A PRODUÇÃO CULTURAL QUEBEQUENSE COMO EXPRESSÃO DO NACIONALISMO DA REVOLUÇÃO TRANQUILA

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OSCAR AUGUSTO BERG

A PRODUÇÃO CULTURAL QUEBEQUENSE COMO EXPRESSÃO DO NACIONALISMO DA REVOLUÇÃO TRANQUILA

PORTO ALEGRE, AGOSTO DE 2015

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OSCAR AUGUSTO BERG

A PRODUÇÃO CULTURAL QUEBEQUENSE COMO EXPRESSÃO DO NACIONALISMO DA REVOLUÇÃO TRANQUILA

Pesquisa apresentada à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) como resultado da Bolsa de Iniciação Científica PROBIC-FAPERGS

Orientação: Profª Dra. Zilá Bernd

PORTO ALEGRE, AGOSTO DE 2015

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AGRADECIMENTOS

A Zilá Bernd, pela orientação desta pesquisa, pelo exemplo enquanto acadêmica e pela amizade. Aos amigos de Montreal e de Quebec, em especial, Anne-Marie Veillette, Guillaume Joseph, Samuel “Shampoo”, Dominique Jutras e Robert Laliberté, pela acolhida de braços abertos, pelas horas de conversas e por despertarem em mim o interesse e a paixão por este canto francófono das Américas. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pelo apoio fundamental à realização desta pesquisa.

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RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo analisar a produção cultural quebequense como expressão da afirmação da província canadense do Quebec enquanto nação. Buscamos responder às seguintes perguntas: (a) como a produção cultural nos permite identificar as principais características do nacionalismo québécois? (b) como ela nos permite compreender a evolução desse nacionalismo entre 1960 e 1980? Desse modo, o período foi dividido em três fases, cuja análise foi realizada com o apoio em textos de, ao menos, duas expressões culturais dentre ensaio, poesia, canção e cinema. Concluímos que o nacionalismo québécois se caracteriza pela vontade de abertura ao mundo, pela valorização da modernidade e laicidade enquanto valores fundamentais e pelo objetivo de independência do Quebec. No que diz respeito à sua evolução, percebemos através da produção cultural selecionada um ciclo de emergência-auge-declínio do nacionalismo québécois. Assim, em um primeiro momento, os artistas lideram a contestação da sociedade quebequense tradicional, cujo abandono será iniciado pela Revolução Tranquila, em 1960. Neste segundo momento, os artistas compartilham seu otimismo em relação ao futuro do Quebec com seus concidadãos e apoiam a ideia de independência da província. O fracasso deste ideal, a partir da derrota do referendo de 1980, dá lugar a uma grande desmobilização do movimento nacionalista. Denys Arcand, em particular, apresenta esta decisão como a escolha pelo conforto e pela indiferença, sugerindo que o engajamento dos artistas se mostrou insuficiente para a promoção da independência. Concluímos que a grande vantagem em analisar a afirmação nacional quebequense por meio da obra de artistas engajados é apresentarmos uma análise original, afinal, os artistas desfrutam de uma maior liberdade que os políticos na promoção de seus ideais, podendo fazê-lo com mais sinceridade que as elites econômicas ou políticas. Finalmente, o fracasso do projeto independentista fez com que o Quebec continuasse a ser o “País Incerto” dos contos de Jacques Ferron. Mais ainda, assistimos hoje a uma silenciosa destruição dos ganhos da Revolução Tranquila por meio de duras políticas de austeridade aplicadas no Quebec. Palavras-chave: Quebec (Canadá), Nacionalismo, Revolução Tranquila, Produção Cultural Engajada.

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ABSTRACT The goal of this research is to analyse Quebecois cultural production as an expression of Canadian province of Quebec affirmation as a nation. We seek to answer the following questions: (a) how cultural production allows us to identify the main characteristics of the Québécois nationalism? (b) how it allow us to understand the evolution of this nationalism between 1960 and 1980? In this sense, the period was divided in three phases, whose analyse was made with texts of at least two cultural expressions among essay, poetry, song and cinema. We conclude that the Québécois nationalism characterizes itself by the desire for openness to the world, the valorization of modernity and secularism as fundamental values and the objective of Quebec independence’s. With regards to its evolution, we perceived through cultural production an emergence-peak-decline cycle to the Québécois nationalism. So in a first moment, artists took the leadership of Quebec traditional society contestation, which abandon is initiated by the Quiet Revolution in the 60’s. In this second moment, artists shared their optimism regarding Quebec’s future with citizens, backing the idea of Quebec independence. The failure of this ideal through the 1980 referendum defeat led nationalist movement to demobilization. Denys Arcand, in particular, presented the Novictory as a choice for the comfort and the indifference, suggesting that artists engagement was insufficient to the promotion of independency. We conclude that the greater advantage in studying Quebecois national affirmation through engaged artists works is to present an original analysis, once that artist enjoy of an higher degree of liberty than the politicians to promote their ideals, they can do it more sincerely than the economical or political elites. As a result to the fail of Quebecois independence project, Quebec continues to be the “Uncertain Country” of Jacques Ferron tales. Finally, we watch nowadays a noiseless destruction of Quiet Revolution gains through the austerity politics been applied in Quebec. Key-words: Quebec (Canada), Nationalism, Quiet Revolution, Engaged cultural production

