A PROBLEMÁTICA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL E A OMISSÃO LEGISLATIVA

July 14, 2017 | Autor: Virgilio Carvalho | Categoria: Direito Civil
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A PROBLEMÁTICA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL E A OMISSÃO LEGISLATIVA-INCONSTITUCIONAL: O DANO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS NO DIREITO MATERIAL MOÇAMBICANO E PORTUGUÊS

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O Direito é um poder passivo ou pacificado pelo Estado e é sinônimo de poder, pois sem esta participação e legitimação democrática, só resta a violência, a descrença e a barbárie.

Hannah Arendt

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Índice

Introdução…………………………………………..……...……………………………3 CAPÍTULO I – Considerações Preliminares.………………….……………………..5 1.Responsabilidade Civil…….……………….….………………………………………5 2.Dano……………………………………….…………………………………………..6 3.Omissão Legislativa Inconstitucional.…………..……………………………………..7 CAPÍTULO II – O Dano e as suas Consequências no Sistema JurídicoConstitucional Português e Moçambicano……………………………………...…….9 1.O Dano e a Responsabilização Civil por omissão legislativa…………………….…...9 2.A Problemática do Dano na Jurisprudência Moçambicana…………………………..13 2.1.O “Caso Paiol”……………………………………………………………………...13 Conclusão………………………………………………………………………...…….21 Bibliografia……………………………………………………………………………..22

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Introdução1 A responsabilidade civil do Estado por actos danosos consequentes da sua acção tem sido um problema grave em muitos Estado, sendo esta uma questão que perpassa o tempo. Os Estados, desde a antiguidade, sempre se depararam com este tipo de situações. Com efeito, a moldagem dos Estados modernos para sistemas menos viciados, como os sistemas democráticos veio assegurar e consagrar direitos indispensáveis à pessoa humana, os chamados direitos fundamentais dos cidadãos, intitulando-se, assim, o Estado de Direito que se responsabiliza pelos danos causados aos cidadãos por culpa, risco ou até mesmo por negligência. Passa-se, assim, de uma fase em que o Estado era irresponsável para uma nova fase, a da responsabilidade civil eximindo-se, a anterior figura em que o Estado agia com a máxima força, por meio da Constituição à acção do Estado forte, igual à do Leviatã de Thomas Hobbes. Proclama-se, uma nova era, a era dos direitos fundamentais, e um novo princípio, o princípio republicano. Este trabalho visa fundamentalmente analisar, por intermédio da Constituição e da legislação o impacto da responsabilidade civil do Estado por omissão legislativainconstitucional e desrespeito pelos direitos fundamentais. À este último assunto consagraremos, no último ponto, do capítulo II, um caso que acontecera em Moçambique, que reflecte a responsabilidade civil do Estado mormente de actos causados a terceiros. Será responsabilidade por acto lícito ou ilícito, ou por culpa senão mesmo por negligência? Essa análise consumou-se graças a visão de alguns ordenamentos jurídicos que, em matéria de responsabilidade civil, encontram-se num estágio mais avançado. É o caso do ordenamento jurídico português, francês italiano, brasileiro, etc.

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Virgílio Saúl Serra de Carvalho, Doutorando em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa-PT, Licenciado em Filosofia e em Direito, Mestre em Ciências Jurídicas , Professor Assistente da Universidade São Tomás de Moçambique (USTM) nas disciplinas de Filosofia do Direito e Direitos Humanos.

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CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 1.Responsabilidade Civil É impossível falar de responsabilidade civil sem fazer referência ao ente público, o Estado. O Estado, como pessoa jurídica de direito público, é figura impar no ordenamento jurídico. Por vivermos em um Estado democrático de direito e em face do elenco de direitos que foram garantidos aos cidadãos com o advento da Constituição de 19762 e o de 19903, o Estado foi imbuído de uma série de obrigações que não encontra comparação em nenhum outro ente jurídico. Para que tenha condições de cumprir tais obrigações, o Estado foi dotado de uma vasta série de “poderes-deveres”, como podemos observar em alguns doutrinários do constitucionalismo. Justamente por haver tantas distinções, a responsabilidade civil estatal, de igual forma, difere do modelo de responsabilidade civil cabível a qualquer outro ente jurídico. Desta forma, a análise da responsabilidade civil do Estado e sua extensão é um objecto de estudo tão instigante, absolutamente necessário e ainda muito longe de pacificação. Os serviços prestados pelo Estado, que visam à materialização dos direitos positivados na Constituição, têm como destinatário, o cidadão. Exactamente, nesta prestação de serviços é que se pode notar a incidência da responsabilidade civil do Estado, uma vez que toda actividade, seja ela estatal ou privada, trás consigo uma carga de risco inerente. Assim, a responsabilidade civil do Estado se estende cada vez mais, nos mais diversos campos de actuação em que sua presença se faz necessária. A nível do ordenamento jurídico moçambicano o Estado é tutelar de responsabilidades civis de várias ordens relativamente aos direitos de personalidade4 2

A Constituição Portuguesa de 1976 significou um momento ímpar e marcante onde o legislador constituinte proclama os direitos, liberdades, e garantias pessoais (vide art. 24.º e ss. da Constituição da República de Portugal). 3 O Estado Moçambicano, pela primeira vez intitula-se como Estado democrático apregoando os direitos básicos e garantias fundamentais (para o melhor aprofundamento observe-se art. 40.º e ss. da Constituição da República de Moçambique). 4 “Os direitos da personalidade são, em princípio, “direitos subjectivos privados”, porque, respeitando as pessoas, como simples seres humanos, se propõem a assegurar-lhes a satisfação do próprio ser, físico e espiritual; são “direitos não patrimoniais, extrapatrimoniais, tipicamente pessoais, porque não visam uma utilidade de ordem económica e financeira; são “direitos originários ou inatos”, porque se adquirem, naturalmente, sem o concurso de formalidades externas; são “direitos absolutos ou de exclusão”, visto que são oponíveis (…) intransmissíveis (…) irrenunciáveis”, porque não podem ser desprezados ou destruídos (…); e são imprescritíveis, porque podem ser exercidos a qualquer tempo.” (Cfr. CAMPOS, Diogo Leite et alii (2009) Pessoa Humana e Direito, pp. 7-8).

