A produção regional brasileira: relações com experiências latino-americanas e com o modelo norte-americano

May 25, 2017 | Autor: L. Correa de Araújo | Categoria: Latin American Cinema, Silent Cinema
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A PRODUÇÃO REGIONAL BRASILEIRA: RELAÇÕES COM EXPERIÊNCIAS LATINO-AMERICANAS E COM O MODELO NORTE-AMERICANO Luciana Corrêa de Araújo In: Stephanie Dennison. (Org.). World cinema: as novas cartografias do cinema mundial. 1ed.Campinas: Papirus, 2013, v. 1, p. 89-99.

Na história do cinema silencioso brasileiro, costumam ser destacados alguns momentos de produção cinematográfica mais intensa em cidades fora do eixo econômico e cultural formado pelas capitais Rio de Janeiro e São Paulo. São os chamados “ciclos regionais”, que incluem atividades registradas em Recife, Campinas, Porto Alegre, Pelotas, Cataguases, Pouso Alegre, Ouro Fino, Guaranésia e Belo Horizonte, entre outras cidades. Experiências semelhantes ocorreram em outros países da América Latina, nos quais se encontram produções isoladas ou mesmo focos mais consistentes de produção em cidades que não suas respectivas capitais. É o que observamos, de maneira mais intensa, em países como México, Colômbia, Chile e Venezuela; e em menor grau também na Argentina, Cuba, Bolívia e Uruguai. Este trabalho, de caráter introdutório, propõe estabelecer relações entre a produção regional no cinema silencioso brasileiro e nas demais cinematografias latino-americanas, ao longo do mesmo período. Iremos seguir uma abordagem em três tempos. Primeiro, algumas considerações historiográficas. Em seguida, um mapeamento das experiências de produção regional nos países da América Latina. E por fim uma análise comparativa entre dois longas-metragens de enredo: Retribuição, dirigido por Gentil Roiz no Recife, em 1925, e El tren fantasma, de 1927, realizado por Gabriel García Moreno, na cidade mexicana de Orizaba, no estado de Veracruz. Nesta última parte, o objetivo é investigar como os filmes incorporam o modelo cinematográfico estrangeiro, no caso o cinema de aventura norteamericano. Além das obras fundamentais publicadas por Paulo Antonio Paranaguá, que ocupam lugar central nos estudos do cinema latino-americano dentro de uma perspectiva comparatista, temos como referências principais para este trabalho as estimulantes considerações de Jean-Claude Bernardet, no livro Historiografia clássica do cinema

brasileiro (1995), e de Arthur Autran, no artigo “A noção de ‘ciclo regional’ na historiografia do cinema brasileiro” (2010).

Questões historiográficas Se a produção fora das capitais faz parte da cinematografia de diversos países latino-americanos, é na historiografia clássica do cinema brasileiro que tal produção ganha um batismo especial e especial destaque, por meio do termo “ciclos regionais” (B.J. Duarte, Paulo Emilio Salles Gomes) ou ainda “surtos regionais” (Alex Viany). Como aponta Arthur Autran, “trata-se de uma noção bastante difundida nos textos que compõem a bibliografia do cinema brasileiro, possuindo uma tradição que remonta aos anos 1950” (Autran 2010, p.116). Em textos históricos referentes a outras cinematografias latino-americanas, contudo, o que se encontra são expressões flutuantes, mais genéricas, tais como “producción en las provincias”, “fuera de la metrópoli” (Couselo 1992, p.38) e “cinematografías regionales fuera de la capital” (Susz K. 1992, p.66). A ideia de “ciclo”, na qual a produção se caracterizaria por constantes recomeços, sem alcançar uma trajetória contínua e regular, está presente em histórias panorâmicas dedicadas a cinematografias latino-americanas, como encontramos nos livros Cine latinoamericano 1896-1995, coordenado por Héctor García Mesa (1992), e Les cinémas de l’Amérique Latine, organizado por Guy Hennebelle e Alfonso Gumucio-Dagron (1981). Também no capítulo sobre a Bolívia no livro Cien años de cine latinoamericano 1896-1995, Belkis Espinosa Estrada refere-se a produções da virada entre os séculos 19 e 20, acrescentando: “A essas incursões esporádicas se seguiu um período de paralisação da produção até princípios da década de 1920, fato que se repetiria em outras ocasiões por fatores fundamentalmente econômicos” (Estrada s.d., p.61). Embora presente, porém, a ideia de ciclo não é aplicada às produções regionais, como acontece nos textos de autores brasileiros, nos quais a ênfase na noção de “ciclo” pode inclusive extrapolar o campo cinematográfico, como se vê na análise de Paulo Antonio Paranaguá, no capítulo que escreve sobre cinema brasileiro no livro Les cinémas de l’Amérique Latine. A propósito dos “ciclos regionais”, Paranaguá considera que “esta efervescência cinematográfica espalhada pelos quatro cantos do Brasil, ainda mais efêmera do que os ‘ciclos’ da história econômica nacional (o açúcar, a mineração, a borracha, o

