A quem interessa, afinal, a irracionalidade no direito? – Por Tiago

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A quem interessa, afinal, a irracionalidade do direito? – Por Tiago Gagliano Pinto Alberto
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Por Tiago Gagliano Pinto Alberto – 12/07/2016
Olá a todos!!!
Na última semana acompanhamos uma situação inusitada – inusitadíssima, aliás. O Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal e acirrado defensor dos posicionamentos adotados pela Corte, dissentiu de uma decisão outrora adotada, por maioria, pelo Plenário, ao qual encontra-se vinculado. Trata-se, como de conhecimento geral, porque divulgado aos estertores, da decisão proferida no HC nº. 135.100/MG, em que o Ministro compreendeu, diversamente do que havia sido estabelecido pela Corte em composição plena, que a execução de sentença criminal somente pode se dar após o trânsito em julgado, e não quando confirmada pela segunda instância[1].
O objetivo da decisão do Min. Celso de Mello é mais do que evidente: a reapreciação pelo Plenário da mesma matéria, mercê de recurso que decerto será interposto como forma de objurgar o provimento decisório por ele proferido. A questão, todavia, que pode ser debatida a partir da decisão é mais profunda: podemos esperar recomendação de racionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal enquanto Corte de cúpula na interpretação do direito?
Não consubstancia novidade alguma dizer que a irracionalidade grassa na aplicação do direito, seja por critérios de indefinição teórica, seja por questões de defesa de mercado.
Como exemplo do primeiro, basta dizer que a compreensão de justiça se revela bastante intrincada e subjetiva, assim como a sua correlação com o direito e, neste ponto, o que o direito exatamente quer dizer, se examinado em conjunto com outros critérios, a exemplo da lógica, moral, eficiência, empirismo, cognitivismo, não-cognitivismo expressionismo e outros que poderiam ser suscitados para enriquecer o tema e que, por igual, causam indefinição ao momento da resolução de alguma questão controvertida. Este, aliás, é um riquíssimo tema para aprofundamento em outra oportunidade.
No que toca ao segundo ponto, a defesa de mercado, parece que o fato de Juízos diversos produzirem decisões em sentido diametralmente opostas pode ser interessante para o "mercado jurídico", já que a racionalidade decisória consubstanciada em diretriz bem delineada no campo jurisprudencial pode diminuir, ou eliminar, a sorte "lotérica" na distribuição de novas demandas e, como consequência, afastar potenciais litigantes.
Ocorre, no entanto, que, seja por um motivo seja por outro, a vida em sociedade reclama estabilidade. O mercado, agentes econômicos, Administração Pública e o próprio cidadão, individualmente considerado, necessitam conduzir a vida de maneira serena, sem sobressaltos consistentes na alteração abrupta de uma lei ou posicionamento jurisprudencial, ou, ainda, o que é bem pior, pela pluralidade de apreciações subjetivas de uma mesma questão objetiva. A lei, assim como as decisões, sob este ponto de vista, obrigam não por uma questão de forma, senão porque se traduzem em uma maneira de estabilidade da vida em sociedade, de vida sem ineditismos injustificados, ou, em termos mais atrelados ao campo judicante, decisões-surpresas.
Para alcançar este intento, existem diversas sugestões teóricas. A denominada "cultura de precedentes" talvez seja uma das mais eficazes, se bem compreendida e aplicada. O Código de Processo Civil de 2015, aliás, aposta muito nesta tônica, criando uma série de caminhos decisórios que levam aos precedentes obrigatórios, sumulados ou não, e à vinculação das instâncias inferiores ao que restou decidido pelas Cortes às quais submetidas.
O que está por detrás dessa visão é uma ideia bem interessante e que, resumidamente, pode ser assim descrita: ao reforçar a criação e observância aos precedentes, garante-se, a um só turno, a estabilidade decisória, porque somente poderão ser objeto de valorações individuais aquelas matérias em que se verifique alguma peculiaridade apta a denotar a necessidade de distinção ao decidido anteriormente; e, no campo da formação em si do precedente, situações que levem à superação propriamente dita do que outrora restou pacificado, criando, então, outro precedente que alimentará a mesma rotina.
