A RAINHA PEREGRINA – LENDAS E MEMÓRIAS

July 24, 2017 | Autor: M.Lourdes Cidraes | Categoria: Portuguese History, Portuguese Medieval History, Santiago de Compostela, Camino de Santiago
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A RAINHA PEREGRINA – LENDAS E MEMÓRIAS

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Maria de Lourdes Cidraes Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa CLEPUL / CTPP

Resumo: No ano de 1325, Isabel de Aragão, viúva de D. Dinis e sexta rainha de Portugal, sem indicar previamente o seu destino, partiu em peregrinação a Santiago de Compostela, “antes que se cumprisse o ano do dia do passamento de el-rei”. Da visita ao túmulo do Apóstolo, registado na belíssima iluminura da Genealogia dos Reis de Portugal, ficou a memória da magnificência dos presentes oferecidos. Do Santuário trouxe D. Isabel o bordão de peregrina, oferta do arcebispo, com que quis ser sepultada e que irá permanecer como preciosa relíquia, conservada até aos nossos dias, mas também como emblema iconográfico e como motivo de uma rica tradição lendária, associada, sobretudo, a sítios onde a rainha viveu ou por onde terá passado. Algumas lendas ficaram assinalando lugares onde, segundo a tradição, descansou durante a sua peregrinação. Embora não possam ser consideradas fontes históricas, não deixam de constituir interessantes documentos para a história do culto e das tradições populares isabelinas no norte de Portugal. Na Galiza, Santiago de Compostela conserva ainda a memória da Rainha Peregrina, recordada na toponímia e numa rara imagem seiscentista, exposta no Museu das Peregrinações, onde está representada com o chapéu e as vieiras dos peregrinos de Santiago. Palavras chave: Rainha Santa Isabel, Peregrinações, Caminho de Santiago, lendas, Fragoso, Fontoura, Arrifana

Em finais de 1280 partiram para a corte de Aragão os fidalgos portugueses João Velho, João Martins e Vasco Pires, enviados pelo rei D. Dinis de Portugal como procuradores para o representarem no tratado de casamento com a infanta D. Isabel, 1

Comunicação apresentada no VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Santiago de Compostela, Julho de 2005 e publicada em Da Galiza a Timor – A lusofonia em foco, vol. I, Universidade de Santiago de Compostela, Publicacións, 2008.

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filha de Pedro III, o Grande, e de Constança da Sicília. O casamento, por procuração, viria a realizar-se, por “palavra de presente”, no mês de Fevereiro de 1281, no paço real de Barcelona 2. Só no mês de Maio de 1282 a jovem rainha de Portugal partiria para o seu novo reino, entrando pela fronteira norte, na região de Bragança. As bodas realizaram-se na vila de Trancoso, sem bênção nupcial porque sobre o reino pesava o interdito papal. Era a primeira vez que os noivos se encontravam. Irão constituir o mais notável casal da realeza portuguesa medieval – um poeta e uma santa. De D. Dinis ficaram as marcas de uma importantíssima acção de povoamento e de fomento económico, agrário e mercantil, e de desenvolvimento cultural, testemunhada pelos documentos da chancelaria real, pelos itinerários régios que confirmam um impressionante número de deslocações por todo o reino, pela criação da universidade e uso oficial da língua portuguesa e pela construção de inúmeros castelos e fortalezas que, nalguns casos, chegaram aos nossos dias. Dele ficaram sobretudo, para sempre guardadas como preciosa herança cultural, as palavras do poeta – as cantigas de amor e de amigo de um trovador que foi rei de Portugal e neto de Afonso X de Castela , o Sábio. De D. Isabel, ficou a memória da sua piedade e devoção, da protecção concedida a ordens religiosas e conventos, do apoio desvelado a doentes, inválidos, órfãos e jovens desprotegidas; mas também a memória da sua acção pacificadora e de uma activa intervenção na governação do reino e nos conflitos abertos em Portugal e nos outros reinos peninsulares, confirmadas por documentos coevos e por um importante conjunto de cartas pessoais, enviadas pela rainha a seu irmão Jaime II, de Aragão 3. Contudo, no imaginário colectivo e na devoção popular ficou sobretudo a imagem de uma rainha caritativa, tratando por suas mãos leprosos e chagados e distribuindo esmolas aos pobres que acorriam a vê-la: a “rainha das rosas”, representada em inúmeras imagens, da iluminura à gravura e da pintura à imaginária e à escultura, segurando no regaço as flores em que o pão e as moedas milagrosamente se tinham transformado.