café), é paralela a uma efervescência política, por vezes igualmente evanescente” (Paranaguá 1981, p.109). Ao conjugar a noção de “ciclo regional” a outros ciclos econômicos e políticos, Paranaguá explora uma abordagem que investe numa dimensão ideológica mais profunda, inserindo o cinema em uma dinâmica nacional mais ampla. O nacionalismo e a tendência à totalidade serão colocados em questão por Jean-Claude Bernardet nos capítulos iniciais do livro Historiografia clássica do cinema brasileiro, obra angular para os estudos de cinema brasileiro dos últimos anos. Depois de se referir à mudança sugerida por Paulo Emilio Salles Gomes no título do livro de Vicente de Paula Araújo – de O cinematógrafo no Rio de Janeiro para A Bela Época do cinema brasileiro –, Bernardet considera que a ampliação de carioca para brasileiro expressa o prestígio cultural da capital e expressa fundamentalmente o caráter nacionalista dessa história. Expressa também a força do mito, que se veria diminuída se restrita a proporções regionais (por mais que a região fosse a capital) e não alcançasse um âmbito nacional (Bernardet 1995, p.48).

Embora o nacionalismo seja marcante em textos históricos sobre as cinematografias latino-americanas no período silencioso, ele não costuma se manifestar na abordagem das produções regionais. O que nos faz pensar no contraditório movimento da historiografia clássica do cinema brasileiro, cujo empenho totalizador acaba por isolar a produção, menos conhecida, que ocorre em outras cidades além do Rio de Janeiro e São Paulo. Diante da dificuldade em inserir e relacionar essa produção dentro de um contexto “nacional”, cria-se para ela um nicho especial, o de “ciclos regionais”. Como já ressaltamos em outro trabalho, o termo “ciclo regional” vem se mostrando uma classificação cada vez menos satisfatória e precisa, pois na maioria dos casos, a noção de “ciclo” privilegia os filmes de enredo, os “posados”, desconsiderando a produção de “naturais” (não-ficção). Enquanto o termo “regionais” bem aponta o caráter centralizador embutido na expressão, resultado de um discurso historiográfico ancorado no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, desconhecendo outras possíveis atividades cinematográficas nos estados, ainda pouco ou nada pesquisadas e divulgadas (Araújo 2007, p.37).

No artigo em que discute a noção de “ciclo regional” na historiografia brasileira, Arthur Autran aprofunda esses e outros aspectos que constituem os limites desta noção para as pesquisas históricas empreendidas atualmente. Como resposta contemporânea à noção de “ciclo regional” ele propõe alguns caminhos, desde o aprofundamento das pesquisas

(incluindo o levantamento em periódicos) a abordagens que contemplem os estudos comparativos com outros países, citando experiências semelhantes no Chile e no México, ou ainda a enfoques que privilegiem questões transversais que perpassam diferentes espaços, a exemplo da influência do cinema norte-americano. Neste trabalho, portanto, procuramos conjugar algumas proposições de Autran, introduzindo alguns elementos comparativos entre as diversas produções regionais latino-americanas e tomando dois de seus títulos para analisá-los sob o eixo do diálogo com os filmes de aventura norteamericanos.