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quer seja político quer seja económico como jurídico. O Código Civil Moçambicano no art. 65º ss., faz alusão aos direitos de personalidade os quais merecem reconhecimento pelo ordenamento jurídico moçambicano. É dentro deste quadro que se deve procurar entender a responsabilidade Civil dentro de um quadro jurídico-constitucional assegurado pelo Estado de Direito, aliás, como bem expressa GUILHERME MOREIRA: “a responsabilidade civil resulta da própria natureza do direito subjectivo, que sendo um interesse tutelado pela lei relativamente a todos os poderes que esta reconheça, é garantido contra qualquer ofensa, tendo assim o tutelar do direito, quando este seja violado e haja dano consequente, a faculdade de proceder contra o autor do dano que injustamente lhe foi causado para que o restitua ao estado anterior à lesão...5” Podemos afirmar que “responsabilidade civil consiste (…) na necessidade imposta por lei a quem causa prejuízos a outrem de colocar o ofendido na situação em que estaria, sem a lesão, seja mediante uma reconstituição natural, seja mediante uma indemnização em dinheiro.”6 Por conseguinte, “…a responsabilidade civil configurase como fonte de uma obrigação, a obrigação de indemnizar, e é assim colocada no Código Civil (arts. 483.º e 562.º), pois o que se passa é que o devedor, isto é, o agente que incorreu em responsabilidade, deve reparar os danos causados, ainda que pagando uma indemnização ao credor ou lesado.”7 2.Dano Essa figura jurídica é ressaltada no âmbito do Direito civil, sendo responsabilidade de todos, sem excepção, não causar danos a ninguém, quer seja intencionalmente ou não, como observa o civilista GABA, citado por RUI GANGER: “todos nós temos o dever de não causar dano a pessoa alguma, e não só intencionalmente, mas ainda involuntariamente, isto é por culpa ou negligência…”8 Note-se que quando nos referimos a dano não nos atemos apenas no âmbito da responsabilidade civil porque ele pode também ocorrer no âmbito criminal “…em que 5

MOREIRA, Guilherme (1977) Estudo Sobre a Responsabilidade Civil, in Antologia do BFDUC, p. 116. FONSECA, Guilherme et MIGUEL, Bettencourt da Camara (2013) A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos – A Responsabilidade do Legislador, do “Juiz” e da Administração Pública, A Acção Contra o Estado, p. 17. 7 Ibidem. 8 Cfr. RANGEL, Manuel de Freitas (2006) A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil – Um Olhar sobre a Jurisprudência, p. 15. 6

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aqui a lesão ou dano tem por fim reparar ou acautelar directa e imediatamente a sociedade como lesada, nos seus sentimentos de segurança e confiança pública (…). Pode haver responsabilidade civil sem responsabilidade criminal; responsabilidade criminal sem responsabilidade civil; e responsabilidade civil conexa com responsabilidade criminal.”9 Portanto, pelo sim ou pelo não é sempre a sociedade que sofre, em última instância, a lesão ou o dano. Mesmo sendo cega, a Lei já prevê sansões, condicionando, à prior, a obrigação de indemnizar à determinada prática de um acto não lícito. Assim, por achar justo obriga ao lesador que, dum modo voluntário, causar dano a outrem. Com efeito, para que exija responsabilidade a alguém por danos causados a outrem é necessários que este facto preencha todos os requisitos atinentes à responsabilidade civil, existindo para o efeito, como afirma MARIO COSTA, o facto, a ilegalidade, a impugnação do facto lesante, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano10. Não obstante, assegura ANTUNES VARELA que “não basta que o facto ilícito praticado pelo agente seja considerado em abstracto, causa adequada do dano, para que o mesmo agente seja obrigado a indemniza-Lo: o facto além da causa adequada tem de ser causa concreta do dano…”11 Sem descurar a teoria da responsabilidade civil apontados por ANUNTES VARELA, entendemos nós que a problemática do dano deve, sem embargo, merecer grande destaque sobre as demais figuras de responsabilidade civil, posto que esta figura é simbiótico a qualquer sistema de responsabilidade civil, facto que, por exemplo não acontece com as demais figuras. Com efeito, a responsabilidade decorrente de factos ilícitos implica, necessariamente um dano12

3.Omissão Legislativa Inconstitucional A temática atinente a omissão legislativa e inconstitucional vem sendo, nos últimos anos, alvo de muita discussão no âmbito doutrinal, principalmente, ante a ineficácia 9

Idem, p. 14. Cfr. COSTA, Mário Júlio de Almeida (1999) Direito das Obrigações, p. 500. 11 Vide VARELA, Antunes in RLJ, n.º 104, p. 271. Refira-se que essa teoria, a teoria da causalidade adequada, acaba sendo partilhada por muitos doutrinários. 12 A este despeito, veja-se o n.º 1, art. 483.º do CC Português e Moçambicano que, infelizmente, não engloba também a responsabilidade pelo risco que, apesar de dispensar a culpa, mantêm o dano. Esses traços serão detalhados, neste trabalho, mais abaixo. Não obstante, o legislador português, quanto a responsabilidade pelo risco, em termos de legislação, já avançou ao criar uma Lei específica. 10

