A presença de Daniel Barbaro no tratado de Filippe Nunes

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Universidade Federal de Juiz de Fora Reitor: Prof. Dr. Marcus Vinicius David Vice-reitora: Profª. Drª. Girlene Alves da Silva Pró-reitoria de Pós-graduação Pró-reitora de Pós-graduação: Profª Drª Mônica ­Ribeiro de Oliveira Instituto de Artes e Design Diretor: Prof. Dr. Ricardo de Cristófaro Vice-diretor: Prof. Dr. Luiz Eduardo Castelões Pereira da Silva Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens Coordenador: Prof. Dr. Luís Alberto Rocha Melo Vice-Coordenadora: Profª Drª Maria Cláudia Bonadio Secretárias: Lara Lopes Velloso Flaviana Polisseni Soares II Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens Comissão Organizadora Ryan Brandão Barbosa Reinh de Assis (coordenação) Fernanda Bonizol Ferrari (coordenação)

Comitê Científico Profª Drª Elisabeth Murilho da Silva Profª Drª Raquel Quinet de Andrade Pifano Prof. Dr. Sérgio Puccini Soares Prof. Dr. Alexandre Fenerich Camila Ribeiro de Almeida Rezende Fernanda Bonizol Ferrari Mariana Sibele Fernandes Raphaela Benetello Marques Robert Anthony do Amaral Oliveira Ryan Brandão Barbosa Reinh de Assis Tammy Senra Fernandes Genú Thales Estefani Pereira Thamis Malena Marciano Caria Identidade Visual Tammy Senra Fernandes Genú Editoração Eletrônica Cleber Soares da Silva Luciana de Oliveira Inhan

Anna Flávia Silva de Souza Álvaro Dyogo Pereira Luciane Ferreira Costa Raphaela Benetello Marques Thamis Malena Marciano Caria

Anais do II Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens. Volume 2, Número 2, Novembro de 2015, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens, Instituto de Artes e Design, Universidade Federal de Juiz de Fora. 854 pg.; ISSN 2359-6929 Publicação anual 1. Artes, Cultura e Linguagens 2. Eventos científicos - periódicos 3. Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens 4. Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens - Instituto de Artes e Design - Universidade Federal de Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil. I. Título. II Anais.

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SeminárioBarbaro de pesquisas em A presença deIIDaniel artes, cultura e linguagens no tratado de Filippe Nunes Julia Dias Möller1 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Resumo

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Filippe Nunes foi um dominicano português, nascido em Villa Real, é autor do primeiro tratado de arte da pintura publicado em Portugal, no ano de 1615. Seu tratado apresenta de forma sintética informações importantes, como symmetria e perspectiva, para aprendizes da pintura. No tratado, Nunes compila importantes nomes de tratadistas da antiguidade clássica, como Vitrúvio, e contemporâneos, dentre os quais se destaca a figura de Daniel Barbaro. Daniel Barbaro foi um humanista italiano, que teve uma importante carreira política e eclesiástica. No campo da tratadística deixou um importante legado, tendo publicado duas traduções comentadas dos dez livros de arquitetura de Vitrúvio, uma em latim e outra em língua vernácula, e um tratado sobre a prática da perspectiva. O presente artigo tem por objetivo levantar questões sobre os motivos que levaram Nunes a citar Daniel Barbaro em seu tratado, bem como, analisar as diferentes seções nas quais o nome tratadista aparece textualmente. Palavras-chave: Daniel Barbaro; Filippe Nunes; Vitrúvio; Tratadística; Portugal. “Moveume a isto ver a falta que ha de quem trate esta materia, & assi quis dar motivo a os que mais sabem, de

instituto de artes e design u 25 a 27 de novembro 2015 Esta é uma passagem do Prólogo aos Pintores do tratado Arte da pintura, symmetria e perspectiva, publicasairem a luz com mais experiências, para que assi não custe tanto a os aprendises aquem ordinariamente os Mestres escondem os segredos da Arte”2

