Jones numa montagem de A Gaivota para “servir apenas superficialmente às convenções do realismo fotográfico”32. Dessa observação pode-se concluir que as soluções adotadas na montagem do Ipanema nasceram de uma coautoria do tipo encenador/cenógrafo para a definição dos espaços cênicos e sua função no contexto do espetáculo. Deixando o palco livre para as mudanças de cena que, no caso dos poucos elementos cenográficos, se processavam à vista dos espectadores, transcendia-se o realismo, no seu aspecto tradicional, para dar relevo aos atores e sublinhar o desenho de suas interpretações. “A história do teatro contemporâneo aparece mais como a história dos encenadores do que dos autores e dos atores”33, diz Bernard Dort, que avança sobre essa questão quando desenvolve a ideia de uma condição sociológica da encenação. Sustenta que vimos as mutações que se processaram no teatro desde 1887, a qual introduziu uma dimensão nova: “a da arte cênica diferente da arte dramática, apesar de permanecer estreitamente ligada a ela”. Antoine vem na frente dessa nova ordem que dimensiona o teatro e a figura do encenador e que, aliás, declarou em sua conhecida conferência de 1903: “A encenação não fornece apenas uma justa moldura à ação; ela determina seu verdadeiro caráter e constitui sua atmosfera”34. Mas, desde então, a forma e o conteúdo do realismo se transformaram, não somente nas obras de dramaturgos que vieram depois de Tchekhov, Shaw ou Wilde, mas na maneira que os encenadores contemporâneos leem esses textos. Assim, Ivan de Albuquerque procurou a atualidade, à maneira de alguns diretores dos Centros Dramáticos Nacionais da França, citados por Dort quando descreve sua concepção de um realismo aberto: 368

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(...) unir a descrição exata de um ambiente e de uma época a uma reflexão sobre as circunstâncias históricas que cercam este ambiente e esta época. O que, no plano cênico, se traduz pela coexistência de objetos e de gestos naturalistas com uma estilização de conjunto35.

A encenação de Ivan e as soluções adotadas por Flaksman parecem ter expandido a reflexão acima citada para o universo imaginário dos espectadores, pois permitiam a audiência participar da poesia tchekhoviana e ao mesmo tempo lembrar que estavam num teatro em Ipanema nos primeiros dias de sua inauguração, em outubro de 1968.

As mãos pesadas da censura Em 13 de dezembro foi decretado o Ato Institucional Nº 5. O Jardim das Cerejeiras escapou por pouco das garras da Censura. Esta iniciou uma batalha implacável contra a liberdade de expressão. Seus agentes, na maioria despreparados, fariam cortes nos textos, suprimiriam cenas e até mesmo impediriam todo e qualquer espetáculo na véspera da estreia, causando grandes prejuízos aos produtores, atores e ao público. A ditadura e seu poder de repressão avançavam, e as camadas mais esclarecidas da população reagiam. Desde outubro de 1964 até janeiro de 1967, as intervenções do aparelho censor se tornam ferozes, e é quando uma Semana de Protesto Contra a Censura promove ato público na ABI, do qual participaram mais de 300 pessoas. Em 1968, outra Semana de Protesto, ainda na ABI, produz um manifesto assinado por 500 intelectuais. Podemos contabilizar cerca de 40 espetáculos que sofreram cortes no texto, nos elementos cenográficos, e/ou por meio de cancelamentos por 30 dias ou mais (o que inviabilizava a permanência da temporada) ou que foram até mesmo definitivamente proibidos. O fato é que, em alguns casos, a classe teatral conseguiu burlar parte da censura com criatividade, elegância, sutileza e sofisticação, passando nas entrelinhas do texto e, sobretudo, da encenação, detalhes e “senhas” que a maioria dos agentes da censura não percebia, evidenciando assim um nível primário na avaliação daquilo que poderia ser nocivo ao regime estabelecido e à propalada Segurança Nacional. Essas ações se entenderam até março de 1979.­­ Notas 1 Entre as várias grafias encontradas para o nome do dramaturgo, optou-se pela adotada na Enciclopédia e Dicionário Ilustrado, de Koogan/ Houaiss, 1996. Nas citações, foi respeitada a grafia usada pelos autores. 2

Título original Vishnyovy Sad.

Informação fornecida em entrevista durante a pesquisa, em 30 jan.1995. Nessa oportunidade, Ivan de Albuquerque relatou também que, durante os ensaios, a atriz Suzana de Moraes, integrante do elenco, lia para seus colegas, passagens de My 3

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life in Art, de Stanislavsky, como apoio teórico aos intérpretes, já que à época esta obra não tinha sido ainda trazida para o português. 4 Em diversas traduções portuguesas, o título da peça é assim enunciado. 5

FERGSON, F. (1964), p. 146.

6

GASSNER, J. (1980), p. 190

Ficha técnica transcrita do programa da peça (Arquivo Ibac). 7

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8

MICHALSKI, Y. (22 out. 1968).

9

MICHALSKI, Y. (23 out. 1968).

MICHALSKI, Y. (23 out. 1968). A parede a que se refere Yan, como já dissemos, é a do fundo da caixa do palco, ou seja, a do próprio prédio.

20

10

Ibid. pp.157-158.

21

11

Ibid. p.158.

UBERSFELD, A. (1981), p. 104.

22

BAKHTIN, M. (1981), p. 31.

23

GREIMAS & COURTÉS (1979), p.280.

SZONDI, P., Transition; a theory of stylistic change. In:__. (s.d.), pp. 45-48.

12

A formação intelectual e artística dos integrantes do núcleo fundador do Ipanema e a escolha do repertório de certo modo fazem lembrar o Oficina, distanciado do modelo Arena, CPC e Opinião. Com isso, não queremos sugerir um sentido genealógico, situando o Ipanema como um herdeiro dessa “nova tradição”, já que entendemos como uma das singularidades de sua postura justamente o fato de ter aberto e inaugurado uma outra prática, tanto no que tange à linguagem da encenação como aos meios de produção e às formas de criação.

13

UBERSFELD, A., L’objet théâtral. In: __ (1982), pp. 182-183.

24

25

BAKHTIN, M. (1981), p. 32.

26

Ibid. p. 32.

27

MICHALSKI, Y. (23 out. 1968).

CALVINO, I. Visibilidade. In.__. (1990), pp. 97-114.

28

O texto utilizado é a já mencionada tradução de Eugenio Kusnet fornecido pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat),RJ.

29

DAMASCENO, L. H. (1994), p. 15.

30

Ibid.

15

Ibid.

31

FERGSON, F. (1964), p. 164.

16

SARRAZAC, J.-P. (1989), p. 68.

32

Ibid. p. 164.

FERGSON, F. (1964), p. 161.

33

DORT, B. (1977),

Ibid. p.165.

34

Ibid. p. 88, Antoine citado por Dort..

35

Ibid. p. 122.

14

17 18

Entrevista realizada durante a pesquisa, em 23/24 de maio de 1996.

19

p. 63.

Referências Bibliográficas ADOLPHE Appia (1862-1926). Actor - espacio - luz. Exposición producida y realizada por La Fundación Suiza de Cultura, Pro Helvetia, Zurich ,y concebida por Denis Bablet e Marie-Louise Bablet. Trad. J. Ortega. Zurich, 1984. ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de Arte. Lisboa: Estampa, 1988. ARRABAL, José. “Anos 70: momentos decisivos da arrancada”. In: Anos 70: Teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980. 7v., v.3, pp. 7-40. BABLET, Denis. Edward Gordon Craig. Paris: LÁrche, 1962. ______. The revolution of stage design of 20th. century. Paris, New York: Leon Amiel, 1977. BARSANTE, Cássio Emmanoel. Santa Rosa em Cena. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s/d]. BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. _______________. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1970. _______________. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1990. BERGSON, Mémoire et vie. Paris: Presse Universitaire de France, 1957. BORBA FILHO, Hermilo (org). Teoria e prática do teatro: antologia. São Paulo: Íris, 1960. BORNHEIM, Gerd A. Brecht: a estética do teatro. São Paulo: Graal, 1992. BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. CONRADO, Aldomar. O teatro de Meyerhold. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. DAMASCENO, Leslie Hawkins. Espaço cultural e convenções teatrais na obra de Oduvaldo Vianna Filho. Campinas: Editora da Unicamp, 1994. DÓRIA, Gustavo. Moderno teatro brasileiro. Rio de Janeiro: SNT, 1975. 370

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CEREJEIRAS EM IPANEMA, 1968

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Um olhar sobre a história do ativismo LGBT no Rio de Janeiro A look over the history of LGBT activism in Rio de Janeiro Cristina Câmara Doutora em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ), Consultora e Coordenadora da Acicate - Análises Socioculturais [email protected]

RESUMO: A partir da atuação de grupos LGBT cariocas, este artigo visa destacar acontecimentos que marcaram suas trajetórias e a história do movimento LGBT, como a demanda pela inclusão da não discriminação por orientação sexual na Assembleia Nacional Constituinte (1987), a Marcha pela Cidadania Plena de Gays e Lésbicas, após a 17ª Conferência da International Lesbian and Gay Association (1995) e a criação do Programa Estadual Rio Sem Homofobia (2007), entre outros. Ao longo do processo histórico, o movimento LGBT lida com as noções de pecado e doença associadas à homossexualidade, os crimes de homofobia e a relação entre saúde pública e direitos humanos. Como sujeito político, constrói seu próprio caminho ao denunciar a violência e a homofobia, demandando por reconhecimento e respeito quanto à orientação sexual e à identidade de gênero, e seus direitos. Palavras-chave: LGBT, movimento homossexual, direitos sexuais.

ABSTRACT: Based upon the activities of LGBT groups in Rio de Janeiro, this article aims at highlighting the events that marked their trajectories and the history of the LGBT movement, such as: the demand for the inclusion of non-discrimination by sexual orientation in the National Constitutional Assembly (1987); the March for Full Citizenship for Gays and Lesbians, after the 17th Conference of the International Lesbian and Gay Association (1995); and the creation of the State program Rio Without Homophobia (Rio Sem Homofobia), in 2007, among others. All along its historical process, the LGBT movement dealt with notions of sin and disease connected to homosexuality, homophobic crimes, and the relations between public health and human rights. As a political subject, it builds its own path by denouncing violence and homophobia, claiming for acknowledgement and respect for sexual orientation, gender identity, and sexual rights. Keywords: LGBT, homosexual movement, sexual rights.

Para Ronaldo Mussauer de Lima e Sylvio de Oliveira (in memoriam), dois gays cariocas engajados.

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Introdução Olhando para trás, é possível afirmar que a história do ativismo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTs) vem abalando estruturas. Não sem resistências, vem gerando mudanças no nível das práticas sociais e em referenciais simbólicos. Suas conquistas permitem que muitas pessoas se sintam desculpabilizadas com base em um repertório que traz imagens positivas, histórias compartilhadas e novas possibilidades que não cabem mais nas explicações que historicamente relacionam a homossexualidade a crime, pecado ou doença. (CÂMARA, 2002). Especialmente a partir dos Planos Nacionais de Direitos Humanos, o primeiro de 1996, o movimento LGBT ampliou seu campo de atuação apropriando-se desse arcabouço teórico-político. No Brasil, apesar de o homossexualismo nunca ter sido classificado como crime, durante muito tempo foi considerado como desvio e transtorno mental (LAURENTI, 1984). No entanto, após intensa mobilização, iniciada em 1981 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), em 1985, o código 302.0 foi excluído da Classificação Internacional de Doenças pelo Conselho Federal de Medicina. E em 1990, pela Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde, medida que entrou em vigor em 1994. Do mesmo modo, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia aprovou uma resolução proibindo que psicólogos participem de clínicas ou terapias com o objetivo de “curar” homossexuais. Por sua vez, a produção acadêmica se enriquece com essas tensões e mudanças, ampliando o debate interdisciplinar e retroalimentando o movimento LGBT. Estudos e pesquisas subsidiam o movimento, gerando evidências que podem e devem ser utilizadas para embasar ações de advocacy (incidência política). (RAMOS e CARRARA, 2006; CARRARA, 2010). Ao destacar acontecimentos protagonizados pelo movimento LGBT no Rio de Janeiro1, observa-se a existência de lutas simbólicas. Por isso o debate público incomoda. Por expor conflitos e modelos sedimentados, como os que evidenciam outras formas de união entre os sexos e de família, para além de padrões hegemônicos2. Os ativistas protagonizam ações coletivas que vêm gerando conquistas para a população LGBT, enriquecendo o próprio movimento e a vida em sociedade3. Uma história que referenciou durante décadas as fronteiras do “ser homossexual”, gradativamente delineando a identidade coletiva LGBT. A partir de grupos LGBT do Rio de Janeiro, pretende-se sugerir correlações e sinalizar a multiplicidade de linhas de atuação4.

Cultura e política LGBT De acordo com o Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (GAI), atualmente há 24 grupos LGBTs no estado do Rio de Janeiro. A despeito da diversidade de composição e de atuação, esses grupos constituem uma rede de articulação política que se 374

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UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DO ATIVISMO LGBT NO RIO DE JANEIRO

movimenta por meio de eventos, alianças com outros movimentos sociais – especialmente com Organizações Não Governamentais que atuam no enfrentamento das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids (ONGs/Aids) – e de espaços em instâncias governamentais, como conselhos, comissões e grupos de trabalho. Há um entrelaçamento crescente entre os diálogos de fora e por dentro da estrutura governamental. Entretanto, um longo percurso foi trilhado5. A vida cultural carioca traz um diferencial para o mundo gay e para a mobilização política LGBT. Para começo de conversa, o primeiro espaço gay no Rio de Janeiro foi criado em 1961 por um grupo de amigos batizado de Turma OK por Nyhlmar Amazonas Coelho. Funcionou regularmente até o Ato Institucional Nº 5 (1968), quando o grupo se dispersou, retomando suas atividades em 1972. A Turma OK se apresenta como um clube social e funciona na Lapa, presidido por Carlos Salazar. É um símbolo de resistência e continua sendo um ponto de encontro. Outra referência importante é o teatro de revista, através ou a partir do qual alguns transformistas faziam muito mais do que representar, levando a crítica política e a prevenção à Aids para seus espaços. Desde 1959, o esteticista Jorge Alves de Souza fazia sucesso à noite como Geórgia Bengston, conhecida por seu talento e por esquetes que reuniam humor e crítica política, mesmo durante a ditadura. A pesquisa de Rodrigues (2006) ressalta os espaços culturais como pontos de encontro na Baixada Fluminense e destaca a presença de Geórgia Bengston: Posteriormente, sobem ao seu palco [do Sesc de São João de Meriti] nomes que vão de Gonzaguinha, João do Vale, MPB-4 e Quinteto Violado até a ousadia talentosa de Geórgia Bengston. O primeiro ator-travesti a se apresentar nos palcos de uma região representada nos meios médios como apenas produtora de violência e inculta, Geórgia trazia para a Baixada Fluminense sua crítica social aguda e bem-humorada, embalada com alguma sutileza nas mil possibilidades do Teatro de Revista, que ele/ ela tão bem sabia percorrer. (RODRIGUES, 2006, p.132)

Norberto Chucri David, professor de História, à noite vivia Laura de Vison, nome conhecido desde a década de 1960 e de grande sucesso nas noites cariocas nas três décadas seguintes. Sua atuação underground era inconfundível, atraindo gays cariocas e de outros estados e países. O curta “Mamãe Parabólica” (1989), de Ricardo Favilla, foi especialmente pensado para ela, sendo ganhador de vários prêmios no Festival de Brasília daquele ano (SILVA NETO, 2010). No início dos anos 80, antes mesmo de ter contato com as ONGs/ Aids, Laura de Vison já era uma agente multiplicadora poderosa na prevenção das DST/Aids. Suas últimas performances ocorreram no Bar Boêmio, no Centro do Rio6. A música expressava liberdade sexual e rebeldia. Em 1972, com o Dzi Croquetes, e em 1973, com o sucesso dos Secos e Molhados. Ainda que este último tenha surgido em São Paulo, ambos possuíam traços similares, pondo o comportamento masculino em evidência n.9, 2015, p.373-396

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e gerando ambiguidades. Green (2000) se refere a um humor camp que invertia os papéis sexuais normativos, ainda que não fosse possível rotulá-los, já que suas performances podiam ser femininas, mas também masculinas. Por fim, considerando cultura como um conceito antropológico, vem de longa data o fato de a territorialidade carioca reunir nativos e estrangeiros7. Há pontos de referência frequentados por ativistas LGBTs, a passeio e a trabalho. Certamente, o mais simbólico são as praias. Em Copacabana, a “Bolsa de Valores”, em frente ao Hotel Copacabana Palace, que é ocupada desde meados dos anos 1950 (GREEN, 2000). Em Ipanema, na altura da Rua Farme de Amoedo. Espaços de sociabilidade, predominantemente masculinos. Territórios que propiciam não só encontros e paqueras, mas também manifestações políticas, contra a repressão às Paradas LGBTs e também de divulgação de campanhas de prevenção às DST/ Aids e a distribuição de preservativos.

Sobre o Lampião da Esquina É com esse pano de fundo que os primeiros grupos de gays e lésbicas irão se deparar8. Tudo começou em 1977, quando João Antônio de Souza Mascarenhas convidou Winston Leyland, diretor da editora gay norte-americana Gay Sunshine Press, a visitar o Brasil. João Antônio, advogado que vivia em Ipanema, na época já estava atento ao cenário internacional. Foi o primeiro assinante latino-americano da referida revista, entre 1972 e 1977 (CÂMARA, 2002; HOWES, 2003). Seu convite tinha o intuito de ressaltar publicamente o movimento homossexual e a imprensa gay. A entrevista de Leyland ao Pasquim foi fonte de inspiração para o lançamento do jornal Lampião da Esquina, em 1978, em Copacabana, publicado até 1981. (MACRAE, 1990; HOWES, 2003). Embora publicações gays, como Snob, Gente Gay, Entender, Gayvota, etc. já circulassem, o Lampião se diferenciou por seu cunho político. Contando com a colaboração de intelectuais, um conselho editorial assumidamente gay e Aguinaldo Silva como coordenador de edição, o jornal passou a focalizar diretamente o mundo gay no contexto da abertura política. Naquela conjuntura, gays, lésbicas e travestis eram alvo da repressão, vistos como pervertidos, comunistas e contra os cristãos, e, portanto, uma ameaça à segurança nacional. O Lampião da Esquina foi um instrumento para o movimento, repercutindo até o presente. Ainda em 1978, alguns de seus colaboradores fundaram o primeiro grupo homossexual militante, em São Paulo: Somos – Grupo de Afirmação Homossexual. Um ícone para a história do movimento LGBT brasileiro. (MACRAE, 1990).

Repressão e contrastes do Rio de Janeiro Em 1979, surgiram três (ou cinco) grupos no Rio. Em julho, foi criado o Grupo de Atuação e Afirmação Gay (Gaag) em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Era formado 376

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por lésbicas, na maioria negras e trabalhadoras, contando com apenas um homem. Já havia a necessidade de se reunirem, mas o Lampião e o Somos/SP serviram como incentivos. (CÂMARA, 2002). No mesmo ano, foi criada a Associação de Gays e Amigos de Nova Iguaçu e Mesquita (Aganim), também na Baixada Fluminense, ainda que seu registro seja de 1988. Um grupo misto, em funcionamento. Inicialmente, contava com seus associados para ações comuns à militância da época, que promovia espaços para gays e lésbicas se encontrarem e pouca aparição pública. Atualmente, tem como principais atividades: prevenção às DST/Aids, hepatites e tuberculose; apoio jurídico e encaminhamentos para o mercado de trabalho. Neno Ferreira, Presidente do grupo, afirmou que a situação da população LGBT mudou muito e hoje conta-se com o Programa Rio Sem Homofobia. Ainda no final de 1979, surgiu o grupo Somos/RJ (MACRAE, 1990; FACCHINI, 2003), que, assim como o Gaag, teve vida curta. Após uma divisão, o Somos/RJ gerou o grupo Auê e, posteriormente, se fundiram no Somos/Auê. Veriano Terto Jr., um de seus integrantes, comenta a respeito: O Somos se reunia basicamente em Copacabana, na Zona Sul da cidade. Em um determinado momento, houve uma cisão relacionada à participação ou não de pessoas heterossexuais no grupo. Isto aconteceu na mesma época em que a Carmen Dora Guimarães frequentava o grupo e havia terminado sua pesquisa de mestrado que resultou no livro “O homossexual visto por entendidos”, uma das obras mais importantes sobre o tema no final dos anos 70, mas somente publicado anos depois. A partir dessa cisão, foi criado o Auê por pessoas mais afinadas com uma composição de grupo, formado exclusivamente por homossexuais. Sob a liderança de Marcelo Liberali e Leila Míccolis, o grupo Auê passou a se reunir em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. Era organizado em subgrupos de convivência, que se formavam de acordo com a procura dos interessados que, a cada mês, eram convidados para uma reunião e daí se formava o subgrupo. Cada subgrupo de convivência iniciava com até 20 pessoas e depois ia diminuindo e daí os grupos anteriores já diminuídos passavam a se fundir com aqueles mais recentes. Com o tempo e as dificuldades institucionais, o número geral de participantes foi minguando. Ainda em 1981, o Auê, que nunca chegou a ter o número de participantes do Somos, também começou a perder membros. Talvez por isso, por volta de 82, os dois grupos voltaram a se juntar sob o nome: Somos/Auê, porém com o Somos já muito enfraquecido. Foi o núcleo inicial do Auê que acabou conduzindo as ações do grupo, tanto que as reuniões se mantiveram em Vila Isabel, quase que exclusivamente. (Veriano Terto Jr. – ativista do Somos, Auê e Assessor de Projetos da Abia)

Em 1981, o escritor Herbert Daniel, ex-militante da luta armada, voltou do exílio após 12 anos vivendo na clandestinidade. Seu nome de batismo era Herbert Eustáquio de Carvalho, Daniel sendo um dos codinomes na guerrilha que ele passou a adotar. Foi o último exilado a voltar ao país. Seus romances retratam as repressões política e sexual, como demonstra o trecho a seguir: n.9, 2015, p.373-396

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Ser homossexual, o que é isto? Na época da guerrilha, sexo era assunto “pessoal”, não era “político”. A separação entre pessoal e político, entre público e privado, é uma das bases da ética de toda política conservadora. A esquerda, adotando essa ética conservadora, pensando de uma certa forma o poder, pensou um corpo abstrato, “socialista”, onde o sexo era uma tecnologia a serviço da procriação, ou só procriação de um prazer conformado a preconceitos. (Deixa Aflorar, 1986, p.7 apud CÂMARA, 2000).

Em 1982, o movimento homossexual encontrava-se em um momento de tensão, e Daniel passou a ser uma liderança forte. Nessa época, as reuniões do grupo Auê passaram a ser em sua casa, em Laranjeiras. No entanto, entre o final de 1983 e o início de 1984, o grupo se desfez. Também em 1982, Daniel foi assessor da campanha de Liszt Vieira, deputado estadual eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Vários colegas que haviam sido exilados no mesmo período voltaram ao Brasil com debates sobre meio ambiente e minorias. Em 1986, já em coligação PT-PV (Partido Verde), estiveram juntos em campanha: Fernando Gabeira para governador, Liszt Vieira para deputado federal e Herbert Daniel para deputado estadual. Houve apoio de grupos gays, mas também acusações de que Daniel estaria usando o movimento para fazer sua campanha. Em suma, Daniel não se elegeu e logo depois foi convidado por Silvia Ramos, uma amiga em comum com Liszt, a trabalhar na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), fundada naquele ano e presidida por Herbert de Souza, o Betinho. Daniel teve um papel fundamental no enfrentamento da Aids, por alertar sobre os efeitos sociais da epidemia, defender a cidadania de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e denunciar sua morte civil. Em um de seus artigos, Daniel afirmou: Hoje, já nos anos 90, pode-se dizer que a forma mais aguda que toma a discriminação em todas as suas sofisticações é a da condenação a uma espécie de morte civil: um isolamento onde os direitos humanos são colocados em suspensão, entre parênteses. A AIDS costuma matar muito mais no que se chama de “resto da vida” do “doente”, do “agonizante”, do “aidético”, do que matar biologicamente. Morte antes da morte, essa “AIDS” impõe o silêncio e a clandestinidade. (DANIEL, 1990, p.1)

O debate recente sobre os desaparecidos na ditadura trouxe à tona a repressão contra os homossexuais. Em 16 de maio de 2012, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que incluiu em seu relatório um capítulo sobre a homossexualidade A pesquisa demonstrou que houve perseguição, dificultando os modos de vida e a organização do movimento (GREEN e QUINALHA, 2014). Por sua vez, os homossexuais também eram rechaçados por parte da esquerda, corroborando o histórico do símbolo triângulo rosa e os escritos de Herbert Daniel (CÂMARA, 2000). As evidências trazidas pela CNV configuraram uma verdade histórica: LGBTs existem, fazem política e são perseguidos e censurados por uma ou por ambas as razões. 378

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Durante a apresentação do relatório, ficou patente a necessidade de uma lei que puna crimes de homofobia. Há anos o movimento LGBT vem pressionando o Congresso Nacional para a aprovação do PLC122/2006, que visa criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. (VECCHIATTI, s/d).

