A propósito de Cristiano Ronaldo

July 18, 2017 | Autor: Pedro Vaz Serra | Categoria: Public Administration, Sports
Share Embed


Descrição do Produto

A propósito de Cristiano Ronaldo (publicado no Diário de Coimbra, em 22/06/2009 – segunda-feira)

O mundo assistiu, num misto de admiração e incredulidade, aos pormenores da transferência de Cristiano Ronaldo, do Manchester United para o Real Madrid. Pelas verbas envolvidas, pelo perfil e percurso do jogador em questão, pelos clubes que intervêm na operação e, já agora, pela forma como foi festejada pelo próprio esta nova etapa da sua vida profissional, vale a pena pensarmos um pouco neste assunto e, a partir dele, efectuarmos algumas comparações e tirarmos algumas conclusões. Facto: Cristiano Ronaldo é, sem quaisquer dúvidas, um dos melhores jogadores de futebol do mundo. Teve o mérito de aprender e de incutir a si próprio os hábitos de trabalho, a dedicação, o profissionalismo, a determinação, indispensáveis, no futebol como em qualquer outra actividade, para atingir uma posição de relevo. Claro está que, como quase sempre acontece em casos de desempenho excepcional, Cristiano Ronaldo soube construir o seu próprio percurso e conseguiu estar no sítio certo à hora certa, o que dá, como sabemos, imenso trabalho – teve uma boa formação de base no Sporting, teve uma belíssima escola no Manchester e espera ter agora espaço e oportunidade para jogar um futebol mais emotivo, mais latino. E, claro está, sendo Cristiano Ronaldo um jovem, um criativo e, com alguma legitimidade, reconheçamos, a sentir “o mundo a seus pés”, resolveu festejar nos Estados Unidos os primeiros momentos desta nova etapa profissional, rodeando-se de alguns símbolos e sinais exteriores - discutíveis, claro – mas facilmente aceitáveis no momento e na circunstância. Chegados aqui, feita esta introdução, há dois outros factos que gostaria de destacar: os valores envolvidos na transferência, 94 milhões de euros, tal como na remuneração de Cristiano Ronaldo - fala-se em cerca de 54 milhões de euros, em 6 anos - correm por conta de um operador privado, que toma e gere riscos por sua própria conta. É de facto uma quantia impressionante! E, provavelmente, parece ainda maior dadas as condicionantes do tempo que vivemos, com episódios tristes e circunstâncias adversas. No entanto, na mesma semana em que fomos confrontados com este negócio futebolístico, tivemos, também, duas outras notícias que, curiosamente ou talvez não, poucos comentários mereceram por parte da nossa classe política. Em cinco obras públicas de grande dimensão – entre as quais, a Ponte Rainha Santa Isabel, em Coimbra – os orçamentos iniciais foram ultrapassados em, aproximadamente, 250 milhões de euros, de acordo com um relatório do Tribunal de Contas recentemente publicado. Ficámos também a saber, entretanto, que a Segurança Social pagou, indevidamente, cerca de 132 milhões de euros a título de subsídio de desemprego, a quem, felizmente, já não estava nessa situação e, como tal, já não devia usufruir desse subsídio. No seu conjunto, sem entrar em grandes pormenores, temos 382 milhões gastos indevidamente pelo Estado que, mais tarde ou mais cedo, serão pagos pelos contribuintes. Os riscos, nestes casos, são tomados e geridos pelo Estado, mas quem os paga, em última instância, são os contribuintes. Ou seja, é um problema nosso. No entanto, nada disto merece grande realce e, muito menos, um apuramento de responsabilidades para que, pelo menos e numa perspectiva optimista e pedagógica, tais erros não voltem a repetir-se no futuro. Mas não, preferimos ir pelo caminho do populismo fácil e da pura demagogia política. Criticamos os valores da transferência de Cristiano Ronaldo, mas passamos “ao lado” das derrapagens orçamentais em (algumas) obras públicas. Achamos escandaloso o montante envolvido e gasto por uma entidade privada, mas assumimos como “quase normal” um custo adicional ao erário público de um valor quatro vezes superior.

A diferença, entre estes casos referidos, é enorme. Num deles, é o mercado a determinar o valor, é um privado a assumir os custos inerentes e é um privado a obter um eventual (legítimo e desejável) retorno do investimento efectuado. No outro, é um mercado teoricamente regulado mas que, na prática, funciona mal ou não funciona, é o Estado, teoricamente, a assumir os investimentos e a obter os (infelizmente muitos e recorrentes) prejuízos, mas são os contribuintes a pagar o preço por uma total desresponsabilização daqueles que, mais do que todos os outros, deveriam ser responsabilizados. Quanto mais não fosse por uma única e simples razão: utilizam e gerem recursos escassos e que têm origem nos impostos pagos pelos contribuintes ou na emissão de dívida pública. Num e noutro caso, pagos por todos nós. Percebo pouco de futebol. Mas tenho alguma informação sobre o estado deste nosso País. Acho até que Portugal pode e deve retirar alguns dividendos da exposição mundial dos seus cidadãos. Como este, felizmente, há muitos outros casos. Não têm a mesma exposição mediática, porque actuam em áreas mais cinzentas e menos popularizadas. Mas têm o mesmo valor, não de mercado, mas intrínseco. Cabe-nos a nós, a todos nós, ajudar a efectuar a apologia do que fazemos bem. Sem deixar de realçar, também, o que é preciso mudar. É uma questão de cidadania, construtiva e responsável.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.