A PRESENÇA DA TRAGÉDIA GREGA NA OBRA DE CORMAC MCCARTHY - ANÁLISE DA ESTRUTURA NARRATIVA E ELEMENTOS CORRELATOS EM ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ

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CENTRO UNIVERSITÁRIO IBERO-AMERICANO BRUCE BEZERRA TORRES

A PRESENÇA DA TRAGÉDIA GREGA NA OBRA DE CORMAC MCCARTHY – ANÁLISE DA ESTRUTURA NARRATIVA E ELEMENTOS CORRELATOS EM “ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ”

SÃO PAULO 2012

BRUCE BEZERRA TORRES

A PRESENÇA DA TRAGÉDIA GREGA NA OBRA DE CORMAC MCCARTHY – ANÁLISE DA ESTRUTURA NARRATIVA E ELEMENTOS CORRELATOS EM “ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ”

Trabalho de Conclusão de Curso Apresentado ao

Centro

Universitário

Ibero-Americano

como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Letras - Tradutor e Intérprete. Orientadora: Profª. Fátima Aparecida de Oliveira Abbate

SÃO PAULO 2012

Aos meus pais, que me sempre me apoiaram e sempre acreditaram em mim, e a Camila Ferreira Funchal Fernandes, que me inspirou confiança para a realização deste trabalho.

AGRADECIMENTOS

À professora Fátima Aparecida de Oliveira Abbate, que acreditou no projeto, e aos professores Jiro Takahashi, João Ribeiro e Virgínia Antunes, que me deram diversas instruções

e

orientações

que

ajudaram

a

moldar

o

projeto

inicial.

O que é natural é o micróbio. Todo o resto – saúde, integridade, pureza (como queira chamar) – é produto da vontade humana, de uma vigilância que não deve falhar. O homem bom, aquele que dificilmente infecta outrem, é o que menos tem falhas de atenção. ALBERT CAMUS

Certamente, ó herói, difícil é refrear a mente, porque inquieto é o coração. Somente pela quietação dos desejos é que o exercício se tornará hábito, e alcançarás domínio sobre ti mesmo. KRISHNA

RESUMO

O objeto deste trabalho é o romance “Onde os Velhos Não Têm Vez”, do autor norteamericano Cormac McCarthy, autor do clássico contemporâneo “Meridiano de Sangue”. Sendo fato amplamente conhecido que McCarthy se vale de referências e menções a mitologias, religiões e ao próprio ato da escrita, este trabalho visa demonstrar, através da análise estrutural da narrativa e de elementos encontrados no referido livro, a influência da tragédia grega nessa obra. Como a visão de mundo do autor em “Onde os Velhos Não Têm Vez” é condizente com o tom lúgubre e violento das peças trágicas áticas, o presente estudo fará uso da trilogia “Oresteia” de Ésquilo para fins de comparação; do tratado literário de Aristóteles, “Poética”, para delinear o esquema estrutural da narrativa; e dos estudos sobre tragédia grega realizados por Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet. Este trabalho explorará uma nova linha de pensamento para abordar a obra de McCarthy, complementando as já existentes e focadas no gnosticismo e na visão cíclica da história formulada por Giambattista Vico.

PALAVRAS-CHAVE: Tragédia grega, Cormac McCarthy, literatura norte-americana

ABSTRACT

This paper is focused on Cormac McCarthy’s novel “No Country for Old Men”. The NorthAmerican author, also known as the writer of the contemporary classic “Blood Meridian”, is widely known for using references and allusions to mythologies, religions and even to the writing process itself. This project will perform a structural analysis of the narrative and will also analyze the elements presented in the mentioned book in order to show the influence of the Greek tragedy. As the vision of the author in “No Country for Old Men” finds its counterpart in Greek tragedy plays for presenting dark and violent tones, this study will use Aeschylus’ “The Oresteia” for purposes of comparison; the Aristotle’s literary treaty, “Poetics”, to outline the narrative structural scheme; and the studies on Greek tragedy made by Jean-Pierre Vernant and Pierre Vidal-Naquet. This paper will explore a new line of thought to approach McCarthy’s work, complementing the already existing focused in Gnosticism and the cyclic vision of History by Giambattista Vico.

KEYWORDS: Greek tragedy, Cormac McCarthy, North-American literature

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................................10

1. A DISPOSIÇÃO DA ESTRUTURA DA TRAGÉDIA E SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS................................................................................................................12 1.1 A estrutura trágica ática .................................................................................................12 1.1.1 Prólogo ...........................................................................................................................12 1.1.2 Párodo.............................................................................................................................13 1.1.3 Episódio ..........................................................................................................................14 1.1.4 Estásimo .........................................................................................................................14 1.1.5 Êxodo..............................................................................................................................15 1.2 Os atores ...........................................................................................................................16 1.2.1 Protagonista ....................................................................................................................16 1.2.2. Coro ...............................................................................................................................17 1.2.3 Deuteragonista ................................................................................................................18 1.3 A ação complexa ..............................................................................................................19 1.3.1 Peripécia .........................................................................................................................19 1.3.2 Reconhecimento .............................................................................................................20 1.3.3 Catástrofe........................................................................................................................21 1.4 Os conceitos trágicos .......................................................................................................21 1.4.1 Enredo/ação ....................................................................................................................21 1.4.2 Personagem.....................................................................................................................22 1.4.3 Dicção.............................................................................................................................23 1.4.4 Dianoia ...........................................................................................................................23 1.4.5 Espetáculo.......................................................................................................................24 1.4.6 Melopeia .........................................................................................................................25

2. A INTERSECÇÃO ENTRE O ROMANCE E A TRAGÉDIA.....................................27 2.1 O esquema quinário clássico X a estrutura trágica ática ............................................27 2.2 O esquema actancial X os atores ....................................................................................29

3. ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ À LUZ DA TRAGÉDIA ....................................33 3.1 O romance ........................................................................................................................33

3.2 O romance e sua estrutura trágica.................................................................................34 3.2 Os protagonistas ..............................................................................................................39 3.2.1 O protagonista principal (ou o herói trágico) .................................................................39 3.2.2 O protagonista oponente.................................................................................................43 3.2.3 O “Coro” adjuvante ........................................................................................................45 3.3 Considerações trágicas adicionais..................................................................................48 3.3.1 A aparente ausência de um daímon ................................................................................49 3.3.2 A aparente ausência de catarse .......................................................................................51 3.4 A narração (quase) ausente ............................................................................................53

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................59

INTRODUÇÃO

Este trabalho visa a realização de uma análise estrutural da narrativa presente no romance “Onde os Velhos Não Têm Vez”, de Cormac McCarthy, à luz das características e elementos pertinentes à tragédia grega como gênero e modelo estético. Abordagens de ordem gnóstica e inspiradas por Vico e seu conceito de história cíclica já foram verificadas, e, por isso, é necessário demonstrar uma nova linha de pensamento para tratar da obra de McCarthy.

Para tanto, realizou-se a leitura de autores especialistas em tragédia grega, como JeanPierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Daisi Malhadas e, claro, Aristóteles. Visto tratar-se de um romance, os elementos da teoria do romance e do desenvolvimento das personagens de ficção foram observados.

Por meio da pesquisa realizada com autores especialistas em tragédia grega, foi possível identificar os elementos trágicos que se encontram na obra de McCarthy, compreendendo a disposição narrativa e mesmo os signos e alusões presentes nos diálogos. Contribui para isso o fato de “Onde os Velhos Não Têm Vez” ser um romance inspirado num roteiro escrito na década de 1980, sendo posteriormente adaptado para o gênero de romance mas com estrutura que se assemelha a de uma peça teatral – disposição de atos, narração formada de didascálias, monólogos em detrimento de narrador onisciente.

Como dito acima, a observação dos elementos da teoria do romance se deve à necessidade de ilustrar os conceitos aplicados à tragédia para o leitor contemporâneo. Assim como a tragédia se desenvolveu num período de transição para os antigos gregos durante o século V a.C., o romance também se consolidou em paralelo às mudanças sociais e culturais na Europa ocorridas durante o século XVIII. Neste trabalho será considerado justamente que a consolidação de ambos os gêneros deve-se às suas capacidades mimética e catártica.

É necessário esclarecer que a obra tem um tom quase-niilista, sem que haja intervenção divina para quaisquer personagens envolvidos. Os protagonistas estão imersos em um ambiente sombrio, sem perspectivas, cada um fazendo – ou não – o que se espera deles, tendo seu fim esperado conscientemente. Os elementos trágicos, portanto, estão despidos da presença (aparente) do divino, embora as características encontradas em tais personagens trágicos possam ser percebidas em certos pontos da trama. 10

Outra consideração a ser feita diz respeito à finalidade do uso da trilogia “Oresteia”, de Ésquilo, que tem por finalidade contrastar o romance com alguma obra trágica emblemática. A escolha da trilogia esquiliana considerou a presença de papeis humanos mais ativos nas peças, sendo que a presença dos deuses é inferida nas duas primeiras e mesmo sua presença na peça final ocorre apenas para o estabelecimento de um tribunal humano. Além disso, colabora para tal escolha a presença de personagens com características similares e de uma estrutura semelhante às peças “Coéforas” e “Eumênides”.

A pesquisa está disposta em análise estrutural e dos elementos trágicos conforme aparecem em “Onde os Velhos Não Têm Vez”. Precede a isso uma apresentação introdutória desses mesmos conceitos, além de uma constatação sobre a mistura e intercalação dos gêneros trágico e romântico.

11

1. A DISPOSIÇÃO DA ESTRUTURA DA TRAGÉDIA E SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS

A análise do gênero trágico tem sua base no tratado literário de Aristóteles, Poética, onde o filósofo grego descreve a forma como os gêneros da epopeia e da tragédia são dispostos em atos, atores e conteúdo. Para o autor, a única semelhança entre epopeia e tragédia está na “imitação em versos de homens superiores”, já que a tragédia procura “caber dentro de uma revolução do sol ou ultrapassá-la um pouco”1, ou seja, ir além da mimese e dar uma solução a algum problema que envolvesse a relação entre o herói e a cidade.

A tragédia se firma como gênero no século V a.C., com suas peças sendo realizadas durante as festas dionisíacas, em homenagem ao deus Dioniso, em concursos realizados por diferentes autores. Eram apresentadas três peças trágicas e uma satírica, todas envolvendo o herói e a cidade. Como pouquíssimas peças sobreviveram – assim como acredita-se tenha ocorrido com a parte voltada para a comédia da Poética de Aristóteles -, sabemos apenas como as peças trágicas eram estruturadas e interpretadas.

1.1 A estrutura trágica ática

Dá-se o nome de tragédia ática ao gênero trágico como o conhecemos hoje, tendo o nome originado da região da Ática, onde fica Atenas. Como os únicos autores trágicos cujos trabalhos completos conhecemos hoje eram dessa região – Ésquilo, Sófocles e Eurípides – e formam a base do estudo da Poética, a análise é feita visando as semelhanças estruturais e narrativas entre os três autores.

A peça trágica é composta de cinco partes: o prólogo, o párodo, o episódio, o estásimo e o êxodo.

1.1.1 Prólogo

O prólogo trágico tem função introdutória, estabelecendo o local e o período da ação. Como as peças tratavam das relações entre o herói e a cidade, a maioria delas se passava em

1

ARISTÓTELES, 1449b

12

momentos que antecediam ou indicavam o fim de algum evento muito importante para a sociedade grega. Um exemplo disso é a peça Agamêmnon, que começa com o Vigia do castelo dos Átridas:

“[Aguardando] o sinal do lampejo, a luz do fogo a trazer voz de Troia e notícia da captura, tal é o poder do viril coração expectante da mulher.” (vv. 8-11)

Sabemos que tanto a plateia daquele período quanto a de hoje conhece o final da guerra entre gregos e troianos, mas é necessário que o autor estabeleça o estado inicial e o plano de fundo para que a plateia compreenda como a ação irá se desenrolar. Além disso, o Vigia menciona o “viril coração expectante da mulher”, ou seja, Clitemnestra, que aguarda a chegada do marido, o rei Agamêmnon.