do em Lisboa no ano de 1615. O tratado tem como autor Filippe Nunes, português, nascido em Villa Real, que foi professar na ordem dos dominicanos no ano de 1591 em Lisboa. É desconhecida a data de seu nascimento e morte. Seu tratado Arte da Pintura foi o primeiro tratado de arte publicado em Portugal, VOLe teve 2 / N°uma 2 /segunda 2015 edição no ano de 1767. Na passagem acima, é possível observar que Nunes denuncia a escassa produção de tratados sobre arte em sua região, “Moveume a isto ver a falta que ha de quem trate esta materia”, e convoca aos que dominam mais sobre o assunto, “assi quis dar motivo a os que mais sabem, de sairem a luz com mais experiências”, que sigam seu exemplo e também escrevam “para que assi não custe tanto a os aprendises”, que segundo Nunes, são privados dos segredos da arte por seus Mestres. Em seu prólogo Nunes apresenta ao leitor suas intenções em relação ao tratado, ele descreve que não pretende ensinar aos mestres, “não foy minha tenção saindo com ella a luz ensinar a os Sabios, & peritos na Arte, mas sò a os que a aprendem, & a os curiosos della”3. Apesar de dedicar seu tratado aos jovens aprendizes, Nunes sugere que as seções destinadas à perspectiva e a symmetria podem ser úteis também para os mestres, criando, assim, um tratado sintético, que compila autores clássicos como Vitrúvio e contemporâneos como 1.  Bacharel em Educação Artística. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes Cultura e Linguagens da UFJF. Bolsista FAPEMIG. [email protected]. 2.  “Moveu-me a isto ver a falta que há de quem trate esta matéria, e assim quis dar motivo aos que mais sabem, de saírem à luz com mais experiências, para que assim não custe tanto aos aprendizes a quem ordinariamente os Mestres escondem os segredos da arte” (NUNES, 1615, p.69). 3.  “não foi minha intenção saindo com ela à luz ensinar aos Sábios, e peritos na Arte, mas só aos que a aprendem, e aos curiosos dela” (NUNES, 1615, p. 69).