Manifestantes fazem ato no Rio pedindo a criminalização da homofobia – Av. Presidente Vargas, Centro, 28 junho. 2013. Foto: Marcelo Piu – Agência O Globo Fonte: G1 Rio de Janeiro http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/06/manifestantes-contra-cura-gay-se-reunem-na-candelaria-no-rio.html

Mais contrastes, mas delineando caminhos Depois da ausência do Somos/Auê, em 1985 tem-se registros da fundação dos grupos Atobá, Movimento de Emancipação Homossexual e Triângulo Rosa. O Atobá surgiu em Realengo, trazendo uma contribuição relevante. Diferente da maioria dos grupos, o Atobá não contava com a participação de intelectuais, mas de pessoas simples da Zona Oeste. Sem limitar tal fato a um determinismo econômico, mas pensando nas correlações com seus gostos de classe e capitais social e cultural (BOURDIEU, 1983), o Atobá evidenciou outra realidade. n.9, 2015, p.373-396

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Desde o início, diferenciou-se ao trazer à tona denúncias de violência contra homossexuais, especialmente em sua área de atuação. No início da década de 1990, comecei a frequentar as reuniões do grupo Atobá, localizado em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. O clima ainda era de um segmento que se encontrava em locais alternativos e “meio” escondidos da sociedade, um pouco pelo preconceito e pela violência em tempos em que não existia marco legal algum para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e muito (creio eu) pela recente saída de um regime militar que assombrou o Brasil por duas décadas. (Marcio Marins – membro e ex-Presidente do Atobá)

Em dado momento, o Atobá dialogava mais com o GGB do que com os grupos cariocas9. Sempre esteve muito ligado às agendas da violência e da saúde. Em 1986, participou da fundação da Abia, junto com outros movimentos sociais e instituições (TERTO JR., 1996). Em 1989, participou do Projeto Previna, primeiro projeto de parceria governo-sociedade criado pela Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde (CN-DST/AIDS-MS). O Projeto Previna era nacional, voltado para populações vulneráveis (prostitutas, travestis, michês, homossexuais, usuários de drogas injetáveis e população privada de liberdade), que reclamavam para não serem vistas como “grupos de risco”. No Rio, o Projeto Previna era desenvolvido pelo Programa Prostituição e Direitos Civis, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), responsável pela elaboração de materiais de prevenção para prostitutas, travestis e michês. A participação de grupos organizados foi imprescindível para que se incluísse o protagonismo dessas populações na prevenção às DST/Aids e a educação pelos pares, já que até então as informações eram veiculadas em linguagem científica, alheia às culturas das mesmas. Em 1992, esse programa levou à criação do grupo Davida, presidido por Gabriela Leite, visando à promoção da cidadania de prostitutas, e do Programa Integrado de Marginalidade (PIM), que teve Adauto Belarmino Alves entre seus fundadores. Mesmo no Iser, Adauto continuou como membro do Atobá e trabalhava com especial atenção aos direitos humanos e às populações marginalizadas. Sua participação na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1994, propiciou contatos significativos que trouxeram a Conferência da International Lesbian and Gay Association (Ilga) para o Brasil no ano seguinte.

Interfaces entre o movimento LGBT e as ONGs/Aids A partir de 1986, o movimento LGBT do Rio foi gradativamente se imbricando com as ONGs/Aids. Mas seria seu papel fazer a prevenção ao HIV/Aids ou sua missão deveria estar focada na defesa de direitos de gays e lésbicas? Este foi um debate central para o Triângulo Rosa e um momento singular para o movimento LGBT.

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Especialmente no Rio, as primeiras ONGs/Aids surgiram muito próximas da referência associativa da esquerda política, mais do que da área da saúde. Também se referenciando na prática política que se utilizava de protestos de rua associada a uma vigilância sobre as políticas públicas. Traços na formação das ONGs/Aids que influenciaram os grupos LGBT, que eram poucos, e alguns reticentes quanto ao tema da Aids. Paradoxalmente, depois da Aids o número de grupos LGBT cresceu significativamente. Além disso, as mudanças na conjuntura política brasileira afetaram os espaços gays definitivamente. No entanto, a Aids e a nova onda de preconceitos que suscitava não devem ser apontadas como os únicos responsáveis por esta mudança. O reforço do circuito comercial, com locais mais institucionalizados, a repressão policial nas ruas, as mudanças no espaço urbano com a iluminação e reformas de praças, ruas e jardins, a violência crescente dos assaltos, a crise econômica que fomentou a mendicância e o número de pessoas sem casa vivendo na rua são alguns dos fatores que contribuíram para desmantelar grande parte desse circuito de sexo mais orgiástico, anônimo e clandestino que caracterizava grande parte do comportamento e da prática sexuais de milhares de homens. As saunas (...) nunca conseguiram substituir totalmente estes locais mais clandestinos anteriormente citados, cujos baixos custos sempre atraíram forte presença popular. (TERTO JR., 1996, p. 93).

A ida de Daniel para a Abia introduziu a questão da homossexualidade na organização. Sua campanha fora de defesa dos direitos dos homossexuais, que confrontava a tensão entre Aids e homossexualidade, inclusive nas ONGs/Aids. Além de falar na primeira pessoa, Daniel recebeu o diagnóstico de Aids já na Abia. Depois disso, ele fundou o Grupo Pela Vidda/RJ (GPV) e continuou trabalhando na Abia10. Se, por um lado, a visibilidade dos grupos LGBTs ocorreu nesse cenário, por outro, Daniel levou uma cultura gay para o GPV. No caso, uma cultura gay com características de classe média intelectualizada e um discurso sintonizado com as mudanças culturais e políticas. O GPV propiciava espaços de convivência e/ou festivos que inexistiam nos grupos gays. Com exceção da Turma OK e, a partir de 1993, no GAI e no Núcleo de Orientação em Saúde Social (Noss). Em 1991, Paulo Henrique Longo e Sylvio de Oliveira criaram o Noss, uma ONG/Aids que desenvolveu projetos com homossexuais, michês (Projeto Pegação) e população privada de liberdade (Projeto Teresa). No início dos anos 90, o Noss trouxe ao Brasil um modelo de bar voltado para a prevenção ao HIV/Aids. O Safe Bar, situado na Glória, foi o único projeto de uma ONG e o único bar a reunir diversão noturna e prevenção ao HIV/Aids. Periodicamente havia exposições de artes plásticas e fotografias, apresentações musicais, performances e talk shows organizados por Paulo Longo, que entrevistava pessoas ligadas ao mundo gay e/ou que atuavam na luta contra o HIV/Aids. Outra singularidade do Noss foi o jornal Nós Por Exemplo, produzido por Sylvio de Oliveira, que pretendia fortalecer os grupos vulneráveis ao HIV/Aids. Ao longo do tempo, passou a contar com um encarte específico: “Agaivê hoje”. Era um jornal dirigido n.9, 2015, p.373-396

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primordialmente ao público gay, pioneiro na maneira de lidar com a homossexualidade e a Aids (MAIOR JÚNIOR, 2014) e um importante catalisador de grupos LGBT que atuavam de forma isolada no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro. Segundo Rodrigues (2010, p. 504): O surgimento do NPE veio preencher várias lacunas por representar a volta de um periódico direcionado à comunidade gay/lésbica, por se constituir em um veículo no qual a Aids pôde ser tratada de forma honesta e segura, livre de cunho moralista e preconceituoso, e por garantir apoio e divulgação para o movimento homossexual brasileiro, à semelhança do que um dia o Lampião fez para o iniciante movimento de organização da “minoria gay”, até então sem uma mídia que lhe garantisse espaço de expressão. (...) O NPE não teve o impacto do Lampião e nem terá o sucesso, como veremos a seguir, da revista Sui Generis. Entretanto, foi pioneiro em enfrentar a Aids, falando de sexo, doença e morte de uma forma cuidadosa e honesta, sem deixar de lado o cuidado estético. O NPE desaparece no segundo semestre de 1995, mas desta vez a imprensa gay tinha crescido.

A revista Sui Generis circulou entre 1994 e 2000, tendo contribuído para a formação de um mercado LGBT de classe média com base em comportamentos e tendências de mercado.

Mudando de eixo com o grupo Triângulo Rosa Fundado em 1985, o Triângulo Rosa passou por debates intensos até trilhar seu caminho na defesa de direitos. Havia três vertentes em conflito11. A primeira, sustentada por Caio Benévolo, considerava que a defesa da liberação sexual deveria ser a prioridade do grupo. A segunda, defendida por Paulo Fatal12, destacava a informação sobre Aids para a população gay como primordial. E a terceira, defendida por João Antônio Mascarenhas e a que prevaleceu, enfatizava a defesa dos direitos de cidadania dos homossexuais. O discurso do grupo estava voltado, principalmente, para os homossexuais masculinos, e havia dificuldade em envolver os travestis (na época no masculino), devido à associação com a prostituição e a tentativa do Triângulo Rosa de se distanciar desta referência. (CÂMARA, 2002). Além da conjuntura marcada pelo surgimento da Aids, as atenções políticas estavam voltadas para a formação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). O Triângulo Rosa trouxe outra perspectiva, em alguns momentos atuando em parceria com o GGB e o Lambda (São Paulo). Seu principal objetivo era a superação dos preconceitos, entendendose as reivindicações jurídico-legais como fundamentais. Na expressão “orientação sexual”, o Triângulo Rosa marcou sua especificidade frente a outros grupos e, ao mesmo tempo, rompeu simbolicamente o “gueto homossexual”. Orientação sexual é uma expressão que indica uma referência identitária e/ou um modo de vida diretamente associado à sexualidade. Possui um caráter afirmativo e dissocia a homossexualidade das ideias de crime, pecado e doença, possibilitando a construção de um lugar socialmente viável para as relações homoafetivas. Implica um devir, demonstrando que as subjetividades são simultaneamente construídas 382

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e instituintes das relações sociais. A não discriminação por orientação sexual seria a “concretização do princípio jurídico da igualdade” (RIOS, 2001, p.50), ou seja, a igualdade perante a lei. O Triângulo Rosa assumiu uma luta simbólica, por confrontar valores religiosos, concepções médicas, normas jurídicas, de construção de identidade, e ainda, pela revisão das concepções sobre feminilidade e masculinidade, separando a anatomia das referências simbólicas que lhes são atribuídas. Com o Triângulo Rosa, da rejeição e denúncia à exclusão, o movimento passou a demandar a elaboração de direitos individuais nos códigos que regulam a relação entre sociedade civil e Estado. Essa demanda lhe garantiu visibilidade e fez surgir uma possibilidade efetiva de conquistas futuras, sendo útil para reflexões posteriores que reatualizam os debates durante o período da ANC, quando a bancada evangélica ainda estava se formando no Congresso Nacional. (CÂMARA, 2002). A não discriminação por orientação sexual não foi incluída na Constituição Federal, mas toda a mobilização em

Homomonument – Projetado por Karin Danna, inaugurado em 05 set. 1987 no Centro de Amsterdam. Foi o primeiro monumento no mundo em homenagem a gays e lésbicas que foram mortos pelos nazistas. São três triângulos de 10 metros de cada lado, que formam um maior de 36 metros. Um triângulo de granito rosa no canal (local de homenagens, sempre com flores in memoriam); na praça, outro triângulo com 60 cm de altura; e um terceiro triângulo memorial formado por um verso do escritor judeu gay Jacob Israël de Haan (1881-1924): Naar Vriendschap Zulk Een Mateloos Verlangen (Such an endless desire for friendship) do poema To a Young Fisherman. Um dos pontos do triângulo aponta para a National War Memorial, na Dam Square. Outro aponta para a casa de Anne Frank, enquanto o terceiro para a sede da COC Nederland, organização holandesa de direitos dos homossexuais. Foto: Cartão postal Fonte: Arquivo pessoal n.9, 2015, p.373-396

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torno dessa demanda fez com que os debates avançassem, possibilitando sua inclusão em legislações estaduais e leis orgânicas municipais, e incluindo reivindicações semelhantes em documentos oficiais, como o Programa Nacional de Direitos Humanos (RIOS, 2001). João Antônio Mascarenhas foi o primeiro homossexual brasileiro a ser convidado a falar no Congresso Nacional, para debater com os constituintes sobre a inclusão da não discriminação por orientação sexual na Constituição Federal. Sabia que a tarefa seria difícil, mas continuava otimista, e somente o fato de estar no Congresso Nacional era motivo para divulgar e comemorar.

Travestis fazem política A construção de uma identidade homossexual “normal” levou a um afastamento entre gays e travestis, muitas vezes referidas como caricaturas do feminino, associadas à prostituição, pequenos furtos e drogas (CÂMARA, 2000, CARVALHO e CARRARA, 2013). Isso vai mudando com o surgimento da Aids, novas gerações no movimento LGBT e, evidentemente, devido aos embates políticos no movimento “homossexual”, até chegar a ser “LGBT”. Somente nos anos 90 as travestis e algumas transexuais criaram organizações próprias. No Rio, a Associação de Travestis e Liberados (Astral) foi criada em 1992, no Iser, por iniciativa de Jovanna Baby, que já tinha proximidade com o Projeto Previna e viu nascerem, no mesmo ano, o Davida e o PIM. Grupos que puseram em questão as correlações entre prostituição-violência-marginalidade-HIV/Aids. A Astral surgiu em resposta à violência policial, principalmente em áreas de prostituição. A formação de uma associação de travestis foi o primeiro passo para mais adiante se definir uma identidade “travesti” (CARVALHO e CARRARA, 2013) e agregar evidências a pesquisas e políticas que passaram a demonstrar que as travestis são as maiores vítimas de homofobia e de violência (SOARES, 2000; RAMOS, 2005). A Astral contribuiu para a redução de discriminações e preconceitos ao se manifestar contra prisões arbitrárias de travestis, inclusive repercutindo na mídia. Também, especialmente a partir de apoios da CN-DST/AIDS-MS, as associações de travestis passaram a compor suas interlocuções junto às ONGs/Aids, a participar da elaboração de planos de ação do movimento LGBT, além de começarem a elaborar seus próprios projetos. Por último, mas não menos importante, em 1993 a Astral organizou o 1º Encontro de Travestis e Liberados, realizado no Iser, atualmente denominado Encontro Nacional de Travestis e Transexuais, que se consolidou como um encontro anual. Encontros que têm contribuído para que travestis e transexuais estabeleçam uma rede própria, possibilitando o surgimento de lideranças e fortalecendo sua agenda no movimento LGBT e fora dele. A despeito de suas conquistas (acesso ao tratamento hormonal, cirurgia de redesignação, uso do nome social, etc.), os casos de violência continuam sendo recorrentes. No Rio, 384

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atualmente, há duas organizações: a Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (Astra-Rio) e o Movimento de Gays, Travestis e Transformistas (MGTT), em Madureira.

I Marcha Nacional contra a homofobia, Brasília, 19 maio 2010. Foto: Elza Fiúza - ABr Fonte: Agência Brasil http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2010-05-19/1%C2%AA-marcha-nacional-contra-homofobia-na-esplanada-dos-ministerios

Equilibrando a defesa de direitos com a prevenção ao HIV/Aids Em 1993, foi criado o Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (GAI). Diferente dos grupos anteriores, o GAI já demonstrava atenção ao desenvolvimento organizacional e à gestão do conhecimento, focos presentes na ideia de profissionalização das ONGs. Do mesmo modo, o grupo surgiu atento ao contexto da Aids e ao início dos apoios do governo federal a projetos de ONGs. No mesmo ano, houve uma reunião no Iser sobre a primeira seleção pública de projetos de ONGs pela CN-DST/AIDS-MS – a partir do Acordo de Empréstimo entre o governo brasileiro e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) –, que destinaria verbas para Homens que fazem Sexo com Homens (HSH). Os recursos eram para intervenção comportamental e formação de lideranças LGBT. Desde então, com convênios com o MS, era possível trabalhar em projetos específicos para gays e outros HSH. Entre os n.9, 2015, p.373-396

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presentes à reunião, estiveram Atobá, GAI, Abia e GPV. O financiamento do governo federal e o diálogo com as ONGs/Aids trouxeram um novo momento para os grupos LGBT e sua organização no Rio. Nos primeiros anos (1993-1999), sob a presidência de Augusto Andrade, o GAI organizava eventos culturais públicos, como Tardes de Convivência no Museu de Arte Moderna; Mostras de Filmes Gays/Lésbicos; Seminários “Pensando a Homossexualidade”, que eram estratégias para testar a adesão do público a eventos coletivos LGBTs. Mais adiante, diferentemente de grupos anteriores, o GAI incentiva a participação de mulheres, inclusive desenvolvendo projetos específicos e atividades dirigidas a lésbicas e mulheres bissexuais, além de uma atuação mais recente junto ao público jovem. Entre vários projetos, contou com “Entre garotos – Promoção da qualidade de vida entre jovens gays e bissexuais” e “Laços & Acasos: mulheres, desejos e saúde”. Ambos foram financiados pela Fundação Schorer (Holanda) como parte do Projeto Sagas Brasil: promoção da saúde e prevenção das IST/ HIV/Aids com LGBT, que envolvia ainda Abia (Rio de Janeiro), Grupo de Resistência Asa Branca (Grab) Fortaleza) e Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade (Porto Alegre). Atualmente, a restrição de financiamentos tem dificultado os trabalhos de grupos LGBTs e de ONGs/Aids. Em maio de 2015, após 22 anos, o GAI anunciou a suspensão de suas atividades por tempo indeterminado, devido a problemas financeiros.

Do lado de fora: Marcha pela Cidadania Plena de Gays e Lésbicas

Marcha pela Cidadania Plena de Gays e Lésbicas, Av. Atlântica, Copacabana, 25 jun. 1995. Foto: Cristina Câmara Fonte: Arquivo pessoal 386

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Em 1969, a batida policial no bar Stonewall, em Nova York, gerou o primeiro protesto de rua no dia 28 de junho, levando ao Dia Internacional do Orgulho Gay. No Brasil, a partir do final dos anos 80, foram ensaiadas as primeiras Paradas, mas foi em 1995 que tudo mudou. Esse ano foi particularmente importante para o movimento. Pela primeira vez, a Conferência da Ilga, em sua 17ª edição, foi realizada no Brasil, no Rio de Janeiro, entre 19 e 25 de junho. Ao final da Conferência, ocorreu a Marcha pela Cidadania Plena de Gays e Lésbicas. O GAI organizou o evento mobilizando os grupos LGBTs brasileiros, que haviam fundado a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), em 31 de janeiro do mesmo ano. A importância desses eventos reside na grande repercussão ocorrida na mídia televisiva e escrita na ocasião: nos cadernos de economia, comportamento e cultura, ou seja, na conquista e/ou deslocamento para outros espaços discursivos além das páginas policiais.(...) Participei de outras [Paradas], bem pequenas (Arpoador, Centro do Rio). Lembro-me do João Antônio Mascarenhas e do Sylvio de Oliveira referindose a outras anteriores com participação de poucas pessoas, nem por isso menos importantes. Lembro-me de uma organizada pelo Atobá no Aterro do Flamengo. (Augusto Andrade – primeiro Presidente do GAI)13.

Entretanto, foi a Marcha pela Cidadania Plena de Gays e Lésbicas que se tornou um divisor de águas, consolidando o advento das Paradas LGBTs no Brasil. Inspirou-as, inclusive, para a eleição de um tema. Em 1995: “Não à intolerância, ao preconceito, e sim aos direitos de todos os marginalizados”. A ideia inicial partiu de uma conversa entre Adauto Belarmino Alves (PIM) e lideranças da Ilga durante a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1994. A proposta de Adauto para que a próxima Conferência da Ilga fosse realizada no Brasil foi aceita. Ao chegar ao Brasil, ele [Adauto] nos procurou e propôs que o Arco-Íris tomasse a frente do evento. Em reunião interna, discutimos os prós, os contras, pensamos na viabilidade financeira e decidimos topar. A partir daí, começou a maratona. O Arco-Íris organizou tudo. O grupo estava à frente de tudo, e eu era o presidente do GAI, porém, claro, envolvemos todos os grupos cariocas. (...) Quem intermediou a liberação das verbas para o espaço e para a tradução simultânea foi o Adauto. Não sei te confirmar se veio do Programa de DST/Aids. O que me lembro é que foi o governo estadual que liberou o valor da tradução simultânea (R$ 25.000,00). (...) Fora esses dois itens, o dinheiro para o evento veio das inscrições e doações particulares (Renato Russo, Leila Pinheiro, por exemplo). As paradas iniciais não foram “financiadas”. Eram carros de som emprestados pelos Sindicatos dos Bancários, Sindsprev [Sindicato dos trabalhadores da Saúde, Trabalho e Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro], e pequenas doações (principalmente dos fundadores do GAI) para o resto. (Augusto Andrade – primeiro Presidente do GAI)14.

A magnitude do evento foi determinante. A Conferência da Ilga foi realizada no Hotel Rio Palace, em Copacabana, com aproximadamente 2.000 pessoas, entre ativistas brasileiros n.9, 2015, p.373-396

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e estrangeiros, representantes governamentais e vários políticos. A deputada federal Marta Suplicy foi presidente de honra da Conferência, que contou com tradução simultânea para três idiomas e sala de imprensa. A programação versava sobre direitos, união civil e adoção, entre outros temas; lançamento de livros e atividades externas, como o primeiro Gaymes e uma agenda cultural que incluía vários locais gays, entre eles o Safe Bar. Além da importância política − na ocasião tendo sido lançado publicamente o projeto de união civil −, a Conferência da Ilga mudou a apresentação pública do movimento LGBT no Brasil e seu relacionamento com a mídia. Desde então, as Paradas reificam a visibilidade LGBT e sua legitimidade adquirida naquele momento. Augusto Andrade também lembrou que, durante sua gestão no GAI, o grupo chegou a desenhar matérias sobre preconceitos junto com profissionais da Globo. Lembrando o histórico das Paradas e a relação entre o movimento LGBT e as ONGs/ Aids, Veriano Terto Jr. comentou: No Rio, as Paradas são organizadas pelos grupos gays, mas também têm o apoio e a colaboração das ONGs/Aids. Em São Paulo, foi um pouco diferente, já que os grupos locais criaram uma instituição dedicada exclusivamente ao evento: a Associação da Parada. No Rio, em geral, os grupos gays e ONGs/AIDS ajudaram a criar um ambiente social mais propício para os gays. Em alguns momentos houve uma sinergia entre grupos gays e ONGs/Aids que abriram iniciativas culturais, como teatro, vídeos, festas, espaços de encontro etc. Então, este diálogo interinstitucional contribuiu para que os grupos se recompusessem agregando de alguma forma a temática da Aids na agenda de lutas do movimento gay. (Veriano Terto Jr. – ativista do Somos, Auê e Assessor de Projetos da Abia)

Paulo Giacomini, jornalista e ativista da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/ Aids (RNP+), participou da Conferência da Ilga e da Marcha no Rio de Janeiro. Seu relato mostra como esta Conferência motivou os grupos paulistas, corroborando a análise de Santos (2007), que considera a 17ª Conferência da Ilga como um evento que contribuiu para a rearticulação do movimento LGBT em São Paulo. Em 1996, Paulo assinava a ‘Coluna Gay’ da Folha de S. Paulo e lembrou o ocorrido: Estava chegando perto do 28 de junho quando eu comecei a ligar para os grupos de gays e lésbicas aqui de São Paulo e perguntei se São Paulo ia fazer alguma coisa ou se eu ia ter de dar a Parada do Rio de Janeiro. Então, aí que surgiu [a ideia], em 96, os grupos Identidade e o Expressão, de Campinas, a Apta [Associação de Prevenção e Tratamento da Aids], o Corsa [Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor] e a Rede de Informação Um Outro Olhar se reuniram. Eram quatro grupos mais a Apta, e organizamos um ato público na Praça Roosevelt. Aquele ato foi significativo porque era um ano em que os skinheads estavam atacando os gays lá em cima, no bar Burger & Beer, na Consolação. (Paulo Giacomini – RNP+/Brasil)

Foi o primeiro passo. Desde 1997, a Parada do Orgulho LGBT acontece anualmente na Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, sendo considerada uma das maiores do mundo. 388

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A partir de 1999, devido ao crescimento das manifestações, surgiu a Associação da Parada do Orgulho LGBT, responsável pela logística do evento. E, pelo menos desde 2006, a principal reivindicação tem sido o combate à homofobia. Neste ano de 2015, foi realizada a 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, cujo tema “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: Respeitem-me!” recebeu críticas por remeter a uma visão essencialista da homossexualidade. (SOUSA FILHO, 2015).