1.1.2 Párodo

O párodo corresponde à entrada do Coro, onde este esclarece pontos sobre a trama, dá suas opiniões e faz presságios, sempre sozinho. Um exemplo dessas características do párodo está em Coéforas, onde um grupo de mulheres, que parece ser composto por escravas cativas de Troia e por Electra, filha de Agamêmnon e Clitemnestra, agora exilada após o assassinato do rei, se confundem, declarando seu status quo e também seu estado de espírito:

“Os Deuses me impuseram a coerção Do cerco à cidade, e conduziram-me Do pátrio palácio à sorte escrava”. (vv. 75-77)

Há também o presságio do fim que aguarda Clitemnestra e Egisto,

“Os intérpretes deste sonho Garantidos pelo Deus bramiram Que os ínferos irados repreendem Os que mataram e lhes têm rancor”. (vv. 38-41)

a situação vivida pelo povo de Argos,

“Reverência invicta indômita imbatível antes Dominava os ouvidos e o espírito do povo, Agora se afasta,

13

Impõe-se pavor.” (vv. 55-59)

e o que o Coro espera, tendo em vista o presente momento

“O pendor de Justiça observa A uns rápido em plena luz, A outros, em frente das trevas, Reserva tardias aflições, A outros, mera Noite pega.” (vv. 61-65)

1.1.3 Episódio

O episódio seria o ato onde a ação e o diálogo se passam. Geralmente ocorrem mais de uma vez, envolvendo os protagonistas, que podem ser indivíduos como os heróis e mesmo o Coro. É onde ocorre o embate retórico, o debate, a discussão de ideias. Um exemplo está em Eumênides, durante o interrogatório de Orestes pelas Erínias, aqui identificadas como sendo o Coro. Desejando agora o sangue de Orestes para expiar a culpa pelo assassinato da mãe, Clitemnestra, as divindades ctônicas, filhas da Noite, tentam persuadir a deusa Atena e os membros do Areópago de que têm razão em cobrar pelo sangue derramado:

ORESTES Matando o marido matou meu pai. CORO Quê? Tu vives, ela pagou com a morte. ORESTES Por que não a perseguiste em vida? CORO Não era consangüínea de quem matou. ORESTES E eu sou do sangue de minha mãe? CORO Como te nutriu no ventre, ó cruento? Repeles o sangue materno querido? (vv. 602-608)

1.1.4 Estásimo

O estásimo é o ato dedicado ao Coro, onde este canta odes que discorrem sobre o enredo ou de invocação a algum deus. Um exemplo está em Agamêmnon, onde o Coro dá 14

mostras de temor pela casa dos Átridas citando o motivo pelo qual os gregos declararam guerra aos troianos:

Quem afinal deu nome Em tudo tão verdadeiro (não o vemos a dirigir Com previsão do destino A acertada língua) À belinubente e litiginosa Helena? Com nitidez É lesa-naus e lesa-varões E lesa-país. (vv. 681-687)

Em outro exemplo, no estásimo seguinte, logo após o retorno de Agamêmnon ao palácio, o temor do Coro se intensifica:

Testemunho e aprendo, Com os olhos, o regresso. Sem lira hineia a nênia de Erínis Íntimo ímpeto instruído por si mesmo, Sem que tenha toda Sua audácia de esperança. As vísceras não são vácuas Diante do espírito de Justiça Quando o coração volteia no vórtice cumpridor. Mas suplico que da minha espera Precipitem-se mentiras No que nunca se cumpre. (vv. 988-1000)

1.1.5 Êxodo

O êxodo marca a saída do Coro, onde a peça se encerra estabelecendo o estado final. Na trilogia Oresteia, o êxodo ocorre na última peça, Eumênides, com um cortejo popular entronizando as Erínias como protetoras de Atenas após a deusa Atena convencê-las a abandonar a perseguição e lhes nomear Eumênides:

Marchai, grandes valorosas filhas sem filhos Da Noite, junto com o benévolo cortejo. Dai boas-vindas, nativos. (vv. 1033-1035) Propícias e justas para esta terra, vinde, Veneráveis, e comprazei-vos na vinda com tochas de fogo voraz. Alarideai agora nesta canção. (vv. 1040-1043)

15

1.2 Os atores

1.2.1 Protagonista

Na tragédia grega, o protagonista é cada um dos atores envolvidos na ação e no diálogo. Segundo Aristóteles, “Ésquilo [foi] o primeiro a aumentar de um para dois o número de atores”2. Por meio do diálogo, os protagonistas debatem entre si os pontos-chaves da trama, representando mais que um ponto-de-vista:

CLITEMNESTRA Eu te criei e contigo quero envelhecer. ORESTES Que? Matadora do pai morarás comigo? CLITEMNESTRA O Destino, filho, disto também é causa. ORESTES Também esta morte o Destino preparou. (Coéforas, vv. 908-911)

Na cena acima, destaca-se uma característica notável na tragédia grega. Vernant e Vidal-Naquet (2008, p. 19) notam que “os heróis do drama [...] em seus debates se servem das mesmas palavras, mas essas palavras assumem significações diferentes na boca de cada um”. A palavra Destino usada por Clitemnestra para justificar o assassinato de Agamêmnon e depois usada por Orestes para justificar seu assassinato é Moira, em grego, palavra que por sua vez remete às deusas do Destino, as Moiras3, também conhecidas como Partes4, filhas da Noite5, e, portanto, irmãs das Erínias6. Como “para cada protagonista, [...] o vocabulário [...] tem um único sentido”7, o que diferencia o uso do vocábulo Destino entre Clitemnestra e Orestes é que, enquanto Clitemnestra comete o assassinato declarando estar possuída de uma presença divina8, marca

2

ARISTÓTELES, 1449a 15 “Amongst the Children of Night were the goddesses of Fate, the Moirai.” (KERÉNYI, p. 32) 4 HESÍODO, v. 217 5 Idem, v. 212 6 ÉSQUILO, Eumênides, vv. 1033-1034 7 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 19 8 ÉSQUILO, Agamêmnon, vv. 1497-1504 3

16

da maldição dos Átridas9, que por si justifica a necessidade de expiar o sacrifício de Ifigênia10 à Artémis, quando Agamêmnon dedicou a filha em sacrifício para que a deusa permitisse que os navios aqueus velejassem sem perigo11, Orestes usa a palavra para indicar que não há escolha senão seguir em frente com a expiação, pois se não houver a expiação, sobre ele mesmo cairá a punição, pois não vingou a morte do pai12. Pelo diálogo, gera-se um embate entre unilateridades, onde muitas vezes o protagonista acaba caindo “na armadilha da própria palavra”13, como demonstrado bem no início de Eumênides.

1.2.2 Coro

Aristóteles defende que “o Coro deve ser considerado personagem, integrado ao todo e à ação”14. Na verdade, ele seria composto de um grupo de cidadãos, exprimindo os temores e pensamentos dos espectadores, formando assim uma personagem coletiva15. Com isso, ao dialogar com o protagonista ele questiona seus motivos e atos:

Ó mulher, que droga provaste Terrestre comível ou potável marinha E perpetraste este sacrifício E pragas clamadas do povo Repeliste, rebateste? Serás sem pátria, Pesado é o ódio dos concidadãos. (Agamêmnon, vv. 1407-1411)

Ou mesmo faz questão de esclarecer algum ponto religioso, político ou cultural em um debate:

Dizes que Zeus honra o lote do pai, Mas ele prendeu o velho pai Crono. Como isto não contradiz o que falas? Invoco vosso testemunho que ouvis. (Eumênides, vv. 640-644)

9

ÉSQUILO, Agamêmnon, vv. 1090-1092, vv. 1095-1097 Idem, vv. 1412-1420 11 “Após dois anos de preparativos [para o ataque à Troia], a frota e o exército gregos reuniram-se no porto de Áulis, na Beócia. Ali, Agamênon, caçando, matou um veado consagrado a Diana, que, em represália assolou o exército com a peste e provocou uma calmaria que impediu os navios de deixar o porto. O adivinho Cauchas anunciou, então, que a ira da deusa virgem somente poderia ser aplacada pelo sacrifício de uma virgem em seu altar e que somente seria aceitável a filha do ofensor, [Ifigênia].” BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 180. Essa história também é contada na peça “Ifigênia em Áulis”, do autor trágico Eurípides. 12 ÉSQUILO, Coéforas, vv. 269-277 13 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 19 14 ARISTÓTELES, 1456a 25 15 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 2 10

17

Vernant e Vidal-Naquet (2008, p. 275) esclarecem que, pela tradição, “se o Coro é o órgão da expressão coletiva e cívica, é inteiramente excepcional que seja composto de cidadãos médios”, ou seja, os representantes políticos da cidade-estado. O Coro atua como o defensor da norma que pode ter sido quebrada pelo protagonista, e precisa de forma retórica se impor ou tentar chegar a um consenso.

Há que se esclarecer que na trilogia Oresteia, em cada uma das peças o Coro é formado por três grupos diferentes: em Agamêmnon, ele é composto pelos cidadãos de Argos, representantes da ordem16; em Coéforas, é composto das cativas de Tróia17, que se identificam com a dor de Electra18 e defendem o direito dos irmãos19; e em Eumênides, pelas Erínias, que apelam ao direito de expiar o sangue de Clitemnestra20, como estabelecido pela cosmogonia21.

1.2.3 Deuteragonista

Como citado acima, Ésquilo foi o responsável pela introdução de um segundo ator, um novo protagonista à cena. O embate, que antes se restringia ao protagonista e ao Coro, agora possui um maior número de participantes com opiniões diversas. Aristóteles mesmo diz que com esse acréscimo diminui-se a relevância do papel do Coro e aumenta a importância do diálogo22. Com isso, os protagonistas ganham maior densidade e autonomia, como exemplificado neste diálogo entre Orestes e Pílades, em Coéforas, em que o príncipe dá sua primeira demonstração de temeridade, apenas para ser convencido pelo amigo a continuar com seu intento:

ORESTES Pílades, que fazer? Temo matar a mãe. PÍLADES Onde no porvir os vaticínios de Lóxias Dados em Delfos e os fieis juramentos? Tem por hostis a todos mas não aos Deuses. (vv. 899-902)

16

ÉSQUILO, Agamêmnon, vv. 73-82 ÉSQUILO, Coéforas, vv. 75-77 18 Idem, vv. 106-107 19 Idem, vv. 306-314 20 ÉSQUILO, Eumênides, vv. 312-320 21 Idem, vv. 321-327 22 ARISTÓTELES, 1449a 15-18 17

18

1.3 A ação complexa

Aristóteles define ação complexa como aquela em que “dela se segue mudança, quer por reconhecimento, quer com peripécia, quer com ambos”, gerando uma relação de causa e efeito, pois “devem decorrer da estrutura interna da fábula, de tal forma que venham a se originar, por necessidade ou por verossimilhança, dos acontecimentos que os antecedem”23. O destino dos protagonistas depende sempre das consequências dos atos que realizam24.

1.3.1 Peripécia

A peripécia é o ato (conhecido como harmatía ou erro trágico) que modifica a vida do protagonista, resultado de uma série de acontecimentos que ocorrem, aparentemente, por sua própria vontade – como em Coéforas, onde Orestes mata a mãe voluntariamente

ORESTES Ó Zeus, dá-me punir a morte Do pai, sê aliado anuente comigo! (vv. 18-19) ORESTES E pagarás pela desonra do pai Graças aos Numes, Graças aos meus braços. (vv. 435-437)

apenas para ser perseguido pelas Erínias

ORESTES Não são visões destas minhas dores, Eis claro cadelas raivosas da mãe. (vv. 1053-1054)

que desejam expiar o sangue do matricida,

CLITEMNESTRA Cuidado com rancorosas cadelas da mãe. (v. 924)

o que levará aos acontecimentos da peça Eumênides.

23 24

ARISTÓTELES, 1452a 14-20 “A sorte, boa ou má, resultará dessas ações”. (Idem, 1452b)

19

1.3.2 Reconhecimento

O reconhecimento é o momento em que o protagonista percebe algo que ele ignorava até então e que vem lhe causando danos ou temores. Aristóteles declara que “quando há peripécia, o reconhecimento produzirá temor ou piedade; e esses sentimentos, como demonstramos, são despertados pela imitação de ações”, o que os levará ao sucesso ou ao infortúnio25. Em Agamêmnon, isso ocorre com o Coro ao perceber que a profecia de Cassandra sobre a morte dela e do rei

CASSANDRA Mísera, isto farás? Ao lavares no banho O teu marido – como direi o fato? Logo isto será: ela estende mão Após mão alcançando. (vv. 1107-1111) CASSANDRA Malfadada sorte da mísera! Clamo minha própria dor a transbordar. Por que aqui me conduziste a mim, infeliz, Para nada senão morrer junto? Por que? (vv. 1136-1139)

enfim,

CLITEMNESTRA Jaz quem ultrajou esta mulher, Quem deleitava as Criseidas em Ílion, Jaz esta prisioneira e adivinha, Sua concubina e profetisa, Fiel consorte e co-usuária dos bancos Do navio, obtiveram ambos o devido, Ela desse modo, ela como o cisne Entoou o último lamento de morte E jaz amante sua, e trouxe-me Novo sabor a meus prazeres do leito. CORO Que veloz morte sem dor Nem vigília no leito Viria trazendo-nos o eterno sono intérmino, uma vez morto O mais benévolo guardião Muito sofrido por uma mulher? Por uma mulher perdeu a vida. (vv. 1437-1454)

25

ARISTÓTELES, 1452b

20

se cumpriu.

1.3.3 Catástrofe

A catástrofe é o momento da peça em que algum protagonista experimenta a dor e/ou a morte, fazendo platéia experimentar piedade e terror26, levando à chamada catarse. Isso é demonstrado em Agamêmnon, onde a trama da rainha para assassinar o rei é descoberta no mesmo momento em que ocorre:

AGAMÊMNON Um golpe certeiro golpeou-me dentro. CORO Silêncio! Quem grita ferido de golpe certeiro? Agamêmnon: Outra vez outro golpe me atingiu. (vv. 1343-1345)

1.4 Os conceitos trágicos

1.4.1 Enredo/ação

O enredo (ou fábula, segundo tradução de Baby Abrão) é a sequência dos eventos que constituem a tragédia. Para Aristóteles, o enredo é “a alma da tragédia”27, sendo o objetivo imitar mais uma ação que propriamente um personagem, pois é “[das] ações [que] se origina[m] a boa ou má fortuna das pessoas”28.

A ação é o que move o enredo, cada um dos eventos que nele estão contidos ou cada uma das realizações dos protagonistas. Como já dito acima, para Aristóteles o importante é sempre imitar (mímesis) uma ação, pois “[a] felicidade e [a] desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é uma ação”29, entendendo-se a referida expressão “finalidade” como sendo o objetivo a ser alcançado pelo protagonista.