Produção regional na América Latina Além do Rio de Janeiro e São Paulo, diversas cidades brasileiras abrigaram focos de produção durante o período silencioso, começando desde a década de 1910, com Paulo Benedetti em Barbacena (MG) e Francisco Santos em Pelotas (RS), e se intensificando nos anos 1920. Em Minas Gerais, filma-se tanto na capital Belo Horizonte quanto nas cidades de Ouro Fino, Pouso Alegre, Guaranésia e Cataguases, onde Humberto Mauro dirige seus primeiros filmes. A produção de naturais (filmes de não-ficção) marca as atividades dos cinegrafistas Silvino Santos em Manaus (AM), Walfrido Rodrigues em João Pessoa (PB), e Arthur Rogge e João Baptista Groff em Curitiba (PR). Em Porto Alegre (RS), Campinas (SP) e Recife (PE) atua um número significativo de realizadores, produzindo tanto naturais quanto posados (filmes de enredo). No México, filma-se nas cidades de Guadalajara e Orizaba, e em estados como Yucatan, Sinaloa, Guanajuato, San Luis Potosi, Oaxaca, Puebla, Michoacán e Sonora. A descentralização, tanto em termos de exibição quanto de produção, já ganha relevo no cinema mexicano desde o início do século 20. Entre 1901 e 1906, com o enfraquecimento do mercado cinematográfico na Cidade do México (diminuição dos filmes exibidos e do número de espectadores, fechamento de salas), os profissionais deixam a capital e passam a atuar de maneira itinerante, instalando-se temporariamente em diversas cidades (Vinãs 1987, p.19). Segundo Moises Viñas, o fenômeno da “transumância [...], além de difundir amplamente o cinema, definiu um modo de exibição e condicionou a produção” (ibid.) 1. Nos anos 1910, a Revolução Mexicana irá constituir outro momento de estímulo ao 1

As traduções das citações originalmente em língua estrangeira são nossas.

deslocamento dos cinegrafistas, que percorrem diversas regiões do país a fim de registrar os acontecimentos. Na Colômbia, a produção não se restringe a Bogotá, ocorrendo também em Medelín, Cali, Barranquilla, Manizales, Pereira e Líbano. Na avaliação de Hernando Salcedo Silva, a existência de atividades cinematográfica nessas cidades atesta a vontade do cinema colombiano, desde suas origens, de se descentralizar: a produção cinematográfica não se concentra em Bogotá, ocorrendo também em outros estados do país, numa situação que se prolonga, de maneira intermitente, ao longo das décadas seguintes (Salcedo Silva 1981, p.232). No Chile, há produções em Valparaíso, Valdivia, Punta Arenas, Concepción, La Serena, Osorno, Antofagasta e Iquique. A pesquisadora Eliana Jara Donoso destaca, como “um fenômeno interessante registrado durante o período mudo”, que “a atividade cinematográfica não irá se centrar apenas na cidade de Santiago, mas irá se mover para as províncias” (Jara Donoso 1994, p.44). Na Venezuela, segundo Ricardo Tirado, a inauguração em 1922 do teatro Cine Mundial, em Valencia, o maior do país com capacidade para três mil espectadores, estimula a atividade cinematográfica em todo o território, não apenas em Caracas como também em Barquisimeto, Maracaibo e Valencia (Tirado 1992, p.333). Na Argentina e em Cuba, embora a produção se concentre predominantemente nas respectivas capitais, títulos são produzidos também em Córdoba e Santa Fe (Argentina) e em Santiago de Cuba. No Uruguai, um dos principais títulos da cinematografia nacional, El pequeño héroe del Arroyo del Oro (Carlos Alonso, 1929), vem da pequena cidade de Treinta y Tres. Em meados dos anos 1920, as atividades cinematográficas em Cochabamba, na Bolívia, são consideradas por Pedro Susz K. a primeira tentativa de fazer cinema longe de La Paz, já que, diferente de outros países latino-americanos, na Bolívia não se deu o caso de cinematografias regionais fora da capital, o que o pesquisador credita à extrema centralização do poder político e econômico, assim como ao baixíssimo grau de desenvolvimento nas cidades do interior (Susz K. 1992, pp.66-67). Como pensar a existência desses focos de produção? O que os estimulava e viabilizava? Um primeiro ponto a se considerar diz respeito à tecnologia do cinema que se tornava cada vez mais acessível. Embora fazer filmes nunca deixe de ser uma atividade

