A Prova dos Fatos

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A Prova dos Fatos

Marina Gascón Abellán

Sumário: 1. Duas concepções da prova: cognoscitivismo e concepção persuasiva: 1.1 Concepção cognoscitivista. 1.2 concepção persuasiva. 1.3 As relações verdade-prova. 2. A prova judicial como prova prevalecentemente indutiva: 2.1 Prova dedutiva e prova indutiva. 2.2 A valoração da prova. 3 Algumas construções doutrinais e jurisprudenciais. Considerações críticas: 3.1 A distinção prova direta/prova indireta. 3.2 Os requisitos da prova indireta ou indiciária. 4. Caráter institucionalizado da prova judicial. 5. A motivação da prova: 5.1 A necessidade de motivação da prova. 5.2. Em que consiste a motivação. 5.3. O estilo da motivação. 5.4. Resumo: regras sobre a motivação.

A teoria da argumentação, que nas últimas décadas experimentou tão espetacular desenvolvimento, tem dedicado uma escassa atenção ao juízo de fato. Prova do que se acaba de dizer é que ao folhar as bibliotecas jurídicas constata-se que a maior parte das preocupações dos juristas tem se concentrado nos problemas de interpretação das normas, assumindo –implícita ou explicitamente- que o conhecimento de fatos não suscita problemas especiais ou que, suscitando-os, está irremediavelmente destinado à discricionariedade extrema e quando não, à pura e simples arbitrariedade judicial. Uma análise minimamente reflexiva não pode deixar de destacar, no entanto, que o juízo de fato é tão ou mais problemático do que o juízo de direito; que nele a discricionariedade do juiz é freqüentemente maior do que na interpretação das normas; que é, enfim, o momento de exercício do Poder Judicial onde o juiz é mais soberano e onde, conseqüentemente, pode ser mais arbitrário. Por isso, se a teoria da argumentação pretende ser minimamente completa não pode deixar de prestar atenção ao juízo de fato.

1. Duas Concepções da prova: O cognoscitivismo e a concepção persuasiva

Na medida em que a prova judicial se dirige a comprovar a verdade ou falsidade de afirmações sobre fatos relevantes para a causa (geralmente fatos do passado que não foram presenciados pelo julgador), a concepção da prova que se mantenha, vincula-se ao modo em que se entendam a natureza, possibilidades e limites do conhecimento empírico; isto é, à epistemologia que se adote. Como linha de princípio caberia adotar dois tipos de epistemologia, cabe distinguir, –também em linha de princípio- duas concepções da prova, cada uma delas se caracteriza por manter certa relação entre os conceitos de verdade (ou enunciado verdadeiro) e prova (ou enunciado provado). Estas duas concepções são a cognoscitivista e a persuasiva.

1.1.

Concepção cognoscitivista da prova

Uma primeira epistemologia é a que poderíamos denominar objetivismo crítico: objetivismo porque entende que a objetividade do conhecimento se baseia em sua correspondência ou adequação a um mundo independente; crítico porque leva a sério as teses sobre as limitações do conhecimento. Ou seja, trata-se de uma epistemologia que afirma que existem fatos independentes que podemos conhecer embora o conhecimento alcançado seja sempre imperfeito ou relativo. A concepção da prova que deriva desta epistemologia é a cognoscitivista, que concebe a prova como sendo um instrumento de conhecimento, ou seja, como atividade direcionada a conhecer ou averiguar a verdade sobre fatos controvertidos ou litigiosos, mas ao mesmo tempo como fonte de um conhecimento que é somente provável. Em poucas palavras, desde esta perspectiva se assume que a declaração de fatos comprovados pode ser falsa. Além do mais, nesta concepção a valoração da prova concebe-se como uma atividade racional, consistente em comprovar a verdade dos enunciados à luz das provas disponíveis, e por isso susceptível de exteriorização e controle.

1.2.

