A propósito de \"Caderno de Memórias Coloniais\"

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“Caderno de Memórias Coloniais”, de Isabela Figueiredo ma-schamba (12.01.10 e 22.01.10) José Pimentel Teixeira (cinco anos depois de um conjunto de textos in-blog sobre este livro, um amigo muito prezado lembra-me esta pequena polémica. Criticando o tom demasiado acintoso que terei eu usado e a mediocridade da argumentação. Vindo de quem veio a invectiva surpreendeu-me e acho-a desajustada. Por isso junto os textos aqui, apesar de em tempos já os ter integrado no conjunto “A Oeste do Canal”. Talvez ele releia. E mude a opinião.)

I.

(12.1.2010)

[Marcello Caetano ovacionado no estádio de Alvalade, num Sporting-Benfica, no final de Março de 1974.]

O bom de ter um blog colectivo é poder entrar em polémica interna (já que para a externa isto "foi chão que deu milho" ...). Vem isto a propósito do ditirambo do António Botelho de Melo sobre o recente “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabel Figueiredo e respectivos comentários. Onde há muita coisa com que discordo. E que me apetece aqui realçar pois ultrapassam a questão abordada. 1. O texto do ABM refere-se ao livro "Caderno de Memórias Coloniais", de Isabela Figueiredo (editado pela Angelus Novus), autora do Novo Mundo (e anteriormente do O Mundo Perfeito). Ainda não li o livro em causa - soube da sua edição através do Francisco José Viegas e li a crítica de Eduardo Pitta, opiniões literárias que muito prezo, mas ainda não o comprei. Há alguns anos li o O Mundo Perfeito e fui, progressivamente, abandonando o seu convívio. Meu 1

gosto, apenas. Entendera o conteúdo, cansei-me da escrita. Coisa normal que não tem que ser nem adjectivada nem explicada. Como é óbvio sem ter lido o livro, tendo uma longínqua memória de alguns textos (os quais, aliás, coligidos e julgo que aumentados - em livro até poderão saber-me diferente) e agora apenas com algumas citações desgarradas, seja no Da Literatura seja no Jugular, procurarei nada dizer sobre o seu conteúdo nem sobre a sua forma. Mas ocorre-me citar o Francisco José Viegas: "Isabela Figueiredo, neste livro, fornece uma das imagens possíveis, explosiva, comovente, em chamas. É bom ver que, finalmente, se pode falar livremente sobre África.". É disso que se trata. Nos últimos tempos do ma-schamba por várias vezes o trio teclista e alguns dos prezados comentadores residentes temos falado do interesse, da necessidade, em produzir e recolher as memórias do período colonial. Nesse sentido não há as "memórias correctas". A cada um as suas. Que se queiram assumir como absolutas, correctas, é inadmissível. Que as queiram assumir como inaceitáveis, é inaceitável. Assim a insurreição diante do livro, ainda por cima assente numa pequena nota crítica de Fernanda Câncio, parece-me algo apressada (vamos lá a ler o livro) e, fundamentalmente, em contracorrente com o que, no meio das nossas divergências, aqui temos vindo a defender. O ABM e comentadores acusam a autora de ser jovem quando saiu de Moçambique, o que invalidará as memórias. Ora o livro não é um texto histórico, factual. Nesse âmbito que interessa, ou seja o em que é que menoriza, que tenha ela saído jovem de Moçambique? Recordo uma outra bloguista que jovem saiu de Moçambique, e cujo livro memorialista não levantou essa questão: Isabella Oliveira, do Chuinga. 2. A questão de fundo parece-me ser de fácil identificação: a autora invoca o racismo dos colonos portugueses. Discutir a forma como o faz, repito-me, exigirá ler o livro (ou mergulhar nos seus blogs). Mas a questão fundamental não é essa: a questão relevante é a de auto-inteligibilidade, de autocompreensão, no fundo a da construção das memórias de cada um. Dos que conheço (e dos que leio) a esmagadora maioria dos portugueses que viveram o período colonial em África assentam a sua percepção desse real numa tríade, mais ou menos difusa: teórica - a de uma simpática particularidade miscigenadora portuguesa (um digest de Gilberto Freyre, reavivado pela intelligentsia socialista lusófona do fim do milénio, profundamente herdeira do republicanismo colonial); histórica - a da inexistência de um verdadeiro 2