dispendiosa, o acesso a câmeras (novas ou usadas), a existência de lojas de materiais fotográficos e cinematográficos, a possibilidade de adaptações (como transformar projetores em câmeras) trazem a atividade para a esfera do possível, viabilizando que consumidores de filmes se tornassem produtores de imagens. A propósito da exibição e do consumo cinematográfico em capitais e em outras cidades latino-americanas de grande e médio porte, Paulo Antonio Paranaguá identifica na vitalidade do comércio exibidor não uma contraposição mas sim um estímulo à produção (Paranaguá 2003, p.26). Lavando adiante o argumento, podemos salientar alguns aspectos desta relação entre exibição e produção locais. A começar pela questão fundamental de formação do público cinematográfico. Um circuito exibidor vigoroso proporciona um contato sistemático entre espectadores e filmes, formando plateias e consolidando o hábito de “ir ao cinema” – hábito que, não raro, acaba por despertar o desejo de “se ver na tela”, abrindo caminho para o registro de imagens locais, inclusive dos próprios espectadores, como se vê nos diversos títulos que têm como assunto a saída dos frequentadores de uma sala de cinema. Além disso, a vitalidade da exibição cria, em maior ou menor grau, um meio cinematográfico constituído por profissionais e atividades ligados a funções técnicas como projeção, confecção de intertítulos, preparação de cartelas publicitárias para empresas locais ou para a própria sala de cinema, entre outros trabalhos que podem incluir mesmo a realização de filmes curtos, destinados a complementar a programação das salas. Em diversas cidades, encontram-se realizadores diretamente ligados ao comércio cinematográfico, vínculo importante no momento de viabilizar e veicular suas produções. Em Minas Gerais, o italiano Paulo Benedetti começa sua trajetória cinematográfica dedicando-se à exibição, à frente do Cinema Parisiense em Barbacena, enquanto em Pouso Alegre Almeida Fleming trabalha como gerente no cinema Íris, uma das salas de propriedade de seus irmãos, que possuíam outros cinemas no sul de Minas Gerais e no interior de São Paulo (Lobato 1987). Em Cochabamba, na Bolívia, o fotógrafo Manuel Ocaña mantém um negócio de compra e venda de equipamentos cinematográficos, sendo fundador da Photo Cinema Inca (ou Inca Film), envolvido em produções como Cochabamba y sus bellezas (1924) e no inacabado Khantutas (Susz K. 1992, p.66). Na pequena cidade mexicana de Zamora, o exibidor e distribuidor local Francisco García

Urbizu realiza Traviesa juventud (1925), no qual assume não só a direção como também o roteiro, a fotografia e os trabalhos de laboratório (González Casanova 1992, p.271). Ao lado do comércio exibidor, um dos fatores decisivos para o surgimento da produção nas cidades menores é a presença de personalidades singulares, capazes de aliar o conhecimento técnico à iniciativa de fazer filmes, atraindo investidores e mobilizando colaboradores para suas produções ou realizando filmes praticamente sozinhos, graças às suas habilidades técnicas e criativas. São profissionais ou amadores que se lançam na produção cinematográfica, mesmo diante das condições menos favoráveis, como se deu com Carlos Alonso, que viabilizou a realização de El pequeño héroe del Arroyo del Oro (1929) na pequena cidade uruguaia de Treinta y Tres. O filme viria a se tornar o maior sucesso do cinema silencioso uruguaio, alcançando grande repercussão e êxito comercial (Hintz 1988, p.26). A exemplo de Alonso, não é raro que a produção fora das capitais seja associada de imediato a figuras-chaves que, embora contando com colaboradores e financiadores, acabam por personificar a experiência cinematográfica local. Em uma lista que poderia incluir vários outros nomes, podemos citar Humberto Mauro em Cataguases, Benedetti em Barbacena, Almeida Fleming em Pouso Alegre e Ouro Fino, Carlos Arturo Sanín Restrepo em Líbano, na Colômbia, Francisco García Urbizu, na cidade mexicana de Zamora, Amábilis Cordero, fotógrafo de Barquisimeto, na Venezuela, Gabriel García Moreno, na cidade mexicana de Orizaba. Outras figuras catalizadoras, por sua vez, estarão ligadas não a uma cidade em particular, mas a várias, com presença marcante em cada uma delas. O chileno Alberto Santana trabalhou nas cidades de Valparaíso, Antofagasta, Concepción e La Serena, no Chile, além de dirigir filmes também no Peru (onde se torna o principal nome do período silencioso), Equador e Colômbia, em uma carreira que tem continuidade mesmo depois da chegada do cinema sonoro. Manuel Ocaña Larraín é apontado como um dos realizadores pioneiros tanto do cinema em Cochabamba, na Bolívia, quanto em Guayaquil, no Equador. No Brasil, uma personalidade peculiar é a de Eugene Kerrigan, diretor de filmes produzidos em Campinas, São Paulo, Guaranésia e Porto Alegre. Kerrigan apresentava-se ora como um diretor norte-americano, ora como o conde italiano Eugênio Maria Piglione Rossiglione de Farnet, quando na verdade vinha a ser um italiano sem título ou dinheiro, chamado Eugenio Centenaro (Autran 2000, pp.309-310).