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dos seus instrumentos de controlo no sentido de implementar a aplicabilidade da norma legal e constitucional. Com efeito, a omissão legislativa gera profunda perplexidade no tecido social, sendo esta quotidianamente resolvida por via judicial. É patente a importância desta problemática na seara jurídica, tanto no aspecto da materialização legislativa e concretização da Constituição, considerando que a situação de inércia gera a erosão da própria consciência constitucional, quanto no aspecto da realização dos direitos individuais eventualmente violados diante da inércia de quem faz as leis. É, pois, neste último aspecto onde reside a discussão acerca da responsabilidade do Estado pelos danos causados aos particulares em razão da conduta omissiva inconstitucional. Este relatório procura demonstrar a sistemática jurídica da omissão inconstitucional, demonstrando sua importância, especificidades e repercussões no âmbito jurídico. Por conseguinte, considerando os problemas reflectidos pela síndrome da inefectividade das normas do direito constitucional, foi desenvolvido uma análise sistematizada quanto a responsabilização do Estado perante a omissão legislativa e inconstitucional, colocando em relevo as posições atuais da doutrina e da jurisprudência sobre cada tópico analisado. Acerca da problematização da pesquisa, o presente estudo pretende responder a seguinte questão: Existe responsabilidade civil do Estado perante a sua omissão legislativa inconstitucional? Sendo assim, este estudo tem por objectivo geral: verificar se há responsabilidade civil do Estado perante a sua omissão legislativa inconstitucional. E como objectivos específicos: Descrever as peculiaridades no tocante a omissão inconstitucional, bem como sobre a responsabilidade do Estado perante esta omissão. No entanto, “…o dano pode definir-se como a supressão de uma situação favorável tutelada ou reconhecida pelo Direito.”13

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Vide FONSECA, Guilherme et MIGUEL, Bettencourt da Camara (2013) Op. Cit., p. 21.

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CAPÍTULO II – O DANO E A SUAS CONSEQUÊNCIAS NO SISTEMA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS E MOÇAMBICANO 1.O Dano e a Responsabilização Civil por omissão legislativa O Estado tem desempenhado um papel importante na tutela dos direitos dos seus concidadãos. Portanto, situações atinentes aos danos causados à particulares estão no cerne da responsabilidade civil14. Desde muito tempo e, dum modo significativo a questão da responsabilidade civil do Estado é debatida tendo em conta alguns períodos em que o Estado não tinha quaisquer responsabilidades sobre os particulares no que tange aos danos causados a terceiros, pois, a evolução “…fez-se de forma marcante e rápida com a passagem de uma antiga fase de irresponsabilidade quase íntegra para uma progressiva responsabilidade quase total.”15 A responsabilidade civil, como antes afirmara, ganha o seu cunho em Estados não despóticos mas sim democráticos, pois, “num Estado Democrático de Direito, a lei tem a preocupação de regular não só os interesses individuais, como os colectivos, impondo protecção às vítimas, que sofrem na sua esfera jurídica patrimonial e pessoal (moral e ética) os actos cometidos por outrem que lesem os seus direitos, banindo o favoritismo de que gozava o réu na antiguidade.”16 A máquina administrativa estadual, a Administração Pública tem, nas suas actividades, uma maior responsabilidade na salvaguarda dos direitos básicos dos cidadãos, pois, “é neste momento que assume particular importância o instituto da responsabilidade civil, especialmente vocacionado, sobretudo quando encarado da perspectiva dos administradores face a actividades lesivas praticadas no âmbito da Administração Pública, para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos…”17.

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Notoriamente a responsabilidade civil vem plasmado, tanto no Código Civil Português e Moçambicano, no art. 483.º, dispondo o número 1.º o seguinte: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” E o número 2.º do mesmo artigo suaviza, pois, “só há obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.” (No Direito Moçambicano não temos uma Lei específica a assistir esse direito, como abaixo veremos). 15 RANGEL, Rui Manuel de Freitas (2006) A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil, Um Olhar sobre a Jurisprudência, p. 6. 16 Ibidem. 17 MONIZ, Ana Raquel Gonçalves (2003) Responsabilidade Civil Extracontratual Por Danos Resultantes da Prestação de Cuidados de Saúde Em Estabelecimentos Públicos: O Acesso à Justiça Administrativa, p. 9.

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O Sistema Jurídico Português prevê a responsabilidade civil do Estado para com os particulares, resultante de danos causados pelos seus agentes, no exercício das suas funções, ou seja, que resulte violações dos direitos, liberdades e garantias ou até mesmo prejuízos18, in verbis: “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violações dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”19

É de notar que a responsabilidade civil do Estado estende-se a todos os órgãos estaduais realçando a obrigatoriedade dela ser observada também pelos funcionários ou agentes que a pratiquem por actos evidentes ou omissos na sequência do seu exercício. Saliente-se que que esses actos ou omissões podem resultar em violações dos princípios básicos e fundamentais que atentam os direitos dos particulares. Assim, o legislador constituinte português reserva um dispositivo legal específico para tutelar os danos que o Estado, por meio dos seus órgãos, instituições e agentes pode causar aos particulares20. Na escalada do ápice constitucional, a Assembleia da República portuguesa aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas por intermédio da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, significando, assim, um grande marco “…seja em relação à responsabilidade civil da Administração, seja no que se refere à obrigação de indemnizar os danos resultantes do exercício da função jurisdicional, seja, por fim, em matéria de responsabilidade pelo chamado ilícito legislativo, incluindo a referência às dúvidas que suscita a regulamentação legal da responsabilidade civil por omissão de medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais.”21 Com efeito, a existência deste diploma, a Lei 67/2007, que se ocupara, dum modo substantivo, da responsabilidade civil pública ou