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RÉSUMÉ La présente recherche a pour but d’analyser la production culturelle québécoise comme expression de l’afirmation de la province canadienne du Québec en tant que nation. Nous cherchons à repodre les questions suivantes: (a) comment la production culturelle nous permet-elle d’identifier les principales caractéristiques du nationalisme québécois? (b) comment nous permet-elle de comprendre l’évolution de ce nationalisme entre 1960 et 1980? Pour autant, la période a été divisée en trois phases, dont l’analyse a été réalisée en s’appuyant sur des textes d’au moins deux expressions culturelles parmi l’essai, la poésie, la chanson et le cinéma. Nous concluons que le nationalisme québécois se caractèrise par une volonté d’ouverture sur le monde, une valorisation de la modernité et de la laïcité en tant que valeurs fondamentales et par l’objectif d’indépendance du Québec. En ce qui concerne son évolution, nous identifions à travers la production culturelle un cycle d’émergenceapogée-déclin du nationalisme québécois. Ainsi, dans un premier temps, les artistes prennent le leadership de la contestation de la société québécoise traditionnelle, dont l’abandon fut entamé par la Révolution Tranquille, en 1960. Dans ce deuxième temps, les artistes partagent leur optimisme à l’égard de l’avenir du Québec avec leurs concitoyens et soutiennent l’idée d’indépendance de la province. L’échec de cet idéal à travers la défaite référendaire de 1980 donne lieu à une démobilisation de la mouvance nationaliste. Denys Arcand, notamment, présente cette décision comme le choix du confort et de l’indifférence, en suggéreant que l’engagement des artistes s’est avéré insuffisant pour la promotion de l’indépendance. Nous concluons que la grande avantage d’analyser l’affirmation nationale québécoise à travers l’oeuvre des artistes engagés c’est de pouvoir présenter une analyse originale, car, après tout, les artistes jouissent d’une plus grande liberté que les politiciens dans la promotion de leurs idéaux. Ils le font avec une sincérité plus grande que les élites économiques ou politiques. Finalement, l’échec du projet indépendantiste fait en sorte que le Québec continue à être le « Pays Incertain » des comptes de Jacques Ferron. Encore plus, nous assistons aujourd’hui à une silencieuse destruction des acquis de la Révolution Tranquille à travers les dures politiques d’austérité mises en place au Québec. Mots-clés : Québec (Canada), Nationalisme, Révolution Tranquille, Production Culturelle engagée

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INTRODUÇÃO Com as seguintes palavras, René Lévesque abre Option Québec, publicado pela primeira vez em 1968: Nós somos quebequenses. O que isto quer dizer antes e acima de tudo, é que nós somos ligados a este único canto do mundo onde nós podemos ser plenamente nós mesmos [...] Sermos nós mesmos é essencialmente uma questão de manter e desenvolver uma personalidade que sobrevive há três séculos e meio. No centro desta personalidade se encontra o fato que nós falamos francês. Todo o resto depende deste elemento essencial [...] É dessa forma que nos diferenciamos dos demais homens, especialmente dos demais norte-americanos com quem nós temos tantas outras coisas em comum. Esta ‘diferença’ vital nós não podemos abdicar. Há muito tempo que isto se tornou impossível (1997, p. 161-163).

O manifesto de Lévesque é emblemático da época na qual ele é publicado. Os anos 1960 são marcados por uma grande tomada de consciência entre a população francófona da província canadense do Quebec em termos identitários, políticos e culturais. Inicia-se, então, um grande processo de afirmação nacional no qual esta população que até então se definira como canadense-francesa passa a se afirmar enquanto québécois/quebequense. O plano de fundo desta mudança é um conjunto de reformas político-administrativas que habituou-se chamar de “Revolução Tranquila” e que se caracteriza, particularmente, pelo surgimento de um Estado moderno no Quebec, em substituição ao ultrapassado modelo de nãointervenção estatal nos assuntos econômicos, sociais ou culturais. O propulsor desta afirmação, por sua vez, é o nacionalismo québécois, uma manifestação política que sob diversos prismas se diferencia dos outros nacionalismos que, em épocas anteriores, animaram o pensamento e a ação política no Quebec. A presente pesquisa tem como objetivo analisar a produção cultural quebequense como expressão da afirmação do Quebec enquanto nação. Buscamos responder às seguintes perguntas: (a) como a produção cultural nos permite identificar as principais características do nacionalismo québécois? (b) como ela nos permite compreender a evolução desse nacionalismo entre 1960 e 1980? Tendo em mente este objetivo, dividimos o período em três fases, a saber: (a) a da Grande Noirceur, anterior a Revolução Tranquila, cujos textos mostrarão as razões que tornam necessário o despertar da sociedade quebequense e o rompimento com seu passado; (b) a da Revolução Tranquila propriamente dita, ou seja, da chegada dos liberais ao poder, em 1960, ao referendo de 1980, abordando o avanço do ideal independentista; e, finalmente, (c) a do declínio e transformação das ideias nacionalistas

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após o fracasso do referendo sobre a independência. A análise de cada uma dessas fases é realizada através de textos de, ao menos, duas expressões culturais dentre ensaio, poesia, canção e cinema e apoiada, bem entendido, em obras de referência sobre a história do Quebec e de seu movimento nacionalista, em especial, os notáveis trabalhos de Paul-André Linteau (1989) e Louis Balthazar (2013). Ao final, são apresentadas as conclusões desta pesquisa, que, por sua vez, trazem algumas reflexões sobre o papel do nacionalismo na sociedade quebequense de hoje e indicam algumas perspectivas para o futuro.

GRANDE NOIRCEUR: QUEBEQUENSES, OS NEGROS BRANCOS DA AMÉRICA?