Por dentro do Poder Em 1993, a CN-DST/AIDS-MS criou o Setor de Articulação com ONGs e Setor Privado, em parte atendendo a demandas decorrentes do Acordo de Empréstimo com o Bird. Entretanto, foi com a Rede de Direitos Humanos em HIV/Aids, criada em 1996 e coordenada por Raldo Bonifácio, que essa coordenação estreitou laços com a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), uma Secretaria do Ministério da Justiça. Passou a ter um papel articulador, sendo marcante o diálogo com as religiões (ONGs afinadas com igrejas ou líderes religiosos), bem como projetos de assessoria jurídica que retratavam a ausência ou violação de direitos de PVHA e de populações vulneráveis. Essa relação intersetorial no governo federal tornou-se, gradativamente, uma ponte para o movimento LGBT, que se aproximou não somente do Ministério da Justiça, mas também de outras pastas. Desse modo, o movimento LGBT carioca já contava com uma experiência acumulada com o Poder Público quando, em 1999, estabeleceu a parceria com a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SSP-RJ), assumida por Luiz Eduardo Soares, o primeiro secretário de Segurança Pública no governo de Anthony Garotinho (Partido Democrático Trabalhista - PDT). Se a Aids reforçou o estigma da homossexualidade e os preconceitos contra LGBT, inclusive levando a um recrudescimento de crimes homofóbicos (CERQUEIRA e MOTT, 2002), o foco na segurança pública poderia contribuir para superar ou minimizar esses crimes e para modificar a imagem de gays e travestis no contexto policial. Por isso, a atenção à violência contra LGBT e à diversidade sexual foram pontos centrais, tendo sido criado um fórum de diálogo com os movimentos sociais e, consequentemente, parcerias com os grupos LGBT e a participação de ativistas na formulação de políticas. A diferença, neste caso, é que a parceria no âmbito do estado exigiu interações face a face. O diálogo entre os grupos LGBT e as polícias civil e militar foi inovador, contando inclusive com aulas sobre homossexualidade nas dependências das polícias, ministradas por Cláudio Nascimento e Jovanna Baby. O entendimento da equipe era que o enfrentamento da homofobia não só reconhecia direitos e atendia a reivindicações do movimento LGBT como propiciava a humanização das polícias ao desvendar vivências e estilos de vida dessas populações. (SOARES, 2000; RAMOS, 2001 e 2005). n.9, 2015, p.373-396

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Pela primeira vez abriu-se um espaço para se trabalhar diretamente no combate à homofobia no epicentro da SSP com a criação da Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania, a cargo de Silvia Ramos. Apesar de ter sido uma gestão curta (1º jan. 1999 a 17 mar. 2000), o trabalho realizado no período tornou-se um marco para a população LGBT, engajando pessoas com experiências sobre violência e homossexualidade. De certo modo, houve uma confluência de fatores e interesses que levaram a SSP a reconhecer a antiga demanda de grupos de gays e lésbicas da Baixada Fluminense, que sempre reclamaram de sua invisibilidade e dos casos de violências por parte da própria polícia. Foi, de fato, um acontecimento. A criação do Disque Denúncia Homossexual (DDH) – mantido atualmente pela SuperDIR – também foi inovadora. Entre outras contribuições, o DDH possibilitou que as denúncias chegassem à SSP a partir das vozes das próprias vítimas (RAMOS, 2001). Além disso, não bastava recolher as informações, mas partir delas como um modo de fazer política que pressupunha evidências com base nas experiências, mas também em pesquisas. (RAMOS e CARRARA, 2006). Foi a partir dessa experiência de gestão que os ativistas LGBT entraram na estrutura institucional do governo do estado do Rio de Janeiro. Sete anos depois, em 31 de maio de 2007, o governador do estado, Sérgio Cabral Filho, sancionou a lei estadual Nº215/07 que possibilita a pensão para parceiros homossexuais de servidores públicos estaduais. Na mesma cerimônia, Cláudio Nascimento assumiu o cargo de superintendente de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Esta Superintendência (SuperDIR) coordena o Programa Rio Sem Homofobia (RSH) – elaborado por uma Câmara Técnica instalada com este fim, envolvendo vários setores sociais –, em sintonia com o Programa Brasil Sem Homofobia. Este Programa foi criado em 2004, na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) – que saíra do Ministério da Justiça e, em 2003, ganhara status de Ministério. É responsável pela política contra a homofobia e a promoção da cidadania LGBT, suscitando respostas institucionais para os incidentes envolvendo LGBT. No âmbito do estado, a criação dos Centros de Referência de Combate à Homofobia e Promoção da Cidadania da População LGBT tem possibilitado a prestação de serviços a vítimas de discriminação e feito a diferença para essas populações. Sim, muito. Hoje temos vários Centros de Referência LGBT, onde a população se sente acolhida, com psicólogos, advogados, Conselho da População LGBT e outras políticas públicas para o segmento. (Neno Ferreira – Presidente da Aganim)

As Conferências Estaduais de Direitos da População LGBT têm seguido o formato político de conferências em outros setores, propiciando a participação social, inclusive o aprendizado de como se situar nos jogos de poder. Há várias ações daquela gestão inicial na SSP continuadas pela SuperDIR, com inúmeros ganhos cotidianos e políticos para LGBT. 390

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Por sua vez, a atuação do então ativista em Aids, Carlos Tufvesson – atualmente Coordenador da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (Ceds) da Prefeitura do Rio de Janeiro –, junto ao governador do estado, levaram-no a ajuizar, em 2008, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 (ADPF 132) abrindo precedentes para todo Brasil. A ADPF 132 levou o Supremo Tribunal Federal (STF) – em julgamento conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 (ADI 4277, 2009), realizado nos dias 4 e 5 de maio de 2011 –, a declarar, por unanimidade de votos, a isonomia entre conjugalidades homo e heterossexuais, assegurando-lhes os mesmos direitos. De acordo com Rita Colaço: A Associação da Parada de São Paulo havia ajuizado uma ação, que foi indeferida, tendo o relator indicado o caminho processual a seu ver mais adequado - a ADPF. Mas o seu ajuizamento exige a iniciativa de uma entidade de caráter nacional ou de um governador de estado. Após o governador do Rio de Janeiro haver impetrado a ADPF é que outras entidades apareceram, como amicius curiae. No ano seguinte, a PGR [Procuradoria Geral da República] ajuizou a ADI, recebendo, igualmente, a adesão de outras associações de defesa dos direitos de LGBTs. A ADPF foi, portanto, a iniciativa decisiva para o reconhecimento jurídico de famílias formadas por homossexuais, com a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às heterossexuais. O governador teria legitimidade para arguir o tema apenas em relação à sua esfera de competência, por isso a abordagem foi do ponto de vista dos servidores do estado do Rio de Janeiro. A interpretação que vinha sendo dada pelo Poder Judiciário a certos direitos fixados no Estatuto dos Servidores do Estado, excluindo deles aqueles em união homossexual, representava violação a diversos princípios constitucionais, como o da dignidade, da igualdade e o da livre determinação. Era preciso, portanto, que o STF desse a interpretação, tanto para o artigo 226 da Constituição, como para o artigo 1.723 do Código Civil, à luz do conjunto do texto constitucional, ou seja, em sua interpretação sistemática, afastando a possibilidade de interpretações discriminatórias. Uma tal decisão não poderia se restringir ao estado do Rio de Janeiro, pois representaria a instituição de dois sistemas jurídicos no país. Ou seja, ela teria que, forçosamente, ser estendida à toda a sociedade nacional, ainda que o pedido do governador se restringisse aos servidores de seu estado. Por outro lado, reconhecer a isonomia entre as uniões estáveis homo e heterossexuais implicava reconhecer, também, a possibilidade de sua conversão em casamento (civil), sendo dever do estado facilitá-la, conforme previsto na Constituição Federal. (Rita Colaço, ativista independente e pesquisadora)

Por fim, as cerimônias coletivas de casamento civil realizadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, configuraram um marco simbólico para LGBT.

Considerações finais O movimento LGBT no Rio de Janeiro vem redesenhando sua história ao compor as agendas de violência, saúde e direitos humanos. Por mais que ainda haja desigualdades internas nos grupos LGBTs, é importante valorizar a visibilidade e a participação crescentes n.9, 2015, p.373-396

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de lésbicas e bissexuais (especialmente jovens), e a mudança de status político de travestis e transexuais. São mudanças significativas no plano individual, mas também na composição do próprio movimento LGBT. No cenário político, o debate sobre direitos LGBT continua intenso, e o discurso conservador marcado pelas concepções de pecado e doença. Por sua vez, os avanços científicos das biomédicas às ciências humanas e as mudanças na cultura política, por exemplo, com a decisão histórica do STF ao reconhecer a união estável homoafetiva, continuam apresentando contrastes. O tema da homossexualidade, além de sua carga moral, refunda um discurso moralizante, não mais em nome de Deus, mas do fazer política. Por outro lado, ações da SDH-PR e da CNV trouxeram à tona violações de direitos humanos de LGBT, ontem e hoje, que explicitam crimes homofóbicos, xenofobia, questionamentos sobre a laicidade do Estado e o péssimo desempenho de parlamentares conservadores e/ou fundamentalistas religiosos que insistem em ignorar as demandas sociais e os consensos científicos. Eles transformam seus papéis de representantes do povo em moeda de troca, sem valor republicano e sem respeito aos direitos humanos. Apesar disso, o movimento LGBT consolida seu próprio referencial e faz-se presente com um acúmulo de debates teóricos e conquistas políticas. A situação vivenciada hoje por LGBTs não pode ser comparada com a de décadas atrás. Há apoio de inúmeras autoridades e líderes de diversos setores, e a gestão política LGBT em governos diferentes tem contribuído para o seu reconhecimento15. Entretanto, há uma relação triangulada – governo, movimento social e sua “base social” – que não é própria desse movimento, mas exige atenção. Desde os anos 90, fala-se sobre a necessidade de ultrapassar o confronto entre sociedade e Estado, buscando conciliações e consensos, inclusive construindo agendas comuns. Algumas críticas passam a ser vistas como anacrônicas, já que o momento é não só de composição, mas de situação. Uma conquista. Contudo, talvez seja necessário revisitar a concepção de movimentos sociais como sujeitos que fazem emergir os problemas sociais e, simultaneamente, mantêm-se vigilantes sobre as políticas públicas. A participação nas instâncias colegiadas é importante, mas é preciso atenção para que o movimento não se restrinja às agendas do Executivo e, principalmente, não se esqueça de seu papel de mediador entre governo e “base social”. Faz-se mister afirmar que o movimento LGBT precisa estar atento à sua capacidade de comunicação e mesmo de representação dos anseios daquela que se considera ser sua “base social”. Conflitos entre identidades coletivas e o distanciamento entre ativistas e base em geral interferem em seu potencial político como sujeito autônomo. Tais dificuldades se agravam na medida em que a política de identidades levada a cabo pelo movimento, aliada a um estilo de política governamental que a retroalimenta, fragiliza a solidariedade entre movimentos sociais que compartilham tanto oponentes no cenário político quanto potenciais bandeiras de luta. Agravam-se também pelo foco nos “circuitos institucionais”, dando pouca atenção à 392

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comunicação com a base e com aliados potenciais para além do âmbito do Estado. (Fraser, 2012). Olhar para o movimento LGBT considerando sua complexidade pode ajudar a refletir sobre as ambiguidades que marcam seu reconhecimento. Notas Seguindo Pollak (1992), entendo “acontecimento” como um fato que não se repetirá, tendo gerado uma ruptura, um avanço ou um marco para a história do movimento LGBT. 1

2 Pela primeira vez, o Censo 2010 contabilizou a população residente com cônjuges do mesmo sexo. Foram 60.035 casais (10.170 no Rio de Janeiro), sendo 44,19% de homens e 55,81% de mulheres, e 97,09% em zona urbana. De acordo com estudo do IBGE: “Contudo, estas transformações ocorridas na estrutura familiar, nas normas de casamento e na queda da fecundidade não deixam de ser objeto de disputas no campo da ordem simbólica. Os setores mais conservadores da sociedade interpretam o fim da “família normal” como uma “crise da família”, já que esta deixa de ser a referência mestra do tecido social. As famílias tinham uma função central nas sociedades onde elas concentravam as funções de produção e reprodução”. (Alves, 2010, p. 9). Segundo o Conselho Nacional de Justiça, após dois anos da Resolução Nº 175 de 14 de maio de 2013, que impede os cartórios de se recusarem a converter uniões estáveis em casamentos civis, há 3,7 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. 3 Agradeço a: Augusto Andrade (primeiro Presidente do GAI); Julio Moreira (Presidente do GAI); Manoel Ferreira da Cunha (Neno Ferreira – Presidente da Aganim e Coordenador da Coordenadoria de Políticas Públicas para Diversidade Sexual); Marcio Marins (membro do Atobá de 1990 a 2003, tendo assumido a presidência do grupo por duas gestões); Paulo Giacomini (Secretário de Informação e Comunicação da RNP+/Brasil e um dos Coordenadores da 1ª Parada LGBT de São Paulo); Rita Colaço (Fundadora do Gaag, ativista do Triângulo Rosa, atualmente ativista independente e pesquisadora); Veriano Terto Jr. (ativista do Somos/RJ, Auê, ex-Coordenador e atual Assessor de Projetos da Abia; e, Yone Lindgren (ativista do Somos/RJ e fundadora do Movimento D’Ellas). São pessoas com as quais pude pensar em voz alta e resgatar um pouco dessa história. Entretanto, ressalto que este texto é de minha inteira responsabilidade. 4 Sobre meu lugar referencial, não sou ativista LGBT, mas não estou distante e alheia aos ativistas e a seu movimento. Escrevo a partir de minha trajetória acadêmica e política, de espaços que me levaram a conviver e a compartilhar debates LGBT,

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gerando simultaneamente um repensar individual e a busca por empatia com o outro. O estudo sobre o grupo Triângulo Rosa foi um momento ímpar e me aproximou do GPV. 5 Para o presente artigo são mencionados grupos LGBT identificados na literatura e/ou que se destacaram em sua atuação. Há outros grupos importantes, mas não foi possível obter registros ou contatos nesse momento. 6 Várias travestis transformistas são aliadas dos movimentos LGBT e de Aids. O documentário “Divinas Divas” homenageia algumas delas. Estreia de Leandra Leal na direção, o longa-metragem apresenta as primeiras artistas travestis do Brasil – Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Marquesa, Brigitte de Búzios e Fujika de Halliday. Artistas que completaram 50 anos de carreira em 2014. O lançamento do filme foi previsto para 2015. Sobre a cultura e os espaços de interação e sociabilidade gay, ver Green (2000). 7 Na literatura LGBT, as noções de território e territorialidade têm sido influenciadas pelos estudos de Néstor Perlongher, que, por sua vez, revela-se inspirado pela Escola de Chicago e pelos guetos gays americanos, mas buscando ampliar a perspectiva territorial, “entendida aqui como extensão superficial que alude a certa distribuição dos corpos, das matérias sociais, no espaço. Daí a preocupação com o território, por múltiplos que sejam seus enfoques, desvelar, no seu próprio lançamento ou colocação, a instauração de uma ótica que parte de uma pergunta pelo lugar”. (Perlongher, 1989, p. 1). 8 Naquele momento, era usual referir-se ao “movimento homossexual”, e apesar de se tentar mudar para “gay”, como até hoje, os termos são utilizados como sinônimos. No entanto, na trajetória do movimento, a mudança de “homossexual” para “LGBT” é politicamente significativa. Configura um processo de inclusão, aceitação e afirmação da diversidade LGBT. Ver MacRae (1990), Facchini (2003) e Guimarães (2004). 9 O antropólogo Luiz Mott, fundador e presidente do GGB, fez vários estudos e publicações sobre a violência contra homossexuais. Em 1997, o GGB publicou seu primeiro boletim sobre assassinatos de homossexuais no Brasil.

A atenção da Abia com a questão gay foi iniciada por Herbert Daniel e Carmen Dora Guimarães, mais adiante seguida por Veriano Terto Jr. e Richard Parker, que já dialogava com Herbert

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Daniel. Escreveram juntos Aids: a terceira epidemia, publicado pela editora Iglu, em 1991. O nome do grupo Triângulo Rosa foi uma homenagem aos homossexuais mortos nos campos de concentração nazistas, que recebiam como distintivo um triângulo equilátero de cor rosa com o vértice voltado para baixo.

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Paulo Fatal, médico psiquiatra, afastou-se do Triângulo Rosa para trabalhar com HIV/Aids. Em 1987, foi um dos fundadores do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio de Janeiro (Gapa/RJ), que em 1988 lançou seu livro Invicta − aids aqui.

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Não foi possível identificar registros sobre Paradas anteriores. Entretanto, o site “Planeta Gay” - http://www.webzip.com.br/planetagay/homo15. htm, um projeto do Noss, divulgou um texto intitulado “I Passeata gay do Rio de Janeiro”. Não há referência ao ano, mas à divulgação em “nosso jornal”, o Nós Por Exemplo, que começou a circular em 1991.

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O então Programa Nacional de DST/Aids (PN) já apoiava projetos de eventos, e provavelmente houve algum aporte. De forma mais sistemática, o apoio financeiro para atividades de mobilização do Orgulho LGBT foi a partir de 2002. Para a Conferência da Ilga, os contatos com o PN, salvo engano, foram estabelecidos por Adauto Belarmino e Cláudio Nascimento. Para o PN, o apoio a eventos era um investimento na parceria política com as ONGs por propiciar desdobramentos para as respostas ao HIV/Aids.

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Foram e/ou são parceiros: Associação Brasileira de Imprensa (ABI); Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Seção Rio de Janeiro e sua Comissão de Direito Homoafetivo (CDHO/OAB-RJ); Conselho Regional de Psicologia; Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; parlamentares como Carlos Minc, Benedita da Silva, Lysâneas Maciel (in memoriam), Jandira Feghali, entre outros; governador Sérgio Cabral Filho; atrizes e atores de teatro e televisão, cantores, autores de telenovelas, entre outros. 15

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Almanaque Biotônico Vitalidade e as Artimanhas: a contracultura engarrafada no Brasil Almanaque Biotônico Vitalidade and the Artimanhas: the bottled counterculture in Brazil Renata Gonçalves Gomes Bacharel em Letras Inglês e Literaturas, Mestre em Literatura Brasileira e Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). [email protected]

RESUMO: Este artigo pretende entender parte da contracultura no Brasil da década de 70 por meio do periódico Almanaque Biotônico Vitalidade (1976) e do Artimanhas, sarau performático organizado por seus colaboradores (grupo Nuvem Cigana). O artigo apresenta relações entre os acontecimentos sociopolíticos e culturais no Brasil e nos Estados Unidos para contextualizar o momento em que a contracultura ocorreu no Brasil. Este estudo do periódico Almanaque Biotônico Vitalidade traz análises de seu conteúdo poético, artístico e iconográfico, bem como a contextualização de quem eram seus colaboradores e como produziam o sarau Artimanhas. O artigo utiliza o conceito de paródia para analisar tanto a revista quanto o sarau e pensá-los dentro do contexto da contracultura no Brasil. Conclui-se que o grupo Nuvem Cigana, ao publicar o Almanaque Biotônico Vitalidade e apresentar as Artimanhas na década de 70, produz um discurso contracultural no Brasil que tem fortes relações com a contracultura apresentada nos Estados Unidos, e também estabelece uma crítica à ditadura militar que oscila entre o engajamento político e o desbunde. Palavras-chave: Chacal, Periódicos, Contracultura.

ABSTRACT: This article attempts to understand part of the Brazilian counterculture of the 1970s through the Almanaque Biotônico Vitalidade (Almanack Biotonic Vitality) periodical (1976) and the Artimanhas (Trickeries), a performance soirée organized by its collaborators (Grupo Nuvem Cigana). The article draws relationships between sociopolitical and cultural events in Brazil and in the United States, in order to contextualize the moment in which the counterculture occurred in Brazil. This study of the Almanaque Biotônico Vitalidade presents analysis of its poetic, artistic, and iconographic contents, as well as the contextualization of these collaborators, who they were and how they produced the Artimanhas soirée. The article employs the concept of parody in order to analyze the magazine and the soirée, reflecting on them within the context of the Brazilian counterculture. We concluded that the group Nuvem Cigana, --by publishing Almanaque Biotônico Vitalidade and presenting the Artimanhas in the 70s, -- produced a countercultural discourse in Brazil, strongly related to the counterculture presented in the US, and also created a criticism against the Brazilian military dictatorship, oscillating between a political engagement and desbunde (counterculture, hippies, drop outs, drug users, bohemians, etc.). Keywords: Chacal, Periodicals, Counterculture.

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Chacal em: Almanaque Biotônico Vitalidade e as Artimanhas O Almanaque Biotônico Vitalidade1 foi a primeira publicação coletiva do grupo Nuvem Cigana, pois até então seus participantes só haviam feito livros individuais de poesia. O primeiro foi o Creme de Lua, de Charles (Peixoto), depois o de Ronaldo Santos, intitulado Val e Talvegue, e o de Bernardo Vilhena, chamado O Rapto da Vida, e só em 1976 o periódico contou com colaborações de todo o grupo. Do grupo Nuvem Cigana participavam os poetas Chacal, Bernardo Vilhena, Charles Peixoto, Ronaldo Santos, o compositor Ronaldo Bastos, os até então estudantes Pedro Cascardo (de Arquitetura), Lúcia Lobo (de Engenharia), os artistas plásticos Dionísio (também estudante de Arquitetura), Cao, Paulinho Menor, Cláudio Lobato, os fotógrafos Cafi e Peninha, e o professor de História e fotógrafo Guilherme Mandaro (quem primeiro mimeografou os livros de Chacal e Charles). Não é difícil notar a disparidade do grupo em relação a suas atividades profissionais. Porém, o grupo tinha o objetivo de criar uma associação na qual pessoas de diferentes áreas pudessem trabalhar pelo mesmo selo, algo semelhante ao selo da Apple, dos Beatles, o que, segundo Cafi, “era a pretensão do Nuvem Cigana” (Cafi apud COHN, 2007, p.68), uma grande pretensão, aliás. O nome Nuvem Cigana foi criação de Ronaldo Bastos, que compôs uma música homônima em parceria com Lô Borges. Não por acaso, a composição tem um tom beatnik, on the road, um estar em movimento com referências à cultura lisérgica da época: “Meu nome é nuvem, pó, poeira, movimento/ Meu nome é nuvem/ Ventania, flor de vento, madrugada/ Eu danço com você o que você dançar”. Cafi conta que a primeira vez que ouviu o termo foi quando, num passeio com Ronaldo Bastos entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e Ipanema − após uma experiência lisérgica, e ainda sob o efeito dela −, Ronaldo olhou para o céu e perguntou se ele também estava vendo uma nuvem cigana. Essa anedota sobre a vivência da “nuvem cigana”, lisérgica, passageira e que prende o olhar, pode também ser estendida para a compreensão do que é o Almanaque Biotônico Vitalidade. O periódico teve vida curta − apenas dois números2 − mas obteve muita repercussão no meio da imprensa alternativa3, numa década em que as revistas literárias tinham grande circulação. Assim como a maioria dos livros lançados pelo grupo Nuvem Cigana, as edições do Almanaque − chamarei assim para o texto não ficar demasiado cansativo − têm capa de papel brochura e aproximadamente 28cm por 21cm, ou seja, são maiores do que os livros de poesia lançados pelo selo do Nuvem Cigana. Trata-se de um trabalho quase artesanal − não fosse a impressão pela editora Arte&Indústria −, pois não há indicação de data, preço nem de editora, informações que poderiam talvez indicar a periodicidade ou a forma de produção da revista. A produção editorial do grupo era contracultural para a época, pois se aproximava mais dos livros mimeografados do início da década de 70 do que dos livros lançados por editoras. Os periódicos de veiculação alternativa na década de 70 estavam relacionados a 400

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uma resistência contra a ditadura militar da época, ainda que não tivessem uma postura de engajamento político de esquerda, como é o caso do Almanaque. A revista, identificada com a contracultura, tida como marginal, percebia a circulação da poesia e das artes plásticas underground como uma ferramenta para a disseminação das inquietações da juventude que se via repreendida pelo golpe militar. Há no Almanaque um tom de contestação política e, principalmente, policial da época, mas sem perder o humor e a referência à contracultura. A capa e a contracapa do periódico apresentam um trabalho de colagem feito por Cláudio Lobato, idealizador do Almanaque, e Gorini, e fazem referência à famosa capa do LP dos Beatles Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), de autoria de Peter Blake. Essa mesma capa também foi parodiada em 1968 no encarte do disco We’re only in it for the Money, da banda liderada por Frank Zappa, o The Mothers of Invention. Disco este que, além de parodiar o disco dos Beatles, criticava o “American way of life”, como na canção “Concentration Moon”, na qual o modelo tecnocrata é alvo de crítica: American way How did it start? Thousands of creeps Killed in the park American way Try and explain Scab of a nation Driven insane Don’t cry (...)/American way/Threatened by us / Drag a few creeps/Away in a bus/American way/Prisoner: lock/Smash every creep/In the face with a rock (THE MOTHERS OF INVENTION, 1968)

No mesmo ano em que Frank Zappa e sua banda lançavam o disco We’re only in it for the money, com a foto do encarte parodiando o Sgt. Peppers, era lançado no Brasil o disco Tropicália ou Panis et Circencis, de 19684. Por não compartilhar do mesmo contexto sociopolítico que Frank Zappa, o disco Tropicália não demonstra ser uma crítica ao “American way of life”, embora tenha sido composto com referências tanto da cultura nacional quanto internacional, o provinciano e o cosmopolita. A paródia, para os tropicalistas, estava vinculada à cultura brasileira, à modernização industrial e à ditadura militar que o país atravessava. Músicas como “Lindonéia”, que parodia o quadro homônimo de Rubens Gerchman, ou “Coração Materno”, de Vicente Celestino, são exemplos da paródia tropicalista. Assim como “Chão de Estrelas”, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, parodiada pelos Mutantes no disco A divina comédia ou Ando meio desligado (1970), ou Caetano Veloso na música “Saudosismo”, cantada por Gal Costa em seu disco de 1969, parodiando João Gilberto e sua música “Lobo Bobo”, do disco Chega de Saudade, de 1959. A paródia, segundo a crítica e professora Maria Lucia P. de Aragão, não problematiza uma obra, pois não se pressupõe que chegue a um resultado, a uma resposta. Para a crítica, a paródia é a conscientização do ultrapassado no vigente, ou melhor, é o lugar onde se manifesta a dúvida sobre os valores tradicionais. O olhar profundo que a caracteriza aponta para a possibilidade de transformação do presente, seja pela crítica à sociedade atual, às tradições, seja pela abertura que permite a passagem a novas possibilidades de ser n.9, 2015, p.399-410