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“Destaque especial, neste contexto, é dado ao enquadramento constitucional da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas e, em especial, ao artigo 22.º da Constituição, assumindo no texto como o epicentro normativo da responsabilidade civil dos poderes públicos.” (Cfr. FONSECA, Guilherme da et CAMARA, Miguel Bettencourt da (2013) Op. Cit., p. 3). 19 Vide, art. 22.º da CRP. 20 Note-se que a Assembleia da República Portuguesa decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o Regime da Responsabilidade Civil Ex- tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, que se publica em anexo à presente lei e que dela faz parte integrante. 21 FONSECA, Guilherme et CAMARA, Miguel Bettencourt da (2013) Op. Cit., p. 3

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da responsabilidade dos poderes públicos, significou um salto do direito privado para o direito público consumado em pleno século XXI22. A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro sofreu alteração através da Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho que revê o n.º 2.º do art. 7.º. A existência de legislação específica, em matéria de responsabilidade civil do Estado não significou, in veritas, uma fuga completa do direito privado, pois, alguns artigos da Lei 67/2007 ainda aparecem expressos na Lei 31/2008. São, portanto os artigos 3.º, 4.º, 5.º, 9.º e 10.º nomeadamente. O quadro jurídico-constitucional em Moçambique não é passivo dessa realidade tendo o legislador constituinte integrado no texto fundamental a estatuição de um artigo que responsabiliza, civilmente, o Estado por meio dos seus múltiplos agentes, funcionário e órgãos quando estes, no exercício das suas funções, causem danos a terceiros, senão vejamos: “O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei.”23 E, nesta ordem de ideias, o direito à indemnização é um direito de todos sem excepção, pois, “a todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais.”24 Ao observar o n.º 2.º, do artigo 58.º da CRM podemos concluir que no actual quadro constitucional é impossível responsabilizar o Estado pelos danos causados a terceiros. Com efeito, para que tal ocorra, tem que se pensar numa responsabilidade do Estado pelo risco25, onde se desenharia um cenário em que o Estado seria chamado à responsabilidade independentemente de culpa. Ora, como se pode facilmente constatar, é necessário que o acto praticado seja ilegal para chamar o Estado à responsabilidade. Todavia o quadro instituído dificulta o chamamento do Estado à responsabilidade. Com efeito, seria necessário num acto 22

Idem, 13. Vide n.º 2.º, do art. 58.º da CRM 24 Cfr. n.º 1.º do art. 58 da CRM. 25 A respeito da responsabilidade do Estado pelo risco, o Sistema jurídico português já prevê esta situação através da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 3/2008, de 17 de Julho, quando nos números 1.º e 2.º do art. 11.º estatui-se o seguinte: “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.” Assim diz o n.º 2.º: “ Quando um facto culposo de terceiro tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de regresso.” 23

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de responsabilização ao Estado que o cidadão provasse com A mais B que o acto praticado é ilegal. Na verdade, reconhecemos na senda de alguns doutrinários que acontece, muitas vezes, não ser fácil, ou até mesmo impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço público num certo caso concreto.26 Por conseguinte, se o legislador português, através do nº 1.º do art. 11.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 3/2008, de 17 de Julho, invoca a responsabilidade civil do Estado, por risco, mormente de um facto lícito27, consumado por um dos seus agentes no exercício da sua actividade. Entendemos nós, modesta parte, que o legislador moçambicano tinha que rever o actual quadro jurídicoconstitucional que norteia a responsabilidade civil moçambicana, por pautar apenas por responsabilidade civil dos agentes, órgãos e funcionários do Estado que na sequência das suas actividades lícitas advir danos a terceiros, inibindo-se da responsabilidade pelo risco, como abaixo bem o ilustraremos.

26 Nesta vertente o Código Civil, no seu art. 497.º irá chamar atenção para uma responsabilidade solidária, pois, diz o número 1.º: “Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.” Com efeito, se se constatar tal facto, circunda o n.º 2.º que “o direito de regresso entre os responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis.” 27 No actual quadro jurídico português, relativamente a responsabilização civil do Estado por actos lícitos, tem havido ainda alas que se opõem, pois, alguns doutrinários da corrente constitucionalista afirmam que em termos materiais não há uma materialização efectiva da responsabilidade civil do Estado por actos lícitos senão apenas o contrário, a outra ala se distancia destes pronunciamentos, senão vejamos: “o art. 22.º apenas considera a responsabilidade civil por factos ilícitos? Para alguns autores a resposta é positiva, em virtude de estar expressamente consignada a regra da solidariedade, argumentando não fazer sentido aplicar o regime da solidariedade no caso de actuações lícitas (…). Veja-se MARCELO REBELO DE SOUSA e MARIA DA GLÓRIA GARCIA (…), defendem que o art. 22.º está pensado para a responsabilidade civil por factos ilícitos. Em sentido contrário, encontramos MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, JORGE MIRANDA E FAUSTO DE QUADROS. Contudo, mesmo os autores que entendem que o art. 22.º não cobre a responsabilidade por factos lícitos e pelo risco, para além da responsabilidade por factos ilícitos, defendem que este preceito consagra o fundamento para uma responsabilidade civil do Estado pelo exercício ilícito da função legislativa a responsabilidade por factos lícitos também é admitida, por força dos princípios do Estado de Direito, a fim de se conferir o maio efeito útil ao art. 22.º da CRP, na opinião de alguns autores. Quem defende a aplicação do art. 22.º a casos de responsabilidade civil por factos lícitos argumenta que o Decreto-Lei nº 48 051 contemplava não só a responsabilidade por factos ilícitos (…) como a responsabilidade pelo risco ou por factos casuais (…) e a responsabilidade por factos lícitos da Administração que provocassem danos especiais e anormais...” (Cfr. FONSECA, Guilherme et CAMARA, Miguel Bettencourt da (2013) Op. Cit., p. 36).