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Albrecht Dürer e Daniel Barbaro. Não é possível mensurar o domínio que Nunes teve de suas fontes, se o autor teve contato direto com os livros e tratados que faz referência, se obteve acesso a alguma tradução impressa ou manuscrita ou, se o dominicano teve conhecimento das fontes através de leituras que fez de outros autores. Contudo, seguindo algumas pistas, é possível supor que Nunes tenha escolhido suas fontes de forma bastante consciente, não evocando apenas uma questão de autoridade da fonte, mas também circunstancias que estão contidas em uma esfera que envolve questões sobre política e religião, como é o caso de Daniel Barbaro, analisado no presente artigo. Filippe Nunes cita o nome de Daniel Barbaro em três seções4 de Arte da Pintura, são elas: Das partes, em que se divide hum corpo humano, na Pintura, & na Escultura, na qual, Nunes descreve a symmetria feita pelos tratadistas, Albrecht Dürer, Juan de Arfe e Daniel Barbaro e Vitrúvio; Para fazer um paynel do mesmo modo com duas figuras, onde o tratadista explica invenções de perspectiva que mudam a imagem de acordo com o posicionamento do espectador diante de um painel; e Modo fácil para copiar uma cidade ou qualquer coisa, onde faz “uma clara referência à câmara escura com lente” (BERNARDO, 2009, p.384). Analisaremos no presente artigo as citações feitas por Nunes a Daniel Barbaro em cada uma dessas seções. Daniel Barbaro (1514-1570) foi um humanista veneziano. Estudou filosofia, matemática e ciências na Universidade de Pádua, onde atuou na construção do Jardim Botânico da instituição em 1545. Teve uma importante carreira política e eclesiástica. Atuou como embaixador na Inglaterra no período de 1548 até 1550, quando foi eleito patriarca de Aquileia. Participou do concílio de Trento nos anos de 1562 e 15635. Em seus livros, o veneziano é apresentado como Monsenhor. Segundo consta em sua biografia, Barbaro chegou a ser nomeado cardeal em 1561, mas sua condição foi posta em segredo. Sua ordem religiosa é desconhecida. Devido a sua produção bibliográfica e atuação como financiador de artistas, entre os quais se encontramos Paolo Veronese e Andrea Palladio, Daniel Barbaro é um nome importante para a produção artística de sua época. Das obras, destaca-se a tradução comentada, em latim e em italiano, dos dez livros sobre arquitetura de Vitrúvio (De Architectura libri decem, cum commentariis Danielis Barbari, electi Patriarchea Aquileiensis). A versão em língua vernácula foi publicada pela primeira vez em 15566, ilustrada por Palladio com comentários de Barbaro, e em 1567 é publicada em latim. Outra importante publicação é o tratado La pratica della perspettiva, publicado em Veneza, 1569. Em Della perspettiva Barbaro trata das proporções do corpo humano, da perspectiva e outros temas como a descrição de uma câmara escura. Lilian Zirpolo, em seu dicionário, sobre Della perspettiva destaca “que [Barbaro] inclui uma descrição da câmara escura, um dispositivo usado por artistas como ajuda na prestação de cenas tridimensionais”7. Essas informações sobre Daniel Barbaro são importantes para a compreensão dos motivos que levaram o dominicano Filippe Nunes a citá-lo em Arte da Pintura e como os livros de Barbaro puderam ter encontrado VOL 2 / N° 2 / 2015 Nunes, já que pouco se sabe sobre sua biografia. Em Arte da Pintura, o nome de Daniel Barbaro é citado primeiramente na seção intitulada Das partes, em que se divide hum corpo humano, na Pintura, & na Escultura, na introdução dessa seção Nunes explica de onde teria tirado o termo symmetria: “symmetria nome Grego, quer dizer proporsão conveniente, que há nas partes, & membros humanos. Autor della como diz Plinio, lib. 32.cap.8. foy Polycleto.” (NUNES, 1615, p.91). Nunes continua sua introdução de Das partes em que se divide um corpo humano dizendo, “Tratarão desta arte Alberto Dureiro, em quatro livros que compos de Symmetria, João Darfe no livro que fez de Geometria, Daniel Barbaro na oitava parte de sua perspectiva, cap1. Vitruvio, lib.3 cap.1. E o que delles tirey mais necessário, he o se-

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4.  Para Renata Morais, Nunes teria utilizado o tratado de Barbaro para compor a seção Princípios da Perspectiva. Como o dominicano não cita textualmente o nome de Barbaro, como o faz nas demais seções de Arte da Pintura. O presente artigo propõe analisar somente as partes do tratado onde aparece a citação literal do nome Daniel Barbaro. MORAIS, Renata. A compreensão de Filipe Nunes acerca da Pintura e dos seus elementos técnico-científicos no tratado de arte da pintura, symmetria e perspectiva, Lisboa, 1615. 2014. Dissertação (História Social da Cultura) – Programa de Pós Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 5.  “Daniele Barbaro, Coadiutor d’ Aquilea: voto di lui in Concilio sopra la concessione del Calice, l. 18 c. 4 n.4” (PALLAVICINO, 1836, p. 213). 6.  “In 1556 Francesco Marcolini published in Venice a luxurious folio edition of the Italian translation of Vitruvius’ De architectura, with a commentary by Daniele Barbaro and illustrations by Andrea Palladio” Fonte: Daniele Barbaro (1514-70): in and beyond the text. St Andrews, Universidade de St Andrews, 1-21 Setembro 2014. Disponível em: < https://arts.st-andrews.ac.uk/danielebarbaro/>. Acesso em setembro de 2015. p.15. (Tradução livre da autora) 7.  “which includes a description of the camera obscura, a device used by artists as an aid in rendering three-dimensional scenes” (ZIRPOLO, 2007, p.34).