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e de pensar. Ela nos apresenta uma terceira realidade, que não é nem a do contexto, nem a do texto literário original. É um discurso ficcional sobre o literário. É uma ficção da ficção. (ARAGÃO, 1980, p. 21)

Assim, tanto a paródia dos Beatles feita por Frank Zappa quanto aquela dos cantores nacionais feita no disco Tropicália ou Panis et Circencis são referências contemporâneas ao Almanaque Biotônico Vitalidade. Em 1976, quase uma década após o lançamento do disco dos Beatles, o Almanaque foi lançado tendo em sua capa colagens de fotografias de várias personalidades. Lobato e Gorine montaram e contextualizaram na capa o universo contracultural no qual o grupo Nuvem Cigana se situava, com referências na música, no cinema, nas artes plásticas, no futebol, no carnaval, no Brasil e no mundo. Entre as personalidades incluídas na capa do Almanaque, os atores James Dean, Rita Pavone e Grande Otelo, o jogador de futebol Mário Sérgio, à época no Botafogo, Carmen Miranda, Santos Dumont, Van Gogh, Noel Rosa, Charles Chaplin, Lampião, a bandeira do bloco de carnaval do Nuvem Cigana, “Charme da Simpatia” e, entre outros, até um cachorro. Os integrantes do grupo, e colaboradores do periódico em questão, também têm suas imagens nessa miscelânea, logo embaixo do frasco de “Biotônico Vitalidade”. A imagem dos integrantes do grupo na capa do periódico sugere uma referência ao disco dos Beatles, porém, apresenta um contraponto. No disco da banda inglesa há uma sugestão de morte, com um suposto funeral no primeiro plano da colagem. No Almanaque, ao contrário, o frasco gigante do “Biotônico Vitalidade” e o despojamento dos integrantes do Nuvem Cigana revelam a revista como potência de vida. O “Biotônico Vitalidade” foi uma criação de Ronaldo Santos para um livro jamais publicado. Seu personagem principal, segundo o poeta, se chamava J. Teimosia, um vendedor de “Biotônico Vitalidade”. J. Teimosia foi inspirado em Orlando Tacapau, personagem principal do livro Preço da Passagem (1972), de Chacal. O grande frasco do “Biotônico” na capa do Almanaque denuncia a origem do nome do produto que J. Teimosia venderia: o medicamento fortificante brasileiro Biotônico Fontoura. Esse medicamento, que começou a ser comercializado em 1910, teve, a partir de 1920, seu próprio almanaque, chamado Almanaque do Biotônico Fontoura, que, com o passar dos anos encurtou para Almanaque Fontoura. Idealizado por Monteiro Lobato, esse almanaque continha, além de passatempos e informações de curiosidades, uma versão em quadrinhos do personagem Jeca Tatu, chamada Jeca Tatuzinho. Cláudio Lobato aproveitou o gancho entre o produto do vendedor J. Teimosia, do livro nunca publicado de Ronaldo Santos, e o Almanaque Fontoura para lançar a ideia entre os amigos e parceiros do grupo Nuvem Cigana. O Almanaque Biotônico Vitalidade não poderia ter outro nome que identificasse tão bem o grupo de poetas e artistas plásticos, pois, até então, suas poéticas estavam sendo lidas pela crítica a partir da aproximação entre arte e vida. 402

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Junto com o lançamento do Almanaque Biotônico Vitalidade aconteceram também as Artimanhas. Numa quase metaperformance, Charles costuma dizer que as Artimanhas “não eram performances, eram loucura mesmo” (Charles apud COHN, 2007, p.95), tentando manter uma idealização anárquica das experimentações poéticas. As Artimanhas eram performances poéticas experimentais realizadas durante os lançamentos do selo do grupo Nuvem Cigana. No texto “Artimanha Manha y Arte”, publicado na revista Malasartes, n.3, de 1976, Chacal define o que eram as Artimanhas e ainda descreve como foi a Artimanha II, ocorrida no MAM-RJ, durante o lançamento do Almanaque Biotônico Vitalidade: Artimanha se faz na rua, mais precisamente, no meio dela. Artimanha nasceu para dar nome ao que não era poesia, música, teatro, cinema, apenasmente. Era tudo e mais − e mais que tudo − tudo aquilo. Qual o nome da criança − mustafá ou salomé, homem ou mulher, cocaína ou rapé − qual o nome, qual o nome, qual o nome? Nenhum outro senão Artimanhas. Foi vista pela primeira vez em Ipanema (o que fará muitos pensarem que se trata de mais um oba-oba), por uma pequena manada. Foi vista pela primeira vez na Livraria Muro, na Praça General Osório (o que fará com que pensem tratar-se de mais uma parada) em outubro de 75. Mal organizada pra ser uma mostra de várias alas, intercaladas num mesmo dia, da nossa vida fantástica- cultural, Artimanhas nasceu ouriçando, ou melhor, ouridançando. (Chacal in Malasartes, n.3, 1976, p. 32)

Os poetas costumavam fazer apresentações em que liam ou recitavam seus poemas para o público, o que não exigia, necessariamente, uma organização prévia. Havia a preocupação com a palavra falada, com o poema em voz alta, falado, cantado, transgredindo a obviedade dos recitais convencionais por meio da performance. Essa atitude do Nuvem Cigana nas Artimanhas era uma tentativa de fazer uma poética próxima a dos poetas beats, pensando a poesia como a junção da voz, do corpo e da palavra. Sobre a experiência de ter visto o poeta Allen Ginsberg num recital de poesia, Chacal diz: Em Londres, em 73, eu fui ver um festival de poesia mundial. Na época, eu só ia ver show de rock, os grandes conjuntos pop, a música era muito mais forte. A poesia eu fui ver por curiosidade e também porque na época eu já havia escrito dois livros. Mas de repente eu estava lá vendo aqueles poetas todos circunspectos, da Cortina de Ferro, da África, lendo poemas para uma plateia imensa, com aquela postura muito tradicional, de poeta acadêmico. Aí anunciam o Ginsberg, e ele entra com um macacão Lee, uma muleta, uma perna engessada, aquela cara desgrenhada, senta-se à mesa e começa a falar as poesias dele, até que, num dado momento, ele tira uma sanfoninha de lado, começa a marcar a métrica e o ritmo com a sanfona e falar aquele blues...E eu pensei que, se um dia eu falasse poesia, seria com aquela dicção.” (Chacal apud MEDEIROS, 2002, p. 6)

Ao ouvir Ginsberg recitar seus poemas, Chacal passou a incorporar essa experimentação poética, inclusive em seus lançamentos do selo do grupo Nuvem Cigana. A partir de então, n.9, 2015, p.399-410

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as Artimanhas passaram a ser a forma poética do Nuvem. A sonoridade, a voz, o corpo e a palavra nos poemas de Chacal são algumas de suas características mais evidentes. Neste sentido, Fernanda Medeiros afirma: A poesia encarnada tem desejo de comunicação, desejo do outro − cumprindo seu destino de corpo. Precisa do outro para sobreviver, material e poeticamente. Sua ética é vocativa e não se envergonha disso; sai interpelando os passantes (...) Não é uma poesia que privilegia enigmas, que se regozije em jogos metafóricos; não depende de uma promessa de sentido que só vai ser cumprida no último verso de um poema ou depois dele. Ele já está acontecendo desde que se inicia a leitura. Ou a escuta. (MEDEIROS, 2010, p.16)

Portanto, muitas vezes essa sonoridade torna-se o fator principal do poema como, por exemplo, em “a palavra o papel”, do livro a vida é curta pra ser pequena, em que o poema curto composto por aliteração, num (quase) trava-língua, parece pedir para ser falado, além de sugerir que a palavra saia do papel: “o papel da palavra: palavrão. / a palavra no papel: papelão”. (CHACAL, 2002, p.62) Porém, é relevante que seja dito que, apesar de haver a preocupação com a sonoridade do poema, ou seja, com o labor do poeta para com a linguagem, havia o descompromisso com a performance ensaiada, pois, nas Artimanhas, o que predominava era a improvisação, o uso de substâncias lisérgicas e a transgressão dos padrões de sarau poético, que costumeiramente eram sóbrios recitais de poesia. Por isso, as Artimanhas foram experimentações atípicas na época em relação à poesia falada no Brasil. Fernanda Medeiros, em seu ensaio “Artimanhas e Poesia: O alegre saber da Nuvem Cigana”, faz um estudo interessante sobre o uso da oralidade pelo grupo Nuvem Cigana por meio das experimentações poéticas e do poema falado, e diz: Se a poesia é linguagem de invenção, a poesia falada é linguagem de reinvenção permanente ao permitir o improviso, a mobilidade, ao invocar a coautoria. Postandose num ambiente veementemente festivo, sendo poeta da palavra falada, o poeta teatraliza seu pacto de eficácia com o público, esquivando-se às condutas panfletárias e pedagógicas. Coloca-se, desde a escolha do ambiente à escolha de sua linguagem, como antipedagogo; porque é poeta. (MEDEIROS, 2002, p. 117)

Fernanda Medeiros defende em seu texto que é no momento da apresentação do poema falado que o poeta se integra com o público, “transmite” seus dizeres sem tornar-se panfletário ou pedagógico. Porém, é interessante pensar que, durante as Artimanhas, a presença do poeta no palco é necessária não só para falar o poema, como também para expor-se, deixar a sua voz, expressar-se. Sendo assim, há primeiramente, o contato com o poeta para depois chegar à poesia − a voz do poeta se aproxima de uma “interpretação” ou “encarnação”, como prefere Fernanda Medeiros, pode tornar-se mais importante do que o poema em si. Neste sentido, quando o poema é secundário à performance, há um esvaziamento da poesia, pois a performance deve estar para a poesia e não o contrário. 404

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As experimentações poéticas do Nuvem Cigana causavam espanto, e até repulsa, nos poetas da época que não participavam delas. É o caso de Ana Cristina Cesar, que em carta a Ana Cândida Perez, datada em 24 de agosto de 1976, entende as experimentações como uma porra-louquice decadente5. Voltei de mais uma ‘poetagem’ no Parque Lage – lançamento do livro do Lui (Papéis de Viagem, segue via Caki, espero, se ela tiver cabeça, engravidou), com Chacal, Charles, João Carlos, Bernardo, Pedro Lage e toda aquela mesma e velha e decadente turma. Não consegui ficar mais de 10min. Eles iam pro microfone e recitavam ou liam qualquer coisa para eles mesmos, sempre pra eles mesmos. João Carlos corria [...]. Cadê o uísque, você trouxe? Pedro Lage me deu o livro dele (é, até o Pedro Lage...) com sintomática dedicatória: Eu ti amo... Uma merda colossal – folheio abismada. Por sorte lá encontrei a Bita (Carneiro), que me deu carona, e viemos falando mal desses encontros, dessa decadência, drogas, versinhos, puxa-saquismo & sempre as mesmas pessoas. Você ainda se lembraria dessa gente? Estão iguais, iguais, nunca varia. Ainda mais nos saraus. (CESAR, 1999, p.224)

A “poetagem” que Ana Cristina Cesar diz ter visto aconteceu no Parque Lage, local onde as apresentações comumente aconteciam. Neste caso, ela utiliza o termo “poetagem” de forma pejorativa, ao tratar com descaso as experimentações poéticas do Artimanhas. O depoimento é importante aqui para entender o estranhamento que as experimentações causavam aos poetas que não participavam do meio contracultural do grupo Nuvem Cigana. É relevante frisar que, apesar de claramente repudiar as experimentações poéticas do grupo, Ana Cristina Cesar era leitora de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, ou seja, o repúdio não é gratuito nem desinformado, mas uma constatação de diferenças entre o que ela e os poetas do Nuvem Cigana entendiam por poesia. Em carta endereçada a Maria Cecília Londres Fonseca, em 11 de setembro de 1976 − ano de muitas poetagens do Nuvem Cigana −, Ana Cristina Cesar mostra já ter familiaridade, pelo menos, com o trabalho de Jack Kerouac: Já que você está em mood comprista, pra variar penso em livros! A Writer’s Diary, da Virginia Woolf, Hogarth Press; e Poesia Beat, Ginsberg, Ferlinghetti (beat??), Kerouac não, que A. Candido já me mandou dois dele, qualquer um desses, que eu não tenho nada de americanos (há novíssimos?). (CESAR, 1999, p.131)

No mesmo ano, em carta a Ana Candida Perez, Ana C. rapidamente comenta o poema “A Supermarket in California”, do livro Howl, de Allen Ginsberg, talvez já com o livro em mãos trazido por Maria Cecília: Eu estou enganada ou Allen Ginsberg lembra o ritmo de Walt Whitman e por tabelinha de Álvaro Campos? Manda a sua tradução do Paterson, belo e violento. Lembra de Um supermercado na Califórnia? Que você me mostrou uma vez no teu quarto do Leblon (aquele em frente ao Luna)? (CESAR, 1999, pp.197-198)

Familiarizada com a escrita da beat generation, Ana Cristina Cesar escreveu o conto “Na outra noite no meio-fio”6, no qual, além de começar com uma epígrafe de Dr. Sax, de Jack Kerouac, ela escreve como se dialogasse com o escritor beat, ali personagem. Pode-se n.9, 2015, p.399-410

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dizer que Ana Cristina Cesar, a partir dessas citações, ao contrário dos poetas do grupo Nuvem Cigana, entendia os beats apenas por sua literatura em papel, e não falada. Para os poetas do grupo Nuvem Cigana era o “way of life” que a beat generation pregava que os estimulava, o que inclui tanto uma performance para a vida quanto para a poesia. Alguns poetas e artistas do grupo moravam juntos em comunidade, no bairro de Santa Teresa, assim como os integrantes da beat generation fizeram nos Estados Unidos. O modo alternativo de vida em que os poetas viviam, muitas vezes era refletido durante ou após as Artimanhas. Modo que chegou a “despistar” a forte inspeção policial − em 76, ou seja, durante o regime militar − na Artimanha de lançamento do Almanaque Biotônico Vitalidade. Após a Artimanha no MAM-RJ, depois das performances que envolviam música, teatro, artes plásticas, poemas falados e a venda dos exemplares do periódico, havia um batalhão da Polícia Militar para a inspeção do evento cultural, como era comum acontecer durante o regime militar. Como o grupo Nuvem Cigana costumava acabar as experimentações com o desfile do Charme da Simpatia − bloco carnavalesco do próprio grupo −, os poetas e artistas plásticos acabaram escapando da revista policial por estarem vestidos com fantasias. Mesmo sem censura prévia, pois o grupo Nuvem Cigana abria mão do borderô, ou seja, de cachê, o policiamento no Rio de Janeiro em 1976 era bastante forte. Na livraria Muro, de Rui “Cabelo” Campos, uma das poucas livrarias que vendiam o periódico, foram apreendidos doze exemplares da primeira edição do Almanaque Biotônico Vitalidade, em 5 de maio de 1976, pelo censor Francisco Bernardo de Souza. Com a repercussão que o Almanaque causou no meio da cultura underground, a conotação contracultural e de contestação política do Almanaque deixou de ser desconhecida dos censores. Apesar da tentativa de subversão ao regime militar, o Almanaque não é uma revista exclusivamente dedicada ao contexto político-social da época. O contraste entre a seriedade de algumas colaborações e o humor de outras, a começar pelo editorial, fazem com que a revista esteja no limiar entre o engajamento político e o desbunde. Este contraste que a revista apresenta pode ser explicado pelo fato de o Nuvem Cigana ter uma grande variedade de artistas originários de distintos meios e grupos culturais, mas com relações estreitas com a contracultura. Lúcia Lobo e Dionísio, que participavam do movimento estudantil e chegaram a ser presos nos arredores da UFRJ, tinham uma postura política de esquerda, contraditatorial. Já Chacal, Charles (Peixoto) e Ronaldo Santos, por exemplo, até a publicação de seus trabalhos no Almanaque, eram vinculados apenas a uma postura desbundada, sem qualquer vínculo com a política, numa quase alienação consciente do contexto político vivido na década de 1970. Sendo assim, as colaborações no Almanaque variam entre posturas de contestação ao regime militar e humor, buscando a subversão do sistema político por meio do desbunde e do uso de alucinógenos.

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O editorial da revista é composto de três pequenas apresentações que sugerem, parodiando as bulas de medicamentos, o melhor uso, ou consumo, do produto que o leitor tem em mãos: o “Biotônico Vitalidade” transformado em almanaque. INDICAÇÕES:
contra inércia
contra a lei da gravidade
contra a contrariedade
contra marcar bobeira
contra a cultura oficial
contra a cópia
a favor da liberdade
contra o irremediável
(ALMANAQUE BIOTÔNICO VITALIDADE, 1976, p.1)

No editorial, há indicações e contraindicações de uso, composição − destinada ao sumário − e posologia, que, segundo eles, ficaria “a critério do paciente”. Sendo assim, vitalidade pode ter sentido ambíguo, pois, ao mesmo tempo em que se refere a vida, energia e juventude, também se refere ao uso de drogas, a partir de um medicamento que potencializa a vitalidade, a vida. A paródia, como afirma Maria Lucia P. de Aragão, tem o humor como um de seus recursos, causando estranhamento ao leitor pela inversão dos valores tradicionais − do trágico se chega ao cômico, por exemplo. É o que acontece em muitos casos, no Almanaque Biotônico Vitalidade, em que o humor causa uma inversão de valores entre a paródia e o texto original, como no caso exemplificado acima, em que as indicações de uma bula comum passam a ter um tom cômico, irônico, em relação ao periódico, e não mais a uma bula de remédio convencional; no caso, a paródia ao remédio seria em relação ao Biotônico Fontoura. Assim como no Almanaque Fontoura, o Almanaque Biotônico Vitalidade inclui alguns passatempos, como testes, cruzadinhas, enigmas e quadrinhos: a paródia como recriação é uma das características mais evidentes no periódico. Alguns desses passatempos são pura gozação, e alguns deles não têm respostas exatas, são enigmas. Outros se revelam poemas camuflados em passatempos, como é o caso da “Carta Enigma”, de Chacal. A carta, apesar de ser enigmática, tem um “tira prova” na página seguinte, revelando-se um pequeno poema de dupla face: pode-se ler com o desafio de desvendá-lo ou lê-lo como poema revelado. estigma do medo antes da onda grande depois o mar abriu gritos argonautas perdida mulher nau frágil (ALMANAQUE BIOTÔNICO VITALIDADE, 1976, p.30-31)

Os trabalhos de Chacal nesse número do Almanaque revelam uma característica similar a outros publicados pelo poeta na década de 70: a publicação em conjunto com as artes plásticas. São trabalhos comparáveis ao mimeografado Preço da Passagem (1972) e Quampérius (1977), ilustrado por Dionísio e editado pelo selo Nuvem Cigana7. As colaborações de Chacal no periódico de 1976 não estão vinculadas à poesia visual − talvez a “Carta Enigma” n.9, 2015, p.399-410

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(não revelada) seja a única que se aproxima da poesia visual −, mas à produção em conjunto com as artes plásticas, exclusivamente os desenhos. Os oito poemas deste trabalho de Chacal − com desenho de Cao que lembra um varal de poesia −, chamados de “textos secos”, são classificados por termos como “amoroso”, “político”, “d’umor”, “d’orror”, “musical”, “d’esperança”, “rastero” e “geral”. São todos poemas curtos, o que lembra, mais uma vez, a forte influência de Oswald de Andrade na poesia de Chacal, e com tom de contestação política, como o “texto seco d’esperança”, que diz: “daqui a um mês/ nossa vontade/ será lei”, lembrando a composição de Chico Buarque “Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia”, do disco Chico Buarque, de 1970. Os poemas se apresentam sem pontuação e sem acentuação, e com aglutinação de vogais. Como o Almanaque tem um tom de subversão da política ditatorial, é possível entender que os poemas deste trabalho de Chacal − expostos a um sol que parece esconder-se timidamente por trás das nuvens − parecem estar de luto, calados, pelo fato de o último poema, “texto geral”, ser o único com o fundo preto e sem versos. É como se, no fim, apenas o silêncio pudesse se perpetuar durante o regime militar, lembrando a emblemática canção de Gilberto Gil e Chico Buarque, do disco Chico Buarque, de 1973: “(...)Pai, afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue// Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta”. Já este trabalho de Chacal no Almanaque tem o desenho de Claudio Lobato e um tom de resistência frente ao violento policiamento nas ruas durante a ditadura militar. Pode ser feita uma leitura vinculada ao contexto histórico e social desses dois trabalhos de Chacal no periódico. Em “Jogo Enigmático”, o texto emblemático dizendo “uma bandeira provisória cobre esta página em homenagem a todos os que morreram nos lugares onde a justiça ainda não” lembra a frase de Hélio Oiticica “seja marginal, seja herói”, vinculada ao assassinato, pelo Esquadrão da Morte do Rio de Janeiro, de Cara de Cavalo, um jovem de 23 anos, morador de favela e envolvido com o tráfico de drogas, atingido por cerca de cinquenta tiros. Essa aproximação da poética de Chacal com uma postura mais engajada politicamente só aconteceu com a participação no grupo Nuvem Cigana, pois seus poemas publicados em livros não têm esse tom contestatório. A referência da contracultura mundo afora e também no Brasil, as viagens, o uso de drogas alucinógenas, o convívio em grupo, e produção, lançamento e distribuição (quase) artesanal dos livros e periódicos, a ditadura militar, a música, a paródia, as Artimanhas e tantos outros fatores fazem com que o Almanaque Biotônico Vitalidade seja uma parte relevante não só da produção poética contracultural da década de 1970, mas também da poesia brasileira da segunda metade do século XX.

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Notas 1 A edição número 1 da revista foi indexada por mim, durante o primeiro semestre de 2010, na Base de Dados do Núcleo de Estudos Literários e Culturais (Nelic). 2 É importante salientar que o estudo sobre o Almanaque Biotônico Vitalidade foi feito a partir do número 1, por não ter sido possível encontrar um segundo número disponível para pesquisa, apesar de incessantes buscas em acervos de periódicos e em coleções pessoais durante esses dois anos de pesquisa, inclusive ao de Chacal. Portanto, infelizmente, as informações contidas aqui sobre o segundo número da revista são baseadas em depoimentos e textos.

O Almanaque Biotônico Vitalidade número 1, ano 1976, está incluso tanto no acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, na seção “Imprensa Alternativa”, doado pelo RioArte, órgão da Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, quanto no Núcleo de Estudos Literários e Culturais (Nelic) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), comprado pelo Núcleo no decorrer desta pesquisa. O catálogo completo do acervo pode ser encontrado no site: http://www0.rio.rj.gov.br/arquivo/acervosimprensa.html 3

4 O disco tropicalista, segundo Christopher Dunn, “foi o primeiro álbum conceitual do Brasil que provocou imediatamente comparações com Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, do ano anterior” (in BASUALDO, 2007, p.69). Além da referência aos Beatles, a capa de Tropicália

também faz referência ao quadro Lindonéia, de Rubens Gerchman, com Caetano Veloso segurando a fotografia da cantora Nara Leão, que canta a música homônima do quadro de Gerchman, de Caetano e Gil, faixa quatro do disco. 5 Em carta endereçada a Maria Cecília Londres Fonseca, datada em 14 de maio de 1976, Ana Cristina Cesar diz: “Semana passada (...) era lançamento de outro livro do Charles, no Parque Lage, junto com ‘recital’ de poemas, porraloquice, uivos e até strip-tease. O grupo de poetas porralocas se esparrama pela cidade.” (CESAR, 1999, p. 98). 6 Ana Cristina Cesar começa seu conto, do livro Cenas de Abril, incluído na reunião de seus livros A teus pés, assim: “Na outra noite sonhei que estava sentada no meio-fio com papel, lápis e assobios vazios me dizendo: ‘Você não é Jack Kerouac apesar das assombrações insistirem em passar nas bordas da cama exatamente como naquele tempo’. Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário (...)” (CESAR, 1998, p.111). 7 Quamperius teve uma reedição fac-similar pela editora Cosac Naify em anexo ao livro Belvedere (2007), e a tiragem da primeira edição foi de 3.000 exemplares, muito maior do que sua primeira edição original, de 1977, com selo do Nuvem Cigana, que teve uma tiragem de 1.000 exemplares.

Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. ALMANAQUE BIOTÔNICO VITALIDADE. n.1, Rio de Janeiro: Nuvem Cigana, 1976. CHACAL. “Artimanha Manha y Arte”, In: Malasartes, n.3, 1976. ______. “Dois Ponto Três Lisboa”, In: Polem, n.1, set./out. 1974. ______. “Estranha Sensação”, In: Bando, n. 2, 1983, Contracapa. ______. Quamperios. Rio de Janeiro: Cosacnaify / 7 Letras, 2007. CESAR, Ana Cristina. Crítica e ficção. São Paulo: Editora Ática, 1999. ______. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando Freitas e HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs.). Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999. MEDEIROS, Fernanda. “Afinal, o que foram as Artimanhas da década de 70? A Nuvem Cigana em nossa história cultural”, In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, no. 23. Brasília, janeiro/junho de 2004, pp. 11- 36. ______. “Artimanhas e poesia: o alegre saber da Nuvem Cigana”, In: Gragoatá. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras, n. 12. Niterói: Eduff, 1º semestre de 2002, pp. 113-128. ______. Play It Again, Marginais. In: PEDROSA, Célia (org.) Poesia Hoje. Niterói: Eduff, 1998, pp. 53-68.

n.9, 2015, p.399-410

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RENATA GONÇALVES GOMES

Discos BAPTISTA, Arnaldo; COSTA, Gal; DIAS, Sérgio; LEÃO, Nara; LEE, Rita; GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano; ZÉ, Tom. Tropicália ou Panis et Circenses. São Paulo: RGE, 1968. 1 LP. ZAPPA, Frank; INVENTION, The Mothers of. We’re only in it for the money. 1968, 1 LP. Recebido em 20/04/2015 Aprovado em 30/04/2015

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COM QUE ROUPA?

Com que Roupa? O associativismo recreativo e a questão da moralidade entre os trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República What should I wear? Recreational associations and the issue of morality among Rio de Janeiro workers during the First Republic Juliana da Conceição Pereira Bacharel e licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Mestranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) [email protected]

RESUMO: Em 1938, Luiz Edmundo publicou um livro de memórias intitulado O Rio de Janeiro do meu tempo. Em uma das crônicas ali presentes, chamada “Carnaval de Morro”, o autor tratava do associativismo dançante dos trabalhadores – um fenômeno que tomou o Rio de Janeiro entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, e que teve como resultado o surgimento de dezenas de pequenos clubes destinados à dança por toda a cidade. Centralizando sua análise nos códigos morais que esses clubes afirmavam para si, Luiz Edmundo, com um olhar crítico carregado de preconceitos, descreve com ironia as regras de comportamento e os códigos de conduta que, segundo ele, havia presenciado em um dos bailes oferecidos por uma dessas agremiações – sem ver neles qualquer indício de moralidade que se aproximasse dos padrões morais burgueses. Para além da incompreensão do cronista, no entanto, os estatutos sociais que regiam o funcionamento dessas agremiações mostravam que a moralidade aparecia nelas como um critério básico de afirmação de uma identidade. É a partir da análise e da interpretação desses diferentes códigos morais postos em choque que se constitui este trabalho, numa tentativa de compreender de que modo essas discussões contribuíram para a construção de um padrão moral que seria posto em prática no Estado Novo. Palavras-chave: Associativismo, Trabalhadores, Moralidade. n.9, 2015, p.411-423

ABSTRACT: In 1938, Luis Edmundo published a memoir book, entitled O Rio de Janeiro do meu tempo. In one of the chronicles, entitled “Carnaval de Morro” (Carnival on the hills), the author dealt with the dancing associations of the workers – a phenomena which spread in Rio between the end of the 19th century and the first decades of the 20th century and which resulted in the creation of several small clubs around town dedicated to dancing. Focusing the analysis on the moral codes established by these clubs for themselves, Luiz Edmundo, with a gaze full of prejudiced criticism, describes ironically the behavior rules and codes of conduct which, according to him, he had witnessed in one of the balls organized by one of these associations – noticing no signs of the morality that could match the bourgeois moral standards. Beyond the writer’s lack of understanding, however, the social statutes ruling the functioning of these clubs showed that the morality appeared as basic criteria to affirm an identity. The analysis and interpretation of these different moral codes, and their clashes, constitute the center of this work, in an attempt to understand how these discussions contributed to the construction of a moral standard which would be put into practice during the Estado Novo. Keywords: Associations, Workers, Morality.

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JULIANA DA CONCEIÇÃO PEREIRA

Com que Roupa? No início da década de 1930, o jovem Noel Rosa começava a se consagrar como um dos mais destacados sujeitos do processo de configuração do samba como ritmo nacional. Com uma produção iniciada nos últimos anos da década de 1920, ele alcançou um sucesso que levou suas músicas a serem gravadas por vários cantores em diferentes anos e contextos1. Um desses primeiros sucessos, ainda no final de 1930, foi a música “Com que Roupa”: Agora vou mudar minha conduta Eu vou pra luta, Pois eu quero me aprumar. Vou tratar você com a força bruta Pra poder me reabilitar... Pois esta vida não está sopa E eu pergunto: com que roupa? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? 2

A letra da música mostra a preocupação de seu narrador com a questão da vestimenta própria para ir ao “samba”. Ao mudar a “sua conduta”, deixando de lado a malandragem e passando a trabalhar, a personagem da canção percebe que o “dinheiro não é fácil de ganhar”. Logo ele não teria mais dinheiro pra comprar roupas boas para ir ao samba, afirmando que ia “acabar ficando nu”. Dentre os muitos aspectos de interesse nesta letra, ressalto aqui a visão, construída na canção, dos bailes em que se tocava o samba como espaços elegantes e morais, nos quais não ficaria bem ir “coberto de farrapo” e nem com um terno que “já virou estopa”. Se do ponto de vista do senso comum os “sambas” seriam espaços da informalidade e da descontração, a preocupação do narrador da música, captada por Noel Rosa, mostrava a importância que o tema da vestimenta em tais ambientes tinha para aqueles que os frequentavam. Alçada rapidamente ao sucesso, a música se tornou, segundo o Diário da Noite, um dos “sambas da época”, a “música que vai ser cantada em toda a cidade, que já a sabe de cor e pergunta, indecisa, olhando seus vestuários: ‘Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?’”3. O sucesso da música foi tanto que ela acabou servindo de mote para campanhas publicitárias, como a da Casa Mathias, uma loja de vestuário popular: No desenho que compunha a propaganda, percebe-se o público preferencial para o qual se voltava esse tipo de questão, isto é, aqueles que frequentavam os sambas: uma jovem negra e pobre. É o que nos sugere a legenda da própria imagem:

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COM QUE ROUPA?

E o Mathias, diante da pergunta aflita da Zuleika, ainda em trajes menores, responde: − Meu bem, não é nua que você irá... Também não irá vestida de estopa...(...) Não é preciso perguntar mais, Zuleika. Você vai, hoje como das outras vezes, e como toda gente de bom gosto, com as ricas roupas da que agora, diante da crise, é o mesmo pai dos pobres de todos os tempos.

O anúncio tentava representar aqueles que viviam cotidianamente o tipo de apreensão vivido por Zuleika, pessoas que queriam se vestir de modo elegante, com “bom gosto”, e que não tinham dinheiro para isso, e que ali na loja do seu Mathias conseguiriam as “ricas roupas” de modo acessível, pois ali “se venderia barato, com pouco lucro”. O rápido sucesso alcançado pela música mostra a força e a importância social da pergunta que dava título à canção, pois a frequência a bailes (ou sambas) fazia parte do dia a dia dos moradores pobres do Rio de Janeiro. Para melhor compreendermos a força e a importância social de tal questão, no entanto, devemos acompanhar um processo iniciado muitos anos antes, quando pequenos clubes, em cujos salões seriam gestadas as formas musicais associadas ao samba, começavam a se afirmar.

As Meninas Vaidosas Em um baile realizado no Club de Madureira na noite de 28 de maio de 1904, o tesoureiro do Club, Manoel Gonçalves Branco, obedecendo às Imagem 1− Diário de Notícias, 8 de fevereiro de 1931 determinações de seus estatutos, postou-se à porta do edifício social para fiscalizar a entrada de sócios e convidados, conforme declarou em carta posteriormente escrita ao presidente Pedro Paes. Eis que, nas palavras do tesoureiro, n.9, 2015, p.411-423

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dirigiu-se ao edifício social o Dr. Accacio de Araujo, 1° suplente de Delegados desta Circunscrição, acompanhado de um indivíduo que não se achava decentemente vestido. Exigindo desse indivíduo o seu cartão de convite, foi isto bastante para que o Dr. Accacio me dissesse que, como autoridade, podia fazer entrar no salão social quem muito bem lhe parecesse4.

O tesoureiro relatou o ocorrido ao presidente Pedro Paes solicitando “a providência que o caso requer” a fim de que “fatos dessa ordem não se reproduzam”. Somando-se a essa carta, diferentes testemunhas firmaram um abaixo-assinado confirmando o ocorrido, principalmente porque, de acordo com os sócios, a autoridade policial faltou com o “devido respeito e cortesias a senhoras e senhoritas que assistiam à récita que o Club efetuava na mesma noite”. Diante disso, o presidente do clube, Pedro Paes, escreveu uma carta ao Chefe da Polícia da Capital Federal, para que levasse ao conhecimento do mesmo o “procedimento irregular, antissocial e abusivo cometido pelo Dr. Accacio de Araujo, suplente da 6ª Delegacia Suburbana”. O serviço policial no Distrito Federal era comandado por um chefe de polícia, e este era ajudado por três delegacias auxiliares. A 2º delegacia era a responsável por supervisionar as diversões públicas e garantir a ordem, a moralidade e a segurança5. Era dali que saía, a partir das informações dos delegados distritais e inspetores das circunscrições, o parecer final das licenças de funcionamento das sociedades recreativas. Os problemas cotidianos relacionados a esses clubes, no entanto, costumavam ser resolvidos nas próprias delegacias distritais. Porém, a gravidade do caso ocorrido no Club de Madureira levou seu presidente a escrever diretamente ao chefe de polícia, já que se tratava justamente de um abuso cometido pelo delegado da 6ª Circunscrição Policial Suburbana. Ao receber o ofício, o chefe de polícia abriu um inquérito, no qual buscou ouvir “não só as pessoas que se dizem ofendidas, como outras estranhas ao Club” a respeito das quais tinha bom conceito. Era o caso do inspetor Belmiro Vianna6, que acompanhava o delegado na hora do ocorrido – que “tão envergonhado ficou com o procedimento do mesmo indivíduo que se retirou para a Delegacia”, segundo seu próprio testemunho. Diante das provas e dos depoimentos, o Dr. Accacio, que não negou o ocorrido, foi exonerado no dia 16 de junho do mesmo ano, e os papéis do caso foram arquivados7. Por mais que o episódio tenha se resolvido com celeridade, a dimensão tomada pelo problema sugeria que ele tocava em questões às quais os membros daqueles clubes atribuíam grande importância. De acordo com as normas policiais que regiam seu funcionamento, os clubes deveriam dar “franco acesso às autoridades policiais”8. Desse modo, o motivo do incômodo de seu presidente, cuja legitimidade foi reconhecida pelo próprio chefe de polícia, não foi a entrada do delegado na sede, e sim o fato de que o indivíduo que acompanhava o Dr. Accacio não estivesse “decentemente vestido”, apresentando-se com roupas de trabalho 414

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sem colarinho e gravata. O cuidado com a elegância e a decência nesses bailes, expresso na importância que os sócios do Club de Madureira atribuíram ao caso, mostrava a força da questão entre esses sujeitos. Sem ser caso isolado no bairro suburbano, a definição de uma forma correta e decente de vestimenta para a frequência aos bailes aparece como elemento importante nos estatutos de outros clubes do gênero. No ano de 1907, o Club Recreativo Chuveiro de Ouro9, com sede na Rua Lopes Quintas (Paróquia da Gávea), deixava claro em seus estatutos que todos os sócios tinham o direito de “tomar parte em todas as diversões sociais, devendo, porém, se apresentar decentemente trajados”10. De modo semelhante, o Grupo Carnavalesco Rei das Mattas entregou em 1908 à polícia seus novos estatutos, que afirmavam no artigo oitavo não ser permitida “a entrada em dias de festa no grupo a todo e qualquer sócio que não se apresentar decentemente vestido”11. Confirmando o caráter generalizado dessa regra, a Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas, localizada em Laranjeiras, definia no mesmo ano, em um dos artigos de seus estatutos, que “todo os sócios em dias de festa da sociedade deverá se apresentarem (sic) decentemente vestidos, como é de praxe em as sociedades congêneres”12. Para além dos erros gramaticais grosseiros, que revelam a precária alfabetização de seus componentes, o artigo demonstra o cuidado dos membros de grêmios como aquele com a elegância e a decência que deveriam marcar seus festejos. Mais do que a vaidade sugerida pelo nome da associação, tais regras enfatizavam o papel central que a respeitabilidade e a decência tinham em associações recreativas formadas por trabalhadores. Assim, o clube condiciona a participação nas atividades sociais ao vestir-se de forma decente. Era o que já fazia alguns anos antes (em 1900) o Club das Esmeraldas13, localizado na Rua Santo Alfredo (bairro de Santa Teresa), marcando a sede como o local da alegria e do bom comportamento, proibindo no artigo sexto de seus estatutos a “presença da cor preta e sócios que não estejam trajados com decência”. A proibição da cor preta, associada ao luto, nos sugere que o objetivo primordial dos seus sócios eram a alegria e a diversão. Mas isso não seria sinônimo de indecência, pois, para participar, era preciso estar trajado com decência.

A moralidade dos outros A decência, o respeito e a moralidade estavam profundamente ligados ao projeto republicano, como demonstra Sueann Caulfield no livro Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940)14. Segundo a autora, no período republicano havia um consenso entre os juristas de que a sociedade moderna trouxera uma degeneração moral. Diante disso, “os juristas da virada do século propunham educar a população para adotar valores morais ‘civilizados’, incluindo a valorização da honra sexual feminina, como uma medida para estabelecer a ordem e o progresso”15. Em busca n.9, 2015, p.411-423

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da civilização do país, a moral aparecia como um referencial na sociedade que se desejava formar. Civilização e progresso estavam, assim, diretamente ligados à defesa da honra16. Desse modo, a civilização do país dependeria da propagação para as “classes populares” de hábitos morais civilizados. Às elites coube o papel de zelar pela moral e pelos bons costumes, e esse zelo estava na tentativa pedagógica de disciplinar o mundo dos trabalhadores. Porém, essa tentativa de aplicar uma conduta moral igualitária a toda a sociedade envolvia disputas. É o que mostra, por exemplo, Luiz Edmundo, em crônica na qual descreve um baile na Sociedade Carnavalesca Familiar Dançante Beneficente Recreativa Tira o Dedo do Pudim, que, segundo o autor, se localizaria no Morro da Conceição17. Uma das primeiras coisas que chamaram a atenção do autor foram as instalações do clube, cuja sede descrevia como “um salãozinho que mal comporta a chusma de associados”. A ornamentação do salão também não escapava ao olhar crítico do cronista: O salão do Tira o Dedo do Pudim é todo ele forrado de um papel azul cor de manto de Nossa Senhora, onde, em desenhos grotescos, prateados e como que em relevo, se veem, em confusão, liras e rosas que se entrelaçam.

A descrição da sede nos sugere a visão carregada de preconceitos que Luiz Edmundo usa nessa crônica para descrever o clube; ele chega a afirmar que “um dos grandes caprichos dessas agremiações mômicas é o papel da sala. Tem que ser espalhafatoso e caro”. Vendo ali um gosto duvidoso, o autor ironiza a pretensão dos sócios a algo rebuscado. Esse estranhamento também aparece quando o autor se refere ao perfil dos frequentadores do clube. Descrito por ele como um ambiente “onde se junta a ralé do morro, a gentalha que sobe da Saúde ou vem das bandas do saco do Alferes e Morro do Pinto”. O clube era formado por sócios que seriam, em sua maioria, negros e mestiços – estando, por isso, associado em seu texto às classes “viciosas”18. Por isso, ao longo da crônica, Luiz Edmundo não se cansa de ironizar a pobreza e a falta de requinte dos sócios do clube – o que se expressa, por exemplo, na fala das personagens da crônica, transcrita de forma fonética a partir de seus erros: por meio de expressões como “Homem de valô e inconsideração”, “vilce-persidente em exelcício”, “garanti a orde e a imoralidade da casa”, o autor mostrava o perfil social iletrado dos frequentadores do clube, descrito com as cores do seu preconceito. Para além dessa caracterização caricata de clubes como aquele o que chama a atenção na crônica é a descrição de um caso semelhante ocorrido no Club de Madureira. De acordo com Luiz Edmundo, nesses espaços havia muitos penetras, pois esse “é sempre o tipo que invade, sem convite, a sede desses grêmios”. Em um dia de baile no Tira o Dedo do Pudim, um desses penetras era Carlos Bittencourt, repórter do jornal O País, acompanhado de duas pessoas. Ao tentar “penetrar” na sede social, o “garantia”, a pessoa responsável pela entrada na sede, disse a ele: “Vossoria mostre antão os seus dicumentos”, olhando com suspeita a indumentária do repórter. Como não havia nada que comprovasse sua identidade, Carlos Bittencourt fez então um discurso em saudação ao rancho, e com isso os presentes 416

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o confirmaram como “Reporte!”. Porém, antes que ele conseguisse entrar na sede, disse-lhe o garantia: “Seu reporte me discurpe, mas porém nós percisamos sê gente de rigô par causa dos abuso”. O rigor a que se refere o garantia se expressa na passagem seguinte: Seu reporte qué sabê? Trás antonte aqui veiu um moço que também se dizia sê da imprênsia. Vinha com duas dâmias de carção de circo. Oiei as muié e obtemperei: – Vossoria pode ingressá, as dâmias, porém, não pode por via do itinerário que elas trás que não está de acordo com um salão de famia. Pega ele responde: – Se eu entro elas têm que entrá também, por que elas viero cumigo e num vortam. Fez jeito de ciscá e eu ainda reobtemperei: – Vossoria não insista que se estrepa. Ele insistiu.

O que chama a atenção na narrativa, porém, não é a tentativa de ingressar na sede social de alguém que fingia ser da imprensa para entrar como penetra, mas a tentativa de incluir como penetras damas com “carção de circo”. Mesmo que não se tenha a descrição desses trajes, o cronista demonstra que não estavam de acordo com um salão familiar, sendo vistos pelo responsável pela entrada no clube como roupas imorais. A solução do caso se deu de forma violenta: Foi quando o Gaudêncio, nosso claurinete, afogueado, meteu a cara no grúpo e grampiô o home. Fechou o tempo. Ora a ladeira é ingres, Gaudêncio vê pouco, é milpes, estropeça na carçada e os dois rola João Homem abaixo. Resurtado: apanha o nosso claurine ta um tapa-oio que vira dispois numa dispécia fraudulenta na básia no crânis que ele ainda inté hoje tá de cama.

Após contar a história, o garantia adverte o repórter: “Vossoria entra, mas as dâmias que eston no lado de fora, de sereno e que veio com Vossoria é que não pode entrá”. No fim, as “dâmias” acabam entrando porque nada mais eram “que três boêmios, os caricaturistas Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro e Luís Peixoto vestidos de baianas”. O trecho nos sugere a visão que Luiz Edmundo tem dos sócios desses clubes, evidenciando que ele não consegue perceber em suas atividades nenhuma marca de elevação. Com sua ironia e seu sarcasmo, mostra tomá-las como simples expressão do atraso de seus componentes e de sua incapacidade de se fazerem civilizados e moralizados. Luiz Edmundo não era o único representante do mundo letrado que manifestava o preconceito com o qual olhava as atividades desses clubes. Compartilhando a mesma visão, podemos observar a descrição que o cronista carioca Orestes Barbosa fez, em 1923, de sua ida a um baile dos Caprichosos da Estopa, uma agremiação congênere: Ainda vi, nessa esquina, um aspecto do fuzuê: uma crioula, rodeada de outras, sentada na soleira de uma porta: tinha, na mão, não só os sapatos do baile, mais as meias cor-de-rosa com que fizera figuração. E os pés chatos da preta, com um dedo grande que parecia uma manivela de bonde19.

Para Orestes Barbosa, os pequenos clubes dançantes eram espaços sem requinte nem moral. Desacostumadas com roupas elegantes, ao saírem da sede do clube as mulheres já tiram as meias e os sapatos que apertavam seus pés. A preocupação com a vestimenta, para n.9, 2015, p.411-423

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o cronista, aparece como “figuração” para a hora do baile, mas, por não ser algo natural para aquelas pessoas, elas o fazem de um jeito artificial que se torna cômico. Dessa forma, não faria sentido buscar ali algo moral – o que leva Luiz Edmundo a ironizar afirmações como estas, ouvidas de um dos sócios: “Isso aqui, seu reporte, é famia. Já se casaro nesta casa oito virge. E ainda hom de se casá mais”20. Por mais que ouvisse do suposto interlocutor a afirmação da moralidade do grêmio, fazia da incongruência entre essa afirmação e suas próprias opiniões sobre o clube a base do efeito de graça que pretendia construir. A respeito da incompreensão do cronista sobre a lógica desses clubes, no entanto, sua crônica nos deixa ver a insistência com que os membros de associações como aquelas tratavam de afirmar a moralidade e a decência de seus trajes como um fator importante de sua identidade. Por mais que para representantes do mundo letrado, como Luiz Edmundo, esses espaços se apresentassem como locais sem requinte nem moral, sendo cômicas as tentativas de seus sócios de afirmação de um padrão estético e moral elevado, seus frequentadores tratavam de afirmar seus próprios padrões morais, apesar da incompreensão do cronista.

O cuidado com a vestimenta Para além das visões preconceituosas como a de Luiz Edmundo, os pequenos clubes mostravam, por meio de seus estatutos, a lógica moral específica que os estruturava. De fato, apesar da incompreensão do cronista, a moralidade aparece como critério de afirmação e reconhecimento da identidade do clube, que afirma para seus sócios a marca da decência. Era o que mostravam, por exemplo, as “disposições gerais” do estatuto do Grupo Dançante Carnavalesco Bateria do Inferno21 de que seriam “eliminados os que, no recinto social, portarem-se sem a devida decência ou moral”. Ao atentar para a vestimenta adequada à frequência nos bailes, esses clubes buscavam um padrão moral capaz de afirmar para seus sócios a marca da respeitabilidade e da decência, que muito afastava essas agremiações da imagem descrita por alguns cronistas do período. O controle da vestimenta, assim como a afirmação de padrões morais elevados, permitia que os pequenos clubes de certa forma obtivessem um espaço na imprensa, onde antes trabalhadores como os que os compunham costumavam aparecer apenas nas páginas policiais. Do mesmo modo, podiam ajudar os sócios desses clubes a conseguir a referida licença, já que estavam submetidos à investigação policial. Nem por isso, no entanto, podemos ver nesse esforço de afirmação de padrões morais rígidos nos pequenos clubes simples cópia de um modelo que lhes era exterior – pelo contrário. Esse controle das vestimentas é ainda visível quando analisamos fotografias do período. Muitas vezes esses clubes tinham fotos de sua diretoria e de seus sócios, e até de seus estandartes, publicadas em revistas e jornais que circulavam na época. De fato, a fotografia era um importante recurso de projeção de uma imagem que se pretendia deixar evidente: 418

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podemos pensar nas imagens deixadas pelos clubes como a expressão da tentativa de ganharem respeitabilidade e visibilidade entre seus contemporâneos e para a posteridade. Em pose formal, os sócios de cada clube exibiam a imagem pública do clube que pretendiam ver divulgada nos jornais. Exemplo disso é a foto da Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas publicada na Revista da Semana em 1911.

Imagem 2: “As Meninas Vaidosas”. Revista da Semana, 25 de fevereiro de 1911.

Ainda que essa foto tivesse o objetivo de mostrar uma imagem positiva do clube, ela nos traz indícios do modo como se apresenta a afirmação moral e a elegância ali presente quando reparamos nas roupas com que seus sócios iam aos bailes. De fato, há simplicidade nos trajes, demonstrando o perfil dos que frequentavam essas pequenas agremiações. Como afirma Leonardo Pereira referindo-se ao clube Prazer das Morenas, localizado em Bangu, “por mais que se tratasse de um clube de maioria trabalhadora de fábrica, eles deixavam clara a tentativa de adoção de um perfil que se pretendia elevado”22. Além disso, podemos ver a decência dos trajes nos longos vestidos recatados das senhoras e das meninas, essas que só deixam aparecer o joelho, e no terno dos senhores, todos com colarinho e gravata. Frequentada por negros, mestiços e brancos, a sede social aparece como um local pequeno onde os sócios se apertam para sair na foto. Uma imagem semelhante, que nos permite analisar as vestimentas dos participantes desses bailes, foi feita em 1912 na sede da Sociedade Dançante Carnavalesca Triunfo dos Caçadores de Montanha, publicada na revista O Malho: n.9, 2015, p.411-423

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Imagem 3: “Caçadores de Montanha”. O Malho, 27 de abril de 1912.