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2.A Problemática do Dano na Jurisprudência Moçambicana 2.1.O “Caso Paiol” A Constituição da República de Moçambique consagra, no âmbito dos direitos, deveres e garantias fundamentais, o art. 40.º28, atinente ao direito à vida, assegurando à todos este direito como um imperativo: “Todo o cidadão tem direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos.”29 Com efeito, esse artigo assegura, dum modo indiscritível, o direito do cidadão moçambicano e a sua dignidade30, como pessoa31, colocando-o acima de qualquer espécie, ou seja, absolutizando-o.32 Aliado aos ditames do ápice jurídico, a Constituição, existe outros dispositivos de ordem supra-estaduais e intra-estaduais, nomeadamente, a Declaração sobre os Direitos Humanos33 (DUDH), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos34(CADHP), entre outras. Importa-nos fazer um pequeno bosquejo sobre DUDH e a CADHP para melhor delinearmos este ponto atinente a problemática do dano. A DUDH, constitui uma enumeração dos direitos e das liberdades a que, segundo o consenso da comunidade internacional, faz jus todo e qualquer ser humano, sendo importante que os estados-membros a respeitem.35 Portanto, a DUDH surge como um instrumento indispensável, o qual “…os povos das Nações Unidas reafirmaram, na 28

“O primeiro apelo dirigido aos outros foi o “não matarás”, acompanhado da promessa de não matar, pois se reconhecia nos outros a mesma dignidade do que no eu.” (Cfr. CAMPOS, Diogo Leite (2004) Nós – Estudo Sobre o Direito das Pessoas, p. 15). 29 Vide o o n.º 1, do art. 40 da CRM 30 O art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos vai afirmar que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” 31 “…o homem só ia ser definitivamente transformado em pessoa pelo humanismo cristão.” (Cfr. . CAMPOS, Diogo Leite (2004) Op. Cit., p. 14) 32 A este respeito importa frisar sobre o Direito absoluto que é “o direito oponível erga omnes, isto é, aquele que impõe a todos os outros sujeitos jurídicos um dever geral de respeito.” (vide PRATA, Ana et al (2013) Dicionário Jurídico, p. 498). Com efeito, “…a violação deste dever, quando cause danos ao titular de direito, constitui o lesante em responsabilidade civil extracontratual.” (vide art. 483.º, n.º 1, do CC). 33 Adoptada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948. 34 Adoptada pela décima-oitava Conferência dos Chefes de Estado e de Governo dos Estados Africanos membros da Organização de Unidade Africana a 26 de Junho de 1981, em Nairobi, no Quénia. Esta Carta também é conhecida como Carta de Banjul. 35 Vide o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objectivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adopção de medidas progressivas de carácter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efectivos, tanto entre os povos dos próprios EstadosMembros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.”

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Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.”36 Por sua vez a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos reforça essa necessidade de se salvaguardar os direitos de personalidade respeitante a quaisquer danos que lhes forem causados, quando alerta para o seguinte: “Os Estados membros da Organização da Unidade Africana, Partes na presente Carta, reconhecem os direitos, deveres e liberdades enunciados nesta Carta e comprometem-se a adoptar medidas legislativas ou outras para os aplicar.”37 Assim, “todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos.”38

Com efeito, a par deste dispositivo de teor continental o ordenamento moçambicano, para além da Constituição, reserva no Código Civil estatuições comprometedoras da salvaguarda dos direitos da personalidade quando existir danos. É na sequela desta Lei específica, do Código Civil39 e, da Constituição da República de Moçambique e do Direito internacional que os Direitos do homem adjacente à sua personalidade devem ser tutelados sendo certo que os Estados têm maior responsabilidade civil para com as pessoas, suas cidadãs, sobretudo, quando estão em causa os seus direitos fundamentais. Como já afirmáramos acima sobre a responsabilidade civil do Estado, Moçambique dispõe, na sua Constituição, de um artigo específico40 que tutela esse direito, porém,

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Ibidem. Vide o n.º1º, do art, 1.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. 38 Cfr. art. 5.º da CADHP 39 O Código Civil moçambicano dispõe no eu artigo 483.º, como princípio geral que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” Assim, excepciona o n.º 2.º do mesmo artigo que “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos específicos na lei.”) 40 Cfr. art. 58.º da CRM. 37

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este facto apenas acontece quando se trata de danos causados por seus agentes à terceiros, no exercício das suas actividades profissionais, sendo este acto ilegal.41 Ora à luz destas premissas nos apraz analisar um caso que marcou pela negativa o Estado Moçambicano em 2007, caso que foi, sobejamente, transmitido pela mídia que nos serve, nesta pequena análise jurídica, como um exemplo de responsabilização do Estado por omissão legislativa inconstitucional mormente dos danos causados a terceiros. Em Janeiro de 2013 houve explosões de engenhos bélicos no Paiol de Malhazine, na Capital do País (Moçambique). Estas explosões causaram dor e luto, a muitas famílias moçambicanas42. Portanto, neste ponto, discute-se a questão da responsabilidade do Estado pelos danos causados por estas explosões. Com efeito, o que defendemos, é o seguinte: no actual quadro constitucional moçambicano é impossível responsabilizar o Estado pelos danos causados pelo Paiol. Tal responsabilização para que ocorra, tem que se pensar numa responsabilidade do Estado pelo risco, onde se desenharia um cenário em que o Estado seria chamado à responsabilidade independentemente de culpa no dano. Pretendemos com tal afirmação abrir uma possibilidade de responsabilização do Estado pelos danos causados pelas explosões do Paiol a partir duma leitura incidida na CRM e legislações pertinentes. O n.º 2.º do artigo 58.º da Constituição da República de Moçambique, estabelece o seguinte e passo a citar: “O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei.” Com efeito, sem prejuízo no disposto no n.º 2.º, o n.º 1.º, do art. 58.º dispõe: “A todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais” Ora, como se pode facilmente constatar43, é necessário que o acto praticado seja ilegal para chamar o Estado à responsabilidade. Este quadro dificulta o chamamento

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O sublinhado é nosso. (O n.º 2 do art. 58.º da CRM, como acima aludimos, dispõe: “O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei.”) 42 Muito bem dito, tivemos no Estado Moçambicano, em matéria de engenhos explosivos, uma situação de danos consequentes da explosão do PAIOL (Espaço onde o Governo Moçambicano, através do Ministério da defesa, guardava uma concentração enorme de engenhos explosivos) que causara a morte e danos a muitos moçambicanos na capital do País, Maputo em 2007 pelo facto destes engenhos se encontrarem próximo das populações. 43 Observe-se o art. 58. º, n. º 2. º da CRM.