A acta do casamento arquivada no Livro 1º da Chancelaria de D. Dinis, data de 11 de Fevereiro de 1281 e não de 1282, como regista Fr. Francisco Brandão na Monarquia Lusitana. Vd. Félix Lopes, Data e circunstâncias do casamento da Rainha Santa Isabel, separata de Itinerarium, Ano IX, nº 40, Braga, 1963, pp. 193 – 219. 3 Descobertas no arquivo de Saragoça por Sebastião Antunes Rodrigues e por ele publicadas em 1958. 2

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Apesar de constituir um motivo hagiográfico introduzido tardiamente, por contaminação com o culto de Santa Isabel da Hungria, o “milagre das rosas” permanece até hoje como o mais persistente elemento da tradição lendária isabelina e do culto popular e religioso da Rainha Santa. Uma das mais antigas representações é a iluminura da Genealogia dos Reis de Portugal, desenhada por António de Holanda e iluminada por Simão Bening, na Flandres, na 1ª metade do séc. XVI, que, para além do seu valor artístico, constitui um notável documento iconográfico que se reveste de um particular interesse documental. É a única imagem que se conhece recordando a chegada de Isabel de Aragão a Santiago de Compostela, onde fora em peregrinação a seguir à morte de D. Dinis. Na base da iluminura vemos a rainha, acompanhada pela comitiva, chegando à porta do santuário. Veste o hábito de clarissa que envergara em sinal de viuvez – por motivo de “dó e de luto”, como fez escrever em declaração por ela mandada exarar. Na cabeça conserva a coroa real. A segunda cena passa-se no interior da catedral. D. Isabel, de joelhos, deposita a coroa nas mãos do arcebispo. A oferta da coroa representa a realeza que se humilha, venerando o Apóstolo. Note-se que D. Isabel conservará outras coroas, que irá deixar em testamento a sua nora, a rainha D. Beatriz, a sua neta, D. Maria de Castela, e ao “seu” mosteiro de Santa Clara de Coimbra. A peregrinação narrada nas tarjas da iluminura constitui um facto histórico confirmado por documentos coevos. A rainha decidiu partir como romeira ao santuário da Galiza pouco depois da morte de D. Dinis, ocorrida em Janeiro de 1325. No dia 25 de Julho, dia da festa do Apóstolo, estava em Santiago de Compostela, regressando antes do fim do ano a Portugal, para o aniversário da morte do marido. A romaria de D. Isabel é relatada pormenorizadamente pelo seu primeiro biógrafo, o autor do texto anónimo do séc. XIV, Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel e seus bons feitos e milagres em sa vida e depois da morte 4:

Foi publicado no séc. XVII por Fr. Francisco Brandão, na Monarquia Lusitana, VI Parte (1672), com o título Relaçam da vida gloriosa de Santa Isabel, Rainha de Portugal, transladada de um livro escrito de mão, que está no convento de Santa Clara de Coimbra. A partir desta edição e com consulta duma cópia manuscrita existente no Museu Machado de Castro, J. J. Nunes publicou em 1921 o texto “reconstruído”, no Boletim de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, com o título Vida e Milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal. 4