racismo, ou de um racismo violento, no sistema colonial português (percepções assentes no memorialismo sobre as interacções infantis, juvenis, domésticas, sexuais, até escolares, mas nunca sistémicas); política - as ditaduras subsequentes às independências foram piores do que o colonialismo (concepção sempre recorrendo à quantificação do mal). Apontar(-lhes) que o extraordinário mas datado trabalho de Freyre teve evoluções ou até propor(-lhes) que era acima de tudo um discurso afirmativo da superioridade civilizacional do Brasil sobre os EUA (e portanto do necessário primado na cena americana e mundial)? Não colhe. Afirmar(-lhes) que as ditaduras de Luís Cabral, de Agostinho Neto, a socioeconomia de guerra de Eduardo dos Santos, o totalitarismo de Samora Machel não são comparáveis, em termos de regime, da sua natureza, das suas constituintes, com o colonialismo? Não colhe. Afirmar(-lhes) que o regime colonial era racista, no seu sistema, na sua essência, e que um regime e um sistema só vivem pelos seus agentes, pelos seus indivíduos, ainda que estes diversificados na sua heterogeneidade individual e contextual? Nem (lhes) interessa. Continuo a insistir. É importante ouvir a memória do tempo colonizado. A dos colonizadores, a dos colonos, a dos colonizados. Todos eles, na sua multiplicidade, na sua diferença, as constroem. Com resultados muito diversos. 3. Com o que eu concordo, e muito, é na inadmissibilidade, tantas vezes explícita e muitas outras implícita, de traçar um corte na sociedade portuguesa de então: a racista (fascista) colona, a longínqua oprimida metropolitana. Algo encetado logo no 1974, no preconceito português tardo-metropolitano contra os "retornados" e ainda recorrente. Está aí em cima, e não apenas para provocar, a fotografia de 31 de Março de 1974. Marcello ovacionado pelo povo de Lisboa. Não para negar, pura e simplesmente, a adesão do povo português à democracia e à paz (ou à paz e à democracia, inversão que o "fernãolopismo" encomiástico nunca admite). Mas para a matizar, complexificar. E também na inadmissibilidade, porque desadequação, de entender "racismo" como uma universalidade e uma homogeneidade de práticas e concepções, seja in illo tempore seja nos tempos actuais. Muito menos como se uma "condição nacional", um "pecado original particular". A autora percorre esse caminho? (algumas citações deixam-no entrever). Simplifica o seu olhar, empobrece-o? Talvez assim seja, mas isso será coisa a discutir depois de lida. E reconhecendo que o seu interesse lhe vem exactamente da sua subjectividade, que extremada seja, e não apenas da sua 3

factualidade - e com isto não nego o interesse de memórias assentes em factos, documentos mais literais. Apenas a elas não me restrinjo. ( …) 4. A comentadora Sabine tem toda a razão - muito do que o ABM critica está espetado em textos antigos meus aqui metidos. É esta a piada de ter um blog colectivo que não é um instrumento político (ou de outra qualquer índole). Somos amigos que não concordamos em muita coisa. E partilhamos um. (…)

II. O erro é o outro (22.01.10)

Rui Bebiano escreve sobre “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabela Figueiredo e sua recepção: "Do Outro Lado do Tempo". No qual considera o maschamba local de “preconceituosos”, ligando directamente ao texto de ABM sobre o livro. No seu texto Rui Bebiano afirma a complexidade da sociedade colonial e os processos de construção da sua memória [silêncio por um lado, mi(s?)tificação por outro] em Portugal. Quási-termina, e muito bem, com a clarividência que lhe é habitual: "Os portugueses que povoaram o império colonial, ou «o nosso ultramar», não podem ver o seu passado apagado, esquecido, ou então pintado com as cores apenas agradáveis que a descolonização teria manchado. Ele conteve também experiências amargas, difíceis, perturbantes, por vezes únicas. Reconhecer esta diversidade só valoriza esse passado ...". Posto isto ocorre-me opinar.