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guinte” (Ibidem)8, informando assim suas fontes. A seção continua repartida em mais cinco títulos, correspondentes aos tratadistas citados, Symmetria de João Darfe, Symmetria dos meninos (que corresponde à descrição da proporção dos meninos feita por Juan de Arfe), Symmetria de Daniel Barbaro, Symmetria de Vitrúvio e por último Symmetria de Alberto Dureiro. Na parte correspondente a Symmetria de Daniel Barbaro, Filippe Nunes inicia “Daniel Barbaro no lugar asima alegado, usa outro modo de liniamentos do corpo humano” (NUNES, 1615, p.95). O “lugar asima alegado” é, provavelmente, a fonte já referida, na introdução da seção, como “oitava parte de sua perspectiva”. Como “outro modo de liniamentos”, Nunes apresenta um rosto dividido em quatro dedos polegares. O dominicano explica o que corresponderia à medida de um dedo polegar, “chama dedo polegar, da ponta da unha do polegar atè o nó do nascimento do mesmo dedo” (ibidem). Definidas as medidas ele divide o corpo em oito cabeças e dois dedos polegares, também apresenta a largura da cabeça dividida em três dedos polegares, e faz referência à gravura que ilustra o tratado, “a largura da cabeça tem tres polegares na forma que està estampada” (NUNES, 1615, p.95).

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instituto de artes e design u 25 a 27 de novembro 2015 VOL 2 / N° 2 / 2015 Figura1: Ilustração da Symmetria de Daniel Barbaro, em Arte da Pintura symmetria e perspectiva de Filippe Nunes, 1615. P. 96. Fonte: NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura).

A figura que ilustra o tratado de Nunes na parte correspondente a Symmetria de Daniel Barbaro (Figura01), assemelha-se com a ilustração que aparece nos dois tratados do veneziano, a tradução comentada de De Architectura e Della perspettiva (Figuras 02 e 03). Considerando que De Architectura foi publicado antes de Della perspettiva, podemos supor que a ilustração tenha sido reaproveitada por Daniel Barbaro em ambos os tratados, não havendo, entretanto, apenas comparando a ilustração, como saber quais dos livros foi de modelo para Filippe Nunes.

8. Observa-se que Filippe Nunes traduz os nomes dos tratadistas para a grafia portuguesa, Alberto Dureiro corresponde a Albrecht Dürer, João de Arfe a Juan de Arfe, Daniel Barbaro a Daniele Barbaro.

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Figura 2: Ilustração da Symmetria de uma figura humana em De Architectura libri decem, cum commentariis Danielis Barbari, electi Patriarchea Aquileiensis (Venezza, 1567). Fonte: VITRÚVIO, M. De Architectura libri decem, cum commentariis Danielis Barbari, electi Patriarchea Aquileiensis. Veneza: Franciscum Franciscium Senensem, & Ioan. Crugher Germanum, 1567. Disponível em: . Acesso em novembro de 2015.

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Figura 3: Ilustração da Symmetria de uma figura humana em La pratica dela perspettiva di monsignor Daniel Barbaro eletto patriarca d’Aquileia (Veneza 1563) Fonte: BARBARO, Daniel. La pratica dela perspettiva di monsignor Daniel Barbaro eletto patriarca d’Aquileia. Veneza: Appresso Camillo, & Rutilo Borgominieri fratelli, al segno di S.Giorgio, 1563. Disponível em: . Acesso em novembro de 2015.