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E, ante que se comprisse o ano do dia do passamento delRey, começou esta rainha caminho, sem o dando a entender, pera ir aa eigreja em romaria u jaz o corpo de Santiago apostolo. E assi calou pera u ia que os da sa companha per alguuns dias que nom entendiam a que partes ir queria, atá que nom chegou acerca de Santiago a uum logar que é alongado da vila per ũa legoa, onde parecia a eigreja. Foi de pee com gram devoçom até a eigreja de Santiago, e esto era no mes de julho, ante a festa de Santiago por dias, e teve ali a festa. E em no dia da festa, dizendo o arcebispo missa, ofereceu esta rainha ao apostolo Santiago a mais nobre coroa que ela avia com muitas pedras preciosas, e os mais nobres e melhores panos, apostados com muito aljoufar, pedras ricas [e] penas, que [em] vivendo com elrey, seu marido, vestira, e avia ũa mui fermosa e de gram valia, cuberta das mais ricas sueiras, que diziam aqueles que ali eram, que nunqua veer podessem rainha, nem outra senhora tam nobres cousas oferecer, e a mua [que] era enfreada de huum freo que nom era senom ouro e prata e pedras preciosas. E ofereceo i uuns panos d’ondas, de geebe rosado com sinais de Portugal e de Aragom, em que andava muito aljoufar, e ofereceo copas mui nobres e mui bem lavradas, por que ela em tempo delrey bevia. E tragia feitas capas, ũa vestimenta com almatica pera diácono e com todo comprimento mui nobre e rico e mui boom e oferecia ao apostolo Santiago, e do seu aver fez outrosi grandes ofertas e esmolas de guisa que diziam os da eigreja de Santiago que ali erom que [nom] era [em] memoria de omeens em aquel tempo que tam nobre e tam rica oferta a nenhũa pessoa viissem dar aa eigreja de Santiago. E, comprida sa romaria, o arcebispo da eigreja deu aa rainha uum bordom e esportela, pera per[e] o bordom e esportela parecer romeira de Santiago, e tornou-se pera Portugal 5. Como vemos, segundo este texto conhecemos o ano da peregrinação e a época da chegada a Santiago de Compostela. Contudo, o biógrafo não indica os objectivos da rainha, provavelmente para sufragar a alma de D. Dinis 6, nem explica as razões que a J.J.Nunes (edição de), pp. 1341 – 1342. Mário Martins analisa as motivações dos peregrinos: “Iam a Compostela, por simples devoção, para salvar a alma, para ganhar as indulgências e, também, em penitência imposta pelo confessor. Outros peregrinavam por causa de algum defunto. De facto, em 1263, João Diogo, de Guimarães, mandou um homem por sua alma a S. Tiago da Galiza. Em 1328, ordenava outro testador: mando a quem vá por mim a

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terão levado a ocultar inicialmente a finalidade da viagem. Não refere igualmente o local de partida 7, nem dá indicações sobre o percurso seguido e a sua duração. Por outro lado, descreve pormenorizadamente a chegada de D. Isabel ao santuário, depois de se apear à vista das torres da catedral - provavelmente no Monte Gozo -, referindo as oferendas feitas no dia da festa do apóstolo - a mais nobre coroa, jóias riquíssimas e outros artigos preciosos - e ainda as esmolas, tão liberais que em todos causaram admiração. Cumpridos os votos, recebeu a rainha do arcebispo as insígnias dos romeiros: o bordão e a esportela. O bordão é uma belíssima peça de arte sacra, de grande valor simbólico, reproduzindo, em madeira, ágata e prata, o báculo da estátua de S. Tiago sentado, do Pórtico da Glória da catedral compostelana, da autoria de mestre Mateo 8; báculo em forma de tau, como seria usado pelos arcebispos de Santiago de Compostela até ao séc. XVI 9. A riqueza do bordão oferecido à rainha parece confirmar que o arcebispo D. Berengário II teve conhecimento antecipado da peregrinação de D. Isabel, que provavelmente conhecera em Portugal quando aí permaneceu largo tempo, no ano de 1322, como enviado do papa João XXII em missão pacificadora no conflito entre D. Dinis e o infante D. Afonso

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. O bordão de D. Isabel foi encontrado no início do séc.

XVII, por ocasião da abertura do túmulo realizada no âmbito do processo de canonização. Com ele a rainha quisera ser sepultada. Guardado religiosamente pelas freiras de Santa Clara, que enviaram um fragmento para Madrid, pertence hoje à Confraria da Rainha Santa Isabel (Coimbra). Dos preciosos objectos, oferecidos pela viúva de D. Dinis ao santuário do Apóstolo, nada chegou até nós. Provavelmente, segundo D. Alejandro Barral, director do Museo de la Catedral – Palácio de Gelmírez, São Tiago de Galiza hum maravidi e meyo”, in Peregrinações e narrativas de Milagres na nossa Idade Média, p. 120. 7 Provavelmente Coimbra, uma vez que a rainha só chegou a Compostela em finais de Julho. No entanto, Brandão, na Monarquia Lusitana, afirma que a viúva de D. Dinis permaneceu nas casas reais do convento de Odivelas até ao mês de Maio, assim parecendo secundar Frei Marcos de Lisboa que escreve “… daly (Odivelas) se partiu em romaria”, op. cit., pp. 213-213. 8 Elemento da iconografia do santo, encontramo-lo noutras esculturas medievais, como a imagem de pedra que se conserva no Museu de Pontevedra. 9 Informação amavelmente prestada por D. Alejandro Barral. 10 Vd. Fernando Félix Lopes, “Santa Isabel na contenda com D. Diniz e o filho”, in Colectânea de Estudos de História e Literatura, vol.III, Santa Isabel e outros Estudos, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1997, pp. 120-127, e A. Lopes Ferreira, Historia de la Santa A. M. Iglesia de Santiago de Compostela, vol. VI, 1903, pp. 65-66. 5