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Entendo que a construção da memória colonial passou por um discurso explícito à época das independências (e implícito desde então) que por um lado denota e por um outro lado procura instalar uma dupla fractura na sociedade portuguesa, e que está para além das memórias dos ex-colonos, da sua visão. A primeira é topológica: é notório que alguns sectores ideologicamente mais ligados ao momento colonial purificam esse passado, reproduzindo o mito do "bom colono" até à exaustão, assentes numa bondosa visão ontológica ou culturalista do "português" (ainda que esta concepção resvale transversalmente - e surpreendentemente? na sociedade portuguesa, veja-se o influente tardolusotropicalismo de Boaventura Sousa Santos). Noção que casa, em comunhão de alimentos, com a nostalgia mitificadora que Bebiano identifica. Mas também é certo que desde o retorno das comunidades portuguesas em África houve um movimento inverso, o da sua demonização generalizada, a imagem do "explorador dos pretos". Essa aversão terá sido causada pela noção social dos custos da guerra e, também, pela muda mágoa da derrota. Mas, fundamentalmente, nessa invectiva o colonialismo, suas causas e benefícios, foi remetido para a "sociedade colona" e para os reduzidos estratos possidentes (grupos económicos nacionais, na sua maioria também então expropriados via nacionalização, donde culpabilizados). Deste modo o colonialismo foi extirpado da sociedade metropolitana, uma higienização homogeneizadora e automitificadora que a apresentava como martirizada pelo fascismo (e pelo próprio colonialismo) - o carácter estruturalmente colonial da socioeconomia portuguesa foi assim torneado. Essa amputação benéfica, até moralizante, traduziu-se na criação de um "Outro" (pouco)interno, o colono. O silêncio memorialista de décadas da população retornada que Bebiano refere, a sua rápida e silenciosa integração no Portugal de então ("supostamente indolor", como bem diz) terão sido também (é minha mera opinião) respostas a essa aversão concidadã (e, evidentemente a necessidades socioeconómicas, de não ficar "a viver no passado"). Mas a aversão foi e é também ideologicamente produzida e reproduzida pelos sectores mais adversos ao Estado Novo colonial, que assim simbolizavam e balizavam a sua recusa do passado. Até hoje. Assim sendo falar dessas memórias tem sido desde esse tempo não tanto falar do passado recente colonial mas, e fundamentalmente, traçar uma topologia de discursos sobre o Portugal actual. Utilizando a história (quasi-alheia) para nos situarmos "neste" ou "naquele" lado. Quase sempre encastrados na areia.

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Parece-me pois normal que a produção de discursos sobre o passado colonial e, muito em particular, a produção de discursos de recepção aos discursos sobre esse passado levante reacções acaloradas e adesões inesperadas. Não tanto por uma súbita curiosidade historiográfica, mas fundamentalmente porque (ainda!) são motrizes de auto-posicionamentos individuais e colectivos no espectro político. E, porque assim a história surge como mero objecto para manipulação actual, nisso se vai coisificando o passado colonial e, por maioria de razão, coisificando os seus interagentes sociais: os colonos e os colonizados, nas suas multiplicidades contextuais. Mas para além dessa fractura "sistémica" entre o Portugal vítima e o Portugal colono, houve a proposta de uma segunda fractura, sociológica, a identificar. Nesse caminho, nesse "luto colonial" como Alfredo Margarido chamou ao silêncio português sobre África, sublinhou-se uma noção implícita e indita, a da excentricidade da população colona. Por um lado a afirmação da sua "sobreportugalidade", por parte das vozes mais saudosas da "gesta nacional", considerando-a gente sobrecapaz, agente de grandes feitos, uma imagem que convive (paradoxalmente?) com discursos que afirmam a mediocridade do povo português residente, um contexto político-discursivo que tantas vezes baseia nesse elitismo a sua inimizade à efectiva democraticidade do país. E, por outro lado, a afirmação a da sua "importugalidade", a da sua bestialização exploratória, ao invés das mais pacíficas (solidárias) populações metropolitanas e/ou então imigradas para o mundo industrializado. Esta imagem é gerada num contexto político-discursivo (e de investigação) que valoriza a voz e os percursos dos estratos mais baixos da sociedade (melhor dizendo, valoriza os discursos sobre a voz e os percursos dos estratos mais baixos da sociedade), por isso mesmo desapaixonandose de um contexto colono, sempre ou elite ou intermédio na sociedade colonial exploratória. Essa excentricidade, esse verdadeiro "expatriamento" dos colonos enquanto tal, funcionou e funciona como uma des-identificação. O ónus da "sobreportugalidade" não é suportável, pela sua evidente inexistência, pela confrontação (esmagadora) que provoca às biografias. E o estigma da "bestialização" apenas poderia provocar um tribalismo "pied-noir" ou, como foi o caso, o desenlaçamento comunitário - salvo alguns núcleos convivenciais, até tardios, mas sem repercussões de índole socioeconómicas e, muito menos, políticas. Incrementando os mecanismos de mitificação do passado, sobredimensionando as reacções às construções históricas, sejam elas positivas ou negativas.