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do Estado à responsabilidade posto que o cidadão tem que provar que o acto praticado é ilegal44. Na verdade tal como reconhecem alguns doutrinários acontece muitas vezes que não é fácil, ou mesmo é impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço público num certo caso material45. Olhando, por exemplo, para alguns ordenamentos jurídicos da lusofonia notaremos que no Direito brasileiro esta situação foi ultrapassada a partir da Constituição Federal de 1946. Com efeito, a responsabilidade objectiva da Administração sucedeu à responsabilidade fundada na culpa.46 Em Portugal, a responsabilidade da administração fundada na culpa não foi substituída, mas sim foi acrescida pela responsabilidade não fundada na culpa, isto é, a objectiva. Neste sentido o ordenamento luso deu um passo bastante significativo, ou seja, Portugal fê-lo através do decreto-Lei 48051, portanto uma lei específica, a Lei que supramencionamos.47 Assim, para responsabilizar o Estado pelos danos causados a terceiros, propomos que não apenas seja revisto o artigo 58.º da Constituição da República de Moçambique como também sugerimos que o legislador moçambicano crie uma legislação específica, como se observa no caso Português, quando a consequência do facto é danoso. No que tange a CRM achamos que o legislador constituinte podia acrescer um hipotético nº 3.º e teríamos o seguinte cenário, a saber: O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos, excepcionalmente, perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços48 ou ao exercício dessas actividades, ou culpa das vítimas ou de terceiro, sendo neste caso a responsabilidade determinada segundo o grau de cada um.

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A este respeito importa referir o n.º 2.º do art. 487.º do CC, a saber: “É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.” 45 A respeito disso importa fazer alusão ao Professor Diogo Freitas do Amaral (2008) Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pp. 550 e ss. 46 MEIRELLES, Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, pp. 619 e ss 47 Como já vimos trata-se da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 3/2008 de 17 de Julho, diploma que revoga expressamente o Decreto-Lei 48051. 48 No caso em análise podia acontecer que interviesse uma causa natural, um raio, por exemplo, para a explosão dos engenhos bélicos aquartelados, pese embora, no nosso entender, o Estado deveria agir por risco.

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Destarte, constituiriam fonte de responsabilidade objectiva fundada no risco, (uma situação em que o Estado assumiria a responsabilidade pelo risco justamente pelo facto de colocar, por exemplo, engenhos explosivos em locais habitados49, e outros males que poderiam ser, previamente evitados), casos como os seguintes: i) Danos causados pela explosão de paióis militares ou de centrais nucleares; ii) Danos causados por manobras, exercícios nos treinos com armas de fogo por parte das Forças Armadas (FADEM) ou das Forças da PRM; iii) Danos causados, involuntariamente, por agentes da polícia em operações de manutenção de ordem pública ou de captura de criminosos.50 No entanto, seria interessante, a nosso ver, fazer-se uma revisão ao artigo 58.º da CRM, todavia se a tal revisão51 acontecer deverá ter reflexos também a nível da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho52. Note-se que esta Lei 9/2001 é a Lei que trata do processo Administrativo e Contencioso, concretamente na parte relativa ao contencioso por atribuição. Dadas as circunstâncias, atrás urdidas, reitero na necessidade de consagrarmos, no âmbito do nosso quadro, político, jurídico-constitucional, a teoria da responsabilidade civil extracontratual do Estado fundada no risco quando dos factos atinentes ao exercício desse ente público advierem danos à terceiros. Acreditamos que este suplemento permitirá responder, vindouramente, diversas situações, como o caso, em análise, o da explosão dos artefactos bélicos no Paiol de Malhazine em Maputo (Moçambique), assim como outros casos, como o das balas perdidas por agentes do Estado, no exercício das suas funções. Com efeito, independentemente, de ter havido culpa ou não por parte do Estado, por se tratar de um

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Como no caso em análise. Importa-nos referir que aqui podemos enquadrar as famosas balas perdidas por parte dos agentes do Estado (A Polícia) no exercício das suas funções (tiroteio com os bandos). 51 Importa recordar que em Moçambique, actualmente, há uma grande discussão em torno da revisão constitucional. É, pois, um período ímpar para se questionar certos princípios que dado o dinamismo do Direito e das Constituições a nível interno e internacional já não fazem sentido por acharmos que são obsoletas. 52 Refira-se que “o Contencioso administrativo constitui um instrumento manifestamente válido para a implementação do Direito Administrativo, carecendo de alterações de fundo quanto ao seu conteúdo jurídico, designadamente por motivos de desadequação da anterior legislação e também pela introdução de novas figuras e institutos criados pela Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, a Lei Orgânica do Tribunal Administrativo. Aliás, esta mesma lei impõe a referida necessidade, no seu artigo 46, de se proceder à sua complementação com uma lei relativo ao processo do contencioso administrativo.” (vide Prefácio da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, Lei do Contencioso Administrativo). 50