Com uma sede na Rua Pedro Américo aparentemente maior que a da foto anterior, com pose em frente à janela, vemos as paredes com alguns quadros que ornamentam a sala, e um desses quadros nos permite ver a imagem de Prudente de Morais. Com um perfil de maioria negra, também vemos alguns mestiços e brancos. Chama a atenção o fato de que, mesmo de forma simples, vemos o requinte das roupas, dos penteados e das joias com que tanto sócias quanto sócios iam a seus bailes. Embora a foto exiba a maneira vaidosa como se apresentam os sócios do clube, essa vaidade se faz acompanhar de forte senso moral. Se no caso das Meninas Vaidosas apareciam muitas crianças com partes das pernas à mostra, todas as senhoritas desta foto vestem longas saias, usam mangas que iam até o cotovelo e nenhum decote. Além disso, não se observa nenhum contato físico entre pessoas do sexo oposto, e o único gesto de intimidade mostrado na foto é o abraço entre uma mulher negra e uma branca. Assim como os estatutos analisados, as imagens reforçam a ideia de que a preocupação com a vestimenta era uma questão central que fazia parte da experiência desses clubes. Eles exigiam cuidadosamente um modo de vestir bem comportado e moralizado, a fim de garantir a respeitabilidade do clube. Se do ponto de vista de cronistas como Luiz Edmundo e Orestes Barbosa esse cuidado com a roupa parecia descabido e engraçado, em se tratando do grupo social que compunha tais clubes, os sócios desses pequenos clubes de trabalhadores procuraram por meio dele afirmar sua própria elevação, buscando, com um padrão moral 420

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elevado, afastar a mancha do preconceito que costumava recair sobre os homens e as mulheres que compunham seu mundo. A afirmação e a defesa da elevação da vestimenta com a qual deveriam frequentar esses bailes representavam, dessa forma, uma tentativa de diálogo e embate com outros grupos sociais, através do qual os trabalhadores desses clubes pequenos davam forma a um meio positivo de articulação de seus laços de solidariedade e identidade. Foi a força desse processo que garantiu, em 1930, o sucesso do samba de Noel Rosa. Era pela identificação com o cantor da música que muitos foliões dançavam e se divertiam com seus versos, nos quais podiam reconhecer sua própria experiência. No mesmo movimento em que apontava para um futuro de constituição do samba e da cultura negra como bases de afirmação da nacionalidade, a música de Noel Rosa mostrava o quanto esse futuro se ligava a experiências e visões de mundo específicas – que expressavam, nos pequenos salões frequentados por trabalhadores, sonhos, alegrias e aspirações cujos sentidos ainda precisamos tentar entender melhor. Notas 1 Cf. RIBEIRO, Santuza Cambraia Naves. “’Modéstia à parte, meus senhores, eu sou a vila!’: A cidade fragmentada de Noel Rosa”. In: Revista Estudos Históricos, vol. 8, nº 16, 1995, pp. 251-268.

ROSA, Noel. “Com que Roupa?”. Disponível em: http://letras.mus.br/noel-rosa-musicas/125759/. Acesso em 27 de agosto de 2014. 2

3 “Carnava,l a festa do povo”. In: Diário da Noite, 19 de janeiro de 1931. 4 Arquivo Nacional, GIFI 6C 127 (“Club de Madureira”). 5 BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

O inspetor Belmiro Vianna aparece como comissário da polícia no ano de 1909 (Gazeta de Notícias, 4 de outubro de 1909, e O Século, 30 de abril de 1909). Em 1920, ainda como comissário, participa de uma iniciativa do delegado Dr. Gilberto Porto no 23º Distrito, “uma campanha severa contra curandeiros e casas de diversões”, prendendo 15 homens que “se entregavam a um ‘batuque’ infernal” (A Noite, 25 de junho de 1920). 6

7 Mais tarde, no ano de 1909, o Dr. Accacio de Araújo aparece como presidente dos fiscais de ronda do quartel de Madureira (A Imprensa, 31 de agosto de 1909). 8 Arquivo Nacional, GIFI 6C 102 (“Sociedade Dançante Familiar Progresso do Catete”). 9 Arquivo Nacional, GIFI 6C 250 (“Club Recreativo Chuveiro de Ouro”,1907).

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10 A regra se encontra no §1º do Capitulo 6º “Direitos dos Sócios”. 11 Arquivo Nacional, GIFI 6C 250 (“Grupo Carnavalesco Rei das Matas”,1908). 12 Arquivo Nacional, GIFI 6C 251 (“Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas”, 1908). A regra se encontra no §1º das “Disposições Gerais”. 13 Arquivo Nacional, GIFI 6C 63 (“Grêmio das Esmeraldas”, 1900). 14 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. 15

Ibidem (p. 172)

ESTEVES, Martha de Abreu; CAUFIELD, Sueann. “50 anos de virgindade no Rio de Janeiro: políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, vol. 2, ano 2, n. 1, 1995, pp. 15-52. 16

17 EDMUNDO, Luiz. “Carnaval de Morro”. In: O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, pp.818-820. 18 A expressão “classes viciosas” é trabalhada por CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. De acordo com o autor, a expressão “classes perigosas” parece ter surgido na primeira metade do século XIX. Ela se referia principalmente aos indivíduos que viviam na pobreza. A principal virtude do bom cidadão seria o gosto pelo trabalho, e este levaria necessariamente ao hábito da poupança,

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que, por sua vez, reverte em conforto para o cidadão. Desta forma, o indivíduo que não consegue acumular, que vive na pobreza, tornase imediatamente suspeito de não ser um bom trabalhador. Logo, o maior vício possível em um ser humano seria o não trabalho, a ociosidade; segue-se que aos pobres falta a virtude social mais essencial; em cidadãos nos quais não abunda a virtude, grassam os vícios, e logo, dada a expressão “classes pobres e viciosas”. De acordo com o autor ,a adoção de tal conceito no Brasil, de classes viciosas (ou perigosas), tinha como suspeitos preferenciais os negros. Tais vícios eram resultado de seu “antigo estado”, isto é, as condições de vida no cativeiro seriam as responsáveis pelo suposto despreparo dos ex-escravos para a vida em liberdade.

19 BARBOSA, Orestes. “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa”. In: Bambambã, Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Secretaria Municipal de Cultura, 1993. p. 75.

EDMUNDO, Luiz. “Carnaval de Morro”. In: O Rio de Janeiro do meu tempo. op. cit.

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21 Arquivo Nacional, GIFI 6C 213 (“Grupo Dançante Carnavalesco Bateria do Inferno”, 1912). 22 PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.

Referências Bibliográficas ABREU, Martha, e DANTAS, Carolina Vianna .“É chegada a ocasião da negrada bumbar. Comemorações da Abolição, música e política na Primeira República”. In: Vária História, vol. 27, n. 45, jan/jun 2011, pp.97-120. ABREU, Martha. “Histórias musicais da Primeira República”. In: ArtCultura, vol. 13, n. 22, jan/jun. 2011, pp. 71-83. BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro (19071930). Rio de Janeiro: Rocco, 1997. BRETAS, Marcos Luiz. “As empadas do confeiteiro imaginário: A pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a história da violência no Rio de Janeiro”. In: Acervo, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 1, jan/jun 2002, pp.7-22. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo A. de Miranda (orgs). A História Contada. Capítulos de História Social da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. ESTEVES, Martha de Abreu; CAUFIELD, Sueann. “50 anos de virgindade no Rio de Janeiro: políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, vol. 2, ano 2, n. 1, 1995, pp. 15-52. PEREIRA, Cristiana Schettini. “Os senhores da alegria: a presença das mulheres nas Grandes Sociedades carnavalescas cariocas em fins do século XIX”. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira. Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República”. In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. PEREIRA, Leonardo A. Miranda. O Carnaval das Letras. 2ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “Os Anjos da Meia-Noite: trabalhadores, lazer e direitos no Rio de Janeiro da Primeira República”. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, vol. 19, n. 35, 2013, pp. 97-116.

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COM QUE ROUPA?

VELLOSO, Mônica Pimenta. “A dança como alma da brasilidade. Paris, Rio de Janeiro e o maxixe”. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, n. 7, 15 de março de 2007. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Recebido em 20/04/2015 Aprovado em 30/04/2015

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Arquivologia no Brasil contemporâneo Renato Pinto Venancio Professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) [email protected]

Resenha de MARQUES, Angelica Alves da Cunha; RODRIGUES, Georgete Medleg; SANTOS, Paulo Roberto Elian dos (orgs.). História da Arquivologia no Brasil: instituições, associativismo e produção científica. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros/Faperj, 2014.

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A história dos arquivos e a história da Arquivologia ainda são pouco desenvolvidas entre nós. O livro História da Arquivologia no Brasil, organizado por Angelica Marques, Georgete Rodrigues e Paulo Elian, contribui para que parte dessa lacuna seja preenchida. A obra em questão mobilizou dez pesquisadores de diferentes universidades e formações acadêmicas, que, a partir de recortes temáticos e cronológicos específicos, elaboraram um primeiro desenho do que poderia ser definido como a formação da Arquivologia contemporânea no Brasil. Outro aspecto do livro a ser destacado é a opção pela superação da “história factual”, substituída pela “história-problema”, aquela que identifica temas, recorre a conceitos teóricos e a hipóteses para compreendê-los e explicá-los. Essa opção, entretanto, não é isenta de desafios. Como eleger os temas mais abrangentes a respeito do vasto campo dos arquivos e da Arquivologia? Qual o recorte cronológico que deve ser privilegiado? Como definir o objeto dessa história? Qual aparato teórico-metodológico é o mais adequado? Vejamos, de forma breve, como o enfrentamento desses desafios tem se manifestado na agenda internacional. Em 1999, Carol Couture, no livro La formation et la recherche archivistique dans le monde (A formação e a pesquisa arquivística no mundo), com base no levantamento de artigos de periódicos científicos, indicou nove principais temas de pesquisa na área: 1) objeto e finalidade da arquivística; 2) história dos arquivos e da arquivística; 3) funções arquivísticas; 4) gestão de programas e de serviços de arquivo; 5) tecnologia; 6) suportes e tipos de arquivos; 7) instituições arquivísticas; 8) problemas particulares aos arquivos; 9) arquivos e sociedade. 427

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Em 2014, o mesmo autor, em parceria com Marcel Lajeunesse, publicou L’Archivistique à l’ère du numérique: les éléments fondamentaux de la discipline (A Arquivística na era digital: os elementos fundamentais da área). Nessa última obra é replicado o levantamento anterior, para o período 2002 a 2012, tendo sido identificados 11 temas principais: 1) teoria arquivística; 2) funções arquivísticas; 3) gestão de arquivos; 4) leis e normas arquivísticas; 5) história dos arquivos; 6) formação em arquivística; 7) métodos e técnicas de pesquisa em arquivística; 8) sistemas arquivísticos; 9) arquivos e sociedade/antropologia e sociologia arquivística; 10) prática arquivística; 11) “globalização” da arquivística. Na comparação das duas listagens, percebe-se que a “história da arquivística” não está mais presente na segunda. Mas isso só aparentemente significa o desaparecimento dessa preocupação. Tal ausência decorre de uma tendência cada vez mais acentuada, principalmente entre os historiadores, de considerar a pesquisa na área de História como historicização das ciências humanas e sociais. De acordo com essa tendência, a História, como área de saber, consistiria muito mais em uma perspectiva do que em um conjunto teórico estruturado. Suas ferramentas conceituais seriam provenientes de vários campos do saber: Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Teoria da Literatura, etc. Ademais, cabe sublinhar que na segunda listagem de Couture a “história da arquivística” reaparece de forma implícita nos estudos a respeito da “globalização” ou da relação “arquivo/sociedade”. Refletindo essa tendência internacional, a obra História da Arquivologia no Brasil é fortemente marcada pelas perspectivas da Sociologia − principalmente a institucional e a da ciência −, dividindo-se em três eixos temáticos: instituições, associativismo e produção científica. O primeiro eixo aborda o impacto arquivístico1 nas décadas de 1930 e 1960 decorrente do surgimento do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e da Fundação Getulio Vargas, assim como dos intercâmbios internacionais promovidos pelo Arquivo Nacional. O segundo eixo analisa as mudanças registradas entre 1970 e 1980, como a formação de associações profissionais e científicas da área. O terceiro eixo do livro explora mudanças mais recentes, referentes à evolução da produção científica e aos conteúdos curriculares dos cursos de Arquivologia. Em vez da pura e simples identificação de mudanças ao longo do tempo, procurou-se definir os recortes temporais a partir dos temas de pesquisa. Nessa perspectiva, a própria “cronologia”, em vez de ser instrumentalizada de forma pragmática (por exemplo, para escolha de critérios formais de periodização), desloca-se para o campo epistemológico, resultando em um instigante quadro das mudanças registradas na Arquivologia brasileira. Reflete-se, dessa maneira, em que medida as condições do Brasil, país periférico no sistema internacional, repercutiram no desenvolvimento técnico-científico da Arquivologia. Tendo em vista essa dimensão, foram investigadas suas especificidades, os momentos em que se procurou romper ou superar essa situação, assim como avaliar o contexto atual. 428

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Os dez capítulos que compõem o livro debruçam-se sobre essas questões. Paulo Elian, no capítulo de abertura, apresenta texto intitulado “Administração pública, arquivos e documentação no Brasil: a presença do Departamento Administrativo do Serviço Público nas décadas de 1930 a 1950”. Nele revela-se, por exemplo, a importância do DASP. Criado em 1938, esse órgão teve por objetivo romper com a administração patrimonialista, propondo as pré-condições para a constituição de uma burocracia racional-legal nos moldes weberianos. O DASP procurou recrutar e treinar, por meio de estágios internacionais, uma geração de funcionários públicos atentos às mudanças que estavam ocorrendo no cenário arquivístico internacional. A chegada ao Brasil das ideias da Arquivologia contemporânea deve muito ao empenho de parte do corpo técnico desse órgão. Os sistemas burocráticos racionais-legais implicaram, como implicam atualmente, em um aumento extraordinário da produção documental, levando à adoção de elaborados processos de classificação arquivística, e também de avaliação e destinação dos documentos de arquivo. Essas questões são exploradas em estudo de caso, apresentado por Maria Leonilda Reis, em capítulo intitulado “O arquivo central da Fundação Getulio Vargas e seu pioneirismo no cenário arquivístico brasileiro”. Nesse exemplo constata-se o pioneirismo da FGV como lugar de memória disciplinar da Arquivologia. A partir desses textos, percebe-se a progressiva marginalização do Arquivo Nacional. Contudo, frente a essa situação, a instituição reagiu, principalmente a partir da gestão de José Honório Rodrigues (1958-1964). Os capítulos “Contribuições internacionais na institucionalização da Arquivologia no Brasil, 1959-1977”, de Angélica Marques e Georgete Rodrigues, e “O cenário arquivístico brasileiro nos anos 1980”, de José Maria Jardim, apresentam diferentes momentos dessa reação, seja pela vinda ao Brasil de expoentes do pensamento arquivístico e de traduções de obras clássicas, seja por meio de diagnósticos e de atualizações da legislação brasileira. O capítulo de Yuri Queiroz, “Ação associativa nos processos de institucionalização do campo arquivístico no Brasil: 1971-1978” e o capítulo intitulado “Discursos de memória do associativismo arquivístico brasileiro”, de autoria de Eliezer Pires e Evelyn Goyannes, apresentam importantes elementos para a compreensão da formação da identidade profissional da área e revelam dimensões pouco conhecidas da autocompreensão comum aos anos 70 em relação ao descompasso entre a evolução do campo arquivístico nacional e o internacional. Os dois capítulos subsequentes − “A produção do conhecimento em Arquivologia e os programas de pós-graduação em ciência da informação”, de autoria de Alexandre de Souza, e “Desenvolvimento, tendências, perfis e perspectivas dos cursos e docentes de Arquivologia no Brasil”, de Welder da Silva − registram os esforços empreendidos nas últimas décadas para a atualização do cenário arquivístico brasileiro. n.9, 2015, p.427-430

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Constata-se, portanto, que História da Arquivologia no Brasil é uma contribuição importante para área e abre novos caminhos de pesquisa. Muitos pesquisadores poderão explorar aspectos implícitos ou pouco explorados nessa obra. O DASP, por exemplo, abriu as portas para a modernização do cenário arquivístico nacional, estimulando estágios de bibliotecários em instituições norte-americanas e europeias. No entanto, há outra dimensão fundamental nessa história, não abordada pelo autor: é a que diz respeito à atuação de funcionários que não fizeram esse treinamento. Há abundantes registros dos problemas gerados por isso, mencionados nos relatórios elaborados por José Honório Rodrigues, sobre a adoção, no tratamento técnico de documentos de arquivo, de métodos oriundos da Biblioteconomia, ou mesmo o abandono dos serviços arquivísticos dos ministérios em prol dos centros de documentação. No que diz respeito à FGV, cabe destacar o longuíssimo intervalo de tempo entre a proposta de criação do sistema de arquivos institucional e sua efetivação. O que sugere a existência de resistências − não mapeadas pela pesquisa − frente a essa inovação, para não mencionar a necessidade urgente de se estudarem as razões do caráter excepcional dessa experiência frente ao conjunto da administração pública e privada. O estudo do contexto administrativo mais amplo também é um campo a ser explorado. Nele se situa, por exemplo, a investigação das tentativas de modernização do Arquivo Nacional, principalmente nos anos 80, quando ocorre uma transição de um Estado centralizado para outro cada vez mais adepto do neoliberalismo. A questão das pesquisas e dos currículos, assim como as questões anteriores, sugere novas indagações. No meu modo de entender, os autores desses capítulos, ainda que não intencionalmente, conseguiram demonstrar que a área de “história dos arquivos” e a de “história da arquivologia” não constituíram motivo de preocupação na estruturação dos cursos e nas publicações da área. Procurar compreender as razões desse desinteresse talvez contribua para superá-lo. Enfim, como se vê, o livro em questão, além de apresentar contribuições originais e inovadoras, sugere novos caminhos – e novos volumes! – para que se possa conhecer melhor a história da Arquivologia no Brasil. Referências Bibliográficas COUTURE, Carol. Législations archivistiques et politiques nationales d’archives: étude comparative d’impact. Montréal: EBSI, 1991. COUTURE, Carol; LAJEUNESSE, Marcel. L’archivistique à l’ère du numérique: les éléments fondamentaux de la discipline. Québec: Les Presses de l’Université du Québec, 2014. Recebido em 30/03/2015 Aprovado em 13/04/2015

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O OITOCENTOS SOB NOVAS PERSPECTIVAS

O Oitocentos sob novas perspectivas Rodrigo da Silva Goularte Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) [email protected]

Resenha de: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014.

n.9, 2015, p.431-436

O Oitocentos sob novas perspectivas − coletânea de artigos selecionados entre as comunicações apresentadas no seminário do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO) em 2013 e reunidos pelas historiadoras Gladys Ribeiro, Ismênia Martins e Tânia Ferreira − apresenta pesquisas sobre temáticas relativas ao “longo século XIX”, período delimitado entre meados do setecentos e as primeiras décadas do novecentos1. Publicado em 2014, boa parte dos textos do livro é de então pós-graduandos, portanto, pesquisas em andamento que apontam para novas descobertas no referido recorte temporal e que apresentam novos ângulos de abordagem. Por outro lado, historiadores(as) consagrados(as) também marcam a obra com suas produções. Os artigos foram reunidos pelas organizadoras em quatro eixos temáticos: I - Economia (“Os mundos dos negócios e do trabalho”), II - Poder (“O jogo da política e a diplomacia”), III Saberes (“Ciências e Letras”) e IV - “Culturas e sociabilidades”. Na primeira parte são apresentadas investigações relativas à escravidão, a trajetórias individuais, transporte e abastecimento. Na seção II, as reflexões se dedicam a tratados diplomáticos, negociações políticas e circulação de ideias. Na subdivisão III, a instrução, as memórias e a saúde são discutidas no contexto do oitocentos. Na parte final, a produção artística, a diversão e o gênero são os protagonistas. Antes de apresentar com maiores detalhes cada um desses eixos temáticos, é preciso destacar que a coletânea, além de ser um esforço para abordar as diferentes dimensões do social, também leva em conta a diversidade regional brasileira, extrapolando a análise apenas do eixo Rio-São Paulo. No livro, encontram-se reflexões sobre regiões distantes desse núcleo político-econômico, como Pernambuco, Pará e São Pedro do Rio Grande. Também 431

RODRIGO DA SILVA GOULARTE

regiões próximas daquele eixo, mas que nem sempre se destacam na historiografia brasileira sobre o oitocentos, como é o caso do Espírito Santo, província – depois estado, na República – vizinha do Rio de Janeiro. Passando à exposição de cada um dos eixos temáticos, o primeiro deles − Os mundos dos negócios e do trabalho − destaca essa diversidade de abordagens regionais. Gravitando em torno dos polos temáticos escravidão e redes mercantis, as discussões dessa seção levam mais longe a diversidade de abordagens do local, não privilegiando a região centro-sul do Brasil oitocentista, mas, pelo contrário, discutindo localidades como Bahia, Pernambuco e Pará. Os artigos dessa primeira parte também se destacam por discutirem assuntos econômicos de forma dialogal com as trajetórias individuais. Dito de outra forma, os números ganham cara, nome e ação. As oscilações de forças impessoais (“o mercado”, “circuitos mercantis”, “produção”) não protagonizam essas discussões; ao contrário, as análises vão desde a participação de cativos nos circuitos de abastecimento (como pode ser percebido no primeiro artigo da brochura, Economia escrava e abastecimento agrícola de uma região da Bahia – século XIX, de Alex Costa) até a atuação dos grandes comerciantes (Os negociantes de grosso trato no Recife, de Bruna Iglezias), passando por pequenos comerciantes não escravos. O comércio e os negócios, na primeira seção, portanto, surgem como uma janela por meio da qual é possível contemplar todo um contexto social. Essa possibilidade analítica fica bem clara no artigo Porto, navegação e artigos importados em Belém, 1840-1870, em que a autora, Mábia Sales, estuda os laços da localidade com os portos estrangeiros “[...] como via para pensar as navegações como propiciadoras de trocas não somente comerciais, mas culturais, a partir das novas práticas e releituras da realidade para a qual a província dava seus primeiros passos”2. De todos os artigos da primeira unidade da obra, Circuito de integração regional: a Estrada de ferro Campos-Carangola no século XIX, de Walter Pereira, é o que mais se aproxima de uma história econômica estrita. Nesse artigo, as interações econômicas regionais protagonizam as discussões. O último texto da seção (Forros, escravos e engajamentos no mundo do trabalho marítimo no Atlântico luso, de Jaime Rodrigues), entretanto, coroa o esforço de uma história econômica que não apaga as trajetórias individuais, que traz para a cena os sujeitos e grupos que movimentam os circuitos econômicos. A primeira parte de O Oitocentos sob novas perspectivas é bem-sucedida ao apresentar essa história econômica que não se desvincula das demais dimensões do social, preenchendo as análises econômicas com as trajetórias de homens e mulheres, das classes dominantes e das dominadas, que movimentaram os circuitos econômicos. Na seção seguinte − O jogo da política e a diplomacia −, o destaque vai para as tramas do poder no Império brasileiro, da afirmação desse sistema político aos primeiros sinais de sua ruína. Diferente da unidade anterior, esse segundo conjunto de artigos deixa as esferas locais para lançar um olhar mais geral sobre o Brasil oitocentista. Matiza esse olhar o último texto 432

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do seguimento, A ordem ameaçada: linguagens e ideias republicanas na crise da monarquia no Espírito Santo, de Karulliny Vianna. Aqui fica a sugestão de que um espaço maior para as dinâmicas políticas locais enriqueceria essas discussões sobre os jogos do poder no Império brasileiro. Conforme Maria Fernanda Vieira Martins, para o entendimento da formação do Estado brasileiro no dezenove, é preciso compreender [...] quem são essas elites locais, como atuaram, quais eram os alinhamentos políticos e os projetos específicos que se desenvolviam e se debatiam nos diferentes órgãos e autoridades provinciais [...]. Para avançarmos nesse debate, creio, a historiografia brasileira precisa abandonar essa tradicional visão das províncias como áreas periféricas e conceder à dinâmica política regional o seu devido protagonismo, particularmente naqueles momentos em que esteve em jogo a afirmação da autoridade central e a consolidação da unidade territorial3.