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Nesse sentido o mundo português colonial (pela sua mitificação, positiva ou negativa, pela santificação ou pela demonização, seja pela sua sobreportugalidade seja pela sua importugalidade) é expelido de Portugal, e o Outro Colonial é reificado. E esses processos funcionam através da mesma metodologia, assentam em generalizações, produtoras e reprodutoras de desconhecimento histórico. Similitudes que cruzam aparentes divergências ideológicas. Ao falar-se do livro de Isabela Ferreira, ao ler-lhe o blog inicial, ao ouvi-la agora, o que encontro é exactamente o mesmo tipo de operação intelectual: a generalização (culturalista? ontológica?, há que ler o livro para lhe entender as forças motrizes, muitas vezes apenas discerníveis na retórica) produtora de desconhecimento. Uma generalização aposteriorística (como já em texto anterior aqui disse). Para quem diga que isso é inultrapassável no discurso (literário ou outro) importa sublinhar/repetir que o aqui se trata é da projecção no passado de questões ideológicas e políticas actuais, um passado imaginado (literário que seja) para falar do hoje, do fincar o respectivo posicionamento - e daí as adesões e efusões que tanto tem provocado. Seja a autora sejam muitos dos leitores. O livro aborda a realidade colonial. Bebiano diz-nos que esse passado "conteve também experiências amargas, difíceis, perturbantes, por vezes únicas.", uma "violência latente ou explícita do quotidiano". Com toda a certeza. Para além da violência colonial (que era e é a essência de uma situação colonial, sistémica) é notório que essas são características que todas sociedades históricas contêm, sejam as ameríndias que Rousseau não conheceu seja a rotineira "república dos relógios de cuco" de Orson Welles. Descrever essas experiências assente em generalizações, em imputações culturalistas, em negação da multiplicidade histórica, postulando um qualquer "nós", bom ou mau, para além das empirias? Não me ofenderá se houver génio (seja lá o que isso for) literário. Por isso muito estou curioso em ler o livro. Há genialidade? Fantástico, não interessarão as generalizações empobrecedoras. Mas se não a houver, se estivermos apenas diante de uma prosa (boa, média, má) mortal que pretende descrever um passado, imputar e invectivar esse passado assente em generalizações preconceituosas então isso é, quanto muito, panfletarismo. Mais ou menos catártico, mais ou menos teatralizado. Produtor de cegueiras, reprodutor de preconceitos. Des-conhecedor. Do tal mundo expelido de Portugal. E que assim não é reintegrado, auto-compreendido, pese a retórica "desveladora" que anuncia e que o recebe. E, como tal, des-conhecedor do próprio objecto Portugal.