Observando as ilustrações temos um homem, com os dois braços abertos, e as pernas espaçadas, o corpo é detalhado, com linhas que correspondem aos músculos. Notam-se diferenças entre as gravuras, enquanto nos tratados de Barbaro (Figura 02 e 03), as linhas são suaves e finas, ricas em detalhes, no tratado de Nunes (Figura 01), as linhas são mais retas. O cabelo (Figura 01), por exemplo, possui uma forma triangular, a cabeça de perfil, flutuante ao lado do corpo, temos a boca representada por um traço, a orelha é uma forma oval com um risco. Os pés no tratado de Nunes (Figura 01) e se apresentam inclinados, enquanto no tratado de Barbaro estão em escorço (Figuras 02 e 03). Temos a indicação da medida do polegar na gravura que ilustra os tratados de Daniel Barbaro, localizada acima do braço direito da figura (Figuras 02 e 03), detalhe que se ausenta em Arte da Pintura (Figura 01). A ilustração de Nunes (Figura 01) está espelhada em relação às dos tratados de Barbaro (Figuras 02 e VOL 2 / N° 2 / 2015 03). A representação da largura da cabeça, por exemplo, é apresentada à esquerda da figura em Della perspettiva (Figura 03), enquanto em Arte da Pintura (Figura 01), ela está à direita. Sobre as diferenças de detalhes entre as figuras, podemos supor que exista também uma diferença entre as técnicas de execução da gravura. Ainda na seção de Das partes em que se divide hum corpo humano, do tratado Arte da Pintura, temos a Symmetria de Vitrúvio, nesta parte Nunes cita dois nomes que explicam sobre Vitrúvio, Mario Equicola e Daniel Barbaro.

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Vitruvio, lib.3.cap.1. Diz que de tal modo he cóposto o corpo humano, que da ponta da barba até onde se neçé os cabelos he a decima parte do corpo. [...] Mario Equicola de alueto lib. 2, declarando em serta ocasião a Vitruvio ajunta, que se o corpo he robusto que terá sete rostos, & se for delicado terá oito & nove. [...] Isto dizem estes dous Autores. Daniel Barbaro explicando mais a Vitruvio, diz assi na sua octava parte. Seja huma linha tão comprida como quereis fazer altura do corpo, & pondelhe no alto A, & no baixo B. Logo parti esta linha em oito partes iguaes9

9. “Vitrúvio, lib.3.cap.1.Diz que tal modo é composto o corpo humano, que da ponta da barba até onde se nasce os cabelos é a décima parte do corpo. [...]Mario Equicola de alueto lib. 2, declarando em certa ocasião a Vitrúvio ajunta, que se o corpo é robusto que terá sete rostos, e se for delicado terá oito e nove. [...] Isto dizem estes dois autores. Daniel Barbaro explicando mais a Vitrúvio, diz na sua oitava parte. Seja uma linha tão comprida como quereis fazer a altura do corpo, e pondelhe no alto A, e no baixo B. Logo parti esta linha em oito partes iguais [...] Até aqui é de Daniel Barbaro.” (NUNES, 1615, p.p. 96-98).

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Ao analisar este capítulo, podemos supor que Nunes tenha usado como referência uma das obras de Daniel Barbaro, ou sua tradução de De Architectura ou Della perspettiva. No texto, Nunes cita: “Daniel Barbaro explicando mais a Vitruvio, diz assi na sua octava parte”. A octava parte referida por Nunes corresponde à Parte ottava do tratado Della perspettiva, onde podemos observar um desenho de uma linha vertical (Figura 04), numerada de um a dez, no alto, temos o ponto “a” e no final da linha o ponto “b”, a linha é também dividida em repartições referenciadas por letras (o, c, k, d, e, f, g, h, i). De modo equivalente, temos a imagem que ilustra o tratado de Nunes (Figura 05), apresentando as mesmas repartições. Essa mesma linha não aparece na tradução comentada de Vitrúvio por Daniel Barbaro. Sem uma análise textual das obras de Barbaro é difícil compreender até que ponto Nunes poderá ter usado a tradução de Vitrúvio, entretanto não será possível esta abordagem no presente artigo. Contudo, ao analisar as imagens é possível afirmar que Nunes teve acesso ao próprio tratado La pratica della perspettiva, ou ao seu conteúdo, através de algum outro livro ou manuscrito, que compilasse as mesmas imagens.