poderão ter sido oferecidos e fundidos na sequência das solicitações do rei de Castela, Fernando VII, após as invasões francesas 11. À semelhança, aliás, do que terá acontecido com o célebre incensário oferecido pelo rei D. Manuel I de Portugal. Biógrafos e cronistas posteriores acrescentaram, já no séc. XVII, uma segunda peregrinação, sem fundamento histórico. A rainha teria feito esta segunda romaria, já idosa, no ano do jubileu de 1335, incógnita e como peregrina penitente, a pé e esmolando. Esta tradição poderá ter surgido a partir de versões posteriores e bastante ampliadas em relação à primeira biografia. Em meados do séc. XVI Frei Marcos de Lisboa ainda refere uma única peregrinação, afirmando, ao contrário do primeiro biógrafo, que a romaria foi feita toda a pé: “E daly se partiu em romaria pera Sanctiago a pe” 12. Na primeira metade do século seguinte, Frei Luís dos Anjos já acrescenta uma segunda peregrinação, afirmando que a rainha-viúva tornou a visitar o túmulo do Apóstolo, “para mais livremente se encomendar a Nosso Senhor”: “Sendo já de sessenta e quatro anos tornou a Santiago da Galiza e tornou a pé pedindo esmola.” 13 No final do mesmo século, Correia Lacerda deixou-nos uma longa narrativa que irá servir de fonte a autores posteriores 14: Chegou a era de 1335, em que havia jubileu na egreja de S. Thiago de Galliza, e ainda que estava cançada dos trabalhos, envelhecida com os annos, prostrada com indisposições, debilitada com as penitencias, dando-lhe vigor a devoção, determinou ir ganhar naquelle sanctuario o thesouro das indulgencias, que nelle abrem as chaves pontifícias, fazendo uma penitente romaria. Se quando a fez na primeira occasião, foi a grandeza dissimulada, nesta foi a grandeza deposta; se então foi a maior parte do caminho a pé, agora foi a pé todo o caminho, vestida em trajos de romeira com alforge às costas, pedindo pelas portas esmola 15.

Informação oral, amavelmente prestada por D. Alejandro Barral. Crónica da Ordem dos Frades Menores, Segunda Parte, Livro VIII, Cap. XXI, (1562), pp. 212 – 213. 13 Jardim de Portugal (1626). 14 Como Caetano de Sousa, na História Genealógica da Casa Real Portuguesa (1735) 15 D. Fernando Correia Lacerda, História da Vida, Morte e Milagres, Canonização e Transladação de Santa Isabel, Sexta Rainha de Portugal (1680), p. 234. 11 12

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Que caminho terá percorrido Isabel de Aragão na sua primeira e única peregrinação? Não conhecemos com rigor todo o seu traçado. Terá certamente seguido a principal via do caminho português, que, subindo de Lisboa (e note-se que não sabemos se D. Isabel partiu de Lisboa, de Odivelas ou do seu paço junto do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra), passava por Santarém, Coimbra, Porto, Ponte de Lima e Valença entrando na Galiza por Tui e seguindo por Porriño, Redondela, Pontevedra, Caldas dos Reis e Padrón até Santiago de Compostela. Caminho jacobeu que acompanhava as principais vias medievais, que em parte aproveitavam as antigas estradas romanas. Contudo, a localização de santuários de grande devoção, de mosteiros e albergarias, bem como a necessidade de encontrar caminho mais curto para os que peregrinavam a pé, introduziam desvios que não nos permitem falar de um único caminho português. A importância da comitiva de D. Isabel terá exigido a escolha de um itinerário seguro e facilmente transitável por mulas e cavalos, mas também por eventuais carros de apoio. A viagem decorreu no verão, assim se evitando as grandes chuvadas e permitindo a passagem de rios a vau, evitando o recurso às barcas usadas nos locais onde ainda não existiam pontes 16. A norte da cidade do Porto D. Isabel terá provavelmente seguido o caminho interior, menos sujeito a ataques do que o caminho atlântico. Não sabemos, no entanto, qual das suas variantes escolheu. A existência de algumas lendas, que obviamente não podem ser avaliadas como testemunhos históricos, parece testemunhar a passagem por lugares como Arrifana, perto de Vila da Feira, a sul do Porto, e por Fragoso e Fontoura, no alto Minho, assim parecendo apontar, como mais provável, a via Porto / Barcelos / Ponte de Lima / Valença. De facto, da riquíssima tradição lendária da Rainha Santa – que inclui mais de meia centena de lendas, hoje em dia quase esquecidas mas que em muitos casos remontam, provavelmente, ao tempo em que a rainha viveu