No período do pós-guerras, enquanto várias sociedades vivenciam uma manifesta modernização, o Quebec se encontra dominado por duas forças: o controle da vida social por parte da Igreja Católica e a dominação econômica exercida pela minoria anglófona instalada na província, que detém um poder econômico incompatível com seu peso demográfico (LINTEAU ET AL, 1989, p. 587).1 Estas elites tradicionais, respaldadas pelo governo provincial, que promove a não-intervenção nos seus respectivos domínios de controle (GAGNON, MONTCALM, 1992, p. 46), são capazes de frear a modernização do Quebec. Os quebequenses se definem ainda como canadenses-franceses, adotando uma identidade apoiada em um triângulo constitutivo baseado em uma religião (católica), uma língua (francesa) e uma etnia (branca/europeia) comuns (MILOT, 2009, p. 67). Registra-se, então, um nacionalismo dito canadien-français/canadense-francês, cujo corpo ideológico é impregnado de referências étnicas e valores conservadores. Seu principal objetivo é assegurar a sobrevivência cultural e linguística dos francófonos do Canadá, defendendo, para tanto, o recolhimento destas populações sobre si.

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Dentre os indicadores que exemplificam o atraso dos francófonos em relação aos anglófonos nos assuntos econômicos, citamos o fato dos francófonos representarem nos anos 1950 apenas 6,7% da elite econômica canadense, ao passo que formavam 30% de sua população (LINTEAU ET AL, 1989, p. 294). Esse atraso se verifica até mesmo no interior da província do Quebec, onde os francófonos formam a maioria absoluta da população. Assim, em 1961 apenas 47% dos empregos existentes no Quebec eram ligados a empresas e instituições sob controle francófono (ibid., p. 298), ao passo que essa população formava 80,6% da população (ibid., p. 584).

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A cena política quebequense é monopolizada por um único partido, a União Nacional, que sob a liderança de Maurice Duplessis, dirige o Quebec ininterruptamente entre 1944 e 1959, marginalizando os partidos opositores ao longo deste período. Como consequência, a oposição ao regime Duplessis é forçada a se constituir em meios extraparlamentares (LINTEAU ET AL, 1989, p. 208). Neste cenário, o papel de artistas e intelectuais enquanto agentes da mudança se vê reforçado. Em um primeiro momento, este engajamento se traduzirá em esforços de desconstrução das bases sobre as quais assentava a sociedade quebequense de então, como no caso da canção Mon Pays, de Gilles Vigneault, que associa o Quebec de Duplessis a um grande inverno: Meu país não é um país, é o inverno Deste grande país solitário eu grito antes de me calar A todos os homens da terra, minha casa é sua casa Entre minhas quatro paredes de gelo eu uso meu tempo e meu espaço Para preparar o fogo, o espaço para os humanos do horizonte E os humanos são de minha raça Meu país não é um país, é o inverno De um país que não era nem país, nem pátria Minha canção não é uma canção, é minha vida É por ti que eu quero dispor de meus invernos (VIGNEAULT, 1966).

Bem entendido, Vigneault não lamenta as temperaturas assustadoramente negativas que, bon an, mauvais an, assolam o Quebec entre os meses de novembro e abril. O inverno ao qual ele se refere é aquele causado pelos valores conservadores da identidade canadense-francesa, que, manipulada tanto pela Igreja Católica, quanto pelo governo Duplessis, havia “[congelado] os melhores espíritos” (VALLIÈRES, 1994, p. 138) e, assim, a possibilidade de qualquer ruptura. Nesta época, nos parece que, de fato, os quebequenses se recolhem sobre si para respeitar os dogmas conservadores da Igreja; afinal, como diz uma das personagens da peça teatral Les Belles Soeurs: “Que voulez-vous, y faut ben gagner son ciel! (O que você quer, é bem preciso garantir seu lugar ao céu)” (TREMBLAY, 2007, p. 23). O jornalista, ensaísta e ativista Pierre Vallières também apresenta sua visão sobre a sociedade quebequense de então, retomando uma das expressões que, ao lado de inverno, será repetidamente empregada para descrevê-la: la grande noirceur, ou a grande escuridão. Eu vivia o Quebec da grande escuridão de Duplessis, este deserto onde os homens comiam, trabalhavam, faziam filhos por hábito e sem prazer, com um aborrecimento profundo, tão profundo quanto o país era extenso e o horizonte afastado. Duplessis parecia tão invulnerável quanto Deus e ninguém contestava sua ditadura (VALLIÈRES, 1994, p. 265).

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No país do inverno e da grande escuridão, os canadenses-franceses se resignam frente ao poder das elites dominantes em função das poucas oportunidades de mobilidade econômica e social que a língua francesa lhes proporcionava. Isto significa, por um lado, aceitar abrir mão de seu uso no mercado de trabalho: “o canadense-francês que, no pósguerras, escolhe a grande empresa, deve trabalhar continuamente em inglês, em um meio culturalmente homogêneo” (LINTEAU ET AL, 1989, p. 300). Por outro lado, isto significa também consentir com um sistema educacional concebido conforme os interesses da Igreja Católica e, portanto, voltado a reproduzir a dominação dos francófonos e não à emancipação desta população.2 Percebemos alguns elementos de explicação da resignação dos francófonos no seguinte relato autobiográfico de Vallières: Nós nos dizíamos: ‘não é de maneira nenhuma nossa culpa se em nosso meio é preciso aproveitar a Propagação da Fé e a Obra das Vocações para se pagar um mínimo de conhecimento e um direito de entrada na universidade. A fé não está nem aí para a justiça! Por que nós, nós temeremos de não estarmos nem aí para a fé e nos aproveitarmos dela?! [...] Não é de maneira nenhuma nossa culpa se a igreja e a alta finança nos aprisionam em um império (o império delas) no qual os homens podem apenas se alienar, se prostituir para não serem esmagados como ratos’ (1994, p. 240-241).