26

“[...] a estrutura da tragédia mais bela deve ser complexa [...] e [...] deve ela consistir na imitação de ações que despertam terror e pena [...].” (ARISTÓTELES, 1452b 30) 27 Idem, 1450a 35 28 Idem, 1450a 1-5 29 Idem, 1450a 15-20

21

Um exemplo de ação está em Orestes voluntariar-se para assassinar Clitemnestra em Coéforas, uma ação que por sua vez resultará em seu futuro julgamento na peça Eumênides:

E pagarás pela desonra do pai Graças aos Numes, Graças aos meus braços. Então, que eu te afaste e te elimine! (vv. 435-438)

1.4.2 Personagem

O

personagem

(ou

caractere,

segundo

tradução

de

Baby

Abrão)

é

a

representação/imitação, que é revelado através do seu caráter e de suas ideias30. Como Aristóteles preza o enredo mais que tudo, sua finalidade é apenas demonstrar a quem e como sobrevém a felicidade ou a infelicidade31.

Um exemplo de personagem revelado está em Agamêmnon, onde o próprio rei se deixa convencer pela rainha a receber honras quando ela provoca seu orgulho mencionando o rei inimigo e vencido de Tróia:

CLITEMNESTRA Diz-me isto, não contra o que sentes. AGAMÊMNON Sabe que não desfiguro o que sinto. CLITEMNESTRA Por temor aos Deuses prometerias esse ato? AGAMÊMNON Se competente sábio indicasse esse rito. CLITEMNESTRA Que te parece Príamo faria, se vencesse? AGAMÊMNON Parece-me que andaria sobre os enfeites. CLITEMNESTRA Não tenhas pudor de humana repreensão.

30

“[...] [A] tragédia é a imitação de uma ação, realizada pela atuação dos personagens, os quais se diferenciam pelo caráter e pelas ideias [...].” (ARISTÓTELES, 1449b 35 – 1450a) 31 “[...] [A] tragédia não é imitação de pessoas e sim de ações, da vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade.” (Idem, 1450a 15-20)

22

AGAMÊMNON O clamor do povo porém tem grande força. (vv. 931-937)

1.4.3 Dicção

A dicção (ou fala, segundo tradução de Baby Abrão) é a forma como as ideias são expressas pelas personagens32. Aristóteles não se alonga mais sobre o assunto, apenas mencionando-o posteriormente para dizer que “se mostra a superioridade do enredo no fato de que se conseguem melhores efeitos na fala”33, talvez sugerindo que deve-se valorizar a capacidade do autor de construir personagens que demonstrem através de suas falas (ou dicção) as camadas de sua personalidade. Temos um exemplo disso na angústia de Cassandra ao profetizar sua futura morte em Agamêmnon. Como não há didascálias para explicar o que ocorre em cena, sugere-se no diálogo entre ela e o Coro que a jovem profetisa está visivelmente nervosa:

CASSANDRA Vida de canoro rouxinol! Deuses lhe deram alígero corpo E doce viver isento de lágrimas, Cortes me aguardam de bigúmea arma. CORO Por que tens súbitas e divinais Aflições inúteis, E modulas pavores com nefanda voz Junto com incitantes cantos? (vv. 1146-1153)

1.4.4 Dianoia

A dianoia (ou ideia, segundo tradução de Baby Abrão) é o pensamento que vem à mente de quaisquer dos protagonistas. Assim posto, parece óbvio, mas devemos considerar que na dimensão teatral pensamento acaba equivalendo à própria dicção, onde se deixa às claras o caráter34 e a vida interna35 do protagonista. Aristóteles esclarece que a distinção deve ser feita pelo ator e pelos especialistas em linguagem: “Estamos nos referindo a distinguir

32

“[...] [A tragédia alinha] falas pelas quais se revelam caracteres [...].” (ARISTÓTELES, 1450a 25-30) Idem, 1450a 35 34 “Caráter é aquilo que revela determinada deliberação; ou, em situações dúbias, a escolha que se faz ou que se evita.” (Idem, 1450b 5-10) 35 “[...] [As ideias são] os resultados produzidos pelo uso da palavra e se dividem em demonstrar, refutar e suscitar emoções como compaixão, terror, raiva e outras [...].” (Idem, 1456a 35-40) 33

23

uma ordem, uma súplica, um esclarecimento, uma ameaça, uma pergunta, uma resposta e outras semelhantes.”36

Um exemplo de como a ideia transparece na fala da personagem pode ser encontrado em Eumênides, na cena em que Atena, fazendo uso da arte da oratória37, absolve Orestes pelo assassinato de sua mãe:

ATENA Eis minha função, decidir por último. Depositarei este voto a favor de Orestes. Não há mãe nenhuma que me gerou. Em tudo, fora núpcias, apóio o macho Com todo ardor, e sou muito do Pai. Assim não honro o lote de mulher Que mata homem guardião da casa. Vence Orestes, ainda que empate. (vv. 734-741)

1.4.5 Espetáculo

Há pouco que se falar do espetáculo, visto que Aristóteles diz que isso é algo que cabe ao cenógrafo38. Como há a ausência de didascálias nas peças, a única forma de visualização que temos da cena em si vem do próprio texto, o que pode englobar desde o som à ambientação. Um dos poucos exemplos claros disso é a cena de Coéforas em que Orestes, próximo ao túmulo de Agamêmnon, nota a chegada do Coro de Cativas e de Electra para prestar honras ao rei, mas não existe nada que defina como a cena está disposta ou como é realizada a entrada das personagens – isso cabe à imaginação do leitor:

ORESTES Neste proeminente túmulo clamo ao pai Ouve, escuta (fragmentos dos versos 3-5)39 36

ARISTÓTELES, 1456b 10 Aristóteles diz que “orientam as ideias, na eloquência, a política e a oratória”, e que o “caráter é aquilo que revela determinada deliberação” (Poética, 1450b 5-10). Em complemento ao exemplo citado, Atena procura depois dissuadir as Erínias convencendo-as a permanecerem na cidade e inspirarem o temor (não mais o terror) entre os cidadãos (Eumênides, vv. 824-836). 38 “[...] para a encenação de um espetáculo agradável, contribui mais o cenógrafo que o poeta.” (ARISTÓTELES, 1450b 16-20) 39 Jaa Torrano, o tradutor da edição da Oresteia utilizada neste trabalho, chama a atenção para o fato de que essa passagem, bem como a maior parte do prólogo de Coéforas, foi transcrita com base na edição crítica de A.F. Garvie e consonante “o pensamento e a linguagem de Ésquilo”. Entendemos com isso que os originais da obra esquiliana podem ter sido danificados com o tempo, mais precisamente no referido trecho. Contudo, “[os editores] estão de acordo” com a cena em si, reconstruída com base em “fontes antigas [que permitiram] [...] aos filólogos de hoje compor e recompor [o texto] [...]”. (ÉSQUILO. Oresteia: Coéforas. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras/FAPESP, 2004. p. 20) 37

24

O que vejo? Que grupo de mulheres Aqui marcha com mantos negriemais, Distinto? (vv. 10-13)

1.4.6 Melopeia

A melopeia (ou canto, segundo tradução de Baby Abrão) é a composição lírica presente na peça. Aristóteles não se estende no assunto porque, como ele diz, “por canto, [entende-se] aquilo cujo sentido é claro a todos”40. Pressupomos que ele se refira a cenas como o kommós, cena lírica onde os protagonistas lamentam algum evento ou situação, como nesta cena de Eumênides, em que as Erínias se iram com o resultado do julgamento de Orestes,

CORO Deuses novos! Antigas leis vós outros Atropelastes e roubastes-me das mãos. Eu, sem honra, afrontada, com grave cólera Nesta terra, pheû, Veneno, veneno igual à dor, Deixo ir do coração, Respingos para a terra Insuportáveis, donde Lepra sem folha nem filho, ó Justiça, Justiça, Após invadir o chão Lançará na terra peste letal aos mortais. Lamurio: que hei de fazer? Riem de mim: intoleráveis dores/ Entre os cidadãos padeci. (vv. 778-790)

ou mesmo o canto do Coro, em que este expõe a trama estando só nesta cena de Coéforas, em que as Cativas de Tróia citam o assassinato de Agamêmnon e a futura punição daqueles que o perpetraram

CORO Bebido o sangue pela terra nutriz, Punitivo cruor coalha sem correr, Pungente Erronia leva o culpado (...) a agravar a moléstia. (vv. 66-69)

40

ARISTÓTELES, 1449b 30

25

CAPÍTULO 2. A INTERSECÇÃO ENTRE O ROMANCE E A TRAGÉDIA

Yves Reuter, em sua Introdução à análise do romance, diz que “devemos desconfiar das histórias da literatura e do romance”41. O romance é um gênero em permanente construção, tendo sua estrutura e características modificadas continuamente. Precisar seu surgimento, sua criação e seu desenvolvimento pode ser arriscado, pois há que se levar em conta fatores subjetivos como graus de importância entre as obras citadas e as não citadas, a representatividade dos idiomas em que foram escritos, entre outros fatores.

Contudo, os teóricos têm procurado identificar aquilo que lhes é comum, desde a construção das personagens até a maneira como se realiza a mimese no texto literário. Assim como no gênero trágico, há fatores que são comuns entre obras tão díspares quanto Dom Quixote de La Mancha e Finícius Revém, pois o objetivo é alcançar senão um realismo, uma verossimilhança que encontraria paralelo com a realidade42. Daí o romance ser marcado por um encadeamento narrativo vastamente utilizado nas mais diferentes obras, além da forma como são dispostas as relações entre as personagens do texto.

Como todo romance é um “pedaço de vida”, termo usado por Reuter para descrever o ponto espaço-temporal em que a trama ficticiamente se inscreve, são partes dele as personagens e eventos que fazem o “sistema ‘causa-consequência’” ser “fundamental para o encadeamento das ações”43. Tais personagens e eventos são, portanto, imprescindíveis à finalidade e aos fins do romance.

Esse “sistema ‘causa-consequência’” encontra equivalente próximo no modelo trágico ático, com a estrutura quinária aristotélica. Como a tragédia e o romance são gêneros que tratam de transformações, a superestrutura, ou esquema quinário, cogitado pelos teóricos possui uma fórmula de análise semelhante à disposição dos atos trágicos.

41

REUTER, p. 3 “O efeito do real se apoia também numa grande preocupação com a verossimilhança e a motivação.” (Idem, p. 152) 43 Idem, p. 152 42

26

2.1 O esquema quinário clássico X a estrutura trágica ática

A divisão idealizada por Aristóteles de uma peça em cinco partes (prólogo, êxodo, párodo, episódio e estásimo) não encontra uma semelhança total com o esquema quinário clássico por alguns motivos: primeiro, não há a presença de um daímon (ou figura divina) na maioria dos romances, o que anula a função paralela dos atos trágicos; segundo, há uma diferença na transposição entre teatro e romance. Enquanto o primeiro faz uso de personagens expositivas, o segundo em geral possui um narrador, mesmo que em primeira pessoa, para expor a trama; e terceiro, como resultado das mudanças sociopolíticas, não se canta mais o herói que comete um erro trágico (harmatía) sem querer, mas o homem comum.

A relação causal de ambos os esquemas pode ser disposta da seguinte maneira:

Esquema quinário clássico Estado inicial

Complicação

Dinâmica

Resolução

Estado final

Estásimo

Êxodo

Estrutura trágica Prólogo

Párodo

Episódio

Assim como o prólogo situa o leitor no ambiente e no tempo em que a trama se passa, o estado inicial, além de ser um estado que ainda não foi perturbado por algum evento, também age como introdução sobre o enredo e as personagens. A diferença, contudo, está no sistema causa-consequência, pois o prólogo não tem função visivelmente causal nesse caso, sendo apenas um ato que dispõe o ambiente, o tempo e, em alguns casos, os caracteres.

O párodo não desenvolve a complicação da trama, mas muitas vezes adianta que algo em breve deverá ocorrer. O Coro percebe que uma mudança é iminente ao mesmo tempo em que situa o leitor/espectador com suas opiniões e temores.

Os episódios, no entanto, comportam três partes do sistema quinário (complicação, dinâmica e resolução), pois é onde a ação e os diálogos tomam forma. São durante os episódios que as protagonistas se enfrentam, discutem, agem.

27

Sendo os estásimos atos que marcam a interferência do Coro para discutir determinados pontos da trama ou invocar seus deuses, tais atos seriam complementos para esclarecer pontos obscuros do enredo que não são revelados nem às personagens.

Tendo a resolução ocorrido durante os episódios, o êxodo e o estado final são correlatos pois no final apresentam o resultado do equilíbrio ou choque de forças que permeou a narrativa.

Enquanto Aristóteles foca a ideia de causalidade na ação complexa pelo fato de o herói ser o cerne da tragédia, e, portanto, aquele que detém as qualidades que sua sociedade irá colocar em xeque4445, Brémond demonstra que o enredo gira em torno da passagem de um ato a outro, que deve ser resolvido ou deixado em aberto:

Toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de acontecimentos de interesse humano na unidade de uma mesma ação. Onde não há sucessão não há narrativa [...] porque é somente por relação com um projeto humano que os acontecimentos tomam significação e se organizam em uma série temporal estruturada. (BRÉMOND, p. 113-114)

Contudo, nesse mesmo trecho Brémond lembra que a narrativa pode ser formada por adendos semelhantes aos presentes na tragédia ática:

“[...] descrição (se os objetos do discurso são associados por uma contiguidade espacial), dedução (se eles estão implicados), efusão lírica (se eles evocam por metáfora ou metonímia), etc.)” (idem, p. 114)

O que fica claro numa comparação entre os gêneros tragédia e romance é que ambos procuram chegar a uma resolução. Os gregos viam nisso uma maneira de conciliar as mudanças contínuas de sua sociedade46, e nós hoje vemos como uma necessidade catártica.