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– fazem

parte algumas lendas associadas à peregrinação a Santiago de Compostela: a lenda da “cura da criança cega” ou “o milagre da Arrifana”, as lendas da “Fonte da Fortuna” e do “Poço da Rainha”, em Fragoso, e a lenda etimológica da “Fonte do ouro”, em Fontoura.

A construção da ponte medieval de Barcelos, por iniciativa do conde D. Pedro, terá sido iniciada precisamente nesse ano de 1325, ficando concluída poucos anos depois. Vd. Manuel F. F. Rocha, “Barcelos no Caminho de Santiago”, in Actas do Congresso Histórico Cultural, Barcelos, Outubro de 1998, ed. da C. M. Barcelos, 1999, pp. 113. 17 Vd. M. Lourdes Cidares, “O mito da Rainha Santa – uma tradição popular e religiosa”, in Revista Lusitana, (Nova Série) 19-21 (1999-2001), pp. 71- 80. 16

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Recordemos brevemente estas curiosas narrativas: “Lenda da Arrifana” ou “milagre da cura da criança cega”. A acção desta lenda, de natureza curativa, situa-se no lugar de Arrifana, perto de Vila da Feira, durante a peregrinação da rainha a Santiago de Compostela. Foi narrada pela primeira vez nos capítulos apócrifos da biografia do séc. XIV 18: Viindo esta rainha de Coimbra pera a ciidade do Porto, recodio ao camiho ũa molher em ũu logar a que dizem Arrifana e pedio-lhe por meerce que posesse as mãos em [n]os olhos de ũa moça, sa filha, que dizia que era cega de nacença. Esta rainha lhe pos as mãos em [n]os olhos e, tornando aaquel logo a rainha, recodio aquela molher com aquela moça, a que Deus dera já vista, e mostrava, e a rainha mandou se calasse e esto que o nom dissesse. 19 Esta tradição milagrosa foi retomada por cronistas e biógrafos, como Frei Marcos de Lisboa, e incluída nos autos da canonização. Está representada numa grande tela joanina, que considero atribuível ao pintor régio André Gonçalves

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e se conserva

na capela da Rainha Santa Isabel do castelo de Estremoz, onde vemos D. Isabel pondo as mãos nos olhos de uma criança cega, rodeada de donas e criados. No alto duma colina, avistam-se as torres do castelo da Feira. A viúva de D. Dinis terá provavelmente pernoitado neste castelo, que era terra de seu senhorio e onde existia um paço real. À lenda da Arrifana foi acrescentada mais tarde a “lenda da laranjeira da rainha”: a mãe da criança, que seria uma estalajadeira, face à insistência de D. Isabel, ofereceu-lhe uma laranja do seu quintal, que queria recusar por ser amarga. Milagrosamente, duma semente caída por terra, nasceu uma árvore que dava as laranjas mais doces que se conheciam. No coro alto do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra, no altar seiscentista Rainha Santa Isabel, proveniente do mosteiro velho, encontra-se um pequeno retábulo lateral que apresenta, como tema iconográfico, esta curiosa tradição.

Foram acrescentados antes do séc. XVI porque já fazem parte da cópia manuscrita e quinhentista conservada no Museu Machado de Castro, de Coimbra. 19 Ed. de J. J. Nunes, p. 1380. 20 Vd. M. Lourdes Cidraes, Os Painéis da Rainha, Lisboa, ed. Colibri / Câmara Municipal de Estremoz, 2005. 18