Nesse campo, a função da Suprema Corte enquanto Corte de precedentes é, sem qualquer sombra de dúvida, de acentuada importância. Isso porque ao consolidar um posicionamento que venha a formar um precedente, sumulado ou não, a Corte atua substancialmente, agregando material jurídico à formação do direito. Dito de outra maneira: ao fixar determinado posicionamento que ultime por formar um precedente, oriundo ou não de processo de "perfil subjetivo" a Corte proferirá o que se convencionou denominar na literatura especializada de "decisão interpretativa", capaz de alterar substancialmente, na matéria, na essência, a ordem jurídica, agregando elemento que servirá como critério decisório (no sentido da razão prática) para que o cidadão, os agentes de mercado, a Administração Pública, os entes federativos, particulares, públicos, nacionais ou estrangeiros, possam saber como se portar, negociar, agir, argumentar, deliberar, contribuir e, enfim, praticar toda a sorte de ações que usualmente se levam a cabo em sociedade, em quaisquer níveis (econômica, política, social etc).
Assim, quando se vê uma atitude como a adotada pelo decano da Corte de negativa de vinculação individual ao que restou delineado pelo Tribunal em formação plenária, ainda que com o não-dito objetivo de viabilizar rediscussão da matéria pelo próprio Órgão que já a decidira, é de se discutir se de fato faz sentido esperar que a cultura de precedentes venha a representar uma séria opção para a diminuição progressiva da irracionalidade no direito. Estamos optando pela racionalidade, ou brincando de racionalidade temática? Estamos preferindo, como sempre se deu, o individualismo decisório, a imprecisão, a indefinição, o particularismo exegético e a loteria como formas de decisão que primem pela política da sorte na distribuição, ou de fato pretendemos trilhar algum rumo que nos conduza à racionalidade, à previsibilidade e, em último grau, à estabilidade, fática, jurídica e comportamental?
Esta é uma opção que temos que fazer. Pode ser que interesse mais a imprevisibilidade, porque assim o mercado terá um terreno mais fértil para captação de potenciais litigantes e, sob o óptica do órgão decisório, possamos manter individualismos sem limites bem esquadrinhados; pode ser, por outro lado, que interesse mais a estabilidade, para que possamos saber como nos conduzir nas questões cotidianas, mercadológicas, políticas e econômicas. Tanto faz; é mesmo questão de opção.
O que não parece acertado é viver no meio termo, conclamando uma cultura de estabilidade e pontuando individualidades, concitar os demais órgãos julgadores a seguir uma ideia que os vincule e relativizar no seio da própria Corte de estabilidade tal forma de agir; preferir o individual que consagra o pessoal, ao geral que viabiliza o impessoal. Enfim, ainda que a conduta individual esteja prenhe de boas intenções, precisamos saber, juízes, advogados, empresários, políticos, cidadãos em geral, se este é mesmo o fiel da balança.
Se, eventualmente submetida ao crivo recursal, a decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello não for expungida pelo Plenário sob fundamento de que ele, enquanto juiz da Corte, estava vinculado ao decidido anteriormente, não podendo dissentir sem identificar um elemento de distinção ou algum ponto, não meramente individual e oriundo da sua própria opinião, que viabilize a superação do entendimento, o Supremo Tribunal Federal estará passando o seguinte recado aos operadores do direito: para além de imprevisíveis, somos, todos, avessos à racionalidade jurídica; continuemos assim, embora de vez em quando digamos o contrário.
Um grande abraço a todos. Compartilhem a paz!

Notas e Referências:
[1] Íntegra da decisão disponível em http://s.conjur.com.br/dl/presuncao-inocencia-prisao-segundo-grau.pdf. Acesso em 07 set de 2016.


Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.






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