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Figura 4: Ilustração da linha representando symmetria de Vitrúvio em La pratica dela perspettiva di monsignor Daniel Barbaro eletto patriarca d’Aquileia (Veneza 1563) Fonte: BARBARO, Daniel. La pratica dela perspettiva di monsignor Daniel Barbaro eletto patriarca d’Aquileia. Veneza: Appresso Camillo, & Rutilo Borgominieri fratelli, al segno di S.Giorgio, 1563. Disponível em: . Acesso em novembro de 2015.

instituto de artes e design u 25nosa tratados 27 dededicatórias novembro Sobre os livros de Daniel Barbaro, é importante notar que o veneziano traz a nomes 2015

Figura 5: Ilustração da Symmetria de Vitrúvio, em Arte da Pintura symmetria e perspectiva de Filippe Nunes, 1615. p. 98. Fonte: NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura).

que lhe foram importantes, esses nomes acabam por ligar Barbaro a Espanha e cardeais da igreja católica. A versão em latim de De Architectura, por exemplo, “é dedicado a Antoine Perrenot, o Cardeal Granvelle, com quem Barbaro partilhava os mesmos interesses em arte e arquitetura”10. A respeito da biografia de AntoiVOL 2 / N° 2 / 2015 ne Perrenot (1517-1586) sabe-se que, assim como Barbaro, estudou na Universidade de Pádua, e após o falecimento de seu pai, trabalhou para os monarcas Carlos V e Filippe II, chegando a participar das negociações do casamento entre Filippe II e Maria I da Inglaterra. Segundo consta no catálogo Daniele Barbaro: in and beyond the text, produzido pela Universidade de St Andrews, em 2014, Perrenot foi embaixador da Espanha em Roma, já como Cardeal, “Granvelle foi um embaixador de Filippe II da Espanha em Roma e, provavelmente, eles [Perrenot e Barbaro] se encontraram Durante a estadia de Barbaro, em Roma, de janeiro a maio 1566”11. Observa-se que o percurso de Barbaro e Granvelle se assemelha em alguns aspéctos, ambos estudaram na universidade de Pádua, e estabeleceram relações de interesse político com a Inglaterra. Barbaro, como já mencionado, foi embaixador de Roma na Inglaterra. Já Granvelle atuou em nome de interesses dos reis espa-

10.  “The Latin edition is not a mere translation of the Italian version, and indeed presents some variations. It does not include the presentation letter by the publisher and the preface by the author, and it is dedicated to Antoine Perrenot, cardinal de Granvelle, with whom Barbaro shared the same interests in art and architecture” Fonte: Daniele Barbaro (1514-70): in and beyond the text. St Andrews, Universidade de St Andrews, 1-21 Setembro 2014. Disponível em: < https://arts.st-andrews.ac.uk/danielebarbaro/>. Acesso em setembro de 2015. (Tradução livre da autora) 11.  “Granvelle was an ambassador of Philip II of Spain in Rome, and probably they met during the stay of Barbaro in Rome from January to May 1566” Fonte: Daniele Barbaro (1514-70): in and beyond the text. St Andrews, Universidade de St Andrews, 1-21 Setembro 2014. Disponível em: < https://arts.st-andrews.ac.uk/danielebarbaro/>. Acesso em setembro de 2015. (Tradução livre da autora)