O que se sugere é que ao mesmo tempo em que os francófonos formavam a maioria demográfica no Quebec, eles constituíam uma minoria sociológica ao não disporem dos meios de assegurar seu próprio desenvolvimento: “[os trabalhadores francófonos] sempre formaram a imensa maioria dos cidadãos e dos produtores da riqueza nacional sem jamais, contudo, beneficiar do poder econômico e da liberdade políticas e sociais às quais seu número e seu trabalho dão direito”, afirma Vallières (1994, p. 55). Desse modo, ele apresenta os canadenses-franceses como sendo os nègres blancs d’Amérique/negros brancos da América, pois “na América, ser um negro não é ser um homem, é ser o escravo de alguém” (Ibid., p. 61). Afinal, conforme ele se indaga, “[Não teriam sido os franceses], assim como os negros americanos, importados para servirem de mão de obra barata no Novo Mundo?” (Ibid., p. 62). Para o comediante Yvon Deschamps, a pergunta que se coloca, é saber se os quebequenses podiam se sentir em casa no Quebec: Talvez vocês não odeiem os ingleses, pois vocês imaginam que estão em casa na Província de Quebec. É isso? Vocês acreditam? Sim? Então, eu tenho algumas 2

Por exemplo, nos anos 1930, no momento em que as ciências exatas se faziam cada vez mais importantes para apoiar a crescente industrialização do Quebec e a introdução de novas tecnologias no setor produtivo, o abade Édouard-Valmore Lavergne ainda afirmava que o catolicismo era a única ciência importante para a formação dos jovens (LAHAISE, 1994, p.70).

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novidades para vocês outros, nós não estamos de nenhum modo em casa na Província de Quebec. Nós não estamos em casa, pois nós não possuímos nada. Olhem em torno de vocês [...] as grandes redes de lojas, de vestuário, de alimentação, de qualquer coisa. As indústrias. Nada disso é nosso! (1972).

A visão que os autores selecionados apresentam sobre a sociedade quebequense anterior à Revolução Tranquila é permeada de uma forte crítica. O Quebec é apresentado como um território onde grandes instituições como a Igreja, o Estado e as elites econômicas anglófonas são capazes de aprisionar a população em um pensamento extremamente conservador, que impede sua tomada de consciência acerca da necessidade de romper com esta sociedade tradicional, caso quisessem, enfim, tomar em suas próprias mãos seu destino. Assim, artistas e intelectuais engajados colocam suas obras a serviço desta tomada de consciência, se encontrando, portanto, na origem das rupturas que a Revolução Tranquila irá, em seguida, abarcar. A produção cultural não apenas não compartilha os pressupostos do nacionalismo canadense-francês, como os combate, preconizando a emergência de uma nova identidade.

“JE SUIS ARRIVÉ À CE QUI COMMENCE”: DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA DA REVOLUÇÃO TRANQUILA AO PROJETO DE INDEPENDÊNCIA

O despertar dos quebequenses do grande inverno lamentado por Vigneault é iniciado com a morte de Maurice Duplessis, em 1959. Ao tornar a expressão Désormais (daqui em diante) sua palavra de ordem, seu sucessor Paul Sauvé anuncia que a província se prepara para virar a página da grande escuridão. Já no ano seguinte, o regime da União Nacional é derrubado com a vitória dos liberais na eleição de 1960, que fazem campanha em torno do slogan C’est temps que ça change! (É hora de mudar!) (LINTEAU ET AL, 1989, p. 674). Ao assumirem o poder, Jean Lesage e sua équipe de tonnerre (equipe extraordinária) revisam as políticas desenvolvidas por Duplessis, fazendo cair um de seus principais postulados: o não-intervencionismo. A partir de então, o Quebec se inscreve, sem equívoco, no marco do Estado Providência, passando a intervir em todas as esferas das vidas cultural, econômica e social (LINTEAU ET AL, 1989, p. 422). A iniciativa de diversos serviços que, até então, eram confiados a parceiros privados é recuperada pelo governo. Em especial, a

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criação de um ministério responsável pela educação marca a vontade de esvaziar o controle da Igreja neste domínio, acelerando o processo de laicização da sociedade quebequense. Este conjunto de reformas que possibilitam emergir um Estado moderno no Quebec é logo denominado Revolução Tranquila. Experimenta-se, enfim, a modernização que por tanto tempo as forças até então dominantes foram capazes de frear. Este contexto de rupturas está presente nos versos de L’homme rapaillé de Gaston Miron: Eu fiz de além de mim uma viagem abracadabrante Há muito tempo eu não me revia Eis-me aqui em mim como um homem em uma casa Que se fez na sua ausência Olá silêncio Eu não voltei por voltar / je ne suis pas revenu pour revenir Eu cheguei àquilo que começa/ je suis arrivé à ce qui commence (1994, p. 15)