Tomando um rumo diferente do indicado por Martins, as análises da segunda unidade da obra aqui discutida concentram-se nos discursos, nas negociações e nos debates políticos nas instâncias do Estado Imperial brasileiro: parlamento, a coroa, a diplomacia... Além disso, sobra pouco espaço, nas análises, para os indivíduos não envolvidos diretamente com a “grande política”, a condução dos negócios de Estado. O artigo Súplicas a Vossa Majestade Imperial, de Elizabeth Sant’Anna, todavia, vai na contramão dessa tendência ao analisar demandas de diferentes segmentos sociais − imigrantes, clero, burocracia, comércio − endereçadas a D. Pedro II no contexto da Lei de Terras (1850). Aqui, a coroa e a legislação do período constituem pano de fundo para apresentar personagens nem sempre presentes nas altas esferas do poder no oitocentos brasileiro. A “grande política”, tônica da segunda parte, no entanto, tem seu destaque nos artigos de Aline Pereira e Cristiane Marcelo, que tratam da diplomacia. Enquanto a primeira autora se dedica aos debates parlamentares relativos aos tratados brasileiros de 1825, 1826 e 1828, a segunda analisa a trajetória de Duarte da Ponte Ribeiro. São distintas opções analíticas que investigam a diplomacia brasileira na primeira metade do oitocentos do “lado de cá” das fronteiras brasileiras (Pereira) e “para fora” desses limites territoriais (Cristiane Marcelo). No estudo de Pereira, o enfoque está nas tramas e nos discursos políticos no parlamento brasileiro com relação aos tratados diplomáticos e os impactos desses acordos na nascente monarquia americana. Nessas falas e negociações políticas aparecem outras temáticas que vão além da diplomacia, como a relação entre os poderes imperiais, o comércio e a escravidão. Já na investigação de Cristiane Marcelo, o estudo da atuação do diplomata Ponte Ribeiro lança luz sobre como o Brasil era visto pelos demais Estados da América do sul. As análises das duas autoras, portanto, são complementares. O já mencionado artigo que fecha a seção, escrito por Karulliny Vianna, por outro lado, destoa das análises políticas antecessoras. Não se dedica à esfera nacional, como os escritos de Pereira e Cristiane Marcelo, mas também não se volta para a trajetória de atores sociais n.9, 2015, p.431-436

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RODRIGO DA SILVA GOULARTE

fora da “grande política”, como faz Elizabeth Sant’Anna. O destaque do estudo de Vianna está em se preocupar com a circulação de ideias em uma província fora do centro do poder imperial. Nesses termos, a autora se dedica à recepção de ideias e linguagens republicanas na imprensa do Espírito Santo a partir da década de 1870. Outro destaque para o texto de Vianna em relação aos demais artigos do livro ocupados com a esfera política: enquanto estes lançam mão de documentos oficiais, aquele utiliza periódicos. O artigo de Vianna, por outro lado, se aproxima aos escritos de Aline Pereira e Cristiane Marcelo na medida em que também não se atém a trajetórias de indivíduos fora da “grande política”. Como já afirmado, o único artigo da Parte II que vai na contramão dessa perspectiva é o de Elizabeth Sant’Anna. Nesses termos, essa seção de O Oitocentos sob novas perspectivas é de maior proveito para os investigadores do século XIX interessados principalmente nos processos mais gerais do Estado brasileiro de então, e não nas tramas mais cotidianas, locais e externas às instituições políticas. Na Parte III − Ciências e Letras −, o destaque está na circulação de ideias e saberes no universo luso-brasileiro do oitocentos. A contribuição dessa seção está em analisar, nesse contexto social, conceitos eruditos e não eruditos. Nesse sentido, é possível perceber a cisão dessa unidade em duas partes. De um lado, as análises se concentram nos diálogos entre as dimensões erudita e não erudita dos saberes, conforme os textos de Carla Gomes e Sebastião Franco. De outro lado, os artigos de Iara Lis e Paula Botafogo dedicam maior atenção aos saberes eruditos. No texto Periódicos, escolas e livros, de Carla Gomes, são discutidas a instrução pública e a circulação de periódicos em São Pedro do Rio Grande do Sul na primeira metade do oitocentos, demonstrando a importância política desses escritos para a província e rebatendo a tese do analfabetismo generalizado dos habitantes da região. Franco, por sua vez, explica como se deu, na província do Espírito Santo, o enfrentamento − por parte de autoridades e habitantes em geral − dos surtos epidêmicos em meados do século XIX. Conforme o autor, “[...] os moradores preferiam recorrer a curandeiros por confiar neles, e só procuravam os médicos depois que o uso de remédios caseiros não surtia efeito, quando o mal já não tinha mais cura”4. Na subdivisão da Parte III mais dedicada aos saberes eruditos, a seu turno, Iara Lis se ocupa (em Apontamentos sobre a ilustração científica no mundo luso-brasileiro) do desenho como [...] uma espécie de saber federativo que permeava a sociabilidade culta. Surgia no cotidiano, na educação e no trabalho letrado [...] funcionava como mecanismo de poder da monarquia [...]. Entre 1750-1830, grosso modo, houve um processo de institucionalização do ensino do desenho [...]5

A análise de Iara Lis, portanto, centra-se nos usos do desenho entre acadêmicos (a exemplo dos naturalistas) e a alta burocracia no universo luso-brasileiro da virada do 434

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O OITOCENTOS SOB NOVAS PERSPECTIVAS

setecentos para o oitocentos. Sendo assim, nesse mundo a ilustração era elemento de poder e de desenvolvimento econômico e científico. Completando essa preocupação com os saberes eruditos, por sua vez, está a discussão de Paula Botafogo sobre a memória construída por Mello Morais a respeito de Soares Lisboa. O ensaio de Botafogo não se limita a percorrer a trajetória de Lisboa (partícipe na Confederação do Equador), mas discute também o nascimento da História como campo de conhecimento no século XIX sob os parâmetros do positivismo. Os artigos da Parte III de O Oitocentos sob novas perspectivas, portanto, se complementam. Discutem os saberes eruditos e populares em suas aproximações, distanciamentos e imbricações, e em como eram instrumentalizados por governantes e governados. A parte final do livro − Culturas e Sociabilidades −, por seu turno, trata das representações artísticas, divertimentos e festas no Brasil do início do dezenove e na virada desse século para o seguinte. Esses temas analisados nos artigos da seção servem como pontes para a investigação da esfera do político. Assim, a discussão que abre a Parte IV, Um Gavroche no teatro, de Giselle Nicolau, analisa a obra teatral de Arthur Azevedo no período de 1894 a 1898, como uma encenação do “[...] passado da república nascente, e o próprio presente [...]”6. No artigo, a obra de arte é pensada como fonte histórica para abordagem dos primeiros anos da República brasileira. Já no artigo seguinte, Paradoxos carnavalescos, de Eric Brasil, o carnaval do ano de 1891 é analisado por meio de descrições de jornais e imagens com a finalidade de estudar a participação feminina na esfera pública nesse momento. No ensaio final (Dos divertimentos apropriados aos perigosos, de Lídia Rafaela), são estudadas as festas no Recife na primeira metade do oitocentos. Em sua análise, a autora toca em temas como controle e tensões sociais, civilização e sociabilidades. Se a Parte II do livro se dedicou à “Grande Política” (Diplomacia, debates parlamentares, ideias políticas em periódicos...), a parte final se atém à política na dimensão daqueles que estão alijados da condução do poder, em cargos de mando ou expressão da palavra escrita, como os periodistas. O Oitocentos sob novas perspectivas, portanto, se encerra contando histórias daqueles que acessavam o espaço público por meio das festas, peças teatrais e conversas. Um acesso que às vezes se fazia por meio do contraponto à ordem social e política, de forma física e simbólica. Não era à toa, portanto, que as autoridades dos Estados nascentes (monárquico e depois republicano) estavam atentas às maneiras de a população celebrar (ou esquecer) a vida, sendo os divertimentos “[...] combatidos e estimulados, e o equilíbrio nessa dosagem foi diretamente influenciado pela conjuntura do período”7. Ao apresentar um conjunto de ensaios que vão em direção à diversidade geográfica, cultural, econômica e política do “longo século XIX”, Ferreira, Martins e Ribeiro contribuem para a divulgação de resultados investigativos produzidos em diferentes localidades brasileiras, o que matiza o olhar historiográfico sobre a realidade tão complexa da civilização luso-brasileira delimitada entre meados século XVIII e as primeiras décadas do XX. n.9, 2015, p.431-436

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RODRIGO DA SILVA GOULARTE

Certamente, essa vastidão espacial e temporal ainda será objeto de novas discussões nas próximas décadas, mas a coletânea aqui discutida tem seu valor por reunir ensaios que são fruto de mudanças na historiografia brasileira dos últimos anos (boa parte delas encabeçadas por historiadores(as) como Gladys Sabina Ribeiro, Iara Lis Schiavinatto e José Murilo de Carvalho), que rompeu com chaves explicativas – como “crise do sistema colonial”, “ciclos econômicos” e “coronelismo” – que pelo menos até o final da década de 1980 balizavam as discussões sobre a realidade brasileira. O Oitocentos sob novas perspectivas, portanto, está no contexto dessa ruptura historiográfica, apontando para novas possibilidades de pesquisas sobre a História do Brasil. Notas 5 SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Apontamentos sobre a ilustração científica no mundo luso-brasileiro – c. 1750 – 1820”. In: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014, pp. 231248. p. 244.

1 http://www.seo.uff.br/index.php/home/quemsomos. Acesso em 1º de março de 2015. 2 SALES, Mábia Aline Freitas. “Porto, navegação e artigos importados em Belém, 1840-1870”. In: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014, pp. 53- 76. p. 54.

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. “Das racionalidades da História: O Império do Brasil em perspectiva teórica”. In: Almanack. pp. 53-61, 2º semestre de 2012. Disponível em: http://www. almanack.unifesp.br/index.php–/almanack/article/ view/965. Acesso em 15 de abril de 2011. 3

FRANCO, Sebastião Pimentel. “Surtos epidêmicos na Província do Espírito Santo (18501860)”. In: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014, p.p 277 -298. p. 288. 4

6 NICOLAU, Giselle Pereira. “Um Gavroche no teatro: sociedade e cultura política na obra de Arthur Azevedo”. In: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014, pp. 301321. p. 302. 7 RAFAELA, Lídia. “Dos divertimentos apropriados aos perigosos: organização e controle das festas e sociabilidades no Recife (1822-1850)”. In: FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima; RIBEIRO e Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014, pp. 343-364. p. 345.

Referências Bibliográficas FERREIRA, Tânia Bessoni da Cruz; MARTINS, Ismênia de Lima e RIBEIRO, Gladys Sabina (orgs). O Oitocentos sob novas perspectivas. São Paulo: Alameda, 2014. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. “Das racionalidades da História: O Império do Brasil em perspectiva teórica”. In: Almanack. p.53-61, 2º semestre de 2012. Disponível em: http://www.almanack.unifesp.br/ index.php–/almanack/article/view/965. Acesso em 15 de abril de 2011. http://www.seo.uff.br/index.php/home/quem-somos. Acesso em 1º de março de 2015. Recebido em 27/04/2015 Aprovado em 09/05/2015

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Entrevista

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Leandro Konder (1936-2014): Um homem do século 19 Leandro Konder (1936-2014): A 19th Century man Entrevista concedida a Beatriz Kushnir* Transcrição Yama Arruda**

O privilégio de frequentar os cursos do professor Leandro Konder era e é um “troféu” acalentado pelos alunos de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tive esta oportunidade quando, na segunda metade da década de 1980, fui sua aluna, ainda no prédio amarelo do Valonguinho, onde ficava o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF), em Niterói. Suas aulas, à noite, para se ler Walter Benjamin, ficavam lotadas, uma fauna de gente literalmente deitada no chão da sala. Mais de uma década depois, ele já estava aposentado na UFF e ainda atuava na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), enquanto eu fazia a minha tese de doutoramento em História na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (sobre o tema, ver: http:// caesdeguarda-jornalistasecensores.blogspot.com.br/). Buscando uma forma de conversarmos, telefonei-lhe e fiz um longo prólogo, explicando quem me dera o seu número, quando fui interrompida por sua frase: “Bia, você foi minha aluna. Eu sei quem você é!”. E assim nos encontramos dias depois, em 10/08/1998, de forma muito serena, marca dele nos alunos. Os sinais da doença que o levaria uma década e meia mais tarde, o Mal de Parkinson, já apareciam, e me apressei em direção às cadeiras para ajudá-lo, quando fui interrompida. “Bia, eu sou um homem do século 19. Aqui, quem pega a cadeira sou eu”. Nossa conversa foi pontuada pelas dúvidas que me surgiram após ler a reedição do romance de Carlos Heitor Cony Pessach: a Travessia (São Paulo, Companhia das Letras, 1997), e sobre o qual eu escrevia um artigo1. Este buscava mapear os debates e as polêmicas que a obra gerou quando das suas três edições (1967, 1975 e 1997), e que me levam a concluir que no interior das discussões se travava uma disputa de memória, vislumbrada quando veio a público a primeira edição do livro, em 1967, e reacesa na nova publicação, lançada em 1997. * Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), professora-colaboradora dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e em Gestão de Documentos e Arquivos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autora, entre outros, do livro Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo/FAPESP, 2004). ** Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). n.9, 2015, p.439-453

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Em um hiato de trinta anos, constatou-se que o tempo guardou – e ainda guarda – feridas que, como demonstraram os debates na época da reedição, estão longe da cicatrização. Nem memorialista, nem ideologicamente vinculado às narrativas da guerrilha, nem às teias militantes das esquerdas daquele tempo passado, ainda tão presente. A análise do (controverso) romance de Cony e toda a sua (tortuosa) trajetória podem auxiliar na reflexão sobre uma história intelectual e nas tramas da sociabilidade de uma geração por outro foco. Nesse sentido, debruçar sobre uma determinada obra de um escritor não engajado me auxiliou a refletir sobre como a história de um livro, e não só a narrativa contida no seu interior, é uma chave para se compreender o que ainda é uma ferida aberta trinta anos depois. Cony, talvez respondendo às inúmeras críticas ao seu livro Pessach e à sua escolha por escrever sobre um tema que lhe atribuíram não dominar, publicou, na sequência, outro trabalho, intitulado Romance sem palavras (São Paulo, Companhia das Letras, 1999), no qual retorna aos anos 1960 e às experiências de tortura. Agora, três personagens, no presente, expõem seus fantasmas e suas dores. Depois desse encontro com Konder para conversar sobre Cony, ficamos longos anos sem nos falar. Aos sábados, a partir de julho de 2002, passei a ler suas crônicas nas páginas ainda impressas do JB. Recordo-me de que, em algum momento, uma delas tocava no tema dos currículos dos políticos, que eram apresentados de forma manipulada, muitas vezes para engrandecê-los. Crítica do uso manipulado do Lattes em muitos concursos públicos, escrevi-lhe um e-mail um tanto disparatado, comentando que, na Academia, a prática pontuada no universo da política também era utilizada. Algumas horas depois, chegou-me uma doce e lúcida resposta, buscando consolar-me, ao mesmo tempo em que reavaliava as suas afirmações impressas. Pena que nessas inúmeras transformações de Tecnologia da Informação (T.I.) perdi esta bela correspondência.... Ao saber de sua morte, em 12/11/2014, aos 78 anos, lembrei-me desta entrevista. Transcrita por Yama Arruda, a quem agradeço, levo-a a público como uma distinção a este professor, intelectual e militante que marcou e marcará gerações. Aqui, um pouco do ser humano absolutamente discreto e irônico que, por breves flashes, se deixou desvelar. Beatriz Kushnir

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The privilegie of attending the courses of Professor Leandro Konder was and still are a “trophy” cherished by History students of Federal Fluminense University (UFF). I had this opportunity when in the second half of the 1980’s, I was his student, still in yellow Valonguinho building, where was the Institute of Human Sciences and Philosophy (ICHF), in Niterói City. Their classes, at night, to read Walter Benjamin, were full of people, a fauna of people literally lying on the room floor. More than a decade later, he was already retired at UFF and he also worked at Pontifical Catholic University (PUC-Rio), while I did my doctoral thesis in History at Campinas State University (UNICAMP) (about the theme, see: http://caesdeguarda-jornalistasecensores. blogspot.com.br/). Seeking a way to talk, I called him and I did a long prologue explaining who gave me his number, when I was interrupted by his sentense “Bia, you were my student. I know who you are!”. And so we gather days later, in August 10, 1998, very peacefully, how students remember him. The signs of the disease that would take him away a decade and a half later, Parkinson’s Disease, have appeared already and I hurried toward the chairs to help him, when I was interrupted. “Bia. I’m a 19th century man. Who takes the chair here, It’s me. Our conversation was punctuated by the doubts that arose me after reading a new edition of the Carlos Heitor Cony’s novel Pessach: the Crossing (São Paulo, Companhia das Letras Press, 1997), and about which I wrote an article2. This paper intended to map the debates and the controversies produced at the time of its three editions (1967, 1975 e 1997) and which lead me to conclude that inside the discussions, there was a memory dispute, arising when the first edition appeared, in 1967, and reappeared in the new publication, in 1997. In a hiatos of thirty years, it was found that the time saved – and still save - wounds that are far from healing, how demonstrate the debates at the time of reissue. Nor memoirist, or ideologically linked to guerrilla narratives, or to the webs of left militants that last time, still so presente. The analysis of the (controversial) novel of Cony and all his (tortuous) trajectory can assist in the consideration of an intellectual history and the plots of sociability from one generation by another focus. In this sense, dwell on a particular work of a writer not engaged helped me to reflect about how the history of a book, and not only the narrative contained inside, It can be a key to understanding what is still an open wound thirty years later. Cony, perhaps responding to numerous criticisms of his book Pessach and your choice by writing about a theme that some people said he did dominate, published in sequence another work, titled Romance without words (São Paulo, Companhia das Letras Press, 1999), in which he returns to the 1960s and his torture experiments. Now, three characters, in the present, exposes their ghosts and their pains. After this meeting with Konder to talk about Cony, we were many years without telling us. Os Saturdays, from July 2002, I started to read his chronicles even printed in the JB pages. n.9, 2015, p.439-453

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I remember that, at once, one of them touched on the theme of curriculum of politicians, which were presented in a manipulated form, oftentimes to magnify them. As critical of the handling of the Lattes in many public contests, I wrote him an email a little silly, commenting that, at the Academy, politics was also used. Some hours later, He got me a sweet and lucid answer, seeking comfort me while he performed his printed statements. Too bad I lost these beautiful letters in one of many changes of Information Technology (I.T.) .... Upon learning of his death, in November 12, 2014, when he was 78, I remembered this interview. Transcribed by Yama Arruda, whom I thank, I take it to the public as a distinction to this professor, intelectual and militant who taught and will teach many generations. Here, a little bit of an absolutely discreet and ironic man that, by brief flashes, he let himself reveal. Beatriz Kushnir

Translated by Carolina Ferro. 442

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Leandro Konder: Eu era membro do Comitê Cultural do Partido [Comunista Brasileiro (PCB)]3, participava das reuniões, como também participava o Ferreira Gullar4. Quando um determinado companheiro foi preso com todo o material em casa, nós fizemos uma reunião de emergência, percebemos que a situação era muito grave, e que todos iríamos ser chamados a depor e eventualmente presos. Então, nossa preocupação foi com o Ferreira Gullar, que tinha sido eleito, designado membro da Direção do partido no Estado5. Beatriz Kushnir: Foi depois do 6º Congresso6? Leandro Konder: Foi em setembro. Final de setembro. Nossa preocupação foi avisar ao Gullar o que estava acontecendo para protegê-lo. E aí a indicação era que ele se escondesse, passasse à clandestinidade. O que, para ele, foi uma catástrofe. Ele tinha uma vida legal, era um militante que atuava na legalidade, e ia ter que passar à clandestinidade. Ele conta tudo nesse livro dele que foi publicado agora, que começa com essa passagem dele para a clandestinidade e depois a vida dele, que foi fazer um curso em Moscou mandado pela Direção, e depois Buenos Aires, Santiago do Chile7. O Gullar foi eleito para a Direção Estadual, mas nunca chegou a participar da Direção Estadual, de uma reunião da Direção Estadual, mas ficou o estigma. Beatriz Kushnir: Mas ele foi eleito pelo nome, pela figura, por quê? Leandro Konder: Ele foi eleito porque tinha uma inteligência política muito grande, ele se destacava, ele tinha uma certa liderança, era uma pessoa muito lúcida. Beatriz Kushnir: Além dele e de você, quem mais participava do Comitê Cultural? Leandro Konder: Olha, eu não sei até hoje se todas as pessoas concordam que seus nomes apareçam. Então eu vou me limitar a dizer os nomes de alguns que eu sei que não têm “grilo”: Dias Gomes8, Alex Viany9. Na parte de cinema, nós tínhamos o Leon Hirszman10, que era também uma liderança muito acentuada; Alex Viany, que era um velho companheiro experiente; e o Joaquim Pedro de Andrade11. Num dado momento, tivemos muita gente, era forte na área do cinema, na área do teatro. E, na verdade, nunca tomou nenhuma decisão relativa à avaliação de obra nenhuma de ninguém, atividade de uma pessoa. A nossa concepção era que o Comitê Cultural seria um lugar de coordenação, de concatenação de movimentos que não passavam pela criação cultural, passavam pela ação política. Na hora de coordenar as ações políticas diferenciadas, nós desempenharíamos um papel, essa era a nossa concepção. Pelo que eu me lembro, uma ou outra vez as opiniões pessoais – “tal livro achei fraco”. Nunca houve discussão. A ideia... Eu acho que a pessoa que conhece o Partido Comunista através de livros, de relatos, da história de alguns momentos da militância comunista, das atividades comunistas em outros países, em outras épocas, fica muito marcada por isso, e isso alimenta uma certa paranoia. n.9, 2015, p.439-453

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Beatriz Kushnir: Isso que acontece em relação ao Carlos Heitor Cony12? Leandro Konder: Eu acho que o Cony, por nunca ter sido de um partido, ele projeta alguns fantasmas dele na militância do partido. Possivelmente, até em alguns momentos, em alguns lugares, existiram fatos terríveis que alimentam essa paranoia. No caso do Rio de Janeiro, do Comitê Cultural do Rio de Janeiro, eu posso te garantir que nós fizemos bobagens, análises políticas absolutamente equivocadas, mas em nenhum momento nós fomos stalinianos. Beatriz Kushnir: E quanto às decisões do 6º Congresso, como você se posicionou? Leandro Konder: A gente tinha, eu pessoalmente, que era muito ligado a um companheiro, Armínio Guedes, que é um jornalista baiano, uma figura maravilhosa, hoje muito cético, mas que na época dizia o seguinte: um certo nacionalismo aceitável para o centro do movimento comunista, porque era antiamericano, anti-imperialista. Ele nos ajuda criando condições favoráveis na luta pela democratização do partido. Então, a nossa ideia era que a questão democrática, que era a questão essencial, dependia de um aproveitamento da questão nacional que estava formulada de uma maneira que hoje nós sabemos que é bastante limitada, mas que na época era conveniente. Então, nesse sentido, eu achei que o congresso era um avanço. Por outro lado, nós estávamos convencidos de que a luta armada era um beco sem saída. Também tinha esse lado, porque o partido era, das organizações revolucionárias de esquerda, a mais experiente, a mais antiga, e aquela que percebia com mais clareza a inviabilidade da luta armada. O que não quer dizer que nós estávamos certos e os outros estavam errados. No erro dos outros havia uma iniciativa que ia além da nossa falta de iniciativa, mas eu acho que nós errávamos porque a nossa lucidez nos paralisava. Então, não era uma lucidez efetiva. Beatriz Kushnir: O que fica do livro do Cony [Pessach: a Travessia] é como se fosse uma denúncia ao PCB, que, além de ser contra a luta armada, teria lutado contra ela. No livro, as pessoas que morreram no final tiveram tal trajetória porque, para o autor, houve uma traição do partido. Leandro Konder: Eu não sei se houve militantes, eu não sei de casos de militantes que possam ter entrado em conflito agudo com os revolucionários que optaram pelos caminhos da luta armada. Que eu me lembre, no Comitê Cultural, onde eu militava, ninguém foi intolerante. Fora do comitê, o Armínio Guedes também é uma pessoa que sempre teve relações pessoais muito boas com revolucionários que seguiram a luta armada. São pessoas de quem ele divergia, com quem ele discutia até veementemente, mas que gostam dele, reconhecem que ele foi um interlocutor respeitoso, apaixonado, mas correto. Eu sei de vários casos de pessoas que, contrariando uma indicação da Direção Nacional, protegeram perseguidos da luta armada. Eu mesmo, em dado momento, não por motivos de solidariedade 444

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política, mas por motivos de solidariedade humana, acolhi refugiados e ajudei a esconder perseguidos. No dia seguinte, com pessoas com quem eu tinha uma relação pessoal mais íntima, eu disse: “Pelo amor de Deus, não me mete numa fria dessas. Eu posso ser preso como comunista pela minha militância, mas não posso ser preso como terrorista, porque isso aí vai complicar tudo.” As pessoas foram muito corretas comigo, e eu procurei ser correto com elas. Mesmo os que foram presos me preservaram. A minha impressão é que o Cony deve ter tido alguns contatos que se baseiam muito em impressões, imagens, um artista, um ficcionista. Então, ele deve ter tido alguns contatos humanos desagradáveis com comunistas, e com isso se consolidou, se cristalizou nele uma visão hipercrítica do partido com alguns toques dessa fantasia persecutória que é muito comum em pessoas que conhecem os comunistas através de fragmentos. Que eu me lembre, o Ferreira Gullar gostava muito do Cony pessoalmente. Eles tinham divergências, mas na época do prestígio máximo do Cony, ele foi uma figura muito importante. Beatriz Kushnir: Pelas crônicas que ele publicou no Correio da Manhã logo após o golpe de 1964 e que depois seriam reunidas e publicadas no livro O ato e o fato? Leandro Konder: Naquele momento, uma boa parte da esquerda, se não brasileira, carioca, acordava cedo para ir ler o Cony. Nessa época, o Cony recebeu ajuda concreta, efetiva, prática, de Ferreira Gullar. Então, o Ferreira Gullar criticava, divergia dele, mas, ao mesmo tempo, tinha um carinho por ele como amigo. Outras pessoas do comitê nunca se manifestaram em relação a ele. E outra pessoa que não era do comitê, porque tinha uma situação especial, era o Ênio Silveira13. Nós sabíamos que ele era do partido, mas ele preservava certa autonomia para poder gerir, dirigir a editora que era dele, não do partido. Ele era um cara de partido. O Ênio gostava do Cony, ele era editor do Cony, admirador do Cony. Ele me chamou para fazer a resenha, e eu cheguei a conversar com o Cony sobre a minha opinião antes de fazer a resenha. Ele disse: “Foi o que eu pensei. Escreve isso?” Eu disse: “Escrevo”. Beatriz Kushnir: É muito interessante o texto da orelha de Pessach: a Travessia, porque se divide em duas partes, como o livro. Por que, como você diz, a primeira parte é uma das partes mais bonitas? Leandro Konder: Um dos pontos altos da obra dele até então. A outra parte é uma aventura, não é que eu seja contra, acho que isso até mostra uma certa vitalidade, a busca por novos caminhos para a criatividade é sempre bom para um escritor. Agora, ao mesmo tempo, corre o risco de trabalhar uma matéria que ele não domina, com a qual ele não está tão familiarizado.