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nhóis Carlos V e Filippe II nas negociações do casamento entre Filippe II e Maria I da Inglaterra. Este fato é, por sua vez, interesse também da igreja católica, visto que diante da ascensão protestante na Inglaterra, Maria I era uma figura importante, como uma rainha católica era adepta aos interesses da igreja. Daniel Barbaro teve certa importância no que diz respeito as relações e interesses da igreja, seus livros, provavelmente, circularam em meio aos clérigos, e talvez entre artistas espanhóis e consequentemente entre os portugueses por meio da figura de Antoine Perrenot de Granvelle, a quem De Architectura fora dedicada. Daniel Barbaro produz outras obras além dos tratados já mencionados, uma se destaca por ter sido adquirida por um cardeal dominicano. Em 1567, Barbaro produziu uma catena, a Aurea in quinquaginta Davidicos psalmos, doctorum Graecorum catena interprete Daniele Barbaro, segundo consta, catena é “uma forma de comentário bíblico usado desde a Idade Média”12. Uma das publicações deste livro pertenceu ao cardeal Michele Bonelli (1541-1598), sobrinho neto do papa Pio V (1504-1572), ambos pertenceram à ordem dos dominicanos. Em sua biblioteca Bonelli tinha muitas obras de dominicanos, algumas delas pertencem hoje a Universidade de St Andrews. É desconhecida a ordem religiosa de Daniel Barbaro, entretanto, o mesmo teve muitas de suas obras publicadas durante o período do papado de Pio V13, e uma delas pertencentes ao seu sobrinho neto, ligando mais uma vez Barbaro a importantes nomes da igreja, e neste caso, à ordem dominicana, que era também a ordem de Filippe Nunes. Comprova-se desta forma a importância de Barbaro entre os religiosos e intelectuais da época, tendo inclusive, uma de suas obras na coleção pessoal do sobrinho neto do papa Pio V. Podemos destacar também a importância de suas próprias obras, segundo Rafael Moreira:

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o aparecimento da excelente tradução anotada por Monsenhor Daniele Barbaro, I deci libri dell’Architectura di M. Vitruvio tradutti e commentati da Mons. Barbaro, patriarca eletto d’Aquilea (Venezza, 1556) estabelece o cânone, que se mantém por mais de um século insuperado (MOREIRA, 2011, p.59)

A respeito do tratado Della perspettiva, David Hockney comenta: “é o mais antigo livro de técnicas que encontrei a mencionar projeções” (HOCKNEY, 2001, p.209). Filippe Nunes também traz a referência de Barbaro para descrição de uma câmara escura, que são as projeções mencionadas no comentário de Hockney. Na seção Modo facil para copiar huma cidade, ou qualquer cousa, Nunes escreve:

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“Daniel Barbaro na sua nona parte cap.5. ensina outro modo de copiar cidades, & tudo o mais que quiserem & dis assi. Fazey hum buraco detrás de huma janela da banda de dentro, na proporção, & distancia donde vos fica fronteira a cidade, ou o que quereis ver, & o buraco seja tamanho como he o vidro de hum óculo. [...] encaixay

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este vidro no buraco deuminado, serray depois toda a janella, & as portas da estancia donde quereis fazer isto, de modo que não tenhas mais luz, que aquella que vem do vidro”14

Nunes faz nessa seção uma descrição de uma câmara escura, tal qual estaria escrita no tratado de Barbaro. Segundo Luís Miguel Bernardo, “esta é, muito provavelmente, a primeira descrição da câmara escura com lente que surge na obra impressa de um autor português.” (BERNARDO, 2009, p.385). Pode-se afirmar que Nunes cumpre o seu propósito, mencionado em Prólogo aos pintores, de revelar os segredos da arte que são ordinariamente escondidos pelos mestres a seus aprendizes. A última seção a ser analisada no presente artigo intitula-se Para fazer hum paynel do mesmo modo com 12.  “a form of Biblical commentary in use since the Early Middle Ages” Fonte: Daniele Barbaro (1514-70): in and beyond the text. St Andrews, Universidade de St Andrews, 1-21 Setembro 2014. Disponível em: < https://arts.st-andrews.ac.uk/danielebarbaro/>. Acesso em setembro de 2015. (Tradução livre da autora) 13.  Nomeado papa em 1566. 14.  “Daniel Barbaro na sua nona parte cap. 5. Ensina outro modo de copiar cidades, e tudo o mais que quiserem e diz assim. Fazei um buraco de traz de uma janela da banda de dentro, na proporção e distância donde vos fica fronteira a cidade, ou que quereis ver, e o buraco seja tamanho como é o vidro de um óculo [...] encaixai este vidro no buraco determinado, cerrai depois toda a janela, e as portas da estância donde quereis fazer isto, de modo que não tenhas mais luz, que aquela que vem do vidro” (NUNES, 1615, p.p. 133-134).