“Aquilo que começa” a que Miron se refere era justamente o Quebec moderno, que através da Revolução Tranquila era construído em ruptura à antiga sociedade que, dominada economicamente pela minoria anglófona e dirigida pela Igreja Católica, fora marcada pela “ausência” e pelo “silêncio”. A “abracadabrante” jornada de survivance/sobrevivência aos ímpetos assimilacionistas do colonizador britânico tomara fim e dera lugar a uma nova época de afirmação traduzida “pela progressiva substituição das palavras ‘Província de Quebec’ e ‘canadense-francês’ por ‘Estado do Quebec’ e ‘quebequense’” (LINTEAU ET AL, 1989, p. 674). A produção cultural quebequense se interessou em apresentar suas próprias visões acerca das profundas mudanças da Revolução Tranquila. No campo do cinema, encontramos no filme C.R.A.Z.Y. (2005) uma interessante representação desse período. A produção de Jean-Marc Vallée coloca em cena os Beaulieu – uma família da pequena burguesia de Montreal – que atravessa grandes conflitos entre os pais e seus filhos, em especial, Zachary, que, nascido em meio a Revolução Tranquila, questiona o modelo tradicional de educação baseado nos preceitos do catolicismo conservador, que seus pais desejavam lhe transmitir. Ao buscar novos valores que pudessem refletir melhor a liberdade à qual ele aspira, Zachary vivencia uma profusão de experiências novas que nos remetem à própria agitação característica dos primeiros anos da Revolução Tranquila. Assim, se para a personagem, o questionamento da estrutura familiar representa o acesso ao mundo das drogas, do punk, do rock e do sexo; para o Quebec, a libertação do inverno de Duplessis – e tudo aquilo que o

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acompanhava, como o tradicionalismo, a dominação econômica e o clericalismo – lança a província em uma efervescência de novas ideias e correntes ideológicas, como o neoliberalismo, o reformismo, o nacionalismo, o anticolonialismo, o feminismo e o socialismo (LINTEAU ET AL, 1989, p. 673-688). A própria crise que Zachary provoca no poder paternal familiar, se assemelha às transformações que a Revolução Tranquila inicia, assim “a figura do pai é emblemática da derrocada do Quebec conservador e tradicional” (BERND, 2012, p. 145). O sentimento de liberdade que os quebequenses, enfim, experimentam produzirá uma grande esperança em relação ao seu futuro. Afinal de contas, após “três séculos de exploração, de injustiças silenciosamente sofridas, de sacrifícios inutilmente consentidos, de insegurança resignada” (VALLIÈRES, 1994, p. 55), chegara a hora dos quebequenses, ao menos segundo Gilles Vigneault, se deixarem falar sobre o amor: O tempo que levamos para dizer ‘eu te amo’ É o único que permanece até o fim de nossos dias Os desejos que fazemos, as flores que semeamos Cada um as colhe em si mesmo Nos belos jardins do tempo que corre Pessoas do país, é a sua vez/Gens du pays, c’est votre tour De se deixar falar sobre amor/De vous laisser parler d’amour A hora de se amar, o dia de dizê-lo Derrete como a neve na chegada da primavera Festejemos nossas alegrias, festejemos nossas risadas Estes olhos onde nossos olhares se refletem É amanhã que eu tinha vinte anos O riacho dos dias agora para E forma um lago no qual cada um pode ver Como em um espelho, o amor que ele reflete Através deste curso, para quem eu desejo A hora de viver suas esperanças (VIGNEAULT, 1976).

O que Vigneault propõe é que uma vez terminada a longa jornada de sobrevivência que marcara o Quebec desde a conquista britânica, em 1759, os canadenses-franceses desenvolvessem uma identidade aberta e não uma alteridade negativa em relação aos canadenses-ingleses, descendentes dos britânicos. Os francófonos devem, portanto, falar de amor, ou seja, superar as divisões e a partir desta base, construir um país Quebec. Se no primeiro período que analisamos, os artistas e intelectuais quebequenses haviam exercido uma verdadeira resistência ao inverno de Duplessis, criticando duramente o nacionalismo canadense-francês que lhe dava apoio, neste segundo momento, eles se

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apresentam muito mais positivos em relação ao futuro da sociedade quebequense. Os objetivos de modernização que a Revolução Tranquila lança são amplamente respaldados por uma produção que vibra com a ruptura do Quebec com o conservadorismo. O otimismo é tamanho nestes primeiros anos da Revolução Tranquila, que, na sequência, muitos artistas e intelectuais irão a abraçar abertamente a ideia da independência do Quebec (HANDLER, 1988, p. 21), a qual passa a ser vista como o ponto culminante que a Revolução Tranquila deve atingir.

À LA PROCAHINE FOIS: DECLÍNIO DO NACIONALISMO QUEBEQUENSE ATRAVÉS DO CINEMA DE DENYS ARCAND

Como mencionamos, é somente a partir dos anos 1960 que os habitantes da província do Quebec passam a se identificar como quebequenses. A gradual adoção de uma nova identidade tem como principal consequência política o surgimento do nacionalismo québécois. Nesta nova manifestação, as referências ao território e à cultura esvaziam a importância da pertença étnica canadense-francesa e o recolhimento sobre si é substituído por um manifesto desejo de abertura ao mundo (BALTHAZAR, 2013, p. 149-150). Outra mudança fundamental do nacionalismo québécois em relação ao canadense-francês é que ao passo que este último havia reduzido a questão das relações entre os governos quebequense e canadense à autonomia do primeiro em relação ao segundo (LINTEAU ET AL, 1989, p. 381-385) a fim de, junto às elites tradicionais quebequenses, respeitar seu compromisso de não intervenção em seus respectivos campos de domínio, a nova manifestação se caracteriza pelo estatismo3 e traz a tona a ideia de independência do Quebec, cujo notável avanço denota-se da multiplicação dos manifestos independentistas nos anos 1960 e 1970 (Cf. FERRETTI, MIRON, 1992, p. 121-188 e 319-395). Dentre os manifestos independentistas, destaca-se a mencionada obra Option Québec, que apresenta uma fórmula de compromisso “entre a manutenção do Quebec no regime federal canadense, por um lado, e, por outro lado, a independência completa do 3

O estatismo característico do nacionalismo québécois e da Revolução Tranquila se manifesta, em especial, na nacionalização dos recursos naturais, realizada em 1963 no governo Lesage, que deu origem a companhia de eletricidade estatal Hydro-Québec tal qual a conhecemos atualmente.