44

“They embodied values which were thought of as heroic, and largely still are: courage, pride, a high sense of honour, especially their own. But heroes are more at home in epic than in tragedy, where they are exposed to more complex ordeals and harder questions are asked of them.” (POOLE, p. 37) 45 “No conflito trágico, o herói, o rei e o tirano ainda aparecem bem presos à tradição heróica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, pg. XXI) 46 “O universo trágico situa-se entre dois mundos e essa dupla referência ao mito, concebido a partir de então – como pertencente a um tempo já decorrido, mas ainda presente nas consciências, e aos novos valores desenvolvidos tão rapidamente pela cidade de Pisístrato, de Clístenes, de Temístocles, de Péricles, é que constitui uma de suas originalidades e a própria mola da ação.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, pg. XXI)

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Reuter argumenta que a modificação do modelo quinário deixaria “certos leitores ou espectadores [...] perdidos quando a ordem da ficção não [fosse] respeitada ou quando [faltassem] as etapas finais”47. É necessário haver uma conciliação resultante do choque dialético proposto na narrativa, pois o objetivo é que haja uma identificação do leitor/espectador com a situação apresentada em cena48.

2.2 O esquema actancial X os atores

Assim como Aristóteles demonstra que o número de atores cresceu de acordo com as inovações propostas pelos autores (Ésquilo aumentando o número de atores para dois, Sófocles para três)49, sem alterar a estrutura narrativa básica, Greimas (apud REUTER, 2004, p. 54) chega à conclusão de que se o modelo quinário funciona para a maioria das narrativas, isso se deve porque as personagens com papel ativo (actantes) podem ser agrupadas em categorias fixas.

“O sujeito procura o objeto; o eixo do desejo, do querer, une este dois papéis. O adjuvante e o oponente, no eixo do poder, ajudam o sujeito ou se opõem à realização de seu desejo. O destinador e o destinatário, no eixo do saber ou da comunicação, fazem o sujeito agir, encarregando-o da busca e sancionando o seu resultado: eles designam e reconhecem os objetos e sujeitos de valor.” (REUTER, p. 54-55)

Na tragédia grega, as distinções não são claras, pois cada um dos atores presentes na peça é um protagonista, em contraste com a visão contemporânea do ator principal exercendo tal papel. Contudo, identificamos o herói, o ser cujas virtudes são questionadas em cena, como sendo a personagem principal da trama.

“O herói confronta-se com uma necessidade superior que se impõe a ele, que o dirige, mas, por um movimento próprio de seu caráter, ele se apropria dessa necessidade, torna-a sua a ponto de querer, até desejar apaixonadamente aquilo que, num outro sentido, é constrangido a fazer.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. 28)

47

REUTER, p. 50. “Tragedy stages both the desire and dread inspired by the prospect of our own resolution into dust, into thin air, into other forms of being.” (POOLE, p. 128) 49 ARISTÓTELES, 1449a 15-20 48

29

O trecho acima ilustra o que se espera do sujeito da ação, suas motivações e anseios. Durante o decorrer da peça, o objeto será uma expiação, um sacrifício, pela falha (harmatía) cometida. Contudo, precisamos notar que o herói realiza o ato para si, sendo seu próprio destinatário. Isso se deve porque há uma identificação da pólis com as agruras pelas quais passa o herói, um mito que agora pertence ao passado, mas que tem peso na Atenas do século V a.C.:

“Ao inserir a ação heróica num contexto jurídico que, embora ainda impreciso do ponto de vista formal, não é mais norteado por valores aristocráticos, a tragédia revela a amplitude da crise no alvorecer democrático.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. XVIII)

Mas se o herói assume o papel de próprio destinatário, não é ele sempre quem assume o papel de destinador. Quando Clitemnestra mata seu marido em Agamêmnon, ela invoca o “Zeus subterrâneo salvador de mortos”50:

“Ethos, o caráter, daímon, a potência divina, eis, portanto, as duas ordens de realidade onde se enraíza em Ésquilo a decisão trágica. Situando-se a origem de ação, ao mesmo tempo, no homem e fora dele, a mesma personagem aparece ora como agente, causa e fonte de seus atos, ora como alguém que é movido, que está imerso numa força que o ultrapassa e arrasta.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. 47)

O mesmo processo se dá com Orestes, que justifica o matricídio por ser ordem de Apolo em Coéforas51. Contudo, isso não impede que ele seja perseguido em seguida pelas Erínias:

“Se causalidade humana e causalidade divina se misturam assim na obra trágica, nem por isso estão confundidas. Os dois planos são distintos, às vezes opostos.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. 47)

Orestes só é absolvido porque não havia intenção dolosa e porque se reconhece a identidade do verdadeiro destinador como sendo a do deus Apolo:

[...] Orestes, culpado de um crime monstruoso, o assassínio deliberado de sua mãe, vê-se absolvido pelo primeiro tribunal humano instituído em 50 51

ÉSQUILO, Agamêmnon, vv. 1384-1387. ÉSQUILO, Coéforas, vv. 555-559

30

Atenas: na falta de intenção delituosa de sua parte, pois que agiu sem poder substrair-se a isso por ordem imperiosa de Apolo, seu ato, advogam seus defensores, deve ser colocado na categoria do díkaios phónos, do assassínio justificado. (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. 50)

Os demais protagonistas, e mesmo o Coro, podem assumir papeis adjuvantes ou oponentes. Isso ocorre pelo mesmo motivo que o destinatário vem a ser o próprio herói: o que está em jogo na tragédia é o problema que ele representa para si e para a sociedade ao cometer uma falha. Os adjuvantes podem procurar ajudá-lo a seguir em frente com a expiação, podendo tomar a mesma forma do destinador – como no caso de Apolo citado acima, visto que Orestes e Electra não teriam outra opção senão expiar o sangue do pai. Também eles podem assumir a forma dos demais protagonistas (Pílades em Coéforas) ou do Coro (como as cativas troianas na mesma peça).

Os oponentes são em geral identificados com outro protagonista ou com o Coro, como, respectivamente, no caso de Clitemnestra em Coéforas e as Erínias em Eumênides. Mas há casos em que o oponente é o próprio herói, pois ele é o próprio problema que faz uma calamidade se abater sobre si e sobre os demais – não há como não lembrar do caso de Édipo Rei, de Sófocles52, onde a personagem titular é sua própria inimiga por incorrer em duplo erro: parricídio e incesto. Colabora para isso o fato de Édipo só descobrir o ocorrido após dar ouvidos ao profeta Tirésias, pois até então considerava-se um filho do Destino (tykhè), mas que na verdade termina sendo sua vítima. Apenas fugindo de Tebas e cegando-se é que ele pode extirpar a catástrofe que se abate sobre a cidade-estado.

Ao modelo de Greimas, complementa-se um modelo de análise criado por Brémond (apud REUTER, 2004, p. 56), que analisa as personagens partindo de três posições fundamentais:

“[...] o paciente que é afetado pelo processo, o agente que inicia o processo, o influenciador que intervém anteriormente para criar o estado de espírito, a espera, a esperança ou os temores do agente ou do paciente”.

52

É preciso ressaltar que, embora não seja uma das obras analisadas neste trabalho, Édipo Rei é uma das peças trágicas mais influentes da literatura ocidental. O tema do homem que ignora ser vítima do Destino ou de suas escolhas encontra nessa obra a melhor exemplificação possível, portanto fazendo par à trilogia Oresteia em seu questionamento sobre a existência de uma verdadeira liberdade de ação por parte do homem trágico.

31

O agente geralmente assume uma das identidades dos protagonistas envolvidos no enredo. Ele pode ser tanto o herói que procura expiar uma polução, como Orestes em Eumênides, quanto outro protagonista que exerce ação negativa e que precisa ser combatido, como Clitemnestra em Agamêmnon. Contudo, como já visto acima no caso do papel de agente-destinatário que Orestes assume em Eumênides, na tragédia o agente pode se tornar também um paciente quando se confronta com o erro trágico. Uma ressalva, no entanto, é preciso ser feita: o paciente em geral não se torna um agente. Electra e o Coro de cativas em Coéforas permanecem vítimas dos mandos e desmandos da rainha, e nem mesmo o Coro de Erínias tem papel ativo em Eumênides, pois o que fazem é apenas expor seu lado da questão.

O influenciador geralmente assume a forma de outro protagonista, esse geralmente incorporando um daímon, como no caso de Apolo e Atena em Eumênides. São eles que decidem no final o veredicto pela inocência de Orestes. O Coro em geral é paciente porque se prezam mais os diálogos53, e a função do Coro é atuar como representação da sociedade em que se passa o enredo. Ademais, sua exposição através dos estásimos e no prólogo podem ser interpretadas como descrições ou interferências narrativas. Em Poética, Aristóteles lembra que o Coro deve ser “considerado personagem”, mas acrescenta que desde então ele “entoa interlúdios”54, numa função mais expositiva que ativa.

53 54

ARISTÓTELES, 1449a 15 Idem, 1456a 25-30

32

3. ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ À LUZ DA TRAGÉDIA

3.1 O romance

O romance Onde os Velhos Não Têm Vez, de Cormac McCarthy, foi publicado pela primeira vez em 2005. O que chamou a atenção dos críticos desde seu lançamento foi terem notado uma estrutura semelhante à de um roteiro cinematográfico – algo que se acentuou com o lançamento da adaptação pelos irmãos Coen, Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Men, 2007), com um roteiro excepcionalmente fiel à obra original55. Contudo, isso foi proposital, uma vez que o próprio autor escreveu a história como um roteiro na década de 198056. Desnecessário dizer, portanto, que existe uma forma presente no texto que beira o gênero teatral se considerarmos como um dos traços marcantes do gênero dramático a inexistência de um narrador57.

A história se passa na década de 1980, na fronteira entre EUA e México, ambientação utilizada em outros romances do autor, como na Trilogia da Fronteira (Todos os Belos Cavalos, Cidades da Planície e A Travessia) e no clássico contemporâneo Meridiano de Sangue. A fronteira entre os países é tanto um cenário clássico de um faroeste quanto o pesadelo das autoridades locais, que não sabem como lidar com o tráfico de drogas e a violência perpetrada por criminosos ligados ao tráfico. Sendo uma região vasta e árida, a proteção da fronteira é falha, levando a ocasionais conflitos entre criminosos e policiais ou entre gangues rivais.

O romance apresenta três personagens principais: Ed Tom Bell, xerife do condado e testemunha dos fatos conforme se desenrolam na trama; Anton Chigurh, antagonista da trama, guiado por um senso hermético de justiça; e Llewelyn Moss, protagonista e “herói”, veterano da Guerra da Vietnã. O enredo se resume na caça perpetrada por Chigurh a Moss, quando este

55

“Much of the dialogue in No Country is taken from the book almost word for word. “‘Joel [Coen]: “Ethan [Coen] once described the way we worked together as: one of us types into the computer while the other holds the spine of the book open flat.”’” Interview with Joel and Ethan Coen on No Country for Old Men | Film | The Guardian. Disponível em: Acesso em: 29 jul. 2012. 56 “No Country for Old Men was itself originally conceived as a film script sometime during the 1980s; McCarthy rewrote it as a novel perhaps a decade and a half later […]”. WALLACH, Introduction: Dialogues and Intertextuality. In: No Country For Old Men: From novel to film, p. xii 57 “A personagem teatral [...] dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de gato a própria realidade.” (PRADO, p. 85)

33

rouba uma maleta com dinheiro de uma cena de crime, onde aparentemente houve um combate entre gangues de traficantes.

A narrativa é interrompida por vezes para dar voz às opiniões e divagações de Ed Tom Bell sobre seu papel como autoridade policial e sobre como os tempos mudaram. A narração que assume papel de didascália se confunde com as falas das personagens, tornando o texto mais teatral ainda.

Apesar de ser um romance que lembra o gênero de faroeste, é preciso destacar que enquanto o conflito real ocorre entre Moss e Chigurh, o filosófico tem como duelistas Anton e Bell, apesar de eles nunca se encontrarem em nenhum ponto da trama. Tendo em vista o embate retórico que ocorre na maior parte da trama, além das características misteriosas que marcam tanto a personalidade de Chigurh como a fuga de Moss, poderemos visualizar como o romance superou não só a dimensão teatral comum, como também alcançou os princípios marcantes do gênero trágico.

3.2 O romance e sua estrutura trágica

Como dito acima, Onde os Velhos Não Têm Vez é um romance que beira o gênero teatral, onde se notam os principais traços do drama: inexistência de narrador58, presença esparsa de monólogos, caracterizando a vida interior das personagens de forma mais clara para o espectador59, e didascálias na forma de narrativa60. O que chama a atenção do leitor, no entanto, é como o romance dispõe desses traços e faz uma ponte com a tragédia grega, cujo tratado expositivo por excelência se encontra na Poética.