Em mercados dominados pelo cinema estrangeiro, algumas estratégias de produção mostram-se comuns aos diversos locais, como a realização de filmes de não ficção e de cinejornais, contemplando assuntos e acontecimentos que não apareciam nos títulos estrangeiros – ou mesmo nacionais – exibidos. A produção fílmica fora das capitais costumava ser viabilizada por meio de iniciativas pessoais, ou de grupos, combinadas aos recursos de investidores locais. Levando em conta tais condições de produção e a procura por marcar traços diferenciais em relação aos demais títulos exibidos em circuito, não surpreende encontrar diversos filmes perpassados pelo caráter de propaganda, em suas diferentes formas: seja a divulgação das belezas e aspectos atraentes da cidade, seja a publicidade de estabelecimentos comercias ou mesmo a promoção pessoal e de figuras da sociedade. É uma característica mais evidente nos filmes naturais e nos cinejornais, que no entanto também está presente em filmes de enredo, a exemplo dos colombianos Nido de cóndores (Alfonso Mejía Robledo, 1926) e Bajo el cielo antioqueño (Arturo Acevedo, 1925). A trama de Nido de cóndores teria sido, segundo depoimento do cinegrafista Máximo Calvo, apenas pretexto para mostrar a origem e o progresso da cidade de Pereira (Suárez 2009, p.33). Do filme participavam pessoas da sociedade local, assim como acontece em Bajo el cielo antioqueño, filmado em Medellín, produção bancada pelo rico empresário colombiano Gonzalo Mejía. Em troca do investimento, ele exigiu que sua esposa interpretasse a protagonista, enquanto ele próprio assumia outro papel de destaque. A pesquisadora Juana Suárez observa que o enredo do filme, uma história de amor envolvendo a alta sociedade local, é um pretexto para documentar o vetor progressista e o aspecto industrial do estado de Antioquia, do qual Medellín é a capital (ibid.). Aos filmes de enredo e aos naturais, somam-se os filmes publicitários, que assumem sem subterfúgios seu caráter de propaganda, atendendo a demandas do mercado local. No Recife, a trama do curta-metragem Um ato de humanidade (Gentil Roiz, 1925) é veículo para divulgar os benefícios da Garrafada do Sertão, medicamento do Laboratório Maciel, que financiou o filme. Em Medellín, o chileno Urbano Valdés H. e sua empresa The Medellín Hollywood Pictures realizam os filmes publicitários Drogería Restrepo y Peláez, Joyería “La Marqueza” e La Torre Fotografia. Também na Colômbia, em Barranquilla, Floro Manco dirige El triunfo de La Fe (1918). Ao contrário do que o título sugere, não se

trata de um filme religioso e sim de uma propaganda da fábrica de cigarros La Fe, cujo dono é o produtor do filme. Os filmes de temática religiosa, porém, também permeiam a produção regional na América Latina, fazendo parte de uma tendência mais ampla, presente em diversas cinematografias nacionais, a ponto de Paulo Antonio Paranaguá identificar o “filme religioso” como um gênero ou subgênero, comentando alguns exemplos. Para ele, “a religião, a intervenção da providência e o sobrenatural são elementos dramatúrgicos que impregnam outras películas silenciosas e que vão conferir uma marca especial ao melodrama latino-americano” (Paranaguá 2003, p.44). Na produção regional, em particular, encontramos Amábilis Cordero filmando Los milagros de la Divina Pastora (1928) e La cruz del angel (1930), em Barquisimeto, na Venezuela. Entre os mais de dez filmes que dirigiu, Cordero “contou muitas histórias simples e ingênuas, com temas religiosos e rurais, eminentemente familiares, apropriados a suas férreas convicções e formação cristã” (Tirado 1992, p.342). Em Minas Gerais, Almeida Fleming deixa inacabada a produção In hoc signo vinces, com história baseada em textos sagrados e escrita em colaboração com padres locais, que contava com cenários dispendiosos (Viany 1987, p.63). Outra produção ambiciosa, exibida em duas partes, História de uma alma (Eustórgio Wanderley, 1926) adaptava o manuscrito homônimo de Santa Teresinha do Menino Jesus, utilizando-se de locações em Recife e Olinda para recriar os ambientes europeus.