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Quebec” (BERNARD, 1997, p. 9) através da ideia de association-souveraineté/associaçãosoberania. Assim, o Quebec teria acesso “ao conteúdo essencial da independência, ou seja, ao pleno controle de todas e cada uma de suas principais decisões coletivas” (LÉVESQUE, 1997, p. 186), ao mesmo tempo em que uma estrutura econômica e monetária comuns viria a associar os dois Estados independentes (Ibid., p. 187-215). A influência da associaçãosoberania na política que já aparecera em 1968 com a criação do Parti Québécois (PQ) – um partido cuja raison d’être é a promoção deste projeto – fica evidente em 1976 quando esta formação é levada ao poder e, mais particularmente, em 1980, quando o governo Lévesque organiza um referendo no qual os quebequenses são chamados a conferir um mandato para o governo provincial negociar junto ao Canadá a associação-soberania (BERNARD, 1997, p. 89). A derrota deste referendo na proporção de 60% dos votos contrários à negociação nos leva à conclusão de que ao mesmo tempo em que o nacionalismo quebequense atingira seu ápice, ele é negado pela maioria da população e entra – é o mínimo que podemos dizer – em um período de profunda desmobilização. No campo da produção cultural, o cinema de Denys Arcand apresenta uma virulenta crítica ao período. Em primeiro lugar, aparece o documentário Le confort et l’indifférence (1981), que mostra uma campanha referendária amplamente desigual. “O ponto de vista de Denys Arcand é simples: o referendo foi uma prova de força entre a palavra profética e o poder armado: a potência da encarnação desejosa contra a demonstração prática do bom uso da força estatal” (BEAUDOIN, 1982, p. 98). Assistimos a própria deturpação do objeto do referendo, pois da atribuição de um mandato para a negociação da associação-soberania, as forças opositoras o tornam uma decisão acerca da pertença nacional seja ao Canadá seja ao Quebec. Excessivamente confiantes em si mesmo, as forças independentistas quebequenses se deixam levar por esta mudança, selando sua derrota. Pois, É preciso examinar se o reformador tem o poder de se impor ou se ele depende de outro. Ou seja, se para ter sucesso em seu empreendimento ele conta com suas palavras ou com sua força. Se ele tem apenas suas palavras, ele está inevitavelmente condenado ao fracasso, mas se ele dispõe de força, seu sucesso está assegurado (ARCAND, 1981).

E neste caso as forças lideradas por Lévesque contam apenas com palavras esperançosas de uma nova ordem, justamente aqueles presentes na poesia de Miron ou na música de Vigneault. Por mais belas que elas fossem, elas se mostram, contudo, insuficientes frente ao poder econômico – e, se necessário, militar – do governo federal

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canadense que é capaz de reduzir, na visão de Arcand, duas décadas de nacionalismo québécois a uma escolha acerca de qual ordem de governo – canadense ou quebequense – apresenta melhores pensões e programas sociais ou ainda maiores garantias ao pequeno conforto dos bens materiais. É inevitável que para as gens du pays (pessoas do país) a derrota do movimento nacionalista cause uma grande desilusão. A auto-crítica que se impõe é duríssima, afinal as lideranças nacionalistas haviam passado duas décadas afirmando veementemente que a independência seria apenas uma questão de tempo, como Lévesque em 1977: “é cada vez mais assegurado que um novo país aparecerá em breve democraticamente sobre o globo, onde até agora um Estado federativo percebeu apenas uma província como as outras” (apud. ARCAND, 1981). Em Le déclin de l’empire américain (1986), Denys Arcand aborda a característica desilusão dos anos pós-referendo por meio de um grupo de amigos professores universitários que embora altamente idealistas no passado – “Existe algum ‘ismo’ que nós não tenhamos adorado?” (ARCAND, 2003) se questionam as personagens – acabam por se resignar a uma vida pautada pelos pequenos confortos e prazeres do cotidiano, em detrimento a qualquer grande projeto de mudança. Assim, suas relações pessoais passam a ser dominadas por assuntos banais como dinheiro, sexo, traições e o culto ao corpo, enquanto sua produção acadêmica reflete uma espécie de fatalismo. A personagem de Dominique Michel, por exemplo, afirma: “a vontade exacerbada de felicidade individual que observamos hoje em nossa sociedade estaria historicamente ligada ao declínio do Império Americano que começamos a viver” (ARCAND, 1986), uma frase que, bem entendido, não seria sem relações com a visão de Arcand sobre o Quebec pós-1980. Em seu monólogo intitulado La fierté d’être québécois (O orgulho de ser quebequense), Yvon Deschamps traz o foco para algumas ambiguidades do nacionalismo québécois. Em primeiro lugar, ele chama a atenção para a ambivalência eleitoral dos quebequenses que “vota[m] para os liberais no federal e para o PQ no provincial, pois o verdadeiro quebequense sabe o que ele quer, e o que ele quer é um Quebec independente em um Canadá forte” (1977). Ou seja, os quebequenses buscam uma alternativa impossível, escapando da necessidade de escolher apenas um daqueles que eram os líderes mais populares da época, o liberal Pierre-Elliot Trudeau e o pequista René Lévesque (BALTHAZAR 2013, p. 191). Em segundo lugar, Deschamps questiona alguns limites da identidade