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A “lenda do milagre da Arrifana” permanece viva na zona de Vila da Feira. Na grande procissão que se realiza anualmente no 2º domingo de Julho em Arrifana, entre os 17 andores que a integram, figura em último lugar - e assim em lugar de honra - o andor da Rainha Santa Isabel, representada em imagem recente, impondo as mãos à criança cega. A bandeira de Santa Isabel vem igualmente em último lugar, antecedendo a cruz paroquial e o pálio 21. Duas outras lendas são associadas à passagem da Rainha Santa pela freguesia de Fragoso, no concelho de Barcelos, durante a sua peregrinação a Santiago de Compostela. A primeira, de natureza etimológica, e já referida por Fr. Francisco de Santiago na Crónica da Santa Província de N. Senhora da Soledade, de 1757, atribui a origem do topónimo à Rainha Santa que, ao passar neste lugar na sua peregrinação a Compostela, vendo sítio “tão cheio de pedras e tão áspero”, teria perguntado o seu nome. Ao ser-lhe respondido que era Valverde, teria comentado: “Fragoso lhe chamo eu” 22. A segunda lenda, de natureza etiológica, narra o aparecimento milagroso de uma fonte que ainda hoje brota no lugar de Fragoso, um pouco acima da antiga ermida de S. Vicente e vem já registada na Corografia Portuguesa, de 1706

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. M. da Costa Pereira

apresenta duas versões “uma muito antiga, conhecida desde criança” 24 e outra recolhida recentemente: Na primeira, o povo dizia, que Santa Isabel ao estacionar naquele sítio não encontrou água fresca para a sede que a todos abrasava e então abençoando um penedo, dele brotou a água que ainda hoje dele jorra, considerada com virtudes para curar doenças e com a característica, segundo a mesma lenda, de fazer fermentar a massa do pão de milho, sem que seja preciso fermento. Tal foi em tempos a fama da miraculosa água, que até da Galiza ali vinham buscá-la para a cura de todas as Informações amavelmente prestadas pela Comissão de Festas. Parte I, Livro IV, capítulo XI, p. 327. O topónimo Fragoso remonta ao início da nacionalidade estando já registado na “Carta de Doação do Couto à Ermida de S. Vicente de Fragoso por D. Afonso Henriques no ano de 1127”, vd. José Joaquim Saleiro Beirão, Fragoso. Um Couto em Terras de Neiva (1127 – 1833), (2002). Vd. também Teotónio da Fonseca, O Concelho de Barcelos Aquém e Além-Cávado, 1987, p. 237, (1ª ed. 1948). 23 P. António C. Costa, Corografia Portuguesa (1706), 2ª ed. 1868, pp. 267 - 268. 24 Vd. Teotónio da Fonseca, op. cit., ou Saleiro Beirão, op. cit.. 21 22

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moléstias. A outra versão mais recente é contada da seguinte forma: Quando a comitiva da Rainha que mais tarde a Igreja santificou, parou no local, foi logo rodeada pelas crianças da localidade, para ver aquela de quem se contavam já milagres e prodígios e como fazia muito calor a soberana perguntou às crianças: -“o que quereis beber, água ou vinho?” e estas em coro responderam - água!... A Rainha estendeu a mão sobre a dura rocha granítica e a água começou a cair em tal abundância, que todos dessedentou e através dos séculos, até hoje continua a cumprir essa missão àqueles que queiram subir os quinhentos metros que a separam da capela, subindo a encosta pelo lado esquerdo, pelo caminho ao lado do arroio que desce o monte de S. Gonçalo. Por esta razão, e pelas curas que operou, segundo a lenda, a fonte tem vários nomes, que são Fonte de Santa Isabel, Fonte da Virtude e Fonte Santa 25. É de notar que na primeira versão há evidente contaminação com o Ciclo dos Milagres de Nossa Senhora – o motivo do pão que cresce aparece na Cantiga de Santa Maria nº 258 (“Como Santa Maria acrescentou a ua boa dona a massa que tiinha pera pan fazer”.) e na lenda “A pobrezinha e os grãos de milho”

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. A segunda resulta de

evidente apropriação da “lenda das fontes” de S. Gonçalo de Amarante, que deu nome ao fronteiro monte de S. Gonçalo, onde existia ermida de grande devoção, recentemente reconstruída em local próximo 27. No Alto Neiva, a sul de Valença, e assim quase no termo da parte portuguesa do caminho que subindo de Ponte de Lima entrava na Galiza por Tui, outra lenda, de novo de natureza etimológica, recorda a passagem da rainha por Fontoura. Nesse lugar terá pernoitado D. Isabel e nessa noite, na fonte que ainda hoje podemos ver na Quinta do Alto, das águas brotaram palhetas de ouro.