El tren fantasma e Retribuição A seguir, iremos direcionar nosso enfoque para duas produções de fora das capitais: o mexicano El tren fantasma, realizado em Orizaba, e o brasileiro Retribuição (Gentil Roiz, 1925), filmado no Recife. Nosso objetivo é observar as particularidades na maneira como cada um dos filmes incorpora e retrabalha elementos do modelo estrangeiro, que nos dois casos é a cinematografia norte-americana, dominante no mercado latino após a Primeira Guerra Mundial. Os dois filmes inserem-se no pródigo filão dos filmes de aventura e dos seriados dos anos 1910 e início dos 20 que aliava ações espetaculares aos conflitos entre bem e mal. Procedimentos típicos de seriado são encontrados nos dois títulos como perseguições, armadilhas, brigas corporais, salvamento de último minuto.

Financiado por comerciantes e industriais da cidade de Orizaba, Gabriel García Moreno funda em 1926 a produtora Centro Cultural Cinematografico, depois de ter realizado no ano anterior o longa de ficção El buitre, uma “história de aventura sobre ladrões de gado na qual ele procurava emular os filmes americanos que o haviam impressionado” (Drew e Vásquez 2003, p.11). O primeiro filme da nova produtora é Misterio (1926), do qual se encontra preservado apenas um rolo, e logo em seguida García Moreno dirige El tren fantasma, filmado em 1926 e lançado no ano seguinte, inclusive com bem-sucedidas exibições na Cidade do México. Filiado ao gênero de aventura, El tren fantasma traz muitas das tradicionais cenas de ação e perigo ao contar a história do engenheiro que chega a Orizaba para investigar uma série de crimes e sabotagens ocorridos em uma linha da estrada de ferro El Ferrocarril Mexicano. Ele se encanta pela filha do chefe da estação, também cortejada por um galante local que logo se revela o chefe da quadrilha. O vilão forja o sequestro da mocinha, apenas para fingir ser seu herói salvador, enquanto o engenheiro mostra-se exímio herói de ação ao salvar sua amada de um trem em alta velocidade e enfrentar os bandidos. No final, o vilão sacrifica-se para salvar a vida do casal, regenerando-se em um último ato de integridade. Neste filme, há uma eficiência narrativa que constrói habilmente situações, personagens, conflitos e desenlaces, demonstrando familiaridade ao lidar com as características do gênero. As sequencias de ação são filmadas de maneira empolgante, tirando proveito tanto dos cenários naturais quanto dos perigos físicos e situações de risco enfrentadas pelos atores, como na sequência de luta entre vilão e mocinho em cima de um trem em movimento. A familiaridade com o código do filme de aventura permite ao diretor até mesmo comentar ironicamente os clichês do gênero. Em determinado momento, o vilão forja um tiroteio com os bandidos de sua própria quadrilha, para impressionar a mocinha sequestrada, fingindo-se seu salvador. Terminada a encenação, o bando cai na gargalhada. O gênero de aventura e os seriados também são referências centrais para Retribuição, a primeira produção da Aurora-Film, cujos recursos nesse momento vinham das economias de seus integrantes. Neste primeiro filme, ainda não havia o investimento de comerciantes locais, como viria a acontecer em seguida.