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quebequense, como a possibilidade de pessoas oriundas de grupos culturais que não o canadense-francês adotarem-na: “Tu te achas quebequense, porque é capaz de falar francês? [...] Assim, seria muito fácil. Qualquer idiota poderia ser quebequense” (1977). Ou ainda, a indefinição do que significa ter orgulho de sua identidade cultural: “Eu tenho orgulho, pois sou um verdadeiro quebequense” (Idem), sugerindo que por mais que o nacionalismo québécois esvaziara a referência étnica presente nas manifestações anteriores, é sempre preciso balizar o sentimento nacionalista para que ele não se desvirtue em racismo. No monólogo, Les ethnies (As etnias), Deschamps aborda uma terceira ambivalência dos quebequenses, a falta de determinação de completar o processo de liberalização nacional: “Nos foram tomados 300 anos para sermos orgulhosos, agora vamos fazer um break” (2003). Disso, permanece até hoje o seguinte questionamento: é possível um sentimento nacionalista não ser acompanhado da determinação em constituir um Estado independente? Neste último período concernido por nossa pesquisa, a produção cultural engajada compartilha o espírito de desilusão, desmobilização e declínio do movimento nacionalista quebequense. Ao empregar o seguinte postulado de Maquiavel, “um Príncipe que se fundamenta apenas sobre suas palavras e não toma nenhuma outra medida, se encontra nu e condenado” para explicar a derrota referendária, Arcand acaba por reconhecer, como diz Beaudoin, “[que] não se faz um país cantando canções de amor” (1982, p. 98). Ou seja, todo o trabalho de animação de uma nova identidade e de sincera defesa de um ideal político desenvolvido por escritores, romancistas, poetas, cantores e cineastas quebequenses se mostra insuficiente na falta de um verdadeiro poder da ordem da alta política que o acompanhe. A obra de Deschamps, por sua vez, nos revela uma segunda razão por detrás do fracasso do referendo de 1980: a incapacidade do nacionalismo québécois solucionar suas ambiguidades e ambivalências. Apesar da desilusão com a derrota de 1980, um contexto excepcional4 permitiu o ressurgimento do nacionalismo quebequense no início dos anos 1990 e lançou a província em direção a um novo referendo em outubro de 1995. Contudo, mais uma vez os eleitores

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Marcado, sobretudo, pelas falhas dos acordos do Lago Meech, de 1987, e de Charlottetown, de 1992, - que previam a reforma do sistema federal canadense e o reconhecimento do Quebec enquanto sociedade distinta entrarem em prática.

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quebequenses votaram majoritariamente contra a independência.5 Esta segunda derrota em apenas

quinze

anos

manifestadamente

enfraqueceu

o

movimento

nacionalista

quebequense. Na canção Lettre à Lévesque, a banda Les Cowboys Fringants (Os caubóis vistosos) evoca as transformações do movimento nacionalista em uma carta póstuma enviada ao premiê René Lévesque: A vida te é menos chata no céu? Pois aqui as coisas estão um pouco mais obscuras Eu digo isso por dizer, não te revires em teu túmulo Tu que estiveste no centro Desta grande revolução Que colocou o Quebec em sintonia Com todas as modernizações Tu deves estar francamente decepcionado De ver que nós voltamos para trás Vocês que lutaram Para que nós fossemos mestres de nossos negócios No que diz respeito à independência Nós não podemos dizer que é uma febre O projeto não se renovou E nós falamos disso da ponta de nossos lábios Então, eu tomo o que me resta De meu orgulho de quebequense E eu te digo, René: “Até a próxima vez!” E eu nos digo: “Até a próxima vez!” (2004).

CONCLUSÃO Passadas três décadas dos acontecimentos de 1980, as discussões em torno do papel do nacionalismo na sociedade quebequense continuam a se fazer presentes. Ao buscarem reafirmar a atualidade de sua opção constitucional, muitos políticos independentistas são alvo de críticas de seus adversários, que acreditam que este debate deve ser encerrado. Por outro lado, críticas dessa natureza são menos comuns para artistas se exprimindo sobre a mesma questão. Essa diferença de apreciação ocorre, pois enquanto os políticos e os agentes econômicos sempre poderão ser criticados por privilegiar ou manipular determinada opção de acordo com seus interesses eleitorais ou financeiros, o mesmo dificilmente se aplica para os artistas, devido ao maior grau de liberdade de ação e expressão que estes detêm. Disso, concluímos que analisar uma manifestação nacionalista através da produção cultural engajada apresenta vantagens em relação ao simples estudo por meio do discurso político: ela permite compreender esta manifestação de uma maneira 5

O campo contrário à independência venceu por uma diferença de apenas 50 mil votos: 50,5% x 49,5%