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A expulsão do mundo colonial, da sua voz, do encontrar as nuances para além do pólos "beleza tropical" / "violador de pretas", é uma incapacidade de olhar a multiplicidade colona - e, frise-se, nisso também se afirmando a incapacidade epistemológica ou literária (consoante o discurso) de olhar a multiplicidade colonizada. Mas essa coisificação do colonizado (que aliás é o que mais me interessa nesta trama toda), esse desinteresse analítico por África que é estruturante em Portugal é questão que, ainda que ligada a todos estes factores, exigiria um outro texto. Essa incapacidade, esse desinteresse (ideológico?), pelo "mundo" colono (e, por arrastamento, pelo "mundo colonizado") denota-se no próprio texto de Bebiano. "Só pelos meados da década de 1990 surgiram os primeiros estudos e recolhas de testemunhos, e só agora, quase quarenta anos passados sobre o fim do conflito, se tornou normal ouvir ex-militares, ou as suas famílias, a falarem de forma livre dessa experiência durante tanto tempo calada. Percebe-se finalmente que tudo foi menos simples, e menos insignificante para a vida das pessoas envolvidas, do que se pensava com o cheiro a pólvora ainda nas narinas.". Ou seja, o que Bebiano anuncia - com toda a certeza en passant, como é normal no registo blog, ainda que ele seja um bloguista de excelência - é que o olhar sobre África sobre o qual atenta é o olhar metropolitano sobre África, dos soldados (na sua esmagadora maioria metropolitanos, e é notoriamente a eles que o autor se refere). Se pegarmos na sua excelente obra "O Poder da Imaginação. Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60" (Angelus Novus, 2003) este movimento já se encontra. A juventude portuguesa em África (pp. 156-160), as suas práticas e imaginários, sua ligação com o sistema português, são brevemente lidos através dos olhos dos letrados (oficiais?) metropolitanos ali deslocados. Entenda-se, a sociedade colona como tal inexiste na reflexão, como se ela não pertencesse à dimensão portuguesa da "cultura-mundo" (p. 13) ou, pelo menos, fosse verdadeiramente significante para a reflexão [poder-seá dizer, e concordarei de imediato, que todo o trabalho tem os seus limites de objecto. Mas aqui parecem-me inditos e/ou provocados por este contexto intelectual. Ou a memória está-me a trair muito]. Entenda-se, também aí ela - a sociedade colona - está expulsa do que é o objecto (Portugal). É certo que o movimento colonizador foi tardio (como mostra Claudia Castelo em "Passagens Para África.", Afrontamento, 2007), mas nos anos 60 havia já uma enorme população não-metropolitana, na maioria de primeira geração mas também de múltiplas gerações em África. E como tal, basta(s) juventude(s) e seus discursos. Não chamo isto para criticar Bebiano, misturar o registo de blogs com 8

livros profissionais, apoucá-lo, menosprezá-lo. Pelo contrário, friso que muito gostei deste seu livro (e quem seria eu para o questionar, se fosse caso contrário). Apenas convoco essa dimensão para referir que até num intelectual possante como Bebiano se encontra (pelo menos nesta sua obra e, secundariamente, neste seu pequeno "postal") a matriz estruturadora destes preconceitos ideológicos sobre o mundo colono, desta "outrização" colona, da sua expulsão do verdadeiramente significante, de um higienismo societal feito projecto ideológico no regime democrático português. A qual assenta, repito-me até à exaustão, na mera utilização de generalizações a la carte. Talvez por isso agora este agrado, a defesa entusiasmada, com a obra aparecida. Que é mais-do-mesmo, afinal. Só que, agora, do "lado certo". Para aquele "lado", claro. Finalmente. Pode o meu caro ABM ter caído no caldeirão laurentino dos "preconceitos" e, pese embora o seu riquíssimo trajecto biográfico, não passar de um irremediável "cego" com prosápias. Posso eu mesmo, pela minha biografia, ininteligência ou até pela raiva contra tudo contra o que me parece neo-comunismo europeu de fachada libertária (ainda que, concedo, às vezes nem o seja), estar viciado em goladas dessa poção preconceituosa que me condena às trevas da "cegueira". […]. Mas é nestas trevas pre-conceituosas em que vegeto que me ocorre que Rui Bebiano, e talvez alguns outros, sofrem de uma ligeira miopia. Ou melhor, de um pequeno astigmatismo, que é coisa bem diferente. Nada que não se possa resolver, facilmente, com umas meras próteses oculares. Isto se não continuar(em) a pensar que o erro é o outro. (…)

ADENDA: uma semana depois de ter escrito este texto ouvi toda a entrevista radiofónica de Isabela Figueiredo, feita por Carlos Vaz Marques. Após isso deixei neste texto um comentário nela baseado. Mas ficará melhor arrumado aqui, como será óbvio a quem ainda aqui volte. Abaixo fica a sua transcrição: "Ainda que em contradição com o que disse acima regresso aos comentários deste texto sem ser em diálogo directo com outros comentadores. Mas só ontem ouvi toda a espantosa entrevista radiofónica de Isabela Figueiredo realizada por Carlos Vaz Marques. E como não escreverei nenhum texto (postal) sobre o assunto, quero deixar alguns pontos: um, que já tinha referido, mas que nunca é demais lembrar, é o do seu absolutismo intelectualmente incontrolado: "todos os homens eram como o 9