58

“No segundo modo [narrativo] (mimesis), a história parece narrar-se por si mesma, sem mediação, sem narrador aparente.” REUTER, p. 65 59 “No teatro, todavia, torna-se necessário, não só traduzir em palavras, tornar consciente o que deveria permanecer em semiconsciência, mas ainda comunicá-lo de algum modo através do diálogo, já que o espectador, ao contrário do leitor do romance, não tem acesso direto à consciência moral ou psicológica da personagem.” (PRADO, p. 88) 60 “[...] embora não aparecesse[m] nos fragmentos narrativos que, hoje, nos acostumamos a chamar rubricas e que antes se chamavam didascálias, as quais não existiam na época, [elas] era[m] instaurad[as] pelo próprio diálogo, pelas palavras postas na boca das personagens, que necessariamente, apresentavam, introduziam, anunciavam, indicavam formas, meios, caminhos, detalhes, que iriam aparecer através dos caracteres, das ações e das consequências da tragédia.” PALLOTTINI, Renata. “Uma vez mais o estagirita”. In: MALHADAS, DAISI. Tragédia grega: o mito em cena, p. 12

34

A tragédia não tinha apenas funções de entretenimento, mas também uma função inquisitiva, pensando a sociedade grega de então, que passava por mudanças constantes. O romance é hoje nosso equivalente inquisitivo, expondo as antíteses que nos atormentam utilizando caracteres (ou personagens) que ilustram conceitos ou percepções. Isso fortalece nossa percepção de que o que Aristóteles distinguia nas peças trágicas como sendo seus traços marcantes pode ser trazido para o romance contemporâneo, uma vez que a maior parte da ficção produzida sempre lida com enredos (mythos), imitação da realidade em algum grau (mimese) e com um sistema de causa-consequência. Onde os Velhos Não Têm Vez não foge a tal regra, mas antes se torna um exemplar do próprio modelo aristotélico.

Vimos no início que a estrutura trágica está separada em cinco partes, que não são necessariamente equivalentes mas que tem traços semelhantes aos encontrados no sistema quinário clássico: prólogo, párodo, estásimo, episódio e êxodo. O párodo e os episódios são cenas em que há interferência constante ou apenas do Coro, logo, marcados por solilóquios ou monólogos que refletem opiniões em especial.

O que distingue Onde os Velhos Não Têm Vez de um romance contemporâneo comum é justamente a interrupção para os monólogos. Num total de treze monólogos que interrompem o desenvolvimento da ação, o xerife Ed Tom Bell expõe seus temores com relação aos acontecimentos que devem ocorrer em breve

“Em algum lugar lá fora há um profeta da destruição vivo e verdadeiro e eu não quero confrontá-lo. Sei que ele é real. Já vi sua obra. Caminhei diante desses olhos uma vez.”61

sua função cívica dentro do enredo,

“[...] eu sempre soube que você tem que estar disposto a morrer se quer fazer esse trabalho, para começo de conversa. Isso sempre foi a verdade.”62

e os riscos dessa mesma função

“Acho que se trata mais daquilo que você está disposto a se tornar. E acho que um homem teria que colocar sua alma a prêmio.”63 61

McCARTHY, p. 7-8 Idem, p. 8 63 Idem, p. 8 62

35

Numa analogia com a estrutura trágica, estaríamos lendo o párodo acima em primeiro lugar, com Ed Tom Bell assumindo a função de Coro. O prólogo estaria omitido aqui justamente por não desenvolver a ação, como já mencionado. O romance se distingue da tragédia em si ao trazer indícios alem da mimese64, colaborando para a fluidez e para uma maior atenção por parte do leitor em interpretar os signos e características das personagens.

Tendo identificado Ed Tom Bell como um possível Coro – como demonstraremos mais adiante -, encontramos estásimos nas demais interrupções dos monólogos da personagem. A ausência de um daímon aparente, no entanto, não anula a necessidade de Bell de questionar a realidade que o cerca

“Leio os jornais todas as manhãs. Principalmente acho para tentar descobrir o que é que possa estar vindo na minha direção. Não que eu tenha tido muito sucesso em evitar que viesse. Fica cada vez mais difícil.”65 “Não sei se o trabalho de manter a lei se beneficia tanto assim da nova tecnologia. Os instrumentos que chegam às nossas mãos chegam às deles também. Não que você possa retroceder. Ou mesmo que você queira fazer isso.”66

e deixar claro seu desapontamento com o rumo das coisas

Pensei sobre os motivos pelos quais quis ser um homem da lei. Havia sempre uma parte de mim que queria estar no comando. Insistia bastante nisso. Queria que as pessoas ouvissem o que eu tinha a dizer. Mas também havia uma parte de mim que só queria colocar todo mundo no bom caminho. Se tentei cultivar alguma coisa foi isso. Acho que todos nós estamos mal preparados para o que virá e não me importa a forma que assuma.67

Alem disso, há uma função expositiva nos estásimos que pode ser encontrada nesses mesmos monólogos, como quando o pai de Llewelyn conversa com o xerife sobre seu filho, expondo tanto parte da história de Moss como o pensamento da geração mais velha:

64

“Roland Barthes propôs uma distinção interessante entre os elementos que remeteriam à função mimésica (os informantes) e os que participariam da função narrativa (os indícios). [...] Os indícios [...] [trazem] informações que seriam inteiramente compreendidas apenas “mais tarde” e que ligariam um fragmento textual a um outro.” (REUTER, p. 128) 65 MCCARTHY, p. 36 66 Idem, p. 55 67 Idem, p. 240-241

36

“Ele foi atirador de elite no Vietnã sabe. [...] Llewelyn quando voltou para casa foi visitar várias famílias de amigos seus que não tinham conseguido voltar. Ele desistiu. Não sabia o que dizer a eles. Disse que podia ver as pessoas olhando para ele e desejando que estivesse morto. Você podia ver isso no seu rosto. No lugar daqueles que amavam, você entende. [...] Mas além disso todos eles tinham feito coisas que preferiam ter deixado por lá. Não tínhamos nada disso na guerra. Ou muito pouco. Ele deu uma surra em um ou dois hippies. Cuspiram nele. Chamando ele de assassino de bebês. Vários dos garotos que voltaram, eles ainda estão tendo problemas. Achei que era porque não tinham o apoio do país. Mas acho que talvez fosse ainda pior do que isso. O país que eles tinham estava em pedaços. Ainda está. Não foi culpa dos hippies. Também não foi culpa daqueles garotos que foram mandados para lá. Dezoito, dezenove anos de idade.”68

Tendo identificado os episódios com as três partes do sistema quinário em que a ação se desenvolve (complicação, dinâmica e resolução), os atos seguem a seguinte sequência: •

Complicação: Llewelyn Moss encontra uma maleta cheia de dinheiro próximo à cena

de um crime. •

Dinâmica: A decisão de levar o dinheiro faz com que ele se veja na mira de vários

assassinos de aluguel, dentre os quais se destaca um: Anton Chigurh, que está disposto a recuperar o dinheiro por algum motivo escuso. •

Resolução: Moss é morto em um confronto com um assassino mexicano, onde morre

também uma adolescente que fugiu de casa e tinha pegado carona com ele – e tudo indica que Chigurh tenha matado o mexicano por sua vez. A esposa de Moss, Carla Jean, também é morta apenas para cumprir a promessa que Anton havia feito ao seu marido. O dinheiro é devolvido ao dono.

Em todas essas cenas, em momento algum o xerife Ed Tom Bell toma uma participação ativa na trama, ficando à margem apenas entrevistando testemunhas e analisando as cenas dos crimes em que Moss e Chigurh tiveram alguma participação. Apesar de o herói ser o cerne e a força motriz do enredo, o final termina sendo externo a ele, com uma resolução que fugiu de seu controle, como nos moldes trágicos, e que não é vista, mas contada por um terceiro ao xerife:

68

MCCARTHY, p. 239-240

37

“[Ele] diz que o mexicano começou. Diz que arrastou a mulher para fora do quarto e o outro homem [Moss] saiu com a arma mas quando viu que o mexicano tinha uma arma apontada para a cabeça da mulher deixou a sua cair. E quando fez isso o mexicano empurrou a mulher para longe e atirou nela e depois se virou e atirou nele. [...] Matou os dois com uma droga de uma metralhadora. De acordo com essa testemunha o cara caiu pelos degraus e então pegou a arma outra vez e atirou no mexicano. O que eu não vejo como ele pode ter feito. Ele foi despedaçado.”69

A transformação de um ato a outro, como diz Brémond, acaba colocando as coisas em ordem, negando a figura do herói como fundamental para resolver o conflito. Mesmo Bell, representante da autoridade policial, reconhece que não havia muito o que ele pudesse fazer “Senhores, ele [Bell] disse, acho que fomos superados.”70

A trama termina em um êxodo onde Chigurh desaparece do mapa após se envolver em um acidente de carro e Ed Tom Bell se aposenta após concluir que não há mais nada que ele possa fazer e que ele não está preparado para enfrentar os novos tempos. Numa obra trágica, a resolução seria preferivelmente positiva71, pois o empecilho que o herói se tornava à pólis seria resolvido ou com seu sacrifício ou com sua sagração. A impressão que fica no final é que a violência é recorrente e impossível de resolver,

“Eu [Bell] disse aos meus subdelegados mais de uma vez que você conserta o que é possível e deixa estar o resto. Se não há nada a fazer a respeito isso nem chega a ser um problema. É só um incômodo. E a verdade é que eu não tenho mais nenhuma idéia do mundo que está se formando lá fora [....].”72

Mas, como não podia deixar de faltar uma luz de esperança no fim, lembrando um bom presságio ao estilo do Coro no final de Agamêmnon73, remetendo à fórmula aristotélica ideal

“[...] eu vi que ele [meu pai] estava levando fogo dentro de um chifre do jeito como as pessoas costumavam fazer [...]. E no sonho eu sabia que ele estava indo na frente e que ele ia fazer uma fogueira em algum lugar no

69

MCCARTHY, p. 195 Idem, p. 201 71 “[...] segue-se que não cabe apresentar homens muito bons passando de venturosos a desventurados (o que não produz nem terror nem pena mas sim repulsa), nem homens muito maus passando da desventura à felicidade (nada há de menos trágico; faltam-lhe as características necessárias para a inspiração de medo e piedade; e assim não se está de acordo com as emoções humanas).” (ARISTÓTELES, 1452b 30-40) 72 MCCARTHY, p. 231 73 “Não [nos punirás, Clitemnestra e Egisto], se o Nume conduzir Orestes para cá” (ÉSQUILO, v. 1667) 70

38

meio de toda aquela escuridão e de todo aquele frio e eu sabia que quando chegasse lá ele estaria lá.”74

3.2 Os protagonistas

Na tragédia, toda personagem (ou caractere) é um protagonista. Na peça, cada um desses protagonistas expõe suas ideias, vontades e opiniões, e o embate ocorre justamente entre o herói e quem quer que o impeça de atingir seu objetivo. Participam também adjuvantes, que podem ser protagonistas ou mesmo o próprio Coro, sendo que este também pode se tornar um oponente. Em Onde os Velhos Não Têm Vez, a trama se desenrola com foco em três protagonistas a serem analisados aqui: Llewelyn Moss, Anton Chigurh e Ed Tom Bell.

3.2.1 O protagonista principal (ou o herói trágico) Ser o herói em uma peça trágica consiste em não ser dono do próprio destino7576 e ainda assim ser considerado responsável por ser autor da ação77, sendo passível de julgamento externo78. O mesmo ocorre com Llewelyn Moss.

Vemos Llewelyn Moss pela primeira vez na trama caçando antílopes. Até então, sua existência é comum, ordeira. Ele tem uma esposa, Carla Jean, que o espera em casa, e um emprego como soldador, embora só saibamos disso por declaração própria. Também é veterano da Guerra do Vietnã. Vive na fronteira entre EUA e México, em uma época em que a fronteira era marcada pela guerra contra – e entre - os narcotraficantes. Ao notar um “grande cachorro sem rabo, de cor preta”, com “cabeça imensa e orelhas cortadas” e coxeando, resolve descer a encosta para, aparentemente, ver de onde ele veio. Com seus binóculos, observa algumas caminhonetes paradas e resolve andar até lá. Ali chegando, encontra vários corpos espalhados, resultado claro de um confronto entre narcotraficantes e autoridades federais –

74

MCCARTHY, p. 252 “[...] a solução do drama escapa a [ele]: jamais é dada pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. XXI) 76 “[...] esses sentimentos, falas e ações [do herói trágico] aparecem, ao mesmo tempo, como expressão de uma potência religiosa, de um daímon que age através deles.” (Idem, p. 15) 77 “O herói confronta-se com uma necessidade superior que se impõe a ele, que o dirige, mas, por um movimento próprio de seu caráter, ele se apropria dessa necessidade, torna-a sua a ponto de querer, até desejar apaixonadamente aquilo que, num outro sentido, é constrangido a fazer.” (Idem, p. 28) 78 “[...] o herói deixou de ser um modelo; tornou-se, para si mesmo e para os outros, um problema.” (Idem, p. 2) 75

39

embora só possamos ver um, identificado pela arma que carrega. Moss encontra uma mala cheia de dinheiro:

“Havia uma pesada valise de couro junto ao joelho do homem morto e Moss sabia com certeza absoluta o que havia dentro da valise e estava com medo de uma forma que não chegava sequer a compreender.”79

Assim como uma personagem esquiliana colocada “no limiar da ação, diante da necessidade de agir”, para citar Bruno Snell em seu Die Entdeckung des Geistes (apud VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2008, p. 27), Moss se encontra “numa situação que desemboca numa aporia, num impasse”. Tal qual Orestes constrangido a matar a mãe em Coéforas, ou Dario, que resolve desafiar os gregos por razoes que fogem aos sentidos, em Os Persas, Moss se encontra “[acuado] diante de uma opção difícil, mas inelutável80.” Sua decisão?