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muito mais original. No caso do Quebec, é a adesão de artistas que confere ao movimento nacionalista québécois a sinceridade que faltara às manifestações anteriores, dominadas por políticos. Se, por um lado, as palavras dos artistas não foram suficientes para que uma maioria de eleitores escolhesse a independência, por outro lado, em 2011, 67% dos francófonos do Quebec se definiam como quebequenses (Cf. MARTIN, 2015), revelando a permanência da identidade québécoise mesmo após os fracassos referendários. É difícil imaginar este enraizamento do nacionalismo québécois sem as obras de artistas como Gaston Miron, Yvon Deschamps ou Gilles Vigneault, que deixavam de ser simples poemas, anedotas ou músicas para se tornar verdadeiros instrumentos de combate em favor da liberação nacional e afirmação do Quebec enquanto país francófono, moderno, aberto ao mundo e independente. A produção cultural contemplada nesta pesquisa nos permitiu retraçar algumas importantes características do nacionalismo québécois. Em primeiro lugar, destacamos a legitimidade que os autores pesquisados acordaram ao nacionalismo québécois. Pois, ainda que a história nos traga inúmeros exemplos de usos do nacionalismo para objetivos condenáveis, como a segregação, o racismo e a violência, no caso do Quebec, as obras revisitadas apresentam, na verdade, o perigo como sendo a permanência do Quebec na condição em ele se encontrava nos anos anteriores à Revolução Tranquila. O nacionalismo é visto como sendo a ferramenta capaz de colocar fim a tantos anos de inverno e lançar o Quebec na modernidade. Nesta nova manifestação, a referência ao território se torna mais importante que o pertencimento a um grupo étnico de canadenses-franceses. Assim, o objetivo do nacionalismo québécois não é o de assegurar a sobrevivência das populações francófonas no interior do Canadá, mas de estabelecer para elas um Estado nacional nos limites territoriais da atual província do Quebec. Ainda, o nacionalismo québécois é apresentado como laico e progressista, buscando estabelecer uma alteridade positiva com as demais populações do mundo e não uma relação de fechamento como fora a marca do nacionalismo canadense-francês. Contudo, a referência apenas a obras em língua francesa, denota a dificuldade do nacionalismo québécois se abrir à diversidade linguística, fazendo com que a língua francesa permanecesse um critério de acesso à identidade quebequense, como se o apoio à afirmação do Quebec enquanto nação devesse se limitar aos francófonos desta província.

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Ao exercerem tamanha importância no seio do movimento nacionalista québécois, afirmar que as obras de artistas engajados apenas acompanharam a evolução própria ao movimento – a saber, despertar, auge e declínio – nos parece redutor, quando, na verdade, eles se encontram na vanguarda da afirmação do Quebec enquanto nação. Em um primeiro momento, são realizados esforços para a derrubada do regime Duplessis. Em seguida, quando o “País do Inverno” começa a derreter, canalizam-se esforços para a promoção da escolha pela independência, cuja derrota no referendo de 1980, naturalmente, desmobiliza a produção cultural de cunho nacionalista. Registra-se, então, um verdadeiro cansaço em relação à temática nacional, afinal este debate se encontrava aberto desde meados dos anos 1960 e consumira, desde então, demasiados esforços, tanto por parte do lado independentista, quanto do federalista. No campo das letras, este cansaço se traduz pela emergência de uma produção inicialmente denominada “neoquebequense” e hoje conhecida como “migrante”, que abre a literatura à diversidade e à hibridização, esvaziando o foco no binarismo característico da questão da pertença nacional. A partir de então, em um Quebec cada vez mais marcado pela globalização – sobretudo por meio da imigração – o projeto de construção de uma memória nacional é cada vez mais suplantado pela constituição de comunidades de memória, nas quais não importa apenas a memória nacional quebequense ou canadense-francesa, como também aquela de todos os grupos étnicos e culturais oriundos da imigração que passam a compor o Quebec contemporâneo. Voltarmos a falar da Revolução Tranquila passadas cinco décadas de seu início e do nacionalismo quebequense após dois referendos derrotados não deve ser visto como um preciosismo, mas como algo essencial tendo em conta o atual contexto quebequense. Por um lado, o Estado Providência herdado da Revolução Tranquila é desmontado pela ação de sucessivos governos provinciais, especialmente, através de medidas de austeridade fiscal que colocam em risco a sobrevivência do modelo de sociedade quebequense caracterizado pela presença do Estado nas vidas econômica e social dos quebequenses e pela sua orientação à promoção de uma cultura e uma língua únicas no espaço norte-americano. Por outro lado, após muitos anos de ausência das principais tribunas do debate público, o nacionalismo parece ressurgir no Quebec, reativando um desejo independentista até então adormecido em muitos quebequenses. O novo chefe do Parti Québécois, Pierre-Karl Péladeau prometeu recolocar a questão da independência no centro de suas preocupações

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e lançou apelos para o estabelecimento de uma grande coalizão pela independência do Quebec. Em reação a isso, o atual Primeiro Ministro do Quebec, Philippe Couillard, partidário da permanência da província francófona no seio da Federação Canadense, já anunciou que a próxima eleição provincial, prevista para 2018, terá como principal temática o debate em torno da eventual separação do Quebec do restante do Canadá. Uma vitória do PQ liderado por Péladeau poderia lançar o Quebec em direção a um terceiro referendo, o que levanta o seguinte questionamento: Será na terceira ocasião em que os quebequenses, finalmente, se deixarão falar sobre amor, como diria Gilles Vigneault? Nada é mais incerto, tanto que até lá o Quebec continuará sendo o “País Incerto” dos contos de Jacques Ferron e o nacionalismo quebequense um objeto de interesse tanto de pesquisadores quanto das classes artística e política do Quebec.

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