Na trama, o pai deixa um mapa do tesouro para sua filha, que algum tempo depois irá contar com a ajuda de um jovem recém-conhecido para ir em busca da fortuna escondida. Durante a procura, eles são capturado por bandidos, que também cobiçam o tesouro. Apesar de caracterizados seguindo o modelo dos bandidos de filmes norteamericanos, seus nomes adotam sonoridades e gírias bem brasileiras: o líder é Corisco e seus comparsas se chamam Bala n’Agulha, Timbira e Maciota. O embate entre o mocinho e os bandidos acontece no terreno acidentado das minas de giz de Olinda, o que rende cenas “de sensação” e perigo físico, como quedas, deslizamentos e brigas à beira de barrancos. Quando o casal é feito prisioneiro, quem surge para salvá-los é o irmão da mocinha, o verdadeiro herói do filme, que aciona a polícia e, sozinho, luta contra todos os bandidos, derrotando-os e libertando os prisioneiros. No fim, mocinha e galã se casam e vivem felizes com o tesouro finalmente encontrado. Nesse como em outros filmes silenciosos brasileiros, há uma flagrante dificuldade na construção do herói, o que repercute diretamente na fragilidade narrativa de condução e desenlace do conflito. A princípio, o galã desempenha o papel de herói, mostrando-se valente nas situações de perigo. Em seguida, porém, outro personagem assume as funções de herói, restando ao galã um papel de desconcertante passividade. Percebe-se um deslizamento entre as figuras do galã e do herói, aspecto que já analisamos em trabalho anterior (Araújo 2011). Também nesse sentido, El tren fantasma demonstra grande habilidade e conhecimento dos códigos do gênero, ao desenvolver com precisão as caracterizações e os desempenhos dos personagens do galã-herói e do vilão. Curiosamente, é Retribuição que deseja aderir inteiramente ao modelo norteamericano, enquanto El tren fantasma desenvolve uma curiosa dinâmica entre adesão e distanciamento irônico. Talvez essa característica do filme mexicano deva ser creditada não só à experiência de García Moreno (que já havia realizado dois filmes) como também à relação com uma tradição cinematográfica nacional anterior. Em artigo sobre o diretor, William M. Drew e Esperanza Vázquez Bernal chamam a atenção para o fato de que El tren fantasma exibe influências norte-americanas mas também está solidamente vinculado à tradição do cinema silencioso mexicano, situando-se como legítimo herdeiro de El automóvil gris (Enrique Rosas, 1919), um dos clássicos da produção nacional,

originalmente exibido em formato de seriado, em doze episódios (Drew e Vásquez 2003, p.13). Neste caso, se percebe um vínculo – e dos mais significativos – entre a experiência regional e a produção de alcance nacional. Existe uma experiência anterior que é conhecida e reconhecida pelo realizador Gabriel García Moreno e provavelmente também pelo seu público. Em relação ao cinema brasileiro, sobretudo às produções regionais, tal reconhecimento pouco ou nada existia. O grupo de Recife tinha como referência direta e dominante o cinema estrangeiro. Não havia uma conexão mais consistente com uma tradição de cinema brasileiro ou mesmo com produções nacionais contemporâneas – lembrando que o que se poderia chamar de “tradição” e “cinema nacional” ainda eram conceitos em construção. O circuito de comunicação e divulgação estabelecido pelos jornalistas Adhemar Gonzaga e Pedro Lima nas revistas cariocas Para Todos...¸ Selecta e Cinearte traz uma contribuição inegável para amenizar esse quadro, mas não supera a dificuldade primordial que é a circulação dos próprios filmes. Além disso, não se pode perder de vista as distintas posturas em relação aos Estados Unidos e à cultura norte-americana. Para os jovens realizadores pernambucanos, provenientes das classes média e baixa, os Estados Unidos e Hollywood representavam o ideal a ser alcançado, sem maiores restrições ideológicas. Para os mexicanos, se colocava uma relação tradicionalmente mais ambígua com os Estados Unidos, feita de aproximações e distanciamentos, adesão e ruptura. Ao tratar tanto da produção quanto do comércio e da cultura cinematográfica nas cidades latino-americanas de grande e médio porte, Paulo Antonio Paranaguá argumenta que nesses polos urbanos “se travaram formas de diálogo ativo com os filmes consumidos” (Paranaguá 2003, p.27). Procuramos aqui, a partir da análise de El tren fantasma e Retribuição, salientar aproximações e diferenças entre duas produções regionais em relações ao modelo norte-americano, observando algumas particularidades que enriquecem e problematizam esse “diálogo ativo” com a produção estrangeira.

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