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bem indisponível, não patrimonial53, a vida, entendemos nós que deve haver espaço à indemnização54 pelo facto do acto danoso ser causador delituoso de um bem sagrado, a vida, pois, “quanto ao 1º dano, é hoje predominantemente reconhecido que o dano não patrimonial da perda da vida é autonomamente indemnizável, ou seja, “é um facto constitutivo, por a morte poder constituir relações jurídicas novas: indemnização pelo dano da morte…”55. Assim, o que parece evidente é que a vida é o bem supremo…”56, aliás, o direito individual à própria vida é, no âmbito jurídico, tutelado.57 Acentuadamente, circunda LEITE DE CAMPOS que tendo em conta que a vida é um bem supremo sendo o mais valioso e importante bem da pessoa a indemnização deve avaliar-se “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser…”. Portanto, dado que “o prejuízo é o mesmo para todos os homens, bem pode defender-se que a indemnização deve ser a mesma para todos…” Com efeito, realça CAMPOS, “porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, o montante da sua indemnização deve ser superior a soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis”. Em contrapartida acrescenta o grande Catedrático58 que “a análise da jurisprudência permitirá fixar o montante médio da indemnização (…). A indemnização do dano da morte deve ser fixada sistematicamente a um nível superior – pois a morte é um dado acrescido e isto tem de ser feito sentir economicamente ao culpado”59

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Sobre os bens não patrimonial relembre-se DIOGO CAMPOS: “O dano da morte é não patrimonial, seja qual for a noção que se escolha destes últimos de entre as correntes na doutrina e na jurisprudência…” (vide CAMPOS, Diogo (1975) A Indemnização do Dano da Morte, p. 9). 54 Importa, nesse ponto, fazer alusão ao Acórdão de 08/07/2009, Acórdão n.º 357/2009, Proc. N.º 969/08, 2ª Secção, Conselheiro Benjamim Rodrigues (Conselheiro Cura Mariano) Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional. A recorrente do acidente perdera a causa, ou seja, o recurso atinente à indemnização pelos danos não patrimoniais foi interdito declarando inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 24.º, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, do Código Civil, quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituro concebido não é um dano indemnizável. (disponível em: http://www.codices.coe.int/NXT/gateway.dll/CODICES/full/eur/por/por/por-2009-2-008). 55 Cfr. CAMPOS, Diogo (2012) Lições de Direito da Família e das Sucessões, p. 475. 56 RANGEL, Rui Manuel de Freitas (2006) A Reparação Judicial dos Danos na Responsabilidade Civil, Um Olhar sobre a Jurisprudência, p. 40. 57 Vimos que a CRP consagra o artigo 24.º o Direito a vida, a CRM fá-lo no art. 40.º, o mesmo cenário é reiterado nos dois números do art. 70.º do Código Civil dos ordenamentos acima referenciados: “1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral. 2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.” 58 Prof. Doutor Diogo José Paredes Leite Campos – Professor Catedrático Jubilado (vide em http://www.uc.pt/fduc/corpo_docente/dlcampos). 59 Cfr. CAMPOS, Diogo, (2009) A vida, a morte e a sua indemnização, BMJ 365.º/5, pp. 5 e ss. (vide também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º VII ).

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Ainda na senda das explosões de Malhazine que causou danos patrimoniais60 e não patrimoniais61, ou seja, a morte à centenas de moçambicanos pensamos que em Moçambique há normas que devem ser observadas para a conservação do material bélico aí armazenado e, se os agentes do Estado obrigados a respeitar tais normas não o fizeram, portanto, omitindo voluntariamente o seu cumprimento, então, nos termos do art. 58.º da CRM, há lugar à responsabilidade do Estado por risco62. Assim, insistimos na necessidade de consagrarmos no nosso ordenamento63 a teoria da responsabilidade extracontratual do Estado fundada no risco. Aliás, como bem ensina QUADROS quando ela toma contornos mais graves, in verbis: “…O carácter constante, duradoiro e persistente da omissão do dever de vigilância, e por via disso, a previsibilidade ou, pelo menos, o elevado grau de probabilidade dos prejuízos, transporta-nos no domínio do risco para o da culpa por negligência, leve ou grave, da parte da administração. Ou então, começando no risco, depressa passamos para a culpa: por exemplo, se numa estrada se abre um buraco na faixa de rodagem por efeito do mau tempo, o acidente que aí ocorra logo a seguir fica a dever-se ao factor risco; mas se o buraco não for, em tempo adequado, vedado e, depois, tapado pelos serviços públicos competentes, saímos do risco para entrarmos na negligência, até por ventura grave.” Acrescenta o autor fazendo um estudo comparado que em países como Alemanha, Inglaterra a observância é restrita, pois, observa QUADROS, “quem já circulou, por exemplo, por estradas inglesas, alemãs ou austríacas sabe como essas coisas são levadas a sério pela Administração Pública desses países.”64

Isto permitirá cobrir, no futuro, situações de explosões de paióis militares independentes de culpa por parte do Estado. Por conseguinte, no caso concreto do paiol, pensamos nós, modesta parte, que à luz do artigo 58.º da CRM é possível responsabilizar o Estado pelos danos, por um lado por acharmos que saímos de uma 60

Destruição de infra-estruturas: bens imóveis (casa, etc) e bens móveis. Importa-nos referir que “de entre os danos não patrimoniais são de destacar os resultantes das ofensas aos direitos da personalidade, das quais resultam normalmente sofrimentos físicos e morais (dor, emoção, vergonha, perturbação psíquica, etc.” (Cfr. CAMPOS, Diogo (1975) Op. Cit., p. 9). 62 Importa, a este respeito referir que a responsabilidade pelo risco cinge-se nas “relações entre o Estado e os particulares e a medida de protecção da esfera jurídico-patrimonial dos cidadãos perante as ingerências, intencionais ou acidentais, dos poderes públicos...”. (Cfr. CANOTILHO, J. G. (1974) O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, p. 122). 63 Falo do Ordenamento Jurídico Moçambicano, na Constituição ou numa Lei específica. 64 Vide QUADRO, Fausto (2004) Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, p. 14. Em Moçambique, por exemplo podia-se prevenir as explosões do material bélico afastando estes engenhos para distante da população mas o governo moçambicano pelo Ministério da defesa ficou passivo à situação. Aqui podia-se sair de uma responsabilidade do Estado por risco para entrarmos na negligência. 61