“Toda sua vida estava ali diante dele. Dia após dia desde a alvorada até o escurecer, até o dia em que ele estivesse morto. Tudo resumido a vinte quilos de papel numa bolsa. [...] Ele travou o fecho da valise e apertou as correias e afivelou-as e se levantou e colocou o rifle no ombro e então pegou a valise e a metralhadora e se orientou pela própria sombra e partiu.”81

Ao tomar tal decisão conscientemente e ainda assim de forma tão receosa, ficamos perplexos com quão difícil é para o herói impor sua “própria” vontade, principalmente quando Moss retorna ao local do crime por um motivo banal: levar água a um moribundo que pediu ajuda:

“Vou fazer uma coisa agora totalmente idiota mas vou fazer assim mesmo. [...] Meu bem eu não quero que você vá. Aonde você vai? Não quero que você vá. Bem querida estamos pau a pau nessa questão eu também não quero ir.”82

Esse confronto entre vontade interna e algo externo é uma das marcas da tragédia, como observa André Rivier (apud VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2008, p. 27):

79

MCCARTHY, p. 20 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 27 81 MCCARTHY p. 20 82 Idem, p. 25 80

40

“[...] [A] análise precisa dos textos mostra que a deliberação, considerada do ponto de vista do sujeito, do agente, é incapaz de produzir outra coisa que não seja a verificação da aporia, e que ela é impotente para motivar uma opção de preferência à outra”

O homem trágico “já não tem que ‘escolher’ entre duas possibilidades; ele ‘verifica’ que uma única via se abre diante dele”83. O mesmo ocorre com Moss, conforme deixado claro por Anton Chigurh, o antagonista, ao conversar com o dono de uma loja de conveniência e fazer uma aposta pela vida do homem em um jogo de cara-ou-coroa:

“Não posso escolher por você. Não seria justo. Não seria nem mesmo correto. Só escolha. Eu não apostei nada. Apostou sim. Está apostando a vida inteira. Você apenas não sabia. Sabe qual a data que está na moeda? Não. É 1958. Ela viajou durante vinte e dois anos para chegar aqui. E agora está aqui. E eu estou aqui. E estou com a mão sobre ela. E vai ser cara ou coroa. E você tem que dizer. Escolha.”84

O próprio Moss reconhece que seu destino já estava traçado antes mesmo de encontrar a mala, e que não há nada que ele possa fazer para corrigir seu erro:

“Não é sobre saber onde você está. É sobre pensar que chegou ali sem levar nada junto. Suas noções sobre começar de novo. [...] Você não começa de novo. Essa é a verdade. Cada passo que você dá é para sempre. Não pode fazer com que desapareça. Nenhum deles.”85

Reuter (2004, p. 16) lembra que “o herói constrói sua existência e não faz mais do que verificar o valor de sua essência, de sua predestinação”. Quando Moss reavalia tudo o que ocorreu e realizou até então, percebendo, como exemplificado no esquema quinário, que, apesar de destinatário, ele mesmo não foi o próprio destinador, ocorre o chamado reconhecimento, apenas para, como Aristóteles diz em Poética, ser levado ao “infortúnio” no confronto final com um assassino mexicano ao tentar salvar a vida da moça a quem havia dado carona.

83

VIDAL-NAQUET, VERNANT, pp. 27-28 MCCARTHY, p. 50 85 Idem, p. 187 84

41

Além disso, surge uma outra face do herói enquanto protagonista trágico: assim como a tragédia grega pensa o herói como um problema à polis86, Moss torna-se um problema em dois momentos distintos: primeiro, ao não reconhecer Chigurh como um oponente acima de todas as expectativas, incorporando algum senso de justiça desvirtuado;

“[Diz Carson Wells:] Esse homem não vai parar de te procurar. Mesmo se conseguir de volta o dinheiro. Não vai fazer nenhuma diferença para ele. Mesmo se você fosse até ele e lhe desse o dinheiro ele te mataria. Só por ter sido inconveniente. [...] Não dá para fazer um acordo com ele. [...] Mesmo que você entregasse o dinheiro ele te mataria ainda assim. [...] Ele é um homem peculiar. Poderíamos até dizer que ele tem princípios. Princípios que transcendem o dinheiro ou as drogas ou qualquer coisa desse tipo.”87

e segundo, ao não notar que está longe de se salvar e que precisa se sacrificar o quanto antes para salvar Carla Jean

“Você me traz o dinheiro e eu deixo ela em paz. De outro modo ela é responsável. Tanto quanto você. Não sei se você se importa com isso. Mas é o melhor acordo que vai conseguir. Não vou te dizer que pode salvar a própria pele porque não pode. Vou te levar uma coisa sim, Moss disse. Decidi fazer de você um projeto especial meu. Você não vai ter que procurar por mim em absoluto.”88

No final, Moss cai vítima de sua harmatía apenas para que o dinheiro seja restituído ao seu dono por Chigurh, agindo o tempo todo em “bona fide”. O tempo todo em que ele luta para não reconhecer seu erro, acaba vitimando não só a si, como também pessoas inocentes, a exemplo de Carla Jean e a moça que lhe pede carona. Assim como Orestes, é necessário que ele seja sacrificado para restituir o equilíbrio perturbado pelo próprio herói no início, ao mesmo tempo deixando claro que essa necessidade é externa à sua própria vontade, estando dentro dos “princípios” mencionados por Wells89.

86

“No novo quadro do jogo trágico, [...] o herói deixou de ser um modelo; tornou-se, para si mesmo e para os outros, um problema.” (VIDAL-NAQUET, VERNANT, p. 2) 87 MCCARTHY, p. 127-130 88 Idem, p. 154 89 [...] o sacrifício de sangue [...] define a comunidade cívica nas suas relações tanto com os deuses quanto com o mundo selvagem que a cerca.” VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 151

42

3.2.2 O protagonista oponente

Cada protagonista é constituído de um conjunto de ideias e de um caráter próprio, representando seres “de boa ou de má índole”90. Apesar da falta de um termo próprio na tragédia para o papel exercido pelo que hoje convencionamos chamar de antagonista, sabemos que há um embate que opõe personagens (ou caracteres) em polos extremos, e que um deles é o referido oponente do sistema quinário. Tal papel cabe a Anton Chigurh, assassino de aluguel.

Chigurh nos é apresentado antes mesmo do protagonista per se do romance, Moss. Encontramos Anton pela primeira vez dentro de uma delegacia, tendo sido preso por sua própria vontade ao entrar com um tanque de oxigênio usado para abater gado. Enquanto o oficial reporta ao xerife pelo telefone o que houve, o prisioneiro utiliza as algemas para asfixiar o oficial até a morte, e depois rouba a viatura e ainda mata um motorista à toa para trocar de carro.

O que chama a atenção em toda a cena é saber que Anton não precisava ter feito nada disso, desde entrar na delegacia sabendo muito bem que ia ser preso a matar um transeunte. Tudo isso ocorre para estabelecer o caráter da referida protagonista, instilar o terror e deixar claro qual força será enfrentada pelo herói. Como já mencionado acima, Ed Tom Bell é a primeira voz do romance, com seu monólogo inicial sendo lido com um párodo, e Chigurh é o próprio “profeta da destruição vivo e verdadeiro”91 citado uma página antes.

A oposição que Chigurh impõe a Moss vai além do mero fato de este ter tomado o dinheiro e fugido com ele. Como bem disse Wells, Chigurh parece ter “princípios”, sempre fazendo alusões vagas a destino, resignação. O confronto entre eles é sangrento e violento porque cada um incorpora um conjunto de ideias díspares e “[contra] essa unilateridade se choca violentamente uma outra unilateralidade”92. O problema de Moss é não reconhecer a

90

ARISTÓTELES, 1448a 1-5 MCCARTHY, p. 8 92 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 20 91

43

tempo que Anton é quem detém o poder de decidir seu destino93, atuando como um “instrumento”, chegando mesmo a cair numa armadilha dialética ao ameaçá-lo:

“Decidi fazer de você um projeto especial meu. Você não vai ter que procurar por mim em absoluto. Fico feliz em ouvir isso. Você estava começando a me decepcionar. Você não vai se decepcionar. Ótimo.”94

Vernant e Vidal-Naquet (2008, p. 20) lembram que “[a] ironia trágica [pode] consistir em mostrar como [...] o herói cai na armadilha da própria palavra [...] que se volta contra ele trazendo-lhe a experiência amarga de um sentido que ele obstinava em não reconhecer”. Anton Chigurh é o instrumento que faz com que Moss acabe seguindo obstinadamente para a morte.

Precisamos notar que apesar de estarmos num romance com caracteres trágicos, em momento algum Chigurh diz quais são exatamente seus princípios nem sabemos o que o torna tão forte e perigoso. Quando questionado sobre a possível invencibilidade de Chigurh, Wells responde que “ninguém é invencível”, mas que ele pode ser tão perigoso quanto o que quer que seja comparado, como “a peste bubônica”.

Na maior parte do tempo, Anton utiliza um rastreador para tentar localizar Moss. Depois, usa Carson Wells para tal quando Moss se livra da mala. Ele também verifica as correspondências, os telefonemas e, às vezes, parece encontrar o rastro de Moss por instinto. Numa analogia com Eumênides, podemos dizer que Moss encarna Orestes (“a caça”) e Chigurh encarna as Erínias (“os cães”)95. Não há como escapar do destino, independente do “instrumento” pelo qual ele age.

Após a morte de Moss, Chigurh localiza a mala e a devolve para seu dono deixando claro que não haverá mais nenhuma perturbação por causa dela. Como ele pode estar tão certo? “Porque sou eu quem determina quem vem e quem não vem”96. Logo depois, ele vai cumprir a promessa que fez a Moss: matar Carla Jean caso não se entregasse. Ela tenta 93

Vale notar que a garota para quem Moss dá carona pergunta a ele se “a justiça está atrás [dele]?” A resposta é evasiva, um “todo mundo está atrás de mim”. Há que se notar que a mala não pertence a Moss, mas questionamos o método como ela há de ser recuperada. (MCCARTHY, p. 190) 94 Idem, pp. 154-155 95 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 102 96 MCCARTHY, p. 206

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persuadi-lo a não fazer isso, mas ele replica que “o que foi feito não pode ser desfeito”97. Inutilmente ela tenta implorar a ele que volte atrás, mas

“... [eu] só tenho um modo de viver. Não estão previstos casos especiais. [...] A maioria das pessoas não acredita que possa existir alguém assim [como eu]. Dá para ver que problema isso deve ser para elas. Como triunfar sobre algo cuja existência você se recusa a reconhecer. Entende? Quando entrei na sua vida a sua vida tinha acabado. Teve um começo, um meio e um fim. Este é o fim. Você pode dizer que as coisas podiam ter acontecido de outro modo. [...] Mas o que isso quer dizer? Não há outro modo. Elas são deste modo.”98

Após matá-la, Chigurh sofre um acidente de automóvel, onde é ferido mas sai andando, deixando o local da colisão. Assim como a existência de suas vítimas, a sua dentro do enredo termina quando deixa de ser um instrumento necessário aos fins do destino ou da justiça – ou dos “princípios” -, fechando o ciclo e restituindo o “equilíbrio”.

3.2.3 O “Coro” adjuvante

Aristóteles deixa claro que foi o próprio Ésquilo o responsável por aumentar a distância entre o protagonista (ou ator) e o Coro99. Com um maior número de protagonistas, há um andamento mais dinâmico na trama, uma vez que o Coro representa o pensamento coletivo da pólis, exercendo na maior parte do tempo o papel de autoridade, mas com participação mais passiva. Contudo, o número de atos em que ele toma parte é maior que a dos protagonistas, pois ele aparentemente está cônscio do que está ocorrendo, embora não possa – e não consiga - se intrometer.

Ed Tom Bell, xerife do condado de Terrell, é a primeira – e a última – personagem do romance a ter voz. Todo o romance é pontuado de monólogos e diálogos que ocorrem após os acontecimentos relatados. Desde o início, Bell reconhece ser incapaz de impedir que as coisas tomem um rumo violento. Contudo, ele mesmo diz que esse é o seu dever, sua função:

“O povo do condado de Terrell me contratou para cuidar deles. Esse é o meu trabalho. Sou pago para ser o primeiro a ser ferido. A ser morto, se preciso.”100 97

MCCARTHY, p. 209 Idem, p. 212 99 ARISTÓTELES, 1449a 15 100 MCCARTHY, p. 113 98

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Mas há um impasse em que Bell se encontra: se por um lado ele deve “cuidar” do povo do condado, por outro ele é uma autoridade que deve preservar a ordem. Moss quebrou a ordem, e por isso está sendo perseguido. “Cuidar” para que Moss não seja morto envolve um risco além do que ele pode se comprometer, e isso o inquieta tanto quanto inquietou o Coro de Agamêmnon ao reconhecer-se nas mãos de Clitemnestra101. Lidar com esses extremos acaba prejudicando qualquer ação que Bell queira tomar com base em suas ideias:

“Hoje você fala com as pessoas sobre certo e errado e provavelmente elas vão rir de você. Mas eu nunca tive muitas dúvidas sobre coisas desse tipo. [...] Nos meus melhores dias eu acho que existe alguma coisa que eu não sei ou que existe alguma coisa que eu estou esquecendo.”102

Vernant e Vidal-Naquet lembram que a matéria da tragédia é o embate entre díkes, direitos que não estão estabelecidos de forma absoluta103, como o próprio Bell declara:

“Pense num trabalho em que você tem mais ou menos a mesma autoridade que Deus e em que não existe nenhum pré-requisito que precise cumprir e em que tem o dever de preservar leis inexistentes [...].”104

Nessa oposição entre díkes encontra-se o homem como a peça em disputa, o problema em si. Se para Chigurh resolver o problema implica sacrificar Moss, para Bell uma solução pacífica seria a melhor saída – porém ele não sabe como realizar isso:

“Cada dia que passa está contra você. O tempo não está do seu lado. [...] provavelmente a única razão para eu ainda estar vivo é que eles [os criminosos] não tem nenhum respeito por mim. E isso é muito doloroso.”105

Devemos lembrar que o Coro trágico era formado por um conjunto de anciãos, que representava o comando político da polis e ilustrava a percepção da plateia que assistia as peças. Ed Tom Bell já é velho, está ultrapassado pelas mudanças sociais que ocorreram nos últimos tempos e das quais ele foi testemunha. Em toda a peça, apenas Moss e Chigurh tomam uma participação ativa, como na tragédia, em que o Coro “nunca decide, ou suas decisões são objeto de derrisão; regra geral, é o heroi – ou a força que o move – que torna as 101

“[...] o coro, nas partes cantadas, não tanto exalta as virtudes exemplares do herói [...], quanto se inquieta e se interroga a respeito de si mesmo.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 2) 102 MCCARTHY, pp. 135-136 103 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 3 104 MCCARTHY, pp. 56-57 105 Idem, p. 179

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decisões irrevogáveis que estão no fundo de toda tragédia.”106 Nem mesmo prometendo a Carla Jean fazer o possível para Moss, ou mesmo este contando que ele pode ajudá-lo durante uma conversa com Wells são possibilidades reais dentro do enredo: Moss está só, e ninguém pode intervir sem risco de também acabar morrendo.