Vd. Manuel da Costa Pereira, “Os Caminhos de Santiago na Região do Baixo Neiva”, III Encontro Sobre os Caminhos Portugueses a Santiago, Valença, ed. Câmara Municipal de Valença, 1997, pp. 270-271. 26 Apud Idália Farinho Custódio, Isabel Cardigos, Maria Aliete Farinho Galhoz, Património Oral do Concelho de Loulé, vol. I, Contos, Loulé, ed. Câmara Municipal de Loulé, 2004. 27 No local da desaparecida ermida existe um marco geodésico. 25

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Na tradição lendária isabelina, o bordão oferecido à rainha pelo arcebispo de Compostela é por vezes investido de poderes mágicos, numa dupla contaminação com o imaginário tradicional e com a tradição bíblica. Assim, na “lenda do mausoléu que dá um salto”, o pesado túmulo, mandado fazer por D. Isabel e que as águas do Mondego ameaçavam, tocado pelo bordão da rainha “salta” milagrosamente para o piso superior da igreja de Santa Clara-a-Velha. Correia Lacerda, bispo do Porto, não hesitou em incluir este prodígio na sua biografia de D. Isabel. Nalgumas versões de outra lenda isabelina - a “lenda das águas do Tejo que se apartam” - a rainha caminha sobre o seu bordão no meio das águas do rio que se abriram para lhe dar passagem até ao túmulo de Santa Iria, guardado no fundo do Tejo. Esta curiosa lenda, em que se une uma tradição popular de artes mágicas com a tradição bíblica, teve origem num acontecimento real, a visita de D. Dinis e D. Isabel a Santarém, cerca de 1320. Referida no início do processo de canonização 28, foi incluída por Brandão na 6ª parte da Monarquia Lusitana e narrada por Vieira no Sermão da Rainha Santa Isabel, pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses. Um painel de azulejo figurativo setecentista, da capela do castelo de Estremoz, evoca-a, sem no entanto aludir ao bordão. Tal como as rosas, o hábito, a coroa e as armas de Portugal e de Aragão, o bordão de peregrina é um emblema essencial da iconografia isabelina. Com ele D. Isabel está representada em numerosas gravuras e pinturas, sobretudo de referência franciscana. Com ele e com a sarcela de romeira quis ser evocada no belíssimo túmulo de pedra, por ela própria mandado fazer em vida 29. Na estátua jacente, que constitui o único retrato fidedigno, Isabel de Aragão e de Portugal ficou para sempre representada, por sua vontade expressa, como rainha - com a coroa na cabeça e rodeada pelas armas de Portugal e de Aragão e do Império, embora envergando o hábito de burel e o cordão de nós - e como peregrina - com o bordão e a sarcela, emblemas dos romeiros que, no longínquo ano de 1325, recebera no santuário de Santiago de Compostela. Cidade que ainda hoje conserva a memória da Rainha Peregrina – mesmo que já poucos o recordem - no nome da antiga e movimentada Rua da Raiña e também na bela e raríssima imagem, de proveniência desconhecida, onde está representada como simples peregrina, com o chapéu de romeira e as vieiras do Apóstolo. Imagem que se conserva 28 29

A rainha D. Isabel foi canonizada por Urbano VIII em 1625. Conserva-se presentemente no coro baixo de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra. 11

no Museu das Peregrinações, aguardando a visita dos numerosos viajantes que hoje, como séculos atrás, continuam a demandar a bela cidade de Santiago de Compostela.