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responsabilização, meramente, do risco e entramos numa negligência65, por outro lado, há normas internacionais para conservação daquele tipo de engenhos, que, quanto a nós, não foram observadas66. Com efeito, se o Estado Moçambicano tiver ratificado, logo nos termos do art. 18.º67 da Lei fundamental de Moçambique, fica claro que fica adstrito à sua observância na ordem interna. Não o tendo feito, logo há ilegalidade, o que obriga o Estado a indemnizar as vítimas. Portanto, para nós, e salvo douto entendimento em contrário, há lugar à responsabilidade do Estado por risco. A despeito disso, temos que ter na ordem interna uma disposição que obrigue o Estado a indemnizar nos casos em que não tenha culpa68, como no caso em análise ou, por exemplo, em casos das balas perdidas. Por conseguinte, teríamos muito gosto em esgotar este tema, porém, não o seria possível em relatório como este. Pensamos que tempos e espaços oportunos reservaremos para um estudo mais acurado desta problemática que a nível do ordenamento Moçambicano e Português é ainda muito actual, pois, note-se que quando se comete danos a terceiros, como o foi aquando as explosões dos engenhos do Paiól de Malhazine, a única responsabilidade civil do Estado, neste facto em concreto, foi reflectida nas expressões: apoio, ajuda, etc, todavia dificilmente, em Moçambique, para o caso do Paiol se falou em indemnização69. E acrescido a isso, existe sim um vazio no que toca a responsabilidade do Estado por actos de gestão pública.

65 O Estado Moçambicano, através do Ministério da Defesa poderia ter transportado os engenhos explosivos a tempo, mas não o fez, pois, esperou que estes explodissem e criassem danos para o fazer. 66 A respeito disso não investiguei, mas penso que Moçambique sujeita-se a tal obrigação. 67 “1. Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique. 2. As normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção.” 68 Servimo-nos das alegações de algumas figuras do Estado que depois das explosões afirmaram que o Estado agiu por mera culpa, ou seja, por risco, pese embora no nosso entender achamos e reiteramos a posição que o Estado agiu por negligência. (vide a este respeito inquérito que refere ter havido erro humano nas explosões do Paiol, disponível em: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2007/04/inqurito_refere.html). 69 Infelizmente até hoje quando se fala de responsabilidade civil do Estado por acto lícito ou por risco não se tem em conta o factor indemnização no seu verdadeiro sentido.

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Conclusão Mais do que conclusão pela análise em debate ao longo deste trabalho que procurou reflectir sobre a responsabilidade civil do Estado e a problemática do dano no Direito positivo Moçambicano e Português ficam, abaixo, alguns pontos que achamos pertinentes, a saber:

1- O artigo 58.º da CRM, responsabiliza, civilmente, o Estado apenas por actos ilegais. Ora, isto pressupõe que haja culpa. Imagine-se, uma situação de explosão de engenhos de um Paiol e subsequentes danos patrimoniais e não patrimoniais. Será que tal facto não abre espaço para responsabilização do Estado pelo risco? Modesta parte, pensamos que sim. 2- Se alterarmos o artigo 58º da Constituição e, acrescermos uma responsabilidade do Estado que independa da culpa, aí cobriremos este tipo de situações. 3- No caso concreto dos danos que o Estado causara as populações circunvizinhas do Paiol, à luz do artigo 58.º, é possível responsabilizar o Estado, por meio de normas internacionais que assista este direito, pois, se Moçambique o tiver ratificado, nos termos do artigo 18.º da CRM, evidencia-se que fica adstrito à sua observância na ordem interna. E, se não o tiver observado, logo há ilegalidade, o que obriga o Estado a indemnizar os danados, ou seja, as vítimas. Portanto, para nós e salvo entendimento em contrário, há lugar a uma responsabilização civil do Estado pelo risco, como aliás analisamos. 4- Achamos que a responsabilização do Estado pelo risco e por omissão legislativa deve constituir um imperativo categórico em Moçambique e deve aparecer, como em Portugal, França, Itália, Brasil, etc, vincado na Lei fundamental tendo o seu reflexo numa Lei específica ou acrescida no âmbito da Lei do Processo Administrativo e Contencioso, a Lei 9/2001, de 7 de Julho. 5- O Estado sendo um ente público, com mais responsabilidade dos demais entes, caminha à margem deste facto que lhe é próprio, pois, existe, na nossa óptica, a prevalência de um vazio no que toca a responsabilidade do Estado (em Moçambique) por actos de gestão pública.

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Bibliografia AMARAL, Diogo F. A. (2008) Curso de Direito Administrativo, Vol. I. CAMPOS, Diogo (1975) A Indemnização do Dano da Morte, Ed. Coimbra. ______________ (2009) A vida, a morte e a sua indemnização, BMJ 365.º/5, pp. 5 e ss ______________ (2012) Lições de Direito da Família e das Sucessões, Ed. Almedina, 2ª edição. ______________ (2004) Nós – Estudo Sobre o Direito das Pessoas, Ed. Almedina. ______________ (2009) Pessoa Humana e Direito, Ed. Almedina. CANOTILHO, J. G. (1974) O Problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Ed. Coimbra. COSTA, Mário Júlio de Almeida (1999) Direito das Obrigações, Ed. Almedina. FONSECA,

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Legislação pertinente ACÓRDÃO N.º 357/2009, Proc. n.º 969/08, 2.ª Secção, Conselheiro Benjamim Rodrigues, (Conselheiro Cura Mariano) Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional Constituição da República de Moçambique Constituição da República Portuguesa Código Civil de Moçambique 22

Código Civil de Portugal

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