meu pai [aka, horríveis], alguns até piores", algo surpreendente - e não é uma expressão literária, é uma opinião, portanto não tem requebros retóricos ou formais que a defenda. [as "citações" são aproximações ao discurso oral, mas procuram ser o mais fieis que me é possível]. Depois há a sua recorrente, e "lamentosa", afirmação "eu estava lá, eu era colonialista, eu fui colonialista, eu assumo". Para uma pessoa que viveu em Moçambique até aos doze anos (por mais que tivesse dado uma estalada numa outra) isto é surreal. Ou seja, denota uma teatralização do seu estatuto, uma sobrevalorização pessoal que apenas - só pode - quer funcionar como instrumento de legitimação empírica do discurso. Pobre afirmação e legitimação. E, entenda-se, a reclamação de "colonialista" para uma menina de 12 anos, ainda para mais reclamada 35 anos depois, é de uma indigência intelectual, de uma ignorância pungente sobre tudo o que é reflexão sobre aquele sistema histórico, e não apenas semântica - algo pouco aceitável para quem afirma ter passado as últimas décadas envolta nesta sua característica biográfica (alguém me poderá vir dizer que IF quer ser a Gunther Grass portuguesa, mas nem sorriso isso provocará). Finalmente, a cereja em cima do bolo. A autora diz que reconhece logo, e ainda hoje, os moçambicanos no meio de outros africanos (negros). Pois eles são lindos, têm uma cor fantástica, especial, têm características emocionais e estéticas únicas, tudo isso por ela (só por ela?) imediata, visceral, espontaneamente reconhecível - sei que os meus amigos moçambicanos (negros e não só) que aqui tenham chegado (ou que a tenham ouvido) já se estão a rir (e, com toda a certeza, a afiarem a língua para os óbvios impropérios de retórica machista que este tipo de discurso provoca). Mas vamos ficar no registo sério: ouvir este discurso é ouvir o típico discurso racialista, a da homogeneização alheia, a da des-individualização alheia (bonitos?, todos? a mesma cor da pele? todos? simpáticos? todos? agradáveis? todos? etc? todos?). É este discurso generalizador que IF utiliza para os colonos (portugueses, brancos, horríveis, infectos) e para os ex-colonizados (moçambicanos, negros, lindos, bemcheirosos). É este discurso racialista, húmus de todo o racismo, que usa para o contexto moçambicano. Paternalista, desconhecedor. Acima de tudo racista na sua negação da multiplicidade estética, emocional, comportamental, afinal individual. IF é apenas mais uma das pessoas que pensa assim, mal e pauperrimamente, sobre os outros, neste caso sobre os moçambicanos - já encontrei inúmeras pessoas com este tipo de discurso, o desvalorizador do alheio (neste caso do negro), da sua irredutível diversidade humana - mesmo que, e é uma das versões, disfarçado (até 10

inconscientemente) pelo elogio colectivo, por um olhar "simpático" sobre o magma alheio. O que me surpreende não é que IF assim pense, assim escreva, assim fale. Há tantos e tantas assim. O que me surpreende (pouco) e entristece (também já pouco) é que no meu país um meio literário, cultural, até jornalístico, que se reclama de um eixo intelectual e político moderno (ou pós-moderno), democrata [alguns até libertários], unanimemente anticolonial e crítico do conteúdo colonial português, que esse meio acolha acriticamente estes dislates, um discurso neles assente. Elogiam-no, defendem-no e (como em recente artigo no suplemento cultural do jornal Público, de Vanessa Rato) é-lhe até aventado o estatuto de iniciador de um discurso póscolonial em Portugal. Esta adesão será conjuntural por um lado - um pouco de "estação", um pouco por efeitos de grupos (blogo)mediáticos - mas é por outro lado indiciadora de um contexto intelectual dominante: está no Público, está nos jornais, está na rádio (o desvelo de Carlos Vaz Marques é óbvio), está nos blogs. Dislates da autora. Pouco importante. Mas que gigantesco manto de ignorância no meu Portugal todo este pequeno fenómeno vem desvendar. E isso sim é lamentável. Doloroso. Porque estrutural."

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