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duas figuras. Nesta seção, Nunes apresenta ao leitor três invenções de como criar um painel onde a imagem pintada muda dependendo do lado por onde se vê, à direita é uma figura, e à esquerda é outra. Nunes cita especificamente o tratadista veneziano Daniel Barbaro15 na terceira invenção da seção. Filippe Nunes descreve que “Daniel Barbaro ensina a fazer huma figura, de modo que vista a mesma figura de huma ilharga pareça outra cousa differente do que parece defronte.” (NUNES, 1615, p.131). A palavra ilharga, segundo consta no dicionário de Rafael Bluteau16, possui como significado “lado do corpo humano, dos quadris até os hombros [...] De ilharga, obliquamente”17. Neste sentido, podemos remeter a perspectiva anamórfica, um exemplo dessa técnica é o retrato Os embaixadores, do pintor alemão Hans Holbein (1497 aprox. – 1543) (Figura06). Ao observar o retrato de frente, vê-se dois homens, e uma espécie de estante, onde encontramos diversos objetos como instrumentos musicais e livros. A parte de baixo do retrato possui uma mancha cinza em diagonal, “está é uma imagem anamórfica, uma imagem distorcida reconhecida somente quando vista de um dispositivo especial, como um espelho cilíndrico, ou olhando a pintura por um ângulo particular”18. Assim quando se observa o retrato em outro “ângulo”, verifica-se que na verdade a mancha cinza trata-se de um crânio. Ao escolher Daniel Barbaro como uma de suas referências para compor Arte da Pintura, Filippe Nunes compila em seu tratado técnicas e informações muito relevantes para a arte de sua época. Como já mencionado anteriormente, a tradução que Barbaro faz de Vitrúvio, por exemplo, é uma das mais importantes. A câmara escura, e a perspectiva anamórfica são técnicas muito específicas no meio da pintura. No entanto, não podemos descartar a possibilidade de que Nunes também tenha feito esta escolha por Barbaro ter sido uma figura importante no meio político-religioso da época.

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Figura 6: Hans Holbein the Younger (1497/8 - 1543). Jean de Dinteville and Georges de Selve (‘The Ambassadors’). Óleo sobre madeira. 207 x 209,5 cm. Bought, 1890. National Gallery, Londres. Fonte:

15. A seção Para fazer hum paynel do mesmo modo com duas figuras, encontra-se antes de Modo fácil para copiar uma cidade, ou qualquer coisa. 16. “ILHARGA, f.f. lado do corpo humano, dos quadris até os hombros. f. Ilhargas, conselheiros, validos, pessoas que andão junto de outrem. Rir até rebentar pelas ilhargas, hyperbole; rir muito. Perseguir de dor de ilharga; com muita ilharga fr. V., com soberba. De ilharga, obliquamente, d’esquelha.” (SILVA, 1789, p.693). Versão reformado, e acrescentado por Antonio de Moraes Silva em 1789. 17. Vide 15 18. “This form is an anamorphic image, a distorted image recognizable only when viewed with a special device, such as a cylindrical mirror, or by looking at the painting at an acute angle” (KLEINER, 2014, p. 544). (Tradução livre da autora)

II Seminário de Pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens | Anais | Volume 2 | número 2 | 25 a 27 de novembro de 2015 102

/// GT HISTÓRIA DA ARTE

II Seminário de pesquisas em artes, cultura e linguagens BERNARDO, Luís M. História da luz e das cores. 2ª ed. Porto: Universidade do Porto, 2009. Referências

BARBARO, Daniel. La pratica dela perspettiva di monsignor Daniel Barbaro eletto patriarca d’Aquileia. Veneza: Appresso Camillo, & Rutilo Borgominieri fratelli, al segno di S.Giorgio, 1563. Disponível em: . Acesso em novembro de 2015. Daniele Barbaro (1514-70): in and beyond the text. St Andrews, Universidade de St Andrews, 1-21 Setembro 2014. Disponível em: < https://arts.st-andrews.ac.uk/danielebarbaro/>. Acesso em setembro de 2015.

Caderno de Resumos e Programa

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