Como dito acima, o número de protagonistas aumentou nas peças enquanto a participação do Coro foi diminuindo. Cada uma das treze intrusões de Bell ao enredo só faz questionar o sentido de direito absoluto. Ele mesmo, em determinado momento, lembra de um fato que o atormenta:

“[...] quando você vai para a batalha é um juramento de sangue que vai cuidar de todos os homens com você e não sei por que eu não fiz isso. [...] Quando você enfrenta uma responsabilidade desse jeito tem que se conformar com o fato de que vai ter que viver com as conseqüências. Mas não sabe quais vão ser as conseqüências. [...] Se era para eu morrer ali fazendo aquilo em que tinha empenhado minha palavra então é o que eu devia ter feito. [...] Eu devia ter feito isso e não fiz. E uma parte de mim nunca deixou de querer que eu pudesse voltar. E não posso.”107

Como Bell incorpora tudo aquilo que a pólis defende, ao questionar-se ele questiona tudo aquilo que ele acreditava como certo e tudo aquilo que ele jurou defender – os ideais da própria comunidade. Contudo, ao finalmente reconhecer que seu ato passado foi vergonhoso, tal como o do herói108, ele reconhece-se derrotado:

“[...] tudo [...] são sinais mas não te explicam como as coisas ficaram desse jeito. E também não te dizem nada sobre como vão ficar. [...] sempre pensei que poderia pelo menos de algum modo endireitas as coisas e acho que já não sinto mais isso. [...] Estão me pedindo para representar algo em que já não tenho a mesma crença que outrora. Me pedindo para acreditar em algo que eu talvez não aceite do jeito que outrora acreditava. Esse é o problema. Falhei mesmo quando aceitava. [...] Fui forçado a olhar para as coisas outra vez e fui forçado a olhar para mim mesmo. [...] Se hoje sou mais sábio com relação aos caminhos do mundo isso tem um preço. Um preço bem alto aliás.”109

106

VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 275 MCCARTHY, p. 227 108 “Através do espetáculo trágico, a própria cidade se questiona. Ora os heróis, ora o coro, encarnam sucessivamente valores cívicos e valores anticívicos.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 280) 109 MCCARTHY, p. 241 107

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No final do romance, Ed Tom Bell se demite do cargo de xerife ao finalmente dar-se conta de que o que ele enfrentava ia além de seus limites e que os problemas vão continuar em sua comunidade independente do que ele faça:

“Estamos sendo comprados com nosso próprio dinheiro. [...] Não é sequer um problema de segurança pública. Duvido que algum dia tenha sido. Sempre existiram narcóticos. Mas as pessoas não vão simplesmente e resolvem se drogar sem motivo nenhum. [...] não é possível haver tráfico de drogas sem gente que se droga. [...] os velhos [...] olham para mim e há sempre uma pergunta. [...] É como se eles acordassem e não soubessem como chegaram onde estão. Bem, num certo sentido não sabem.”110

A tragédia, em sua função cívica, encerra com Bell aceitando a derrota, mas querendo acreditar que há ainda chance para o homem e - quem sabe? - para a comunidade:

“Quando você saía pela porta dos fundos daquela casa havia um cocho d’água de pedra no meio do mato ao lado da casa. [...] Não sei quanto tempo fazia que estava ali. Cem anos. Duzentos. [...] Tinha sido escavado na pedra bruta [...]. E eu comecei a pensar no homem que tinha feito aquilo. Aquele país não tinha tido um período muito longo de paz em momento algum que eu soubesse. [...] Mas esse homem havia se sentado com um martelo e um cinzel e escavado um cocho d’água capaz de durar dez mil anos. Por que isso? No que ele tinha fé? Não era que nada fosse mudar. [...] devo dizer que a única coisa que consigo pensar é que havia alguma espécie de promessa em seu coração. [...] gostaria de ser capaz de fazer esse tipo de promessa. Acho que é a coisa de que mais gostaria acima de tudo.”111

3.3 Considerações trágicas adicionais

Além dos elementos narrativos e constitutivos da tragédia ática, devemos lembrar que esta também trata de questões sobre livre arbítrio e as relações entre indivíduo e pólis que, embora não declaradas abertamente, permeiam a maioria das peças trágicas. Como mencionado acima, toda a trama gira em torno de um erro trágico por parte do herói, e a forma como se dará a expiação de tal harmatía é o mote de todo o sofrimento que o assola e que o público acompanha, seja como espectador ou identificando-se com o Coro. Para prosseguirmos com a verificação dos elementos da tragédia em Onde os Velhos Não Têm Vez, precisamos levar em conta dois elementos não declarados, mas marcantes do gênero: o daímon e a catarse.

110 111

MCCARTHY, pp. 247-248 Idem, p. 251

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3.3.1 A aparente ausência de um daímon

Ao contrário das peças trágicas clássicas, onde a existência dos deuses era um fato apesar de eles serem pouco representados (por exemplo, na trilogia Oresteia, os deuses só aparecem uma vez, em Eumênides, para debater e selar o destino de Orestes), o romance de McCarthy não permite uma visualização aberta e clara de sua existência. Colabora para isso o tom niilista não só desse romance, mas de toda a obra do autor norte-americano, como resumido neste trecho de A Estrada:

Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem. Você vai ver. É melhor ficar sozinho. Então espero que não seja verdade o que você disse [que seu filho é seu deus] pois estar na estrada com o último deus seria uma coisa terrível então espero que não seja verdade. As coisas vão melhorar quando todos tiverem morrido.112

McCarthy está seguindo uma tendência do romance estabelecida de vez com Dom Quixote e Robinson Crusoe, onde o “herói constrói sua existência e não faz mais do que verificar o valor de sua essência, de sua predestinação”, procurando “mudar de condição, subir na vida e, às vezes, transformar o mundo”113. Com o protagonista dependente apenas de si mesmo para dar sentido à sua vida e realizar seus intentos, não haveria porque inserir uma figura divina que colaborasse ou que tentasse impedir seu progresso. Contudo, o mesmo impasse que assolou Orestes é expresso de forma diversa com Llewelyn Moss, ambas por meio de uma coação “invisível”: Orestes é alertado pelo Corifeu em Coéforas que o sangue de Agamêmnon deve ser expiado114, mas o Corifeu não é uma figura divina, embora esteja agindo em nome de uma; Moss pega o dinheiro apesar de sua consciência o alertá-lo constantemente115.

A linha que divide o romance e a tragédia acaba sendo rompida justamente no momento em que o erro é cometido apenas para que haja a expiação. É o núme, que toma diferentes formas para preparar o homem para a falha e depois puni-lo. Em vários momentos o xerife Ed Tom Bell se questiona porque as pessoas se tornam criminosas, como ao contar no início do romance a história do rapaz que mata a namorada após ter planejado tudo 112

MCCARTHY, Cormac. A estrada. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 142-143. REUTER, p. 16 114 ÉSQUILO, Coéforas, vv. 400-404 115 “Se você soubesse que há alguém em algum lugar por aí a pé com dois milhões de dólares seus, em que momento pararia de procurar? “Isso mesmo. Esse momento não existe”. (MCCARTHY, pp. 28-29) 113

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cuidadosamente ou da mãe que mata seu bebê ao colocá-lo no microondas. O tio de Bell, Ellis, tem uma teoria paranormal que talvez indique o que realmente ocorre por trás de todas essas tragédias:

“Esta terra era dura com as pessoas. Mas elas nunca pareciam culpar a terra por isso. [...] Por que as pessoas não sentem que esta terra tem um bocado de coisas pelas quais responder? [...] Você pode dizer que a terra é apenas a terra, que ela não faz nada ativamente, mas isso não significa muito. Vi um homem atirar em sua própria picape com uma espingarda certa vez. Deve ter pensado que o carro tinha feito alguma coisa. Esta terra pode te matar num piscar de olhos e mesmo assim as pessoas a amam.”116

Vernant e Vidal-Naquet lembram que o “homem trágico” é constituído de um “ethosdaímon”117, onde o caráter se confunde com uma força divina. Se isso se aplica a um homem “indestrutível” como Anton Chigurh, a expressão humana de uma força que demanda expiação, o que dizer do próprio protagonista cujos motivos para carregar a mala consigo não nos são revelados? Moss incorpora um enigma que não consegue ser desvendado118, tal como o garoto em quem Bell tenta verificar o que existe ali que pudesse tê-lo levado a cometer um assassinato119.

No entanto, assim como Orestes é obrigado a reconhecer que precisa cometer uma erronia para vingar a morte do pai, Moss percebe enfim que não há mais como fugir e que deverá aceitar seu destino:

“A maioria das pessoas foge da mãe para a oportunidade de abraçar a morte. Não podem esperar para vê-la”.120

Com relação a este trecho, chamam a atenção dois fatos: primeiro, a terra, como teorizada por Bell, pode ter algo a ver com a falha de Moss, sendo ela mesma uma “mãe” para

116

MCCARTHY, p. 221 VERNANT, VIDAL-NAQUET, p. 15 118 “Na perspectiva trágica, o homem e a ação se delineiam, não como realidades que se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam como enigmas cujo duplo sentido não pode nunca ser fixado nem esgotado.” (Idem, p. 15-16) 119 “Os jornais diziam que tinha sido um crime passional e ele me disse que não havia paixão nenhuma naquilo. [...] [M]e disse que estava planejando matar alguém desde quando era capaz de lembrar. [...] Disse que sabia que ia para o inferno. [...] Não era difícil conversar com ele. Me chamava de Xerife. Mas eu não sabia o que dizer a ele. O que você diz a um cara que, segundo ele mesmo, não tem alma? Por que você diria alguma coisa?” (MCCARTHY, p. 7) 120 Idem, p. 192 117

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os gregos, Gaia121; e segundo, dentre as filhas de Gaia destacam-se as Fúrias122, expiadoras da harmatía na mitologia grega, tal como Chigurh neste romance. Ao retirar os deuses da ação, mas inferir sua existência num nível marginal, McCarthy reproduz um ciclo de violência contínuo, onde o equilíbrio deve ser restituído por meio da punição de alguém, sem chance de prever se tal ciclo continuará ou não, principalmente quando lembramos que erronia se paga com erronia.

3.3.2 A aparente ausência de catarse

Dentro da ação complexa de Onde os Velhos Não Têm Vez, Llewelyn Moss experimenta suas três etapas: •

Peripécia: Moss pega a maleta e já pressente o perigo, mas prefere ignorá-lo por

motivo ignoto; •

Reconhecimento: durante conversa com a jovem caroneira, reconhece de forma

implícita que precisa ir até o fim; •

Catástrofe: em combate contra um pistoleiro mexicano, tenta proteger a caroneira e é

morto.

Para Aristóteles, a catarse é a finalidade da tragédia após a platéia ter experimentado a piedade e o terror que assolaram a vida do herói123. Todo o esquema da ação complexa deve levar a isso, suscitando na plateia uma ideia de “purgação”. Contudo, se considerarmos a responsabilidade individual de Moss, não haverá como o público se identificar com as dores e o sofrimento do herói, o que só piora quando consideramos que ele também deixou a esposa para morrer. Afinal, o que nos levaria a experimentar uma catarse pelo protagonista considerando um nível apenas humano do romance?

Há duas maneiras de se interpretar a personagem de Anton Chigurh, e cada uma delas pode resultar na necessidade de contextualizar as demais em relação a ele: primeiro, como um criminoso comum dotado de inteligência excepcional, cuja missão é recuperar uma maleta, 121

“Ouranos, the god of the Sky, came in the night to his wife, to the Earth, to the Goddess Gaia. […] But from the very beginning he hated the children whom Gaia bore him.” (KERÉNYI, p. 20) 122 “It will be remembered that the Erinyes, these ‘strong ones’, were born to Mother Earth, Gaia, when she was made fruitful by the blood shed by her punished husband, the maimed Ouranos (whose maiming, in its turn, called forth punishment and revenge […].”(Idem, p. 47) 123 ARISTÓTELES, 1449b 24-27

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embora nunca saibamos quem o mandou fazer isso; e segundo, como alguém que realmente tenha “princípios”, disposto a colocar as coisas em seu devido lugar.