BIBLIOGRAFIA AAVV, I Congresso Internacional dos Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela, Lisboa, 1992. ALMEIDA, Carlos Brochado de e Sebastião Matos, Santiago nos Caminhos de Barcelos, Barcelos, C. M. Barcelos, 1999. BARRAL IGLESIAS, Alejandro e José Suárez Otero, La Catedral de Santiago de Compostela, León, Edilesa, 2003. BEIRÃO, José Joaquim Saleiro, Fragoso. Um couto em Terras de Neiva (1127 – 1833), Fragoso – Barcelos, ed. do Autor, 2002. CIDRAES, M. Lourdes, “O mito da Rainha Santa – uma tradição popular e religiosa”, Revista Lusitana (Nova série) nºs 19 – 21, Lisboa, Ed. Colibri, 2004, pp. 31-80. COSTA, P. António Carvalho da, Corografia Portugueza e Descripçam Topografica, tomo primeiro, Braga, Typ. Domingos Gonçalves Gouveia,1868. FONSECA, Teotónio da, O Concelho de Barcelos Aquém e Além – Cavado, Barcelos, Sta Casa da Misericórdia Barcelos / C. M. Barcelos, 1987. LACERDA, Correia, Vida, Morte e Milagres de Santa Isabel, sexta rainha de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1868, (1680). LISBOA, Frei Marcos de, Crónica dos Frades Menores da Província de Portugal, edição da F.L.U.P., organização, introdução e índice de C.I.H.E., Porto. Universidade do Porto, 2001, (1562). Livro que fala da boa vida que fez a Rainha de Portugal Dona Isabel, e de seus bons feitos e milagres em sua vida e depois da morte (séc. XIV) manuscrito do séc. XVI (Museu Machado de Castro, Coimbra); ed. de Frei Francisco BRANDÃO, “Relaçam da vida da gloriosa Santa Isabel, Rainha de Portugal”, Monarquia Lusitana, 6ª parte, (1672); ed. de José Joaquim NUNES. Vida Milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal, Bol. da Academia das Ciências,Classe de Letras, LXIII, 1920. LOPES, Fernando Félix, “Santa Isabel de Portugal e outros estudos”, in Colectânea de Estudos de História e Literatura, vol. III, Santa Isabel de Portugal e outros Estudos, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1997 (colectânea de sete importantes estudos sobre a Rainha Santa Isabel dispersos por várias publicações). MARTINS, Mário, Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média, 2ª ed., Lisboa, Ed. Brotéria, 1957. MORENO, Humberto Carlos Baquero, “Vias portuguesas de peregrinação a Santiago de Compostela na Idade Média”, in Revista da Faculdade de Letras, vol. III, Porto, 1986. MORENO, Humberto Carlos Baquero e Alcina Manuela de Oliveira Martins, “Figuras de là realeza portuguesa em peregrinacion a Santiago”, in Santiago, Camino de Europa, Santiago de Compostela, 1993. PEREIRA, Manuel M. da Costa, “Os caminhos de Santiago na região do Baixo Neiva”, in III Encontro sobre os Caminhos Portugueses a Santiago, Valença, C. M. de Valença, 1997. ROCHA, Manuel Inácio Fernandes da, “Barcelos no Caminho de Santiago”, in Barcelos Terra Condal, Actas do Congresso Histórico e Cultural realizado em Barcelos em 1998, 2º vol., Barcelos, C. M. Barcelos, 1999. RODRIGUES, Sebastião Antunes, Rainha Santa Isabel, Cartas Inéditas e Outros

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Documentos, Coimbra, Coimbra Editora, 1958. SANTIAGO, Fr. Francisco de, Chronica da Santa Província de N. Senhora da Soledade, tomo primeiro, Lisboa, of. Miguel Manescal da Costa, 1762. VASCONCELOS, António Garcia de, Evolução do Culto de Dona Isabel de Aragão, Esposa do rei lavrador Dom Diniz de Portugal (A Rainha Santa), Coimbra, Imp. da Universidade, 1894; Dona Isabel de Aragão (A Rainha Santa), reprodução fac-similada da edição de 1891-1894, prefácio e introdução de Manuel Augusto Rodrigues, Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1993.

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ANEXO – Imagens

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Fig. 17 e 18 “Porta Itineris Sancti Iacobi” Cándido Pazos (2004) Monte do Gozo Chegada do Caminho Francês Santiago de Compostela (Pormenor Rainha Santa)

Agradecimentos: Confraria da Rainha Santa Isabel (Coimbra) Museo de las Peregrinaciones Y Santiago (Santiago de Compostela) Museo de la Catedral – Palácio de Gelmírez Quinta do Alto (Fontoura) Dr. José Joaquim Saleiro Beirão (Fragoso) Dr. José Luís Sanches (Associação de Peregrinos Via Lusitana)

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ADENDA 1 – A hipótese avançada da Rainha D. Isabel ter parado no Monte Gozo não parece ter fundamento uma vez que este lugar onde em 2004 foi erguido o novo monumento, a “Porta Itineris Sancti Iacobi”, se situa a nordeste do Santuário de Santiago de Compostela no ponto de chegada do Caminho Francês. É mais provável a opinião dos autores que indicam o lugar de Milladoiro, situada a sul, entre Padron e o Santuário, no percurso do Caminho Português. 2 – A tradição tardia de uma segunda peregrinação realizada pela Rainha D. Isabel poderá ter-se formado com base no texto da Crónica de D. Afonso IV de Rui de Pina, onde o cronista situa a peregrinação da rainha no ano de 1335, acrescentando que no regresso teria feito o percurso a pé e esmolando. Note-se que o cronista não refere a peregrinação de 1325, largamente descrita na primeira fonte hagiográfica.

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