Concepção persuasiva da prova

Uma segunda epistemologia é a construtivista, que acha que a objetividade do conhecimento deriva de nossos esquemas de pensamento e juízos de valor; isto é, que a verdade dos enunciados está muito vinculada ao contexto. Em sentido estrito não cabe falar de um ; melhor dizendo, a verdade, entendida como

correspondência, carece de sentido. A adoção de uma epistemologia construtivista no processo de prova manifesta-se naquelas propostas que adiam a averiguação da verdade, em favor de outras finalidades práticas do processo. Estas teses estão vinculadas à teoria do adversary system e, em geral, às posições ideológicas do processo civil que o concebem essencialmente como um instrumento para a resolução de conflitos1. É que se o objetivo do processo é dar uma solução prática ao conflito, não será necessário que a orientação da prova seja averiguar a verdade dos fatos litigiosos: bastará com obter um resultado formal que seja operativo. É mais, poderia inclusive pensar-se que a comprovação da verdade é um obstáculo para a rápida solução da controvérsia. Estas propostas alimentam uma concepção persuasiva da prova, que entende que a finalidade desta é somente persuadir com o objetivo de obter uma resolução favorável. Por isso a prova, enquanto atividade consistente em comprovar a verdade dos enunciados fáticos, não tem sentido: nem sequer pode-se discutir se o conhecimento do juiz é correto ou equivocado; simplesmente está persuadido. Além do mais, uma concepção deste tipo é compatível com (e, ainda mais, implica) uma concepção irracional da valoração da prova. De um lado, porque a persuasão

de um sujeito sobre algo é um estado

psicológico e nada mais; por outro lado, porque a persuasão poderá fundamentar-se sobre qualquer coisa que tenha influenciado na formação desse estado psicológico, e não necessariamente na produção de provas.

1.3. As relações verdade-prova A distinção entre as duas concepções da prova comentadas, pode ser analisada à luz das relações entre os conceitos de verdade e prova. Dizer que um enunciado fático é verdadeiro significa que os fatos descritos existiram ou existem em um mundo independente; ou seja, que é correta -no sentido de que se corresponde com a realidade- a descrição de fatos que formula. Dizer que um enunciado fático está provado significa que sua verdade foi comprovada; ou seja, que o enunciado foi confirmado pelas provas disponíveis2. Poderia dizer-se que enquanto o cognoscitivismo separa ambos os conceitos, a concepção persuasiva os identifica: pela perspectiva cognoscitivista a declaração de fatos provados da sentença pode ser falsa; 1

Vid. TARUFFO, M., , Rivista di Diritto Processuale, XLV, 2, 1990, pp. 429 e ss. 2 Se bem que, quando um enunciado fático tenha sido confirmado pelas provas disponíveis costuma dizerse que .

pela concepção persuasiva não tem sentido fazer tal afirmação, pois mesmo que, a rigor, a verdade dos fatos, aqui não é algo que se deva perseguir, é evidente que na prática esta posição descansa sobre um conceito de verdade em virtude do qual verdadeiro é o que resulta provado no processo. Agora, note-se que o conceito de verdade (ou enunciado verdadeiro) traduz, em relação com o da prova (ou enunciado provado), um ideal, e nesta medida dita distinção tem a virtualidade de destacar as inevitáveis limitações que o procedimento probatório padece na hora de investigar o que efetivamente sucedeu: embora somente a declaração de fatos provados resulte juridicamente relevante, não é infalível, e desde logo pode ser diferente (de maior, mas também de menor qualidade) à obtida através de outros procedimentos, que não tenham as travas e as limitações processuais3. Por isso, a distinção entre esses dois conceitos, não somente é possível, como necessária se se quiser dar conta do caráter autorizado, porém falível da declaração de fatos da sentença. Vai além, a distinção desempenha também um importante papel metodológico, pois põe em evidencia a necessidade de adotar cautelas e estabelecer garantias para fazer com que a declaração de fatos obtida no processo se aproxime o mais possível da verdade. Em resumo, uma concepção racional da prova exige distinguir entre os conceitos de verdadeiro e provado; exige, portanto, o cognoscitivismo, concepção segundo a qual o processo se orienta para a comprovação da verdade, mas o conhecimento alcançado é sempre imperfeito ou relativo. Além do mais –como indica L. FERRAJOLI- esta é a única concepção da prova que se adapta a uma atitude epistemológica não dogmática, pois, diferentemente da concepção persuasiva, que não permite pensar que a declaração de fatos da sentença seja falsa, esta sim permite pensá-lo: 4. 2.