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Beatriz Kushnir: Então, de certa maneira, você concorda com a opinião do Daniel Aarão Reis, que, ao analisar a temática desenvolvida em Pessach: a Travessia, conclui que o que empobrece a obra de Carlos Heitor Cony é que o autor se debruçou sobre uma matéria que não viveu? Leandro Konder: É, eu acho que isso criou determinadas limitações que ele não conseguiu superar. Eu não acho que exista. Nem sempre que ser formulada uma crítica deve haver uma espécie de proibição: “não enverede por um caminho como esse!” Eu acho que um escritor tem direito de enveredar. Beatriz Kushnir: Ainda mais sendo ficcional. Leandro Konder: Pois é, ficcional vai fundo. Agora, nós temos o direito de dizer. Na ocasião em que saiu essa minha orelha no livro, o Nélson Werneck Sodré, na Revista da Civilização [Brasileira], comentou o evento. “Uma orelha que formula algumas dúvidas, uma coisa que honra o autor do livro, que concordou com a publicação da orelha, e o orelhador, que foi franco e ao mesmo tempo foi simpático ao livro”. Então, foi uma coisa interessante, eu gostei de ter feito a orelha, me senti inteiramente sincero14. Beatriz Kushnir: Quantos anos você tinha quando escreveu essa orelha? Essa orelha é de 1967. Leandro Konder: Em 1967, eu tinha 31. Beatriz Kushnir: E você trabalhava na época já dando aulas ou não? Leandro Konder: Não. Eu era funcionário público do Estado do Rio de Janeiro. Isso é outra história engraçada, porque, em 1964, o Governador [do Estado da Guanabara] era Carlos Lacerda15, e eu era assistente jurídico da Procuradoria do Estado. O Procurador [Geral] era o Doutor Eugênio Vasconcelos Sigaud, que era um lacerdista apaixonado, e poucos dias depois do golpe, 2, 3 de abril, eu recebi um recado: “Fica tranquilo que não vai acontecer nada com você”. Havia uma caça às bruxas, foi ótimo. Até foi engraçado porque depois ele mudou, para fazer alguma coisa, o sistema de horário dos procuradores. Os procuradores tinham liberdade de horário e produziam pouco. Para mostrar serviço, ele fixou um quadro com os horários para os procuradores, os assistentes jurídicos foram esquecidos. Aí eu me lembro de uma história ótima: eu estava conversando com um Procurador do Estado, uma figura deliciosa que era o Otto Lara Resende16, e de repente aparece um daqueles procuradores nervosos: “Otto, você já leu a nova portaria do Doutor Sigaud?”. Tinha sete páginas. Aí o Otto olhou para ele e disse: “Não li Dante, Petrarca, ainda não tive tempo de ler os clássicos, você acha que eu vou ler uma portaria do Doutor Sigaud?”. Eu me lembro disso até hoje, foi uma das maiores gargalhadas que eu me lembro de ter dado.

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Beatriz Kushnir: Por que quando reeditam Pessach em 1975 o seu texto da sua orelha sai? Leandro Konder: Não sei, eu estava fora do Brasil, na Alemanha. Beatriz Kushnir: O Ênio Silveira não te consultou? Leandro Konder: Não; desde a primeira edição, uma das pessoas entusiasmadas pelo livro era o Paulo Francis17, que via o livro como uma espécie de visão antecipada da tragédia da luta armada. O livro era premonitório, segundo o Francis. Então, o Ênio deve ter achado que a fala do Francis era mais adequada que a minha para aquele momento. Beatriz Kushnir: Você tomou conhecimento das matérias publicadas quando da última edição do livro? Há uma, do Ruy Castro, que questiona a reedição de Pessach em 1975 já que, segundo ele, a edição de 1967 estava em todos os sebos no Rio e ainda sem manuseio. Você tem ideia de por que essas coisas aconteceram?18 Leandro Konder: Não tenho ideia. Beatriz Kushnir: Agora, essa terceira edição, você e o Ferreira Gullar chegaram a conversar sobre? Leandro Konder: Não. Eu não tenho tido nenhum contato com o Ferreira Gullar, a não ser eventual. Agora, quando ele lançou o livro, eu fui comprar no lançamento, ele foi muito afetuoso, me abraçou muito. Ele fala de mim no livro como o cara que deu o recado, abriu a história como um primo-irmão. Eu mantive contato com ele por correspondência, mas depois que eu voltei ao Brasil, já ao longo dos anos de 1980 e dos anos de 1990, nos últimos 20 anos, praticamente o meu contato com ele é absolutamente esporádico e sem conversa. Porque eu segui um caminho político, e ele seguiu outro. Ele tem uma visão muito crítica do PT, e eu sou petista19. É uma coisa delicada. Acho que é até uma maneira de preservar o vínculo, a relação. Mas, então, não tenho ideia do que se passa com ele, no íntimo dele. Fiquei meio impressionado quando ele saiu, quando o Weffort o removeu da Funarte e ele abriu fogo contra o Weffort, acusando-o se de ser um petista no atual governo. “Eu votei no Fernando Henrique e ele era PT, e agora ele que está me mandando e me mandando embora”. E o Weffort, a meu ver, teve uma clara opção de abandono ao PT e de conversão ao Fernando Henrique Cardoso. Acho que o Gullar foi meio preconceituoso quando considerou o Weffort uma encarnação do espírito petista demoníaco. Beatriz Kushnir: O Cony alega que o Ferreira Gullar credita à “turma do partido” a venda de seus livros. Seria uma deferência às crônicas do Cony no Correio da Manhã, como um agrado. Por esta fala de Gullar, Cony acredita que teve uma venda de livros artificial. Assim, pondera que, ao mesmo tempo que a “turma”, como ele chama, poderia começar a comprar, poderia parar de comprar. É verdadeiro? Falso? Você acha que é um exagero? Por que você acha n.9, 2015, p.439-453

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que há tanta mágoa? Até quando o Cony escreveu um artigo chamando o Comitê Cultural do PCB de SNI [Serviço Nacional de Informações] às avessas tem tanta mágoa, tanta dor? Cony escreve Pessach, escreve Pilatos, e depois fica 21 anos sem escrever. Acredito que ele não opta por sair. Ao voltar de uma viagem a Cuba, em 1968, Cony não tem mais emprego na imprensa. O único que lhe abriu as portas foi o Adolpho Bloch. Percebi que isso deixou uma mágoa nele muito forte. Muitas vezes, ele demarca que parou de escrever por 21 anos. Mas ele sublinha que não foi ele que parou. Pararam com ele. Leandro Konder: Pode ser. Eu ouvi dizer que há muito essa ideia de que o partido tinha um poder muito grande na imprensa, que não é absurda, porque eu conheço alguns jornalistas do partido que contam coisas que eu não sabia. De articulações nas redações, manobras. Beatriz Kushnir: Tinha jornalistas do partido em pontos-chaves da imprensa, daí uma brincadeira do Nelson Rodrigues de que saía qualquer coisa nesse país com o aval do partido. Um certo exagero? Leandro Konder: Eu também acho, talvez haja aí um caso de manifestação de uma fantasia persecutória. Eu sei que havia esse poder, mas que esse poder era limitado. Quem manda nas redações, quem manda nos jornais, não são os prepostos. Tem um momento em que entra um sujeito e diz: “O dono do jornal disse isso”. Agora eu não sei de onde vem o negócio da mágoa. Eu procuro não me envolver muito, porque a mágoa é má conselheira. Se a mágoa se infiltra no sentimento da gente, a gente começa a ter dificuldade de avaliar com o mínimo de equilíbrio, de isenção, as coisas, e eu temo cometer injustiças em relação a pessoas que eu admiro. Cony é uma pessoa que segue um caminho, uma visão política que não é a minha, mas, ao mesmo tempo, é um escritor que eu respeito, uma pessoa que eu considero íntima. Então, independentemente, dessas fantasias conceituais, eu procuro me preservar de qualquer movimento de impaciência com ele. Eu acho que intelectuais e artistas são pessoas complicadas por definição, a gente tem que aceitá-los na complicação deles. Então, eu não sei de onde vêm essas coisas. Nos anos de 1970, como isso funcionava? Como era a atividade do partido? Passei os anos de 1970 praticamente fora do país. Desde 1972 eu já estava na Alemanha, voltei em 1979. Beatriz Kushnir: Você volta com a Anistia. Leandro Konder: Eu voltei em 1978, antes da Anistia, mas a gente já sabia que a Anistia ia vir. Aí já é outro problema de luta interna. Havia uma turma mais cética, mais desconfiada, e havia uma turma mais ousada que dizia: “Vamos aproveitar a Abertura. É de cima para baixo, está sob o controle do Estado, mas ela corresponde a uma pressão da sociedade, ela não é uma manobra demoníaca”. Alguns companheiros diziam: “É uma manobra demoníaca para que nós nos exponhamos”. A discussão se dava muito em torno do jornal legal A Voz da Unidade, que nasceu de uma certa luta na qual esse setor democrático mais ousado venceu 448

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o setor mais conservador entre aspas, mais ligado a uma certa dinâmica da máquina, do aparelho. Beatriz Kushnir: Quando você volta, você não volta mais ligado ao PCB. Leandro Konder: Volto ligado ao partido. Nós voltamos, Carlos Nélson Coutinho, Milton Temer e eu, ligados ao partido. O único que chegou aqui e ao entrar em contato com a realidade do partido imediatamente percebeu que não era a dele foi o Milton Temer. Saiu imediatamente. O Carlos Nélson e eu ainda resistimos um pouco, eu até resisti mais. Ainda fui membro da sucursal d’A Voz da Unidade aqui no Rio. Depois, quando acabaram com o jornal, eles tomaram a direção do jornal [e] nos expulsaram da sucursal, nos forçaram a saída da sucursal, eu fui para a base ainda, a base em Ipanema. Engraçadíssimo, divertidíssimo, mas aí já era fim de festa. Eu fiquei até 1982, meu último ato no partido foi participar da comemoração dos 60 anos do partido na ABI [Associação Brasileira de Imprensa]. Beatriz Kushnir: Você publicou livros no período antes de ir para o exílio. Leandro Konder: Publiquei. Beatriz Kushnir: E teve problemas com a censura? Leandro Konder: Não. Eu tive problemas. Segundo me contou o Ênio, exemplares do meu primeiro livro, Marxismo e alienação, teriam sido confiscados em alguns lugares, em algumas livrarias e postos de revenda. Marxismo e alienação se chamava o de 1965. Aí o Ênio, que era o editor, contou que houve apreensões, que estava entrando na Justiça. Beatriz Kushnir: Você escrevia para jornais nessa época? Leandro Konder: Escrevia. Beatriz Kushnir: E nunca uma matéria foi censurada. Leandro Konder: Não, eu escrevia para um jornal nosso, que era a Folha da Semana, e para o Correio da Manhã, com um pseudônimo. Beatriz Kushnir: Por saber que talvez... Leandro Konder: Não, para não expor o Correio da Manhã, que estava sobre pressão. Botar um comunista ali era meio complicado. Beatriz Kushnir: E qual era o pseudônimo que você usava? Leandro Konder: Leonardo Kramer, mantinha o L e o K. Eu e o Fernando Peixoto, companheiro de teatro, que era do partido também. O Fernando falava: “Vamos escrever sobre bichos. O elefante”. Aí eu fazia sobre o hipopótamo. Fazíamos umas coisas assim meio n.9, 2015, p.439-453

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brincalhonas. E na Folha da Semana, que era um jornal semanal do partido, que durou um ano e meio, se eu não me engano, eu era o editor cultural. O jornal estava falindo, nós tínhamos uma reunião dramática marcada para decidir o que fazer, o jornal ia acabar, mas a Marinha ocupou militarmente a sede do jornal e nos permitiu uma morte com honra. Beatriz Kushnir: Antes que vocês acabassem sozinhos, eles vieram e… Leandro Konder: Exatamente. Te confesso que houve até um certo alívio. Beatriz Kushnir: Você se lembra de alguma história da censura? Da relação dos censores com os jornais ou com a Editora Civilização Brasileira? Leandro Konder: Não, tudo que eu sei é de ouvir dizer, de ler também. Na época, era muito difícil, eles não se expunham muito, eu acho até ótimo agora que digam o que se passava na cabeça deles. Eu nunca entendi direito. Essa história de encenação do Teatro Opinião, por exemplo, encenação que era o que os caras iam lá e viam. Histórias d’O Pasquim também, o Sérgio Cabral conta histórias divertidíssimas de diálogos com os censores. Beatriz Kushnir: Eu entrevistei uma censora que atuou n’O Pasquim. Já na Abertura, o Ziraldo tentando protegê-la numa entrevista. Não disse o seu nome e contou ter-lhe enviado um cartão na primeira vez que foi à Europa. Enviou o Davi, de Michelangelo, e escreveu: “Estou te mandando o Davi de costas porque, se eu mandar de frente, você vai censurar”. Ao comentar o fato e sem saber, ela puxou o cartão e falou: “Sou eu, sou a censora d’O Pasquim, e foi para mim que ele mandou”. Ziraldo não disse o nome dela, mas esses funcionários têm uma necessidade, hoje em dia, de falar. Às vezes, quando me dão entrevistas, querem diminuir um pouco as suas atuações, ou ridicularizar a situação para amolecer suas atuações. Leandro Konder: Essa coisa de memória é engraçada. Beatriz Kushnir: No tema enfrentado por Cony no romance, creio, estabeleceu-se uma disputa de memória. Uma querela entre o Cony e o Ferreira Gullar. Que memória se consolidará desses anos de 1960? Que visão construiremos dos anos de 1960? Cony acusando o Gullar de censor, e o Gullar, de certa maneira, acusando o Cony de fantasioso. Mas ali tem uma disputa. Uma disputa de que passado a gente vai construir. Leandro Konder: É verdade. A construção de uma imagem cristalizada do passado. Beatriz Kushnir: É, que ninguém quer mexer muito. Bom, eu te agradeço. Leandro Konder: Na parte da censura, meu depoimento a você é praticamente inútil, eu não testemunhei.

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Beatriz Kushnir: Mas eu acho que, basicamente, o que você quer dizer é que não havia censura no Comitê Cultural. Leandro Konder: Ah, sim. Isso eu posso te garantir, enquanto eu estive no Comitê Cultural, eu nunca vi. Inclusive um episódio... Beatriz Kushnir: Pode-se dizer que havia uma confusão entre a crítica que vocês faziam a determinados livros, filmes ou peças com uma noção de que havia uma censura? Leandro Konder: É possível que algumas pessoas tenham dito em público determinadas coisas que passaram a imagem de que era uma visão do Comitê Cultural. Mas o que eu acho mais importante, isso eu acho que é mais ou menos universal, ninguém gosta de ser criticado, mas a coisa de dizer a opinião pessoal de alguém em público, se a pessoa é do Comitê Cultural, poderia ser vista como uma posição do comitê. Eu me lembro bem disso, nunca o comitê como tal avaliou coisa alguma. Houve uma vez um episódio de um sujeito que foi a uma reunião do comitê e que não era do comitê, era da Direção do partido, e nos advertiu quanto a um determinado intelectual. Houve uma reação muito positiva, especialmente da parte do Dias Gomes, mas com o apoio, o respaldo de todos os outros. “Dias Gomes disse: − Esse sujeito é um chato de galocha, mas esta sua informação tem que ser acolhida com dúvidas. O sujeito retrucou: − Não, mas isso é sabido. Eu tenho provas. E Dias Gomes inquiriu: − Então, mostre as provas. − Não se podem mostrar as provas de uma pessoa ligada ao aparelho de repressão. − Mas ligada como? Já foi vista uma carteirinha? − Que carteirinha? Alguém ligado ao aparelho de repressão da esquerda vai ter carteirinha? Que maluquice é essa? Eu sei que houve uma reação do Dias Gomes, que liderou o movimento, e disse: − Isso é uma coisa muito perigosa, queima o cara, às vezes é uma grande injustiça. Eu, pessoalmente, o acho chatíssimo, evito-o pela chatice. Agora tentar caracterizá-lo como uma pessoa ligada ao aparelho de repressão é uma acusação muito grave. − Não, não. Eu estou só prevenindo”. Beatriz Kushnir: Um clima de conspiração dos dois lados. Leandro Konder: Dos dois lados. Esse cidadão, por acaso, esse que era apontado como ligado ao aparelho de repressão, pegou cadeia, coitado. Beatriz Kushnir: Por causa disso? Leandro Konder: Não, porque ele era subversivo.

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Beatriz Kushnir: Você não pode dizer o nome. Leandro Konder: Posso. Era o Moniz Bandeira20. De repente, ele foi processado pela Marinha, eu estava em uma auditoria e ele estava em outra. Eu ainda escapei, fui absolvido depois de um tempo, mas ele foi condenado. Ele era muito chato, mas não era um agente. Notas O livro de Carlos Heitor Cony, Pessach: a Travessia, é seu oitavo romance, e foi publicado em 1967 e 1975 pela Editora Civilização Brasileira, e em 1997 pela Companhia das Letras. Uma reflexão sobre o seu significado e outras questões acerca desse autor estão em: KUSHNIR, Beatriz. “Depor as armas – a travessia de Cony e a censura no partidão”, In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.), Intelectuais, história e política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000.

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2 The book of Carlos Heitor Cony, Pessach: the Crossing, is his eighth novel and it was published in 1967 and 1975 by Civilização Brasileira Press, and in 1997 by Companhia das Letras Press. A reflection on their meaning and other questions about this author are in: KUSHNIR, Beatriz. “Depor as armas – a travessia de Cony e a censura no partidão”, In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.), Intelectuais, história e política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000. 3 Leandro Konder nasceu em 1935, na cidade de Petrópolis, Estado do RJ. Aos 15 anos, vinculou-se à União da Juventude Comunista, permanecendo no PCB até 1982. Em 1989, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), do qual se desligou para fundar, junto com outros dissidentes, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Publicou cerca de trinta livros, centrados na temática do marxismo. Formou-se em Direito em 1958. Trabalhou com revisões e traduções encomendadas pela Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. Colaborou com as publicações vinculadas ao PCB, em particular com a Revista Estudos Sociais, fundada por Astrogildo Pereira, em que conheceu Carlos Nelson Coutinho, seu grande amigo e parceiro intelectual. Em 1969, na esteira do Ato Institucional nº 5 (AI-5), foi preso e torturado. Em 1972, partiu para o exílio na Alemanha. De volta ao Brasil, em 1978, lecionou no Colégio Bennett, no Departamento de História da UFF e no de Educação da PUC-Rio. Doutorou-se em Filosofia, na UFRJ, em 1987.

Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, nasceu em São Luís, no Maranhão, em 10/09/1930. É poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro, além de um dos fundadores do neoconcretismo. Foi o postulante da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras (ABL), na vaga deixada por Ivan Junqueira, na qual tomou posse em 5/12/2014. 4

5 A importância do Comitê Cultural do PCB advém do poder aglutinador e das figuras de expressão na política e na cultura que ali gravitavam em graus de permanência variados. Torna-se mais singular a proeminência dos nomes que ali circularam, tendo o Partido vivido longos períodos na clandestinidade. 6 O PCB reuniu-se em São Paulo, em dezembro de 1967, pouco mais de três anos após o golpe civil-militar de 1964, e realizou seu 6º Congresso Nacional. Buscando recompor-se, o partido definiu uma linha de ação antiditatorial centrada na recusa de quaisquer propostas que não envolvessem ações políticas de massas e as várias formas de luta armada. Tal decisão custou ao PCB a perda de importantes dirigentes, como Carlos Marighela, Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, entre tantos outros. 7

GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete: os anos de exílio. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador, em 19/10/1922, e faleceu num acidente de carro, em São Paulo, em 18/5/1999. Foi romancista, dramaturgo, autor de telenovelas e membro da Academia Brasileira de Letras. 8

Almiro Viviani Fialho era carioca, cineasta, produtor, roteirista, autor, jornalista e ator. É autor do livro Introdução ao Cinema Brasileiro (1959), tido como a primeira obra de filmografia brasileira. Trabalhou no jornal Diário da Noite, e em 1945 se mudou para Los Angeles, a fim de trabalhar como correspondente em Hollywood da Revista O Cruzeiro. 9

Leon Hirszman era carioca, nascido em 22/11/1937. Cineasta, foi um dos expoentes do Cinema Novo, e faleceu em 15/09/1987.   10

Joaquim Pedro de Andrade era filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade, um dos fundadores do IPHAN. Carioca, o cineasta, nasceu em 25/05/1932, e morreu vítima de câncer de pulmão aos 56 anos, em 10/9/1988. 11

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12 Carlos Heitor Cony é carioca, nascido em 14/3/1926, Jornalista e escritor, é editorialista da Folha de S. Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2000.  

Ênio Silveira, paulista, nascido em 18/11/1925, foi diretor da Editora Civilização Brasileira. Militante do Partido Comunista Brasileiro durante a ditadura civil-militar do pós-1964, editou numerosas publicações de oposição ao regime. Faleceu em 11/1/1996.

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Na primeira edição de Pessach, em 1967, foi Leandro Konder quem escreveu o texto da orelha do livro. Nela, elogia muitíssimo a obra e diz que “a primeira parte deste livro pode ser incluída entre as melhores páginas da ficção brasileira de todos os tempos”. No entanto, numa reedição deste, em 1975, e na publicação de 1997, a orelha passou a ser escrita por Paulo Francis, que, à época do lançamento, em 1967, comentou com Cony que este livro poderia enterrá-lo. Nos conturbados anos de 1960 e 1970, parece que Francis acertou, momentaneamente, na profecia. Cony deixou a literatura por longos vinte e um anos.

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De modo bem resumido, Carlos Frederico Werneck de Lacerda era carioca, nascido em 30/1/1914. Jornalista e político, foi membro da União Democrática Nacional (UDN), vereador (1945), deputado federal (1947-55) e Governador do Estado da Guanabara (1960-65). Fundador, em 1949, e proprietário do Jornal Tribuna da Imprensa, e criador, em 1965, da Editora Nova Fronteira, faleceu em 21/5/1977. Embora cassado no pós-1964, foi um dos conspiradores a favor do golpe civil-militar. 15

Otto de Oliveira Lara Resende nasceu em 1°/5/1922, em São João del Rei, Minas Gerais. Começou a lecionar francês aos catorze anos, e aos dezoito, passou a trabalhar como jornalista no periódico O Diário, de Belo Horizonte, cidade onde se formou em Direito. Em 1967, estreou seu programa O pequeno mundo de Otto Lara Resende, na TV Globo, uma participação diária de sessenta segundos durante a qual falava sobre os acontecimentos do dia. Em 1979, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), na cadeira 39. Trabalhava como cronista para o Jornal Folha de S. Paulo quando faleceu, em 28/12/1992. 16

Paulo Francis era o pseudônimo de Franz Paul Trannin da Matta Heilborn. Nascido no Rio de Janeiro, em 2/9/1930, faleceu em Nova York, em 4/2/1997. Jornalista, crítico de teatro e escritor, após o golpe de 1964 e durante toda a ditadura trabalhou sobretudo n’O Pasquim e na Tribuna da Imprensa, de Hélio Fernandes – de 1969 a 1976. 17

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CASTRO, Ruy. “Pessach, de Cony, fura um silêncio de 30 anos”, In: Jornal O Estado de S. Paulo, 8/3/1997.

Entre o final de 2003 e o início de 2004, Milton Temer, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, oriundos do antigo PCB, deixaram o partido.

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Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira nasceu em Salvador, em 30/12/1935. Professor universitário, cientista político e historiador, é especialista em política exterior brasileira e suas relações internacionais, principalmente com a Argentina e os Estados Unidos. Perseguido no pós-1964, caiu na clandestinidade e posteriormente foi preso. Em 1973, retomou sua atividade acadêmica e passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Era Assistente do ex-Governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola quando ele foi expulso do Uruguai, em 1977, e foi para os Estados Unidos. Moniz Bandeira promoveu para ele os contatos com os dirigentes da socialdemocracia europeia, entre os quais Mário Soares, François Mitterrand e Willy Brandt. Entre 1981e 1982, foi pesquisador associado de projeto sobre cooperação e conflito na Bacia do Prata, dirigido pelo professor Dieter Nohlen, do Institut für Politische Wissenschaft (Instituto de Ciência Política) da Universidade de Heidelberg, onde passou alguns meses com uma bolsa do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) e conheceu Margot Elisabeth Bender, de nacionalidade alemã, com quem se casou e tem um filho, Egas. Com a eleição de Leonel Brizola para o Governo do Estado do Rio de Janeiro, Moniz Bandeira foi nomeado Diretor-Superintendente do Instituto Estadual de Comunicação (INECOM) e da Rádio Roquette Pinto, órgãos do Estado, e passou a lecionar na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Escola de Administração Pública do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, está radicado na cidade alemã de Heidelberg, onde é cônsul honorário do Brasil. 20

Recebido em 16/07/2015

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