A primeira interpretação exige que vejamos Moss como uma personagem ingênua, o que não é o caso quando lemos que ele refletiu que “[toda] sua vida estava ali diante dele”124 ao pegar a maleta. Além disso, considerando seu histórico como veterano de guerra e o diálogo final com a caroneira, sentimos que algo mais o move, embora ele mesmo não saiba precisar o que é. Esta interpretação sugere que a punição, embora pareça desproporcional, é merecida, e esse não é o propósito real da tragédia.

A tragédia tem como ideal questionar a natureza do indivíduo e da pólis, pondo em debate suas bases jurídicas e mesmo religiosas. Se a ideia é que o público se identifique com o herói, então uma culpa de facto não pode lhe ser imputada. O herói precisa cometer uma harmatía para ser considerado “culpado”, mas não necessariamente precisa saber o que há por trás dela. Moss não sabe porque tem de pegar a maleta, mas tem. Nem mesmo sabe porque precisa voltar ao “local do crime” ou mesmo fugir. Mas precisa125.

Ao considerarmos a presença de uma dimensão divina em Onde os Velhos Não Têm Vez, ficamos mais receptivos ao terror experimentado por Moss e ao desfecho trágico que se segue pouco depois de seu reconhecimento. Movido por um daímon ambíguo que ora posa como erronia, ora como justiça, simplesmente não há escapatória para ele – e é assim que experimentamos a catarse.

Considerando isso, fica fácil entendermos o sofrimento também do xerife Bell ao ver um mundo cada vez mais corrompido, mas sem poder fazer nada: nem a dimensão humana nem a divina colaboram para que haja equilíbrio. Ironicamente, o único equilíbrio restituído na trama tem a ver com uma maleta de dinheiro que é restituída ao seu dono por meio de uma punição desproporcional – a catástrofe em si.

124

MCCARTHY, p. 20 No verbete “TERROR E COMPAIXÃO”, de seu Dicionário de Teatro, Vasconcellos elabora melhor o que Aristóteles diz em sua Poética: “a compaixão decorre do fato de haver uma falta cometida como conseqüência de um erro de julgamento; enquanto o terror deriva do fato de o infortúnio poder acontecer a qualquer um de nós [...]”.

125

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3.4 A narração (quase) ausente

Apesar de ser de conhecimento amplo que o teatro faz uso mínimo de narradores, é interessante notar que isso não é tão comum no romance. O romance em geral é diegético, não mimético, mas essa é a exceção em Onde os Velhos Não Têm Vez. Ao reproduzir as características e estrutura trágica, McCarthy dá autonomia aos atores em cena:

“Estamos no reino do mostrar que sem dúvida remete mais ao teatro, ao drama, a certos romances dialogados ou monologados ou à narração ‘neutra’ [...]” (REUTER, p. 65)

A tragédia realiza isso através do espetáculo, onde visualizamos a cena, e do Coro. Com relação ao espetáculo, vemos a cena sempre acompanhando o ator:

“Ouviu patas arranhando os ladrilhos. Um guarda estava de pé ali com um pastor alemão de coleira. O homem acenou com o queixo para o guarda. Arranje alguém para ajudar este homem. Ele precisa ir para a cidade. O táxi já foi?”126

Como mencionado no início, uma das complicações existentes na encenação de uma peça trágica é justamente a falta de didascálias que consigam estabelecer a disposição de objetos, atores, efeitos, etc127. Mas McCarthy, ao mesmo tempo que faz uso de um modo narrativo que insira esses dados dentro do romance, complica-o tornando parte do diálogo, cabendo ao leitor distinguir dicção e espetáculo.

Além disso, é através da dicção que conhecemos mais sobre as personagens, uma vez que temos aqui a presença de um narrador heterodiegético neutro que não se aprofunda na vida interior de cada um dos atores. É apenas através de suas falas que sabemos dados sobre seu passado que eles queiram revelar, tais como o passado de Llewelyn Moss

126

MCCARTHY, p. 158 Reuter nos lembra que o uso de cenários no romance tem ganhado maior valor “simbólico”, geralmente apelando a uma “conivência cultural”. (REUTER, p. 25) O mesmo aconteceria com uma peça trágica, como no caso da trilogia Oresteia, onde sabemos apenas que se passa em Argos sem sabermos maiores detalhes de como aquela cidade realmente era, a não ser por estudos arqueológicos e contextualização histórica. O mesmo McCarthy realiza aqui ao deixar implícito que se passa na fronteira Estados Unidos-México, na década de 1980, sem dar maiores explicações. Contextualizando o tempo e cenário, hoje sabemos que era – e ainda é – uma região marcada pelos conflitos entre polícia e narcotraficantes. 127

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“Quando [Moss] saiu do provador levava o sobretudo por cima do braço. Andou de um lado a outro do corredor de madeira que estalava. O vendedor ficou olhando para as botas. O couro de lagarto leva mais tempo para ficar confortável, ele disse. É. Também é quente no verão. Estas estão boas. Deixe-experimentar aquele chapéu. Não me visto tão bem assim desde que saí do exército.”128

ou a religiosidade de Carla Jean quando posta em questão por Chigurh

“Provavelmente sabe [o que você fez], [Chigurh] disse. Há uma razão para tudo. Ela balançou a cabeça. Quantas vezes eu disse essas exatas palavras. Não vou voltar a dizer. Você passou pela perda da fé.”129

Toda vez que o romance alterna entre os pontos-de-vista de Moss, Chigurh, Wells e Bell (geralmente para estabelecer sua participação ativa na trama), acompanhamos seus feitos para conseguirmos entender o que há por trás de sua motivação, como eles vão se desenvolvendo ao longo da trama. Mas como a tragédia também procura estabelecer a cena e o tempo e apresentar o problema para o público de forma clara, McCarthy realiza isso através de um ator que incorpora um papel de Coro: o xerife Ed Tom Bell.

Ed Tom Bell é nosso guia, é quem nos apresenta toda a tragédia e com quem precisamos nos identificar primeiro para adentrarmos o romance enquanto plateia. Não à toa, é ele quem dá sua voz logo no início, num párodo que estabelece logo no início do que a trama trata: de violência e punição:

“Mandei um garoto para a câmara de gás em Huntsville. Foi só um. Eu prendi e testemunhei contra ele. Fui até lá conversar com ele duas ou três vezes. Três vezes. A última foi no dia da execução. Eu não tinha que ir, mas fui. Claro que não queria ir.”130

A série de monólogos em itálico que se segue e que interrompem o romance são uma narração à parte, que se presta a equivaler a uma reação da plateia – tal como os cidadãos com o Coro. Colocando a matéria em questão, Ed Tom Bell faz como o Coro: coloca em dúvida a idéia de um “direito absoluto” e de uma justiça que realmente se faça presente:

128

MCCARTHY, p. 160 Idem, p. 210 130 Idem, p. 7 129

54

“Aqueles que realmente deveriam estar no corredor da morte nunca vão parar lá”.131

A tendência do romance do final do século XIX, passando pelo XX – e por que não? – e pelo século XXI é justamente vermos o que há dentro do indivíduo e suas reflexões em relação a um mundo “objetivo”132. McCarthy põe atores em cena apenas para atuar e serem postos em questão pela plateia – e a plateia tem apenas uma personagem para recorrer para entender o que está havendo de tão grave. Deixando implícita essa conexão, o autor nos dá um ponto-de-vista com o qual é difícil discordar e, mesmo que discordemos, somos obrigados a sentir empatia por esse homem que viu o mundo mudar ao seu redor, mas não consegue captar o que o torna essencialmente violento nem tem como lutar contra isso.

131 132

MCCARTHY, p. 55 REUTER, pp. 24-25

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho foi o de oferecer uma abordagem trágica ao romance “Onde os Velhos Não Têm Vez”, de Cormac McCarthy. Nesta obra, o autor norte-americano, conhecido por seus romances de teor quase niilista, porém reflexivos sobre o sentido das coisas, a história do mundo e o papel do homem enquanto ser social, procurou fazer um questionamento sobre o papel constante da violência em nossa sociedade. Para tanto, McCarthy fez uso de elementos constitutivos da tragédia grega para demonstrar como ela é gerada, usada e contida enfim – ou não. Tal reflexão encontra paralelo na trilogia trágica de Ésquilo, Oresteia, em que são questionados a responsabilidade humana na realização de atos violentos em nome de uma divindade, o contínuo ciclo de vingança que atinge a casa dos Átridas, e as instituições religiosas e políticas, cuja força advém da tradição e do temor de transgredir as vontades divinas. O paralelo fica mais forte quando verificamos que McCarthy privilegia o monólogo e o diálogo em vez da narração ou mesmo do uso de um narrador onisciente, remetendo à fórmula clássica do teatro em que o impasse e a resolução são demonstradas de forma implícita, em vez de detalhadas e/ou explicadas. Neste caso, é preciso ressaltar a contribuição de Ésquilo à tragédia com a introdução do segundo ator, o deuteragonista, tornando o diálogo o único recurso possível para entender as motivações e a tensão em cena.

O livro-base para a demonstração de tais características foi o tratado aristotélico sobre a tragédia, a Poética. Através deste livro foi possível verificar com maior clareza e distinguir os signos e características trágicas encontradas no texto e subtexto de “Onde os Velhos Não Têm Vez”. Há de se ressaltar que, curiosamente, a estrutura narrativa do romance se assemelha ao esquema demonstrado por Aristóteles, num sistema de causa-consequência e mesmo com a inserção de capítulos explicativos, estes com a presença de monólogos por parte do personagem equivalente ao Coro trágico, o xerife Ed Tom Bell, a principal voz do romance. Mesmo o esquema actancial demonstrou que as relações verificáveis na tragédia entre personagens eram recriadas no romance de McCarthy, com os papeis apresentando as mesmas características. Para tanto, os estudos de Brémond e Greimas sobre tais relações e o esquema narrativo foram fundamentais para orientar o presente trabalho.

Uma das dificuldades apresentadas, no entanto, foi demonstrar a existência de um daímon no romance, considerando o tom quase niilista do texto. Se considerarmos que o 56

romance moderno procura colocar nas mãos de pessoas comuns as decisões que modificam o mundo que as cerca, tal pensamento poderia passar batido para a maioria dos leitores. É por esse motivo que até achamos coerente o argumento do crítico literário Walter Kirn, que declarou que, neste romance, McCarthy é um “whiz with the joystick, a master-level gamer who changes screens and situations every few pages”133, visto que não estamos habituados a presenciar uma perda de controle recorrente e, aparentemente, sem sentido. Contudo, ao concordarmos em que o ato do protagonista, Llewelyn Moss, é o que gera sentido a toda a perseguição e mesmo ao seu papel e ao de seu perseguidor na trama, podemos ver que há algo a mais em cena. Para Ésquilo, não era necessário colocar uma divindade em cena até que ela fosse realmente precisa para a resolução, bastava apenas deixar claro que a tensão, o impasse, o confronto eram derivadas de sua participação (in)direta em algum momento do texto. Neste caso, uma ambição que vai contra o bom-senso do herói, mas que a partir daí o define e o leva a seu trágico fim. A sensação que temos no final do texto, quando lido de um ponto-de-vista trágico, é de que simplesmente não havia saída para Moss, sua morte no fim precisa necessariamente levar a uma catarse. Essa interpretação é a única que pode conciliar o ato desmedido de Moss com a forma implacável como Anton Chigurh, seu perseguidor, persiste em seu rastro, sempre de forma constante e agindo de forma sobre-humana.

Ao conciliar os elementos trágicos com o romance, pudemos verificar que ele colabora para um maior entendimento do estilo hermético de escrita de Cormac McCarthy. Ao fazer uso da tragédia para contar uma história que tão facilmente podemos ler nos jornais, o autor consegue promover uma reflexão maior sobre a insensatez do papel da violência na história do mundo. Ao mesmo tempo, ele gera um sentido para suas vítimas, não deixando que seu sacrifício seja em vão, pois seus atos não definem apenas elas, como também seus algozes, fazendo estes ganharem também um sentido intrínseco que os levem a manter-se no encalço de sua presa ou que encerra sua participação de forma coerente na trama. É um tema que será visto em “Meridiano de Sangue”, sobre um grupo de mercenários contratados para matar índios em meados do século XIX; em “Outer Dark”, sobre dois irmãos que cometem incesto e que a partir daí são identificados por sua harmatía, um tentando expiar e ao mesmo tempo aceitá-la, e o outro procurando fugir; e no roteiro de “The Gardener’s Son”, sobre um crime real que é tratado por McCarthy como uma reflexão em tom dialético sobre as relações entre classes sociais. 133

Texas Noir – Review – NYTimes.com. Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2012.

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Esperamos que a presente abordagem colabore para maiores estudos sobre a obra do autor, ainda não muito difundido no Brasil talvez por sua visão ácida da história humana. Contudo, aquele que resolver estudar seus textos irá verificar que tal visão não é desprovida de sentido, e que, se acaso nos leva a querer desviar o olhar, nos faz refletir também sobre o caráter humano e o atual estado das coisas. Assim como a tragédia foi útil no passado para questionar as instituições gregas, o romance pode muito bem fazer uso dela para realizar o mesmo no atual momento.

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VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado et al. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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