A prova judicial como prevalentemente indutiva

O objetivo principal de um procedimento de prova é a averiguação dos fatos da causa. Porém isto não é um assunto trivial. Primeiro, porque o juiz não teve acesso direto aos 3

Como afirmam ALCHOURRÓN, C., e E. BULYGIN, poderá dizer-se que a verdade processual , , Análise lógica e direito, CEC, Madrid, 1991, p. 311. 4 FERRAJOLI, L., Direito e Razão, cit., p. 67.

fatos, de modo que o que imediatamente conhece, são enunciados sobre os fatos, cuja verdade deve-se provar. Segundo, porque a verdade de tais enunciados deve ser obtida, quase sempre, mediante um raciocínio indutivo a partir de outros enunciados fáticos verdadeiros. Terceiro, porque a averiguação da verdade deverá fazer-se mediante normas institucionais que muitas vezes atrapalham (e outras claramente impedem) a obtenção desse objetivo. Agora nos ocuparemos do segundo aspecto 2.1. Prova dedutiva e prova indutiva A verdade dos enunciados fáticos relevantes para a causa pode ser conhecida, em alguns casos, mediante observação dos fatos a que fazem referência, isto é, mediante o que se poderia denominar prova observacional, cujo grau de certeza pode considerar-se absoluto. Por exemplo, o enunciado admite prova observacional mediante a medição da superfície queimada; embora o caso paradigmático deste tipo de prova é o reconhecimento judicial ou inspeção ocular. No entanto, em geral o juiz não esteve presente quando aconteceram os fatos, de modo que seu conhecimento sobre eles quase nunca é direto ou imediato, mas indireto ou mediato. Isto é, as provas, nestes casos, não são o resultado direto da observação, porém de uma inferência que se realiza a partir de outros enunciados, inferência que pode ser de caráter dedutivo ou de caráter indutivo. Algumas inferências probatórias, efetivamente, podem ser de caráter dedutivo, e, portanto, na medida em que as premissas das quais se parta sejam verdadeiras, produzirão resultados também verdadeiros. É o que se poderia denominar prova dedutiva. Um raciocínio dedutivo válido é aquele no qual a conclusão deriva necessariamente das premissas; de modo que é absolutamente impossível que as premissas sejam verdadeiras sem que a conclusão também o seja. Por isso este raciocínio baseia-se em uma lei universal, uma lei que estabelece que sempre que acontecem umas circunstâncias se produzem necessariamente outras.

A coarctada e muitas provas científicas e biológicas são exemplos de prova dedutiva. Assim, as afirmativas , e poderiam provar-se mediante coarctada no primeiro caso, mediante prova datiloscópica no segundo, e mediante prova biológica no terceiro. A força dedutiva da coarctada, que esclarece através da regra lógica do modus tollens, aparece de modo irrefutável: a universalidade da lei em que se

apóia (aquela segundo a qual ninguém pode estar simultaneamente em dois lugares diferentes) constitui um ponto fixo de nossa experiência, a não ser que estejamos dispostos a admitir o milagre, ou a magia, ou o “dom” da ubiqüidade. E o mesmo caberia dizer de muitas provas científicas ou biológicas, embora por diferentes razões: nestes casos, a universalidade das regras que formam a premissa maior da inferência dedutiva, deriva do elevadíssimo crédito de que gozam na comunidade científica. A jurisprudência também reflete às vezes o caráter dedutivo ou demonstrativo das provas científicas, que deriva da que se atribui às leis científicas nas quais tais provas se apóiam. O Supremo Tribunal espanhol afirma, por exemplo, que (STS 2207/1993, fundamento segundo). Por isso, com referencia a uma prova de balística, esse mesmo Tribunal assinala que ; e isso porque (STS 1852/1994, fundamento segundo).

Agora, mesmo que possa parecer uma obviedade, é preciso insistir na necessidade de separar nitidamente as questões lógicas das epistemológicas, a validez da verdade: a validez de um argumento dedutivo não garante a verdade da conclusão, pois a conclusão é verdadeira as premissas sejam verdadeiras. Em outras palavras, o uso de meios de prova dedutiva não garante, por si só, a infalibilidade dos resultados; e não, obviamente, pelo caráter da inferência, mas sim pela qualidade epistemológica das premissas, particularmente pelas constituídas de asserções sobre fatos singulares. Efetivamente, inclusive nas provas dedutivas fundamentadas em regras, cuja universalidade sequer pode ser questionada, como a prova (por exemplo, a fundada na regra: ) ou a já mencionada da coarctada (fundada na regra: ), convém manter uma atitude cautelosa, pois a premissa menor, da inferência dedutiva pode ser falsa: pode ser falso que o parto acontecera, ou que alguém estivesse em determinado lugar em uma hora precisa. E em relação às provas científicas se impõem ainda maior cautela. De um lado, porque a confiabilidade dos resultados de uma prova científica dependerá de sua validez científica e de sua correção técnica: o primeiro,

porque muitas dessas provas podem ser realizadas por métodos diferentes e não todos gozam do mesmo grau de aceitação pela comunidade científica, de modo que a validez científica do método usado poderia ser objeto de discussão; no segundo, porque a aceitabilidade da prova dependerá também de que esta tenha sida realizada corretamente, de maneira que sua correção técnica poderia também ser posta em dúvida. Em todo caso, não se requer somente correção técnico-científica, como também correção –poderíamos dizer- técnico-processual. Assim, para valorar positivamente o resultado de uma prova digital, o problema já não é tanto a validez científica da prova, que poderia considerar-se absoluta, mas sua correta realização no laboratório (correção técnico-científica) e saber que colheu a impressão digital, por ordem de quem, em que objeto foi encontrada, em que ponto concreto, etc. (correção técnico-processual). E o mesmo acontece em relação à análise de uma mancha de sangue, urina, saliva: é importante o detalhe exato da coleta das mostras que depois serão analisadas.

Além do mais, de outro lado, não todas as provas científicas podem perceber-se, apesar de sua aparência, como provas dedutivas. Muitas delas –por exemplo a prova positiva de DNA- são de natureza estatística, mesmo que tenham sido bem realizadas e se tenha usado métodos cientificamente válidos, seus resultados podem ser considerados dignos de toda confiança, razão pela qual costuma-se assimilá-las, do ponto de vista de seu grau de certeza, às provas dedutivas. A jurisprudência espanhola mais recente parece consciente da natureza estatística de muitas provas científicas, mas também de sua elevada confiabilidade. Assim, acredita-se que (STS 2575/1992, fundamento segundo). Mais exatamente, < o grau de certeza é absoluto quando o resultado é negativo para a paternidade, e, quando positivo, os laboratórios de medicina legal assinalam graus de probabilidade de 99 por 100> (STC 7/1994 Fj 2º). Por isso –se afirma- (STS 2575/1992, fundamento segundo). E em relação à prova datiloscópica, embora se reconheça que , tal prova considerou-se, desde sempre, como suficiente para enervar a presunção de inocência por gozar (por todas, STS 2814/1993).

As observações recém feitas são importantes, pois põem em evidência que, pese a aura de infalibilidade que cerca as provas científicas e todas as de natureza dedutiva, deve-se assumir como tese epistemológica geral, que o grau de conhecimento que proporcionam, é somente o de probabilidade, por mais alta que esta possa ser. Porém as inferências probatórias podem ser também de caráter indutivo, pois por indução, em sentido amplo, entende-se todo aquele tipo de raciocínio em que as premissas, mesmo sendo verdadeiras, não oferecem fundamentos conclusivos para a verdade de seu resultado, mas sim que este segue aquelas com alguma probabilidade. Falamos então de prova indutiva, que constitui, sem dúvida nenhuma, o tipo de raciocínio probatório mais freqüente. Na maioria das ocasiões, efetivamente, a prova judicial dos fatos relevantes para o processo, exige lançar mão de leis ou regularidades empíricas que conectam as provas existentes com uma hipótese sobre os fatos; isto é, leis que permitem estabelecer que, as provas sendo corretas, a hipótese sobre os fatos também o será: pà h. É verdade que o raciocínio que se desenvolve a partir dessas leis (que se pàh e é p, então é h) tem aparência dedutiva, mas, a rigor, sua natureza é indutiva, e isso porque essas leis empíricas às que se recorre, são leis probabilísticas; ou seja, somente estabelecem –de acordo com nossa experiência passada- que se as provas são verdadeiras é provável que também o seja a hipótese: se p, então é provável que h. Por exemplo, leis do tipo: se alguém odiava outra pessoa que apareceu morta, e/ou estava no lugar do crime momentos antes do mesmo, e/ou tinha motivos suficientes para desejar sua morte, e/ou encontrou-se em sua casa a arma do crime, e/ou encontrou-se sangue da vítima em sua roupa, então é provável que a tenha matado.

Se a isso se agrega que no discurso judicial a maioria destas regularidades são leis sociais –portanto leis sobre a ação humana livre- e, principalmente, máximas de experiência baseadas no id quod plerumque accidit5, então a natureza probabilística da 5

As máximas de experiência, na célebre